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FRIEDRICH NIET ASSIM FALOU me ZARATUSTRA Um livro para todos e para ninguém t ToMPAWHiA Das TeTRas ~ Capper da adgio, note pesca 12011 by Paulo Cesena de Souza Grafts amatzada segundo o Acordo Onegrifica da Lingua Portuguesa de 1990, queentron em rigor Basi em 2009. Tivo original Ako sprch Zarabrsira cops Jos Baptisia da Co Preparago: Marck Copote Indice renissvo ciao Mearcbon Revise Renata De ero sna Maria Barbosa Todi ondvetes desta ego reservados tus Bandera Pais, 7 04532002—sioPauo. Telefon (1) 3707-3500 vw companhiadslets com br ‘won logslacompana comby SUMARIO Prologo de Zaratustra Os discursos de Zaratusta Das trés metamorfoses Das cétedras da virtude Dos trasmundanos, Dos desprezadores do corpo Das paixdes alegres e dolorosas Do criminoso piilido Do ler escrever... Da arvore na montanha. Dos pregaclores da morte Da guerra e dos guerreiros De novo idolo Das moscas do mercado. Da castidade Doamigo Das mil metas ¢ uma s6 meta Doamor ao proximo Do caminho do criador Das velhas e novas mulherezinhas Da picada da vibor Dos filhos ¢ do m: Da morte voluntaria Da virtude dadivosa imOnio un 29 31 34 36 38 40 42 8 51 34 59 60. 63 6 o 9 PROLOGO DE ZARATUSTRA 1 Aos trinta anos de idade, Zaratustra dlexou sua patria eo lago de sua patria e foi para 2s montanhas.' Ali gozou clo seu espirito ¢ a sua solidao, e durante dez anos nao se cansou. Mas enfim seu cori@io mudou — ¢ um dia ele se levantou com aurora, foi par dante do sole assim lhe fal O grande astro! Que seria de tua Felicidade, se mao th vvesses aqucles que ikuminas? Ha dez anos vens até minha caverna: jf tte de tua luz ¢ dessa jorna serpente, Mas nos teesperamio® a cada manha, tomamos do teu Supérfluo e por ele te abencoamos. Olhal Estou farto de minha sabecloréa, como a abel quejuntou demasiaclo mel; necessito de maas que se esten- dam. Quero doar € distribuif)até que os sabi mens voltem a se alegrar de sta tolice e os tiquera, Para isso devo baixar A profundeza: como faze quando va C mundo ing fas a 17, ta para tris do oceano e k 5, 6 astro abuncante! n como, decfinar como dizem os homens as quis sejo i. Entio me abencor, 6 olhio tranquil} capaz de contem: lar sem inveja q \é mesmo uma felicidade excessiva Abengoa a taga que quer transbor dela escorra dourada e por toda parte teu enlevo! Olha! Esta taga quer novamente quer novamente se fazer homem.” — Assim comecou o declinio de Zaratustra. para que a gua -arregue 0 brilho do. svaziar, ¢ Zaratustra ratustra desceu Sozinho pela montana, sem deparar com ninguém, Chegando aos bosques, porém, viv subita- mente um homem velhi, que havia deixado sua cabana zrada para colher raizes na floresta. E assim falou o velho a atustra dio me € estranho esse andarilho: por aqui passou hii muitos anos. Chamava-se Zaratustra; mas esté mudado. Naquele tempo Jevavas tuas cinzas para os montes: que- ora levar tet{ fog para os vales? Nao temes 0 castigo para 0 incendiario? Sim, reconhego Zaratustra, Puro € seu olla, ¢ suit bo nao esconde nenhum nojo, Nao caminha ele como um da Mudaclo esta Zaratustra; tornou-se uma crianga 2: tra, um despertado”¢ Zaratustra: que queres agora entre os que dormem? Vivias na‘solid’d como num mar, e 0 mar te carregava. Ai de ti, queres entio subir & terra? Ai de ti, quetes nova- mente arrastar tu mesmo 0 teu corpo! Respondeu z Eu amo os homens” Por que”, disse 0 santo, “Tui para 0 ermo e a floresta? Nao seria pora Agora amo a Deus: as homens ja ndo amo. O home, para mim, uma cois siado imperfeita. O amor aos homens me Respondeu Zaratustra: “Que fiz eu, falando de Amor? ‘Trago 20s homens uma ddiva’. Nao thes és