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Quando refletimos sobre a Natureza em geral, ou sobre a histéria da humanidade, ou sobre nossa propria ‘atividade intelectual, vemos em primeiro lugar a imagem de um incessante emaranhado de relagbes e reagbes, de ermutagdes e combinagdes, nas quais nada permanece ‘o-qué, onde € como era, mas nas quais tudo se move, toma forma e passa. Vemos portanto em primeiro plano @ imagem de um todo, com suas partes ainda mais ou ‘menos mantidas ao fundo; observamos os movimentos, as transigdes, as conexdes, em vez das coisas que se mover € combinam e estdo ligadas. Esta concepeio do mundo Primitivo, naif, porém intrinsecamente correta, & a mesma dda filosofia grega antiga, e foi formulada pela primeira vez com clareca por Heréclito: do & e nio 6, porque tudo é fluido, esté constantemente mudando, constante- ‘mente tomando forma e passando. Friedrich Engels UL ML. W. vi vu. vu. INDICE A DIALETICA DO SEXO FEMINISMO AMERICANO FREUDISMO: UM FEMINISMO DESVIRTUADO ABAIXO A INFANCIA RACISCO: 0 SEXISMO DA FAMILIA DO HOMEM ‘0 AMOR A CULTURA DO ROMANCE. CULTURA (MASCULINA) DIALETICA SEXUAL DA HISTORIA DA CULTURA © FEMINISMO NA ERA DA ECOLOGIA CONCLUSAO: A REVOLUGAO DEFINITIVA, Ww 28 58 87 1s 147 169 181 197 221 233 I. A DIALETICA DO SEXO As classes sexuais sto tio enraizadas, que se tor- nam invisiveis, A existéncia dessas classes ‘pode parecer ‘uma desigualdade superficial, facilmente soluciondvel com algumas reformas, ou talvez com a integracio plena das mulheres na forga de trabalho. Mas a reagio do homem, da mulher ¢ da crianga comum — “O qué? Ora, nio se pode mudar isto! Voc’ deve estar loucol” — esti mais proxima da verdade. Falamos de algumas coisas tio pro- fundas quanto esta, Essa reagio instintiva € honesta, pois, mesmo quando 0 ignoram, as feministas falam de uma ‘mudanga na condi¢ao biol6gica bésica. O fato de que uma mudanga tio profunda no possa se ajustar em ca- tegorias tradicionais de pensamento, p.e., 0 “politico”, ‘corre no porque essas categorias ndo se usem, mas por- que nao so suficientemente amplas: um feminismo ra cal as perpassa, Se houvesse um outro termo mais abran- gente, do que revoluedo, n6s 0 usariamos. “Até que fosse atingido um certo nivel de evolucdo € que a tecnologia chegasse a sofisticago atual, questio- nar condigdes biol6gicas bésicas era loucura. Por que deveria uma mulher trocar seu precioso lugar no curral, por uma uta sangrenta e sem esperanca? Entretanto, pela primeira vez em alguns paises, as pré-condigdes para ‘8 revolugo feminista existem — na verdade, a situagio ccomega a exigir essa revolucio. uw ‘As primeiras mulheres estéo conseguindo escapar a0 massacre, e, inseyuras e vacilantes, comegam a. des- cobrir-se umas is outras. Seu primeiro passo & uma obser- vvago cuidadosa, em conjunto, para ressensibilizar uma conscigncia partida. Isto penoso. No importa quantos niveis de conscigncia sejam atingidas, 0 problema sempre se aprofunda, Ele se acha em todo iugat. A divisio Yin ¢ Yang peneira toda a cultura, a historia, a economia, © propria natureza; as vers6es ocidentais modernas da discriminagio sexual integram apenas o substrato. mais superficial © recente. Intensifiear assim nossa. sensbili- dade em relagio ao sexismo traz problemas muito piores do que os que a nova conscitneia do racismo’ trouxe Para os militares negros. As feminists tém que questionar fio s6 toda a cultura oeidental, como a prépria organiza- fo da’ cultura, e, mais; até a propria oreanizagto da na- tureza. Muitas mulheres desistem, desesperadas. Se & ne- cessério ir tio longe, elas preferem desconhecer 0 assunt. Outras continuam fortalecendo e expandindo