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Anténio Guerreiro O acento agudo do presente Titulo: © acento agudo do presente (© Antinio Guerreiro ¢ Edges Cotovia, Lda, Lisboa, 2000, Concepsio gifica de Jodo Botelho 772-8423.61-6 Cotovia ISBN. A EPOCA E AS SUAS FANTASMAGORIAS Em conversa, regitada em video, com John Cage ¢ Merce Cunningham, Robert Rauschenberg reivindicaa, hi mais de duas décadas, "mais tempo, menos hstria". Prof ridas por um artista, esta palavras prolongam na perfeisi0 0 co inextinguivel da segunda Intempestiva de Nietzsche, ittulada Das Vantagens e Inconvenientes da Histria para @ Vida. Nietasche, recordemes, fazia ai a dentincia o dia. néstico de uma doenca tipica do seu século, a “doenga his: térica”, a qual atrbuta o efeito devastador de esterlizar € aniguila a forgas cratvas. Tendo intuido em todo 0 seu alcance © sentido da concepgio oitocentsta da historia como puro “processo” que decorre em direegao a um fim imagindrio (e onde, por consepuinte, cada presente pontu: al € sempre um tempo vazio), Nierasche entrava em polé ‘mica nio $6 com o historicismo que dominava a cultura do século XIX, mas também com um dos seus avataes, 0 his toriografismo, ao defender que o excesso de consciéncia 08 individuose as culturas. 0 culto da his ia, em suma, patalisante © respoasivel por uma atrfia da experiéncia. Na mente das novas gerages, esse culo instilaria a veneragio pelo jé feito — pelo passado — « extinguira toda a disposigio activa em relagio ao pre- sente, Daf o apelo que faz Nictasche ao papel terapéutico do exquecimento, considerando que sem a amnésia liberta- dora homem nio consegue emerpir do torpor eda para lisia em que a histéria o mergulba: “Hai um grau deins6nia, a xoxo Guana de ruminagio, de sentido histérico, que prejudica o ser vivo ¢ acaba por o aniquila, quer se trate de um homem, cde um povo ou de uma civilizagio” (Nietzsche, 1972: 78). Para Nietzsche, « decadéncia €0 mais dbvio sintoma dessa “doenga histica"e, para combat@la, propde o recurso a uma poténcia supra-histrica: a arte. Ele id, assim, jog arte contra a histéria e oporo artista (esse “herd suprachis: ‘érico”) ao historiador. ‘A percepgio de que « moderidade imps um novo ritmo temporel que jd no € 0 da maturagao lent e organi ‘a proprio de outras épocas esti na origem das considera- «Bes de Nietzsche sobre a “cultura histica": “Todo 0 ovo, todo o homem que quer chegar d maturidde, tem necesidade de uma desses ilusées protectoras, de uma rnuvem que oabrigue eo envolva. Hoje, no entanto,tem-se horror da maturidade, porque sedi mais importancia his tia do que a vide” (biden: 136) E mais frente afirmas “Tal como o jovem corte através da hist6ra, assim 0 Ihomem modemo corte pelos museus ou para ouvir con ‘certos” (Ibidem). Assim, tudo 0 que acontece & imedi mente integrado numa rede histérica e, esse modo, neu tralizado na sua novidade. E, neste pooto, as palavras de [Nietzsche fazem ressour com uma enorme amplitude @ reivindicagio de Rauschenberg. Diz, de facto, Nietasche: "A cultura histrica dot nossos eriticos nio permite de modo nenhum que haja um efeto, no sentido proprio, isto uma influéncia sobre a vida e « acco. Sobre a escrta aplicam imediatamente 6 mata-borti0, no de- gracioto espalham grossas pinceladas, que pre tendem que sejam consideradas correcgSes:e eis que tudo acabou desde logo” (idem: 120-121). O saber produz ou- tnos saberes, o que acontece agora faz apelo ao que aconte= ceu antes, ¢ tudo se desvanece sem chegar a ter eficicia, 2 EPOCA E ASSUASFANTASMAGORIAS A moderiddade ¢ precsamente a época em que nada chega a “marutidade*. Esta importante intuigfo nietzschiana i fomecer matéra 3 tcoria de Walter Benjamin sobre a mo- formede pels chee do esilo XIX, pan speed tele “ie nl podelera én phate temper moderns. i 2 inte incsva gue Bejanin pope, ex tsi mu enor ax obra dann da vida ire cm qu shrine arte inser, opted te quasuer rag daca com ose tempo. Esa (30 exe, dviament, eal qu Benin entende “coment” mis far do ge eablece x come pond spl indice o cee es de 96 OCA EASSuAS FANTASMAGORAS nifcagao de uma obra com um determinado contesto. Mas ‘utra coisa é a “erica”, tal como ela ¢ entendida num im ortantissimo ensaio, escrito em 1922, sobre As Afmidades Electivas. O romance de Goethe fornece um éptimo pretex to para o desenvolvimento destas questdes, na medida em ‘que, na intxpretagio de Benjamin, ele & 90 mesmo tempo ‘estemunba de uma cultura ¢ um instance privilegiado de ‘uptura com o seu “destino” cultural. No esquems concep. tal desse ensao, ocupa um lugar poctiio a distingao «ntre “contetido material" (Sacbgehalt) da obtae “comtetide, de verdade” (Wabrbeisgebalt). Enquanto 0 comentitio se fica pelo primeiro, a critica visa o segundo: s6 através da cr. tease pode aceder ao problema filoséfico do modo de va Hidade da obra de arte. Quanto aos elementos que const ‘em 0 “contetido material” de uma obra 36 num primeino nivel (aquele que, segundo Benjamin, “nao abre nenhuma Perspectiva") € que eles so caractersticos de um contexto histérico preciso — esse de que as obras de arte acabamm ‘Por ser apenas exemplos ou modelos, no esquema tradiio, ‘al das histrias da arte, Num outro nivel, “conto mate. al” de uma obra € aquilo que necessariamente a5 “acon” ‘uma determinada époen posterior, Sento © “conteido ‘material” de uma obra ganka signticaio para uma época — di signilicagio & época dessa obra. E, nessa medi, ad ‘ire sentido como “eontetd de verdade”, Totna-se assim evidente que, ao afimmar que “aio hi histéra da art’, Benjamin no esté a subscrevero estes. ‘mo romintio no seu desejo de definir uma essénca intem, orl da arte. Pelo contro, esti a abrir um now horizonte ‘qe ino €0 da historicidade e/ou intemporaidde da obra dle arte, essa antinomia que nas discusses estéticas ds pri, Imeirs décadas do nosso séulo ocupa ainda um higar in 7 sroso cue portant. A ete eset, vale a pena ler os primero esc tossobee a esttica do ainda jovem Lukes (1912-1914) por- aque ees traduzem nio 36 as hesitagdes do autor de ‘Alia eas Formas (pulbicado em 1910), mas também adi- fculdade em resolver a dita antnomi. Lukics identifica na concrtizagio formal enquant “queret attic” una rel zagio wpa e, em si imtempor, Mas como ner evan to extreme a hipésuse da forma (isto € hipostasando a forma como nico principio de produgio de wm contetida) ovata pode deembaracarse de todas 0 cntcido hist ‘co-temporas,enioaintemporlidadeé também el, con- dicinada sum plano hiséicotemporal:é a reazagio de um deseo de temidade proprio de uma época cone. Nas palavas de Luks A essncaintemporalconerea © svda do conte da obra no €seno a representaio i teramente condiionada pelo tempo, que 0 atta faz do contesido eterno do seu object, das reliagdes do conte lo das suas formas astica” (Lukics, 1974 167. Lakes ‘aba, pois, por prolngar os termes da vel aninomiay desdobrando-aem novasantinomiasforma/conttdo, reall dade wtpica/elade vivid. ‘Uma apofundada reflexao sobre xe problema e texmo-la um autor come Hermann Brosh, nomeadam uma clebre conferncia, initulada “Janes Joyce €0 Te Presente™ Mas, em rag a kis, roch invert a tio: wats agora de saber no como una obra s temporal, as como é que ase pode tomar 0 espelbo. spirit do tempo" ¢ ser a riagio orignal de wma Para o autor deA Morte de Virgo, Joye forece 0 de uma obra enazada no seu tempo de al modo que, cla, 6a toalidade concreta da “vida quotidian univer p0ca"(Broch, 1955: 188) que é apreendida, Masso 98 AEPOCA ES SUAS FaNTaSNAGOMIAS fica que obra, na sua capacidade de ordena tempo que ne faz pertber come ena ‘cmp asf peer como es empenons da coma mati conto daforals atone mee ies a dar expressio e forma 4 uma pce, Boch decal tania one rami cbr np selina Inns coir op om on una mio ica qe deve sonpre one lagio a estética. Desta ue ao ‘nace dec "de nee acto de onbinemo gue Exo meses ‘temporal da ciao aristiea, ee on pe ee tc Peso presets, para Bejan cade obra de ae ite ee enti seas mnpotaemicenne na =f eee mee hon aaeman woo an ach a sac ea %” asTONo GUERRERO c irevopivel, que se cumpriu de uma ver por todas, « 0 fix turo apresenta-se com uma dimensioretrospectiva, Esta his- ‘ra que é a0 mesmo tempo, restauragio © utopia, qu faz dda origem a meta, utizando uma frase de Kraus eitada por Benjamin, 6 se di a ver verdadeiramente num tempo di lkctico em que no sco de uma “imagem de época” a hum nidade inteira sung iberta do peso da época. Esse momen: to é aquele em que se dé uma “actalidade universal e incegral. Cada época estabelece o seu passado etraga 0 seu fururo, determina a sua Vorgeschichte perfila a sua Nach _eschicte. Neste sentido, para Benjamin, uma época nao éa configurago de um periodo de tempo que jaz num passado imvel, mas € constituida por possibilidades que estio sem pre a renovar a actualidade da origem. Mas a origem, como cla &entendida no tratado sobre o Trauerpil, nose vefere a énese das coisas, & semelhanga da imagem dialétiea que, trazendlo muito embora consigo 2 “histéra origina” do fx ‘némeno histrico, ndo é de natureza temporak: “O indice hiswérico das imagens nio indica apenas que elas perten- ‘cem a uma época determinad, mas sobretudo que clas $6 chepam a sr lexiveis numa época determinada. E precsae mente o facto de chegatem ‘a lepibilidade’ representa um. 3to critic determinado no movimento que as anima, Cada presente € determinado pels imagens que si0 crénicas em relagio a ee; todo Agora 60 Agora de determinada cognoscibilidade (das Jeet einer bestimmae