nada”, disse o santo. “Ti tus rlhes algo, isto sim, € carrega-o juntamente com eles — ser‘ o melhor para eles: se for bom para querendo thes dar, nao dés mais que uma esmola, «eixando ainda que a mendiguem” “Nao”, respondeu Zaratustra, * sou pobre o bastante para iss. santo riu de Zaratustra, e falou assim: “Entao cuida para que recebam teus tesouros! Eles desconfiam dos ere ‘mitas € nao acreditam que viemos para presentear. Para eles, nossos passos ecoam solitirios clemais pelas ruas. £, quando, deitaclos A noite em suas camas, ouvem um homem a caminhar bem antes de nascer o sol, pergun simesmos: aonde vai esse ladrio? Nao vas para junto dos homens, fica na florestal Seria até melhor que fosses para junto dos animaist Por que milo qui res er, Como eu — um urso entre 0s ursos, um passaro entre 0 passaros?” E 0 que faz o santo na floresta?”, perguntou Zaratustra Respondet o santo: “Eu faco cancdes € as canto, e, quan- do faco cancdes, rio, choro e sussurro: assim louvo a Deus: Cantando, chorando, rindo ¢ sussurrando eu louvo 20 deus que é meu Deus, Mas 0 que trazes de presente? Ao ouvir essas palavras, Zaratustra saudou 0 santo e fa~ lou: {Que poderia eu vos dar? Deixai-me partir, para que nada vos tire!” — E assim se despediram um do outto, 0 ‘doso e © homem, rindlo como riem dois meninos, Mas, quando Zaratustra se achou $6) assim falow para seu coragio:‘*Como sera possivel’ Este velho santo, na sua floresta, ainda nao soube que Deus est morta! dou esmolas. Nao 3. Quando Zaratustra chegou a cidade mais préxima, na margem da floresta, ali encontrou muita gente reunida na Praca; pois fora anunciado que um equilibrista* andaria na Corda, E Zaratustra assim falou & gente: Eu vos ensino o.super-homem! O homem é algo que deve ser superado, Que fizestes para superi-lo? wai Todos os seres, até agora, criaram algo acima de si pré- prios: evés quercis sera vazante dessa grande maré, eantes fetroceder 10 animal do que superar o homem? Que é 0 macaco para o homen? Umma risada, ou dolorosa vergonha. Exatamente isso deve o homem ser para o super -homem: um tisada, ou dolorosa vergonha, Fizestes o caminho do verme ao hiomem, ¢ muito, em ¥6s, ainda é verme; Outrora fostes macacos, e ainda agora o homem ¢ mais macaco do que qualquer macaco® (O mis sAbio entre vs ¢ apenas discrepincia e mistura de planta e Fantasma, Mas digo eu que vos deveis tomar fantasmas ou planta Verle, cu vos ensino 0 super-homem! ‘Osuper-homem ¢ 0 sentido da terra, Quea vossa vo de diga: 0 super-homem sao sentido da terral Eu vos imploro, itmaos, permanecet figis @ terra e nio seredliteis nos que vos falam de esperancas supraterrenas! Silo envenenadores, suibam eles ou nao, Sao desprezadores da vicka, moribundos que a si mesmos envenenaram, ¢ dos quaisa terra esta cansada: que partam, entiol Uma ver a ofensa a Deus era a maior das ofensas, mas Deus morreu, ¢ com isso morreram também os ofensores, Ofenclera terra € agora o que hi de mais terivel, e conside- far mais altamente as entranhas do inescrativel do que o sentido da terral Uma vez. alma olhava com desprezo para 0 compo: & esse descém era 0 que havia de maior: — ela o queria ma- 870, horrivel, famino. Assim pensava ela escaparao corpoe ‘Oh, essa alma mesma ena ainda ma ta: ea crueldade'era avolipia dessa alma! Mas também vos, irmilos, dizei-me: o que conta vosso compo sobre vossa alia? Nao € ela pobreza, imundiciee ls mentivel satisfacio? Na verdade, um rio imundo é 0 homem, £ preciso ser um ‘oceano para acolher um rio imundo sem se tornarimpuro, ede, eu vos ensino 0 super-homem: cle é este oceano, nele pode afuindar o vosso grande desprezo. hortivel e famin- ust Qual é 