o movimento, sua dolorosa sensbiidade em relacio & opresséo da mu Ther existe com um tinico propésito: eliminé-la Finalmente Contuis, antes que possamos asi para mudar a si- tuasio, precisamos saber como ela suraiv evoluiv,e atra- vvés de que insttuigdes ela opera hoje. Citando Engels: “[Devemos] examinar a sucesséo dos fatos, a partir dos qusis 0 antagonismo brotou, de modo a descobrir. nas condigdes assim eriadas, os meios de pér fim 0 conflito.” Para a revolucio feminista, precisamos de-uma anélise da dindmica da guerra dos sexos tio completa quanto ara a revolugdo econémica foi a andlise de Marx © Engels sobre 0 antagonismo das classes. Mais complete 2inda, Porque Tidamos com um problema mais amplo; com uma ‘opressio que remonia além da histéria eseria, até © proprio reino animal. ‘Ao criat esta andlise, podemos recorter ltico de Marx e Engels, mas nfo a suas opi as mulheres — eles néo sabiam quase nada sobre a con- digdo das mulheres enquanto classe oprimida, reconhe- cendo-a somente quando isso’ coincidia'com aeconomia, 12 Marx e Engels superaram seus precursores socialis- tas, porque desenvolveram um método de anélise 20 mes- mo tempo dialética © materialista. Os primeiros a com- preender a Hist6ria disleticamente, viram 0 mundo como lum processo, como um fluxo natural de acio ¢ reacio, de elementos opostos, porém insepardveis © interpene- trantes. Por terem sido capazes de perceber a Historia mais como um filme do que como fotos instantineas, tentaram evitar cair na visa0 “metafisica” estagnada, que aprisionou tantas outras grandes mentes. Até mesmo este tipo de andlise pode ser um produto da divisio sexual, ‘como discutiremos no Capitulo 9, Combinaram esta vis ‘so da interago dinimica das forcas hist6ricas com uma visio materialista, ie., tentaram pela primeira vez dar uma base real A mudanga hist6rica e cultural, tragar 0 desenvolvimento das classes econSmicas, a partir de cau- ‘sas orginicas, Compreendendo integralmente os meca- nismos da Histéria, esperavam mostrar ao homem como dominé-la, (s pensadores socialistas anteriores a Marx ¢ Engels, ‘como Fourier, Owen ¢ Bebel, nfo foram capazes de fazer ‘mais do que interpretar moralmente as desigualdades so- ciais existentes, postulando um mundo ideal, onde os pri vilégios de classe e a exploracio nao deveriam existi, sim- pplesmente gragas a boa vontade, do mesmo modo como as primeiras pensadoras feministas postularam um mundo ‘onde o privilégio do homem ea exploragio nfo deveriam cexistir, simplesmente gracas & boa vontade. Em ambos os casos — por nio terem os pensadores primitivos com- preendido realmente como a injustica social tinha evo- Iuido, mantido a si mesma, ou poderia ser eliminada — suas idéias cairam num vazio cultural, ut6pico. Marx ¢ Engels, por outro Indo, tentaram um ‘enfoque cientifico dda Histéria, Trouxeram @ conflito das classes as suas ori {gens econémicas reais, projetando uma solucéo econd- mica, baseada em pré-condicbes econdmnicas j existentes: 1 tomada dos meios de produco pelo proletariado levaria ‘4 um comunismo, onde 0 governo se retrairia, no pre~ cisando mais reprimir a classe baixa em beneficio da classe mais alta, Na sociedade sem classe, os interes: 13 Mas a doutrina do materialismo hist6rico, por mais que tenha representado um avango significative em rela- ho a anilise histériea anterior, nfo f resposta com- pleta, como os fatos posteriores o confirmaram. Porque, apesar de Marx e Engels fundamentarem sua teoria na realidade, era ela apenas uma realidade parcial. Esta é a definigio estritamente econdmica do materialismo hist6- “O materialismo histérico € aquela visio do curso da Historia que busca a causa diltime e a grande energia movel Se todos 0s fatos histéricos no desenvolvimento econdmico da sociedade, nas mudangas dos modos de produgto e troca, na conseqiente divisio da sociedade em classes distintas,e nas Tutas entre essas classes.” (Grifos da autora) Mais adiante, ele afirm: “.