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DIALETICA DA MALANDRAGEM 69 Em compensacio, Leonardo Filho tem com os narradores picarescos al- ‘gumas afinidades: como éles, é de origem humilde e, como alguns déles, irre- gular, “tilho de uma plsadela e um beliscdo". Ainda como éles 6 largado no mundo, mas nio abandonado, como foram o Lazarillo ot o Buscén, de Quevedo; pelo contrério, mal os pais o deixam o destino The dé um pai mui- to melhor na pessoa do Compadre, o bom barbelro que toma conta déle para © resto da vida e o abriga da adversidade material. Tanto assim que The falta um traco bésico do picaro: 0 choque Aspero com a realidade, que leva & mentira, & dissimulacio, a0 roubo, e constitui a maior desculpa das “picar- dias". Na origem o picaro ingénuo; a brutalidade da vida @ que aos pou- os © val tomando esperto e sem escrdpulos, quase como defesa; mas Leo- nardo, bem abrigado pelo Padrinho, nasce malandro felt, como se se tra- tasse de uma qlilidade essencial, no um atributo adquirido por forca das cireunstancias. ‘Mais ainda: a humildade da origem e o desamparo da sorte se traduzem necessiriamente, para 0 protagonista dos romances espanhéis e os que 03 seguiram de perto, na condicio servil. Bm algum momento da sua carrel- ra éle 6 criado, de tal modo que ja se supés erradamente que a sun destena- cio proviesse dai, — o térmo “picaro” significando um tipo inferior de ser- Yo, sobretudo ajudante de cozinha, sujo ¢ esfarrapado. E é do fato de ser eriado que decorre um principio importante na estrutiracfo do romance, pois pasando de amo a amo o picaro vai-se movendo, miudando de ambiente, va- Fiando a experiéncia e vendo a sociedade no conjunto. Mas o nosso Leonardo fica tio longe da condicfo servil, que o Padrinho se ofende quando a Ma- drinha sugere que Ihe mande ensinar um oficio manual no Arsenal de Guer- Pa, a famosa Conceigio; © excelente homem quer vé-lo padre ou formado em direito, e neste sentido procura eneaminhé-lo, livrando-o de qualquer necessidade de ganhar a Vida, Por isso, nunca aparece sériamente o proble- ma da subsisténcia, mesmo quando Leonardo passa de raspio e quase como Jogo pelo servico das cozinhas reais, o que o aproximaria vagamente da con- digo’ de picaro no sentido acima referido, Semelhante a varios picaros, éle 6 amével e risonho, espontineo nos Atos ¢ estreitamente aderente aos fatos, que o vio rolando pela vida. Isto © submete, como a éles, a uma espécle de causalidade externa, de motive #40 que vem das circunsténcias e torna personagem um tftere, esvaziado de lastro psteol6gico © caracterizado apenas pelos solavancos do enrédo. O sentimento de um destino que motiva a conduta é vivo nas Memérias, onde a Comadtre se refere & sina. que acompanha o afilhado, acurailando contratem- Pos © desmanchando a cada instante as combinacées favordvels, Como os piearos, éle vive um pouco ao sabor da sorte, sem pl reflextio; mas ao contrério délos nada aprende com a coerente com a vocacio de fantoche, Leonardo na- da conclui; 0 fato do livro ser narrado na terceira pessoa facilita 70 ANTONIO CANDIDO esta inconsciéncia, pois cabe ao narrador fazer as poucas reflexdes morais, no geral Ievemente cinicas e em todo 0 caso otimistas, ao contrério do que ‘corre com o sarcasm cido e o relative pessimismo dos romances pica- rescos, © malandro espanhol termina sempre, ou numa resignada mediocri- dade, aceita como abrigo depois de tanta agitacdo, ou mais miserdvel que nunca, no universo do desengano e da.desilusdo, que maream fortemente a literatura espanhola do Século de Ouro, Curtido pela vida, acuado e batido, le nfio tem sentimentos, mas apenas eflexos de ataque e defesa, ‘Traindo os amigos, enganando os patrées, no tem lnha de conduta, nfo ama e, se vier a casar, casard por interésse, dis- ‘posto inclusive fs acomodacées mais féscas, como o pobre Lazarillo. O nos- 80 Leonardo, embora desprovido de palxio, tem sentimentos mais sinceros neste terreno, e em parte o livro 