2 maior coisa que podeis experimentat? E a hora do grande cesprezo, 4 hora em que também vossa felicidat- de se converte em nojo para vs, assim como vos: vossa virtude. ‘A hora em que dizeis: “Que importa minha felicidade? Ela é pobreza, imundicie ¢ lamentivel satisfac2o, Mas mi- nha felicidade deveria jstificar a propria existéncia! Ahora em que dizeis: “Que importa minha razao? Procu- 1 ela o saber, como 0 leo seu alimento? Ela é pobreza, imundicie € lamentivel satisfac! A hora em que dizeis: “Que importa minha viruele? Ela ainda ndo me fez delirar. Como estou cansado de meu bem, ‘Tudo isso é pobreza, imundicie e lamentavel e meu satisfacao! Ahora em que dizeis: “Que importa miaha justica? Nao ‘estou me vendo a ser brasa e carvao, Mas 0 jisto 6 brasa e carvao’” A hora em que dizeis: “Que importa minha compaisio? A.compaixio nio @a cruz em que pregam aquele que ama 6s homens? Mas minha compaixo nao é crucifieacao Ji falastes assim? Ja gritastes assim? Ah, tivesse eu ouvido grtardes assim! PP Nao 0 vos pecad)— a vossa frugalidade brada s, Vossa avareza até no pecado brad aos céus! Onde est o raio que venha lamber-vos com sua lingua? Onde esté a loucura com que deveriis ser vacinados? Vede, eu vos ensino olsuper-homem: ele é esse raid, ele € essa loucuiad— Depois de Zaratustra assim falar, alguém do povo gri- tou: “Fi ouvimos bastante sobre o equilibrista; agora nos deixa vé-1o!. E todos riram de Zaratustra. Mas 0 equilibris 4a, que achava que as palavras se referiam a ele, pds-se a trabalhar. 4. Mas Zaratustea olhou para o povo e se admirou, Entio Falou assim © homem € uma.corda, atacla entre o animal e 0 super -homem — uma corda sobre um abismeo. Um perigoso para-Ia, um perigoso a-caminho, um peri 050 olhar-para-tris, um perigoso estremecere se detet Grande, no homem, € ser ele uma. ponte e ndo um obje- tivo: 0 que pode ser amado, no homem, é ser ele umia pas- sagem e um declinio.* ‘Amoaqueles que nio sabem vivera nao ser como quem declina, pois s40 os que passam. Amo 0s grandes desprezadores, porque sio os grandes reverenciadores, ¢ flechas cle anseio pela outra margem, Amo aqueles que nao buscam primeiramente aris d estrelas uma razio para declinar ¢ serem sacrificados: mas que se sacrificam a terta, para que um dia a terra vena a ser cdo super-homem. Amo aquele que vive para vir a conhecer, ¢ que quer conhecer para que um dia viva o super-homem. E assim, quero seu deciinio. Amo aquele que trabalha e inventa, para construira casa para o super-homem e lhe preparar terra, bicho e planta pois assim quer 0 seu declinio. Amo aquele que ama a sua virtde: pois virtude & vonta- de de declinio e uma flecha de anseio. Amo aquele que nao guarda uma gota de espirito para si, mas quer ser inteiramente o espirito le sua virtude: assim anda ele como espirito sobre a ponte. ‘Amo aquele que faz, de sua virtude, seu pendor ¢ sua fatalidade: assim quer ele, por causa de sua virtude, ainda vivere nao mais viver. ‘Amo aquele que mio quer ter virtudes clemals. Uma vir- tude € mais virtude do que duas, pois significa mais lacos ‘em quea fatalidade pende, Amo aquele cuja alma esbanja a si mesma, que nao quer {gratidao e ndo devolve: pois ele sempre doa e nao quer se uardar. Amoaquele que se envergonha quando o dado caia seu favor, e que entio pergunta: sou um jogador desleal? — pois ele quer perecer.? Amoaquele que lan i frente dos seus atos palavras de ner ‘ouro e faz sempre mais do que promete: pois ele quer 0 seu declinio. ‘Amo aquele que justifica os vindouros ¢ redime os pas ads: pois quer perecer devido aos presentes. ‘Amo aquele que agoita seu deus porque ama seu deus:”” pois tem de perecer