-.que toda a histéria do. passado, com excesio dos Agios primitvos, fois histria de Tutas de classes; que estas classes confltantes da sociedade sio sempre os resultados dos, ‘modos de produgio e troca—numa palavra, das condiSes ‘econémicas de sun época; que a estrutura econdmica da socie- ade sempre fornece a base real, exclusivamente a parti da gual podemos formular tanto a’ explicaglo.iltima de toda 4 superestrutura das instituig6es politcas e juridicas, quanto 8 das idéias religiosas,filoséficas e demais idéias de um pe- odo histérico dado.” (Grifos da autora). Seria um erro tentar explicar a opressio das mulhe- Fes, a partir desta interpretacdo estritamente econdmica, A andlise de classes 6 um belo instrumento de trabalho, ‘mas é limitada. Apesar de correta num sentido linear, ela no se aprofunda o suficiente, Hé todo um substrate se- xual da dialética historica que Engels algumas vezes per eebe obscuramente. Mas, por ver a sexualidade somente através de um filtro econdmico, reduzindo tudo a ‘sto, rio € capaz de avalié-la por si mesma. 14 on oe entre o homem ¢ a mulher estabeleceu-se para fins de re- Ee ee Mc rhc xno «io ost ee ees ne Mas Engels deu crédito demais oo reconheci soe oan ete eae aus orto msn crs Vee NUT psn 260, (NT) | 1, A correlagio que cle estabelece aa Orisem da Familia, da Propriedade. Private e do Estado entce 0 inerdesenvolvimesto ‘desees dois sistemas ‘mma escala de tempo deve ser intexpretada ‘como se segue MATRIARCADO 5 PATRIARCADD————> 6 ergo gen I 15 dos preconceitos de Marx com relagfio as mulheres (um reconceito cultural partihado por Freud, bem como Por todos os homens de cultura), perigoso, se tentarmos forgar o feminismo a entrar numa’ estrutura marxista orto- doxa — congelando em dogmas o que eram apenas insights incidentais de Marx ¢ Engels sobre as classes se- xuais. Em vez disso, precisamos ampliar © materialismo hiist6rico para incluir o que é estritamente marxista, do ‘mesmo modo como a fisica da relatividade nfo invalidou a fisica newoniana, apenas tragou um circulo a sua volta, limitando sua apiicagdo — por comparagéo apenas — ‘a uma esfera menor. Pois um diggnéstico econdmico que remonta a propriedade dos meios de produgao, ¢ até dos meios de reproducio, nao explica tudo. Existe um nivel da realidade que no deriva diretamente da economi ‘A suposigio de que, antes de ser econémica, a real dade & psicossexual, 6 geralmente acusada de aist6rica pelos que aceitam uma visio materialista dialética da His- {6ria, porque ela parece nos situar antes do ponto em que ‘Marx comegou: tateando através de um nevoeito de hipé= teses ut6picas, de sistemas filoséficos que podem ser cer tos ou errados (niio hé como dizer), sistemas que expli- cam desenvolvimentos histéricos coneretos por categorias @ priori de pensamento. O materialismo histérico, a0 con- trio, tentou explicar o “conhecer” pelo “ser”, © nao vice-versa, Mas existe uma terceira alternativa ainda nfo ten- tada; podemos desenvolver uma visio materialista da His- ‘ria, baseada no proprio sexo. ‘AS primeiras te6ricas feministas foram, para uma visio materialista do sexo, 0 que Fourier, Bebel e Owen foram para uma visio materilista das classes. De modo eral, a teoria feminista tem sido tio inadequada quanto 8 primciras tentativas feministas de corrigit 0 sexismo. Era de esperar que isso ocorresse. O problema é to vasto que, na primeira