6 a histéria do seu amor cheio de obsté- culos pela sonsa Luisinha, com quem termina casado, depois de promovido, reformado e dono de cinco herancas que the vieram cair nas mios sem que ‘movesse uma palha. Nfo sendo nenhum modélo de virtude, é leal e chega 1 comprometer-se sériamente para no lesar o malandro Teotoninho Sabia. Um anti-plearo, portanto, nestas e outras cireunstincias, como a de nfio pro- eurar € nio agradar os “‘superiores”, que constituem a meta suprema do ‘smalandro espanhol. Se 0 protagonista for assim, 6 de esperar que o livro, tomado no conjun: to, apresente a mesma oscilacdo de algumas analogias e multas diferencas ‘em relaglio aos romances picarescos. Estes so dominados pelo senso do espaco fisico e social, pois o picaro anda por diversos lugares © entra em contacto com varios grupos e cama- ‘das, nflo Sendo raros os destinos internacionals, como o do “galego-romano” Estebanillo, O fato de ser um aventureiro desclassificado se traduz pela ‘mudanca de condigio, cujo tipo elementar, estabelecido no primeiro em data, © Lazarillo de Tormes, 6 a mudanca de patrées. Criado de mendigo, criado ‘de escudeiro pobre, criado de padre, o pequeno vagabundo percorre a socie- dade, cujos tipos vio surgindo © se completando, de maneira a tornar o li- ‘vro uma sondagem dos grupos socials e seus costumes, — coisa que pros- seguiu na tradicio do romance picaresco, fazendo déle um dos modelos da ficedo realista moderna. Embora deformado pelo Angulo satirico, o seu pon- to de vista descobre a sociedade na variacio dos lugares, dos grupos, das classes, — estas, vistas freqlientemente das inferiores para as superiores, em obediéncia ao sentido da eventual ascensiio do picaro. Nessa lenta pa- nordrica, um moralismo corriqueiro para terminar, mas pouca ou nenhuma intengfo realmente moral, apesar dos protestos constantes com que o narra- dor procura dar um cunho exemplar as suas malandragens. E em relacho ‘a mulheres, acentuada misoginia. Embora nio sejam licenciosos, como tam- ‘bém nfo so sentimentais, os romances picarescos sfo freqllentemente obsce- nose usam A vontade o palavrio, em correspondéncia com os meios des- -eritos. DIALETICA DA MALANDRAGEM a © livro de Manuel Antonio € de vocabulério Timpo, nfo tem qualquer baixeza de expressfio e, quando entra pela zona da licenclosidade, discreto, ou de tal modo caricatural que o clemento irregular se desfaz em bom hus mor, — como 6 notadamente o caso da seqUéncia que narra o infortinio do padre surpreendido em trajes menores no quarto da Cigana, Mas vimos que tem uma certa tintura de sentimento amoroso, apesar de descrito com tronia oportuna; e a sétira, visivel por todo éle, nunca abrange o conjunto a socledade, pois ao contrério da picaresca 0 set campo é restrito, IE. ROMANCE MALANDRO, ‘Digamos entiio que Leonardo néo é um plearo, saido da tradicio espe nhola; mas o primeiro grande malandro que entra na novelistica brasileira, vindo de uma tradicio quase folclérica e correspondendo, mais do que se costuma dizer, a certa atmosfera cOmica e popuilaresca de seu tempo, no Brasil, Malandro que seria elevado & categoria de simbolo por Mario de Andrade em Macunafma e que Manuel Anténio com certeza plasmou espon- ‘tineamente, ao aderir com a inteligéncia e a afetividade ao tom popular das hist6rias que, segundo a tradicHo, ouviu de um companheiro de jornal, antigo sargento comandado pelo Major Vidigal de verdad J notamos, com efeito, que Leonardo pratica a asticia pela asticia (mesmo quando cla tem por finalidade safé-lo de uma enraseada) ivel que modelos eruditos tenham influido em sua elaboracko; mas o que parece predominar no livro é 0 dinamismo proprio dos astuciosos de hist6ria popular. Por isso, Mario de Andrade estava certo so dizer que nas Memérias nfo hé realismo em sentido moderno; o que nelas se acha € ‘algo mais vasto € intemporal, préprio da comicidade popularesca. Esta costela originariamente folelérica talvez explique certas