da ira de seu cleus. ‘Amo aquele cuja alma é profunda também no ferimento, e que pode perecer de uma pequena vivéncia: assim passa de bom grado sobre a ponte. ‘Amo aquele cuja alma transborda de cheia, de modo que esquece a si proprio e todas as coisas estao nele: assim, to das as coisas se tornam seu declinio. ‘Amo aquele de espirito livre e coragao livre: assim, sua cabeca nao passa de entranhas do seu coragdo, mas seu coragio o impele ao dec ‘Amo todos aquueles que sao como gotas pesadas, caindo rnuyem que paira sobre os homens: eles anunciam a chegada do raio, e como arautos perecer ‘ede, eu sou um arauto do rai e uma pesada gota da y nuvem: mas esse super-homem, — 5. Depois de falar essas palavras, Zaratustra olhou nova- mente para o povo e calou. “Aiestio eles¢ riem’, falou para seu coragao, “nao me compreendem, nao sou a boca para esses ouvidos: Sera preciso antes partir thes as orelhas, para que apren- dam a ouvir com os olhios? Sera previso estrondear como os timbales e os pregadores da peniténcia? Ou acreditardo apenas num homem que balbuck? Bles possuiem algo de que se orgulham, Como chamam ‘mesmo que os faz orgulhosos? Chamam de cultura," € 0- que 0s distingue dos pastores de cabras. Por isso nao gostam de ouvir a pakavra ‘desprezo’ quan- do se fala deles. Entéo falarei ao seu orgulho. Entao Ihes falarei do que é mais desprezivel: ou se dltimo homem. do ut Eassim falou Zaratustra a0 povo: E tempo de o homem fixar suameta. & tempo de 0 ho- ‘mem plantar o germe de sua mais alta esperanca Seu solo ainda € rico o bastante para isso, Mas um dia este solo seri pobre e manso,"* ¢ nenhuma érvore alta po- deri nele crescer. Aide nés! Aproxima-se o tempo em que o homem jé no langa a flecha de seu ansefo por cima co homem, e em que a corda do seu arco desaprendeu de vibrar! vos digo: é preciso ter aindaccaosidentro de si, para poder dar 3 lua uma estrela dancante.|Eu vos digo; tendes ainda caos dentro de vés. Aide nést Aproxima-se 0 tempo em que o homem jé nfo daré luz nenbuma estrela. Ai de nés! Aproxima-se o tempo clo homem mais desprezivel, que jé nao sabe desprezara si mesmo. ‘ede! Eu vos mostro 0 iltimo homent “Que € amor? Que é criagdo? Que é anscio? Que ¢ estre- la?” —assim pergunta o tiltimo homem, e pisca 0 olho. A terma se tomou pequena, entio, en homem, que tudo apequena. Sua especie é inextinguivel como © pulgio; 0 ciltimo homem € © que tem vida mais, longa “Nos inventamos a felicidace” — dizem os Gitimos ho- mens, ¢ piscam 0 olho, Eles deixaram as regides onde era duro viver: pois ne- cessita-se de calor. Cada qual ainda ama o vizinho e nele se esfrega: pots necessita-se de calor. Adoecer & dlesconfiar € visto como pecado por ele dla-se com toda a atencdo. Um tolo, quem ainda trope pedras ou homens! Um pouco de venenc'de quando em quando: isso gera sonhos agrackiveis. E muito veneno por fim, para um a davel morrer, Ainda se trabalha, pois trabalho é distrag: “Se para que a distracdo nao canse. inguém mais se torna rico ou pobre: ambas as coisas sao drduas, Quem deseja ainda governar? Quem deseja ainda obedecer? Ambas as coisas so drduas. em 10. Mas cuida- Nenhum pastor e um s6 rebanho! Cada um quer o mes- mo, cada um € igual: quem sente de outro modo vai volun. nente para o hospicio. ‘Outrora 0 mundo inteiro era doido” — diz refinados, € piscam o olho. 0 inteligentes ¢ sabem tudo que ocorreu: entio sua ombaria ndo tem fim. Ainda brigam, mas logo se recone liam — de outro modocestraga-se 0 estOmago. ‘Tem seu pequeno prazer do dia e seu pequeno prazer noite:mas respeitama satde, “Nés inventamos a felicidade” — dizem os tikimos ho- taria mens, ¢ piscam 0 ollio, — E