tentativa, s6 a superficie poderia set examinada, descrevendo-se ‘apenas as desigualdades ‘mai aritantes. Simone de Beauvoir foi a nica que chegou perto de uma andlise definitiva — que talvez a tenha realizado, Sua penetrante obra O Segmdo ts Sexo — que 16 ‘apareceu recentemente, no inicio da década de cinglenta, ara um mundo convencido de que o feminismo estava ‘morto — pela primeira vez tentou assentar o feminismo fem bases hist6ricas. De todas as tedricas feministas, Simo- ne de Beauvoir & a mais completa e abrangente, ao relacio- nar o feminismo com as melhores idéias da nossa cultura. Pode ser que esta virtude também seja seu tinico defeito. Ela € quase que sofisticada demais, culta de- mais. Onde isto se torna uma deficiéncia — 0 que certa- ‘mente € ainda discutivel — & na sua interpretagio rigida- ‘mente existencialista do feminismo (perguntamo-nos 0 quanto Sartre teve que ver com isso). E fazemos isso em vista do fato de que todos os sistemas culturais, incli- sive existencialismo, sdo eles proprios determinados pelo dualismo sexual. Diz ela: 0 homem nunca pensa sobre si mesmo sem pensar no ‘Outro; ele vé 0 mundo sob o signo da dualidade, que ndo é, em primeira instincia, de cardter sexual. Mas, sendo diferente ‘do homem, que se constrdi como Mesmo, & certamente A ca. tegoria do’ Ontro que a mulher pertenee; © Outro inclu a mulher. (Grifos da autora.) Talvez ela tenha ido Jonge demais. Por que postular como explicagio final 0 conceito bésico hegeliano da alte- ridade, © entio cuidadosamente documentar as. circuns- tncias biol6gicas e histGricas que empurraram a classe das “mulheres” em tal categoria, sem levar em conta uma ossibilidade muito mais simples e mais provével, ou seja, gue © dualismo biésico brotava do proprio sexo? Nao. é Nevessério postular categorias a prior! do pensamento ¢ da existéncia — como alteridade, transcendéncia, imanéncia — nas quais a Histéria passa entio a ser moldada. Marx © Engels descobriram que essas préprias categorias filo- s6ficas originavam-se da Historia, ‘Antes de admit essas categorias, tentemos primeiro desenvolver uma andlise, na qual a propria biologi 8 prociagio — se encontra na base do dualismo. A su- osigio imediata do leigo, de que a divisio desigual dos sexos é “natural”, pode ser bem fundada, Nés ndo pre- cisamos, de imediato, enxergar além disso, Ao contrério, Ww das classes econémicas, as classes sexuais brotaram dire- tamente de uma realidade biol6gica: os homens e as mu- “heres foram criados diferentes, e no igualmente privile- giados. Contudo, como Simone de Beauvoir salientou, essa diferenga propriamente dita nao necessitou do mesmo de- senvolvinento de um sistema de classes — a dominagio de um grupo por outro — de que necessitaram as funcoes reprodutoras dessas diferencas. A familia biol6gica 6 um poder de distribuicio inerentemente desigual. A necess dade do poder que leva ao desenvolvimento de classes ori gina-se da formaco psicossexual de cada individuo, de acordo com este desequilfbrio basico, e nio, como Freud, Norman O, Brown e outros postularam — mais uma vez se excedendo — de um conflito irredutivel da Vida contra a Morte, de Eros versus Ténatos. ‘A janilia bioldgica — a unidade bisica de repto- dugio homem/mulher/crianga, em qualquer forma de ‘arganizago social — se caracteriza por estes fatos, se ‘no imutéveis, pelo menos fundamentais: 1) que as mulheres, através de toda a Hist6ria, ‘antes do advento do controle da natalidade, estavam a ‘mere constante de sua biologia — menstruagio, meno- pausa, © “males femininos”, de continuos partos dolorosos, amamentagio ¢ euidado com as eriancas, todos 0s quais fizeram-nas dependentes dos homens. (seja irmin, pai, ‘marido, amante, ou cla, goverue, comunidade em getal) ara a’ sobrevivéncia fisica. 