manifes- tacdes de cunho arquetipico, — inclusive 0 coméco pela frase padrio dos contos da earochinha: “Era no tempo do Rei. Ao mesmo universo per tencerla a constelacio de fadas boas (Padrinho e Madrinha) © a espécie de fada agourenta que é a Vizinha, todos cercando o berco do menino © ser- vindo aos designios da sorte, a “sina” invocada mais de uma vez no curso a narrativa. Pertenceria também o anonimato de varios personagens, im Portantes e secundarios, designados pela profissio ou a posicso no grupo, O:que de um Indo 0s dissolve em categorias sociais tipicas, mas de outro os DIALETICA DA MALANDRAGEM 7 a0 estimulo causado por situagdes © personagens de cunho arquetipico, do- tados da capacidade de despertar ressonincia. Mas além déste tipo de generalidade, hé outro que o reforca e ao mesmo tempo determina, res- tringindo o seu sentido e tornando-o mais adequado so Ambito especifico do Brasil. Noutras palavras: hi no livro um primelro estrato universall- zador, onde fermentam arquétipos validos para a imaginacio de um am- plo ciclo de cultura, que se compraz nos mesmos catos de tricksters ou nas mesinas situacdes naseidas do capricho da “sina”; 6 hé um segundo estrato universalizador de cunho mais restrito, onde se encontram represontacées a vida capazes de estimular a imaginagio de um universo menor dentro este ciclo: o brasileiro, Nas Memérias, o segundo estrato 6 constituido pela dialética da ordem € da desordem, que manifesta concretamente as relacSes humanas no pla- ‘no do livro, do qual forma o sistema de referéncia. © seu cardter de principio estrutural, que gera 0 esqueleto de sustentacio, & devido A for- malizacso estética de circunstancias de caréter social profundamente sig- nificativas como modos de existéncia; e que por isso contribuem para atin- gir essencialmente os leitores, Esta afirmativa s6 pode ser esclarecida pela descricdo do sistema de relagées dos personagens, que mostra: (1) a construgéo, na socledade des- cerita pelo livro, de uma ordem comunicando-se com uma desordem que a eérea de todos os lados; (2) a sua correspondénela profunda, muito mais ‘que documentéria, a certos aspectos assumidos pela relacio entre a ordem @ a desordem na sociedade brasileira da primeira metade do século 19. Veremos entio que, embora elementares como concepefio de vida © ca- Tacterizacdo dos personagens, as Memérias séo um livro agudo como per cepcio das relacdes humanas tomadas em conjunto. Se nfo teve cons- ciéneia nitida, € fora de divida que o autor teve maestria suficiente para ‘organizar certo niimero de personagens segundo intuicSes adequadas da realidade social. ‘Tomemos como base o personagem central do livre, Leonardo Filho, ‘imaginando que ocupa no respectivo espaco uma posicéo também central; A direita est sua mie, A esquerda seu pai, os trés no mesmo plano. Com uum mfinimo de arbitrio podemos dispor os demais personagens, mesmo al- guins vagos figurantes, acima e abaixo desta linha equatorial por éles for- mada. Acima estio os que vivem segundo normas estabelecidas, tendo no pice o grande representante delas, Major Vidigal; abaixo estio os que yivem em oposicéo ou pelo menos integracto duvidosa em relacio a elas Poderiamos dizer que ha; déste modo, um hemisfério positive da ordem © um hemisfério negativo da desordem, funcionanto como dois imAs que atraem Leonardo, depois de terem atrafdo seus pais. A dindmica do li- vro pressupde uma gangorra dos dois polos, enquanto Leonardo vai cres- cendo e participando ora de um, ora de outro, até ser finalmente absorvido pelo pélo convencionalmente positivo. ritar W3q4uos3d opipuoa] 9D}Dg DD Dyuinbag W30u0 Seossalg <— sagdojay —— DIALETICA DA MALANDRAGEM 2 moral e na accitacdo risonha do “homem como éle 6”, mistura de einismo & bonomia que mostra ao leitor uma relativa equivaléncia entre o universo da ‘ordem ¢ 0 da desordem; entre o que se poderia chamar convencionalmente (0 bem e 0 mal. Na construcéo do enrédo esta circunstancia 6 representada