aqui findou 0 primeiro discurso de Zaratustra, que & chamado de “prologo": pois nesse ponto interromperam- -no 08 gritos e 0 jabilo da multidao. “Dé-nos esse siltimo, homem, 6 Zaratustra" — clamavam as pessoas —, “torna- -nos como ess¢ Giltimo homem! E nds te presenteamos 0 superchomem!” E tocla a gente éxultava eestalava a lingua Zaratustra entristeceu-se, porém, e disse a0 seu coracio: Elesindo me compreendein: nao sou a boca para esses ouvidos. Vivi demasiado tempo nas montanbas, talvez, € den siado escutei as drvores ¢ os cérregos: agora Ihes falo como (05 pastores de cabras. 1b Plicida esté minha alma, ¢ clara como os montes na ma- nha, Mas eles acham que sou frio, e um zombador de terri veis pilhérias. E agora eles olham para mim ¢ riem: e, me odeiam, 1a gelo no seu iso: > rir, também, 6. Mas entio sucedeu algo que fez toda boca silencia® e Odo olliar enrijecer. Nese meio-tempo 0 equilibrista come- ara seu trabalho: surgira de uma pequena porta e andava Sobre a corda que se achava estendida entre duas torres, cima da praca e do povo."* Quando estava no meio de seu rst caminho, abriu-se novamente a pequena porta ¢ um rapaz de vestes coloridas, semelhante a um palhiaco, pulow fora e seguiu o primeiro com passos ripiclos. “Adiante, aleijado!”, gritou com vor terrivel, “adiante, preguigoso, muambeiro, cara-piilidal Para eu nao te Fazer cOcegas com meu calca- nar! Que fazes aqui entre as torres? Teu lugar € na torre, devias ser trancafiado, estorvas 0 caminho de alguém me: Ihor do que tu!” —Ea cada palavra lhe chegava mais proxi mo; porém, quando estava a somente um passo do equil pavorosa que fez toda bo € todo olhar enrijecer: — langou um grito de deménio € saltou sobre aquele que Ihe estava no caminho. Mas esse, vendo seu rival assim triunfar, perdeu a cabeca desfe7-se de sua vara ¢ mais rapidamente do que el Thou na profundeza, como um redemoinho de bragos € pernas. A praca eo povo semelhavam 0 mar quando chega, a tempestade: todos corriam e se atropelavam, sobretudo no local onde se precipitava 0 corpo. Zaratustra ficou imbvel, porém,¢ justamente ao seu lado caiu 0 corpo, ba ido e quebrado, mas ainda vivo, Ap6s um instante, cia retornou ao homem destro- ado, e ele viu Zaratustra ajoelhado junto a si. “Que fazes aqui’, disse ele afinal, “ha muito tempo eu sabia que 0 de- ‘ménio me passaria a perna. Agora ele me leva para o infer- no; queres impedilo? Por minha honra, amigo", respondeu Zaratustra, “nada do que falas existe: nao existe deménio nem inferno. Tua alma morrerd antes ainda que teu corpo: nada temas, por- tanto! ‘O homem erguet os olhios, desconfiacdo. “Se falas a ver fidade, entao nada perco, ao perder a vida. Nao sou muito | mais que um animal a que ensinaram a dancar, com golpes {de bastio e pequenos nacos de comida. "De maneira nenhuma”, disse Zaratustra;“fizeste do pe- Figo 0 teu oficio, nlo hai o que desprezar nisso, Agora pet ces no teu oficio: por causa disso, eu te sepultarei com mi- rnhas proprias maos, Depois que Zaratustra falou isso, 0 moribund nao res ala 201 pofceu mais; mis moveu a mio, como se buscasse a mao de Zaratusira para agradecer. 7 Nese meio-tempo.éaiu a noite; ¢ a praca se ocultou na escuriio: entao a gente se dispersou pois mesmo a curio sidade e 0 espanto se afudigam. Mas Zaratustea ficou senta- do junto ao morto, no cho, envolvido em pensamentos, € assim se esqueceu do tempo. Enfim chegou a madrugada, porém, ¢ um vento fri0 deslizou pelo solitirio,Entio Zara {ustma se levantotie disse ao seu coracdor— Na verdade, uma bela pescaria teve hoje Zaratustra! Ne- rnhum homem pescou, ¢ sim um cadiver."