2) que os filhos do homem exigem um tempo ainda maior para crescer do que os dos animais, sendo portanto indefesos e, pelo menos por um pequeno periodo, de- pendentes dos adultos para a sobrevivéncia fisica. 3) que a interdependéncia bésica mée/filho existiu de alguma forma em todas as sociedades, passadas ou presentes, © consegiientemente moldou a psicologia de toda mulher madura e de toda crianga. 4) que a diferenga natural da reprodugdo entre os sexos levou diretamente A primeira divisio de trabalho aseada no sexo, que esti nas origens de toda divisio posterior em classes econémicas e culturais © possivel- mente se encontra ainda na raiz de todas as castas (dis 18 criminagio buscada no sexo e outras caacterens bio- logicamente determinadas, como a raga, « Wade, ete), Estas contingécisbiligies da fama humane no podem ser entendas como soimasanropotgins, Gua {uer um que observe os animals cnzand,reproduindose e euidando de seus hoes tr ifeuldads'om acer 8 linha da “rltvdade cultura Pores fo imports ants tribos se possum encontrar na Oceania ny quale 2° conexdo. do pst com feria sea desconhecde io importa quentos matiineridos, uantey cues 6 inversio do papel sexual, de homens isgumindo afazret domeéstces, ou de" does do part enpatcasy fate que Provam soment uma cols a surpsendentefexfiidade a natureza humana, Mass natura humana € adapted @ralguma eos, re, determina, sim por suas fond Goes ambient! fama olga sue nds deserve. tos exist em todos os. lates ataves dos tempos, Mesmo not mtriarenos. onde a feridade da ‘mulher éeltuada eo papel do pai é dsconheido ou sem impor tina, embora tales nao o pa geneico, existe sae al gum dependéncia da mulher dn eriange com elas 20 fomem. E,apesar de ser verdade que o nicl familiar & ‘ena um desenvolvimento rece, ® gl, como fee rel mostrar, apenas intense, os canton paicoleicos Gs fama biotin, spesar de ser verdade us: atevea da Histria houve milan varias nesta fafa bilo, st coming gue desc exstiom em ods ce Fando distor pricoseroas espectfias ‘na personal dade humana. as 2 Mas, admiir que o desequlfrio sexual do poder esté baseado biolopcamente nfo signifies perder nossa Cause, Nés no somor mais animals ha mute tempo, © Reino da Netoeza nfo tina absoltamen, Como @ prépria Simone de Beauvoir “A teoria do materiatismo histérico revelow algumes ver- dlades importantes. A humanidade néo é uma espéeie animal, é uma realidade histriea. A sociedade humana é uma anti- physis—no sentido de que ela & contra a natureza; ela nfo se submete passivamente & presenga da natureza, mes antes 19 ‘assume o controle da natureza em seu préprio beneficio. Essa usurpago nfo € uma operacdo interna, subjetiva; ela 6 reali- zada objetivamente na pritica.” Assim, o “natural” no é necessariamente um valor “humaano" A humanidade comecou a superar a natureza. ‘Néo_podemos mais jusifcar a\conservacéo do sistema discriminatério de classes sexuais, sob o pretexto de que se originow na natureza, Parece que, exclusivamente por causas pragmiticas, nos precisamos, na verdade, nos des- fazer dele (ver 0 Capitulo 10). ‘Q_problema se torna politico, exigindo mais do que ‘uma anise hist6rica abrangente, pois nos damos conta de ue, apesar do homem ser cada vez mais capaz de liber- tar-se das condigoes bioldgicas que eriaram a tirania dele sobre as mulheres ¢ eriangas, ele tem poucas razbes para renunciar a essa titania, Como Engels diz, no contexto da revolugio econdmica: “0 que se encontra na base da divisio de classes & a lei da divisio do trabalho.” [Note-se que esta prépria divisio criginou-se de uma divisio