objetiva mente pela atitude de espirito com que 0 narrador expée os momentos de ‘ordem e de desordem, que acabam igualmente nivelados ante um leltor incapaz de julgar, porque o autor retirou qualquer eseala necesséria para ‘sto. Mas ha algo mais profundo, que ampara as camadas superficials de Interpretacdo: a equivaléncia da ordem e da desordem na prépria econo- mia do livro, como se pode verificar pela descricéo das situacbes e das re Tacées. Tomemes apenas dois exemplos. Leonardo gosta de Luisinha desde menino, desde o belo epis6dio do “Fogo no Campo”, quando vé o seu rostinho acanhado de roceira transfigu- rado pela emoc&o dos rojées coloridos, Mas como as clreunstdneias (ot nos térmos do livro, a “sina”) a afastam déle para o casamento convencio- nal com José Manuel, éle, sem capacidade de sofrer (pois a0 contrério do que diz 0 narrador nfo tem a fibra amorosa do pal), passa facilmente a Outros améres e a encantadora Vidinha. Esta lembra, pela espontaneida- de dos costumes, a moreninha “amigada” com o tropeiro, que amenizou a es- tadia do mercendrio alemfo Schlichthorst no Rio daguele tempo, eantando modinhas sentada na esteira, junto com a mae complacente (10). Lulsinha e Vidinha constituem um par admiravelmente simétrico, A primeira, no plano da ordem, é a mocinha burguesa com quem nfo hé re lagio vidvel fora do casamento, pois ela traz consigo heranca, parentela, osiguo e deveres. Vidinha, no plano da desordem, é a mulher que se Pode apenas amar, sem casamento nem deveres, porque nada conduz além da sua graca e da sua curiosa familia sem obrigacdo nem sanc&o, onde todes se arrumam mais ou menos conforme os pendores do instinto e do prazer. % durante a fase dos améres com Vidinha, ou logo apés, que Leo- nardo se mete nas encrencas mais sérias e pitoreseas, como que libertado dos projetos respeitiveis que o padrinho e a madrinha tinham tracado para a sua vida Ora, quando o “destino” o reaproxima de Luisinha, providencialmen- te vidva, e éle retoma o naméro que levard direto ao casamento, notamos que a tonalidade do relato néo fica mais aprovativa e, pelo contrério, que ‘as seqiiéncias de Vidinha tém um encanto mais calido. Como Leonard © narrador parece aproximar-se do casamento com a devida circunspeccio, ‘mas sem entusiasmo. Nessa altura, comparamos a situacdo com tudo que sabemos dos sé res no universo do livro e no podemos deixar de fazer uma extrapolacio. Dada a estrutura daquela sociedade, se Luisinha pode vir a ser uma es- ésa fiel e caseira, o mais provavel 6 que Leonardo siga a norma dos ma- 86 ANTONIO CANDIDO recalcadas. Mas a liberdade quase feérica do espaco ficcional de Manuel Ant6nio, livre de culpabilidade e remorso, de repressao e sangio interiores, colore e mobiliza 0 firmamento do Romantismo, como os rojées do “Fogo no Campo” ou as baianas dancando nas procissées. Gragas a isto, se diverge do super-ogo habitual de nossa novelistica, efetua uma espécie de desmistificacio que o aproxima das formas espon- téneas de vida social, articulando-se com elas de modo mais fundo. Fa- amos um paralelo que talvez ajude. Na formaco historia dos Estados Unidos houve desde cedo uma pre- senca constritora da lei, religiosa e civil, que plasmou os grupos e 03 indi viduos, delimitando os comportamentos gracas a forca punitiva do castigo exterior e do sentimento interior de pecado. Dai uma sociedade moral, que encontra no romance expressOes como A Letra Hscarlate, de Nathanael Hawthorne, ¢ di lugar a dramas como o das feiticeiras de Salem. Hsse endurecimento do grupo e do individuo confere a ambos grande forca de identidade e resisténcia; mas desumaniza as relagdes com os ou- tros, sobretudo os individuos de outros grupos, que néo pertencem a mes- ‘ma Tei e, portanto, podem ser manipulados ao bel-prazer. A alienacdo tor- hna-se ao mesmo tempo marca de reprovacio e castigo do réprobo; o duro modélo biblico do povo eleito, justificando a sua brutalidade com os nAo- eleites, 0 