* Inquictante é a existéncia humana, ¢ ainda sem sentido algum: um palhaco pode the ser una fatalidade. {Quero ensinaraos homens o sentido do seu ser: o qual é osuper-homem, o raio vindo da negra nuvem homem. Mas ainda me acho longe deles, e 0 meu sentido nil fala 208 seus sentidos. Ainda sou, para os homens, o ponto in- termediirio entre um tolo € um cackiver. Escura € a noite, escuros s4o 03 caminhos de Zar Vem, rigido c frio companheiro! Levo-te para onde t tarei com minhas mios 8. ustra levou As cos- Apés dizer isso a0 seu coracto, Zara tas o cadaver ese pos a caminho. Anda nao havia dado cem passos quando alguém se aproximou de mansinho € Ihe sussurrou algo no ouvide —e vede! era o palhago da torre “Vai-te embora desta cidade, 6 Zaratustra”, falou el tos aqui te odeiam, Odeiam-te 08 bons ¢ os justos, ete ch mam de seu inimigo ¢ desprezador, oxeiam-teos crentes da verdadeira fé, ¢ te chamam de perigo para a muhidao. Tua sorte foi que tiram de tie, na verdade, falaste a maneira de ‘um palhago, Tua sorte foi que te juntaste aocachorro moro; a0 te rebaixares assim, te salvaste por hoje, Mas deixa esta cidade — ou amanha salto sobre ti, um vivo sobre um mor- to." Depois de dizer isso, © homem desapareceu; mas Zara- tustra continuou pelas ruas escuras, Na porta cla cidade encontrou 0s coveiros: eles ilumina- Fam seu rosto com as tochas, reconheceram Zaratustra e limpas demais para esse assaclo, E seré que Zaratustra vai roubar o pedaco ao demdnic? Es bem! Boa sorte © bom apetite! Se 0 demOnio nao for um la rio melhor que Zaratustral —ele rouba dos dois, ele come 08 dois!" Eeles riam entre si, juntando os rostas, atustra nio disse palavra, € seguiu seu caminho, Apés andar por duas horas, ao longo de florestas e pinta. nos, tinha ouvido bastante os uivos famintos dos lobo: ele proprio sentiu fome. Entio parou junto a uma casa soli) taria, onde havia uma luz aces A fome me assalta como um bandoleiro, disse Zaratus- tra. Em florestas e pantanos e no fundo da noite me assalta minha fome. Singulares caprichos tem minha fome, Muitas vezes me vem apenas apés a refeicio, e hoje nao veio durante 0 inteiro: onde permaneci Enisso bateu Zaratustra& porta da casa, Um homem ve- tho upareceu; carregava a luz © perguntou: “Quem me pro ‘cura, a mim e a meu sono ruim? Um vivo e um morto’, disse Zaratustra, ‘Dai-me de co: mer e de beber, esqueci-me de fazé-lo durante o dia, Quem di de comer ao faminto revigora sua propria alma: assim fala a sabedoria.” O velho se retirou, mas logo voliou ¢ ofereceu pao e vie nnho a Zaratustra, “Esta é uma mé regiio para os que tém fome”, disse ele; “por isso moro aqui. Animas e homens vvém a mim, 0 eremita. Mas dize ao teu companheiro que também coma e beba, ele estd mais eansado do que tu. Zaratusita respondeu: “Esti morto 0 meu companheiro, dificil eonvencé-1o”. “Nao tenho naca com iss0", disse isa tem de aceitar ‘ velho, irritado; “quem bate em mink: ‘o que ofereco. Come, ¢ passa bem!" — Em seguida, Zaratustra andou por mais duas horas, con- fiandorno caminho e na luz das estrelas: pois ele costuma andar noite e gostava de olhiar 0 rosto de tudo que dorme. Mas ao alvorecer Zaratustra se achou numa densa floresta, em que ndo enxergava mais nenhum caminho. Entao colo- couo morto numa érvore oca, 2 altura dle sua cabeca— pois queria proteg@-lo clos lobos —, € deitou-se no musgo do chao. E logo adormeceu, de corpo cansado, mas de alma serena, 9. Longamente dormiu Zaratustes, ¢ no apenas a aurora passou sobre 0 seu rosto, mas também a manha. Enfim seus olhos se abriram: admirado, Zaratustra enxergou a floresta ¢ @=siléndio, ¢ admirado olhou dentro de si. Entio se ergueu depressa, como um navegante que subitamente