biolégica bésiea] “Mas isto nfo impede a classe dominante, uma vez predominando, de con- solidar 0 poder, & custa da classe trabalhadora, de transfor- lideraniga social numa intensificada exploragio. das Apeser de o sistema de classes sexuais ter-se origi nado em condig&es biolégicas bésicas, isto mio garante ‘que, uma vez tendo sido varridas as bases biol6gicas de sua opressio, as mulheres sero livres. Ao contrario, a nova tecnologia, especialmente © controle da fertilidade, pode ser usada’contra elas, para reforcar o sistema de exploracao estabelecido. ‘De modo que, assim como para assegurar a elimina- so das classes econdmicas, € preciso a revolta da classe baixa (o proletariado) e, numa ditadura temporéria, a tomada dos meios de producfo, assim também, le seus préprios compos, bem como do controle femining daLfertidade humana, incluindo tanto @ nova tecnologia quanto todas as instituigdes sociais da nutrigfo da edu- cagio das criancas. E, assim como a meta final da revo- lugo socialista ndo era apenas a eliminacio do privilégio da classe econdmica, mas também da prépria distingdo da classe econdmica, assim também a_meta final da re- volucdo feminista deve ser, ao contrario da meta do pri- tmeiro movimento feminist; nio_apenas-a elimiaago’ JO rivilgio do-homem, mas também da propria dstngdo se xual: as diferencas genitais nfo mais significariam cul- turalmente, (Uma volta a uma pansexualidade livre — a “perversio polimorfa” de Freud — provavelmente substi- tuiria a hetero, a homo ¢ a bissexualidade.) A reprodu- fo da espécie por um sexo em beneficio dos dois seria Substituida pela reproducio artificial (ou pelo menos por ‘uma opgio entre as espécies): a forma do nascimento das criancas seria idéntica para o homem e a mulher, ou eto, encarando-se de um outro ponto de vista, ambos se sentiriam independentes em relaco a0 nascimento: a dependéncia que a crianca tem da me (e vice-versa) da- ria lugar a uma dependéncia muito reduzida de um pe- queno erupo mais genérico, e qualauer vestigio de infe- Fioridade com relacio aos adultos referente as forea fisica seria compensado culturalmente. A divisio do trabalho acabaria junto com a eliminacdo total do trabalho (ciber- nética). A tirania da familia biol6gica seria quebrada. E, com isto, a psicologia do poder. Como Engels ret- vindicou para a revolugio rigorosamente socialist ““A existéncia nio simplesmente dessa ou daquela classe ‘dominante, mas de qualquer classe dominante,terd se tornado lum anacronismo obsoleto.” © fato de o socialismo nunca ter chegado 20 ponto de realizar esse objetivo declarado nio 6 conseqiiéncia de ré-condigdes econdmicas ndo realizadas ou falhas, mas também de que a propria andlise marxista i cla nio pesquisou suficientemente fundo as raizes psicos- sexuais das classes. Marx estava ciente de alguma coisa a profunda do que ele conhecia quando observou que a familia continha dentro de si mesma em miniatura todos 0s antagonismos que mais tarde se desenvolvem em larga escala dentro da sociedade ¢ do estado. Porque, a niio ser que a revolugio transtorne a organizacio social bé- sica € a famflia biol6gica — o germe da exploragéo nunca ser aniquilado, Precisamos de uma revolugio sexual mais ampla do-que sevolugio soeulsia == que incon — ‘para_verdadciramente- erradicar_todos_os sistemas de ON Tentamos conduzir a anilise de classe um passo & frente, na diregio de suas raizes na divisio. biolbgica dos sex0s. Nao dispensamos o$ insights dos sociaistas; 0 contrat, o feminismo radical amplia suas andlises, dando as uma base sinda mais profenda em condgbes obe- fivas, explicando com isso muitas das suas questoes inso= Tiveig Como Tundamento