outros, reaparece nessas comunidades de leitores quotidianos da Biblia. Ordem e liberdade, — isto 6, policiamentos internos e externos, ireito de arbitrio e de aco violenta sébre o estranho, — sio formulagdes Bsse estado de coisas. No Brasil, nunca os grupos ou os individuos encontraram efetivamente tais formas; nunca tiveram a obsessiio da ordem sendo como principio abs- trato, nem da liberdade sendo como capricho. As formas espontaneas de sociabilidade atuaram com maior desafdgo e por isso abrandaram os choques entre a norma e a conduta, tornando menos. dramaticos os conflitos de cons- ciéneia As duas situagdes diversas se ligam ao mecanismo das respeetivas so- ciedades: uma que, sob alegacio de enganadora fraternidade, visava a criar © manter um grupo idealmente mono-racial e mono-religioso; outra que in- corpora de fato o pluralismo racial e depois religioso @ sua natureza mais intima, a dospelto de certas fiecSes ideolégicas postularem inicialmente o contrério. Nao querendo constituir um grupo homogéneo e, em conse- qliéneia, nfo precisando defendé-lo asperamente, a sociedade brasileira se abriu com maior largueza & penetracio dos grupos dominados ou estra- nhos. E ganhou em flexibilidade o que perdeu em inteireza e coeréncia. © sentido profundo das Memérias esti ligado ao fato delas no se en- ‘quadrarem em nenhuma das racionalizacdes ideolégicas reinantes na lite- ratura brasileira de entio: indianismo, nacionalismo, grandeza do sofri- mento, redenco pela dor, pompa do estilo, etc. Na sua estrutura mais $8, ANTONIO CANDIDO de valéres mals lidimos, enquanto agride 0 que, sendo hirto e cristalizado, ameaca a fluidez, que é uma das dimensdes fecundas do nosso univer- so cultural. Essa comicidade foge as osferas sancionadas da norma burguesa ¢ vai encontrar a irreveréncla e a amoralidade de certas expressdes popula~ res, Ela se manifesta em Pedro Malazarte no nivel folelérico e encontra ‘em Gregério de Matos express6es rutilantes, que reaparecem de modo pe- riddico, até aleancarem no Modernismo as suas expresses méximas, com Ma- cunaima e Serafim Ponte Grande. Ela amaina as quinas e dé lugar a toda a sorte de acomodagées (ou negagses), que por vézes nos fazem pa- recer inferiores ante uma visdo estipidamente nutrida de valéres puritanos, como a das sociedades capitalistas; mas que facilitarao a nossa insercao num ‘mundo eventualmente aberto. ‘Com muito menos viruléncia e estilizacdio do que os dois livros citados, © de Manuel Anténio pertence a um entroncamento dessa linha, que tem varias modalidades. Nem ¢ de espantar que s6 depois do Modernismo en- contrasse finalmente a gléria e o favor dos leitores, com um ritmo de edi- ees que nos Gitimos vinte e cinco anos ultrapassa uma por ano, em con- traste com o anterior, de uma cada oito anos. Na limpidez transparente do seu universo sem culpa, entrevemos 0 con- tOrtio de uma terra sem males definitivos ou irremediaveis, regida por uma encantadora neutralidade moral. 1 nfo se trabalha, nfio se passa necessi- ade, tudo se remedeia. Na sociedade parasitéria ¢ indolente, que era a dos homens livres do Brasil de entdo, haveria muito disto, gracas @ bru- talidade do trabalho escravo, que o autor elide junto com outras formas de violencia. Mas como éle visa ao tipo © ao paradigma, nés vislumbramos através das situacées sociais concretas uma espécie de mundo arquetipico a lenda, onde o realismo € contrabalancado por elementos brandamente fabulosos: nascimento aventuroso, numes tutelares, dragdes, escamoteacio da ordem econdmica, inviabilidade da cronologia, ilogicidade das relacGes. Por isso, tomemos com reserva a idéia de que as Memérias so um panora- ma documentério do Brasil joanino; e depois de ter sugerido que séo antes a sua anatomia espectral, muito mais totalizadore, néo pensemos nada e deixemo-nos embalar por essa fabula realista composta em tempo de allegra vivace, NOTAS 2. José ‘Verissimo —

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