v6 terra,"e exultou: pois viu uma nova verdade! E assim falou entao ao seu coracto: Uma luz raiou para mim: de companheiros necessito, cle vivos — nao de mortos ¢ cadaveres, que levo comigo para onde quero i Mas de companheiros vivos necessito, que me sigam porque querem seguir a si mesmos —e para onde quero it. Uma luz raiou para mim: que Zaratustra nao fale para 0 ovo, mas para companheitos! Zaratustra nao deve se tor nar pastor € cio dle um tebanho! Para atrair muitos para fora do rebanho — vim para isso. Povo ¢ rebanho se enfurecerio comigo: Zaratustra quer set ‘chamado de ladrio pelos pastores. Pastores" digo eu, mas eles se chamam os bons justos. “Pastores” digo eu: mas eles se chamam os crentes da verla- deira fe, ' Vedle os bons e justos! A quem odeiam mais? Aquele que quebra suas tébuas de valores,” a0 quebrador, infrator: — as esse é 0 que cri. Vede os erentes de todas as fés! A quem odeiam mais? Aquele que quebra suas tabuas de valores, a0 quebrador, infrator: — mas esse € 0 que cra. ‘Companheiros é 0 que busca o criador, nao cadiveres, € tampouco rebanhos e crentes. Aqueles que criem junta mente com ele busca 0 criador, que escrevam novos valores em novas tébua: Companheiros € 0 que busca o criador, e aqueles que colham juntamente com ele: pois tudo nele se acha maduro para a colheita. Mas faltam-he as cem foices:* entdo ele at- ranca as espigas € se aborrece. ‘Companheiros é 0 que busca o criador, e aqueles que saibam afiar suas foices. Destruidores serio eles chamados, desprezaclores de bem € mal. Mas s2o eles os que colhem e que festejam. ‘Aqueles que também criem busca Zaratustra, que tam: bem colham e festejem busca Zaratustra: que tem ele a fazer com rebanhos e pastores! Etu, meu primeiro companheiro, repousa em paz! Bem sepultei em tua drvore oca, bem te escondi dos lobos. Mas me separo de ti, tempo chegou. Entre duas auro- ras, uma nova verdade me chegou, Nao deverei ser pastor, nem coveiro, Jamais tornarei a irigic 20 povo; pela titima ver falei com um morto, Quero juntar-me aos que criam, que colhem, que feste- jam: eu thes mostrarei 0 arco-fris ¢ todos os degraus até o super-homem. Aos eremitas cantarei minha cangio, e também aos ere- iitasa dois,” e quem tiver ainda ouvidos para coisas inaui- ‘esse ficard de coragao oprimido com a minha felicidade. Para minha meta me ponho a caminho; saltarei sobre os hesitantes € os vagarosos. Assim, que minha marcha seja 0, seu declinio! te me 10. Isso falou Zaratustra ao seu coragdo, quando 0 sol se achava no meio-dia: entio olhou para 0 céu, indagador — pois ouvia no alto o prito agudo de um passaro. E eis que {ima guia fazia vastos circulos no ar, ¢ dela pendia uma serpente, no como uma presa, mas como uma amiga: pois estava enrodilhada em seu pescoco, “Estes sio meus animais!", disse Z com todo 0 coracio. “O mais orgullioso animal sob o sol € 0 prudente animal sob sol — eles sairam em exploracio. Querem ver se Zaratustra ainda vive. Ainda vivo, atustra, € alegrou-se verdade? Achei mais perigo entre as homens do que entre 0s ani: ‘mais, caminhos perigosos segue Zaratustra, Que meus ani mais me conduzam! ‘Ao dizer isso, Zaratustra lembrou-se das santo na floresta, suspirou e assim falou ao seu coraca Pudera eu ser mais prudente! Pudera eu ser prudente por natureza, como minha serpente! Mas peco algo impossivel; entio pego a meu orgulho que sempre acompanhe mina prudéncia! E, se algum dia minha prudéncia me abandonar: — oh ela gosta dle bater asas! —, que meu orgulho, entao, ainda voe juntamente com minha tolice! ras do Assim comegou 0 dectinio de Zaratustra,

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