de nossa propria andlise, deve- Ios expandir a definigio do. materilismo histrico de Engels. A seguir a definigdo jé citada amteriormente, rees- crita de modo a inclu a divi bioldgica dos sexos, em Fangio da reprodusio, que se encontra na ordem’ das classes: “0 materialismo histérico é aquela visio do curso da Histéria que busca a causa ditima e a grande energia mével de todos os fatos histricos na dialética do sexo: a divisio dda sociedade em duas clases biol6gicas distinta, em funcio {da procriagho, e as Tutas dessas classes entre si; nas mudan- ‘gas dos modos de casamento, reprodugio e educagio das Criancas; no desenvolvimento anélogo de outras classes [eastas] fisicamente diferenciadas; © na primeira divisio do trabalho hhaseada no sexo, que se desenvolveu no sistema econémico e classes." A seguir, a superestrutura cultural, bem como a econdmica, que nao se reportam apenas as classes. (eco némicas), mas sim a toda a problemética do sexo: “Toda a histéria do passado [observe-se que agora pode ‘mos eliminar “com excegao dos estigios primitives") foi a his- ‘éria de futas de classes. Essas classes conflitantes da socie- 2 dade sio sempre o produto de modos de organizagio da uni- ‘dade da familia bioldgica, em funcio da reprodugio da es- Pécie, bem como dos modos de producio e troca de bens € fervigos estritamente econdmicos. A organizagio sexual Te produtora da sociedade sempre fornece a base real, exch vamente a partir da qual podemos formular a explicagio sl. ima de toda a superestrutura das insituigSes econdmicas, jutidicas e demas idéias de um periodo histérico dado.” E agora a visio de Engels dos resultados da aplicagio de um enfoque materialista Histéria fica mais realista: “A esfera total das condigées de vida que rodeiam 0 hhomem e que até agora o regeram passa para o dominio © 0 controle do homem, que pela primeira vez se toma 0 ver- adeito e consciente Senhor da Naturezs, dono de sua prd- pria organizagio social.” Nos capitulos seguintes analisaremos esta definigio do ‘materialismo histérico, examinando as insttuigBes culturais que mantém ¢ reforcam a familia biol6gica (especialmente sua manifestagio atual, a familia nuclear) seu resultado, a psicologia do poder, um chauvinismo agressive, hoje desenvolvido a ponto de nos destruir. Integraremos isto com uma andlise feminista do freudismo: porque pre- conesito cultural de Freud, tanto quanto o de Marx e Engels, no invalida inteiramente sua percepcio, Na ver- dade, Freud teve insights de valor até maior do que os dos teéricos socialistas, pela construgdo de um novo ma- terialismo dialético, baseado no sexo. Tentaremos, ent, correlacionar o melhor de Engels a Marx (0 enfoque ma terialista histérico) com o melhor de Freud (a compreen- so do interior do homem e da mulher e do que os forma) para chegar a uma solucio ao mesmo tempo politica ¢ ‘Pessoal, baseada contudo em condigées reais. Veremos que Freud observou corretamente a dinimica da psicologia, no seu contexto social imediato, mas, pelo fato da estrutura fundamental desse contexto social ser bésica para toda a humanidade — em diferentes graus — ela aparentava ser ‘nada menos do que uma condicio existencial absoluta, que seria insensato questionar. Ela forgou Freud © muitos 23 de seus seguidores a postular construtos a priori, como 0 Desejo de Morte, para explicar as origens desse impulsos psicol6gicos universas. Isto, por sua vez, tomnou as doen- gas da humanidade irredutiveis e incuriveis — motivo pelo qual a solugdo por ele proposta (a terapia psicana tica), uma contradigéo em termos, foi tio pobre, com- parada com o resto de seu trabalho, e um fracasso tio fetumbante na pritica — levando os que tiham alguma sensibilidade socal e politica a rejitar ndo s6 sua solugko terapéatica, como também suas descobertas mais pro- fundas 24 II. FEMINISMO AMERICANO Na visio radical feminista, 0 novo feminismo nio representa somente o reviver de um movimento politico sétio pela igualdade social. Ele é o segundo fluxo da re- ‘volugao mais importante havida na Histéria. Seu objetivo: 4 derrocada do mais antiquado © mais rigido dos siste- mas de classe/casta ja existentes, o sistema de classes ba- seado no sexo — um sistema consolidado ao Tongo de mihares de anos, que emprestou aos papéis arquetipicos de macho e fémea uma legitimidade imerecida e uma per- ‘manéncia aparente, Nessa perspectiva, o pioneito movi- mento feminista ocidental representou apenas a primeira investida violenta, os ridiculos cingiienta anos que 0 suce- deram representando apenas a primeira contra-ofensiva © infcio de uma longa luta pela libertago das opres- sivas estruturas de poder estabelecidas pela natureza e reforgadas pelo homem. Sob essa Iuz, lancemos um olhar ara/o feminismo americano. 1. © Movimento pelos Direitos Femininos na América Apesar de sempre ter havido mulheres rebeldes na Hist6ria,’ nunca antes tinham existido as condiges que 1. Por exemplo: as feticeras devem ser vistas meramente como tulheres envolvdss numa revolts polidea independente, Durante 25 possibilitariam as mulheres destruir seus papéis opressivos cficazmente, A capacidade de reprodugio da mulher era lima necessidade urgente para a sociedade — e, mesmo {que nio o fosse, ndo se dispunha de meios eficazes de Controle da natalidade, Assim, até a Revolugio Indus- {rial a revolta feminista estava fadada a permanecer no plano pessoal. a ‘A vindoura revolugdo feminista da era tecnolégica foi premunciada pelas idéias e os escritos de mulheres iso- Tadas, membros das elites intelectuais de sua época: na Inglaterra, Mary Wollstonecraft e Mary Shelley; na Amé- rica, Margaret Fuller; na Franca, as Bluestockings.* Mas estas mulheres estavam além de ‘seu tempo. Elas tiveram muita dificuldade em ver suas idéias accitas até por seus préprios circulos avancados, que did pelas massas de ho- ‘mens e mulheres de sua época, que mal tinham absor- vido 0 primeiro choque causado pela Revolucéo Indus- trial, Em meados do século dezenove, contudo, com a in- dustrializagio em plena atividade, um movimento femi- nista maduro estava em andamento. Sempre forte nos EUA — onde tinha se fundado pouco antes da Revo- lugdo Industrial, e conseqientemente sua hist6ria ou tra- digdo eram comparativamente pequena — o feminismo foi aticado pela luta abolicionista e pelos ideais latentes da propria Revolugio Americana. (A declaraglo proferida ‘na primeira convengao nacional pelos direitos das mulhe- tes, realizada em Seneca Falls no ano de 1848, foi mol- dada na Declaragio da Independéncia.) ( primitive Movimento pelos Direitos das Mutheres ‘Americanas? foi radical. No século dezenove, o fato de as ‘mulheres atacarem a Familia, a Tgreja (ver Woman's Bible, de Elizabeth Cady Stanton), e 0 Estado (lei) represen- ois séculos indmeras mulheres foram queimadas em fonueiras pela Igreia — pols a religfo era a politica daquele petiodo. + xpress cologuat para se refer is mulheres intlectais, (NT) 12, American Woman's Rights Movement, dagui em diante abre- indo por W.R-M. 26 tava para elas atacar os préprios fundamentos da socie- dade vtoriana na qual elas viviam — o equivalente a ata car as prOprias,distingbes sexuais em nossa época, Os fundamentos teéricos do primitivo W.RM. se originaram nas idéias mais radicais da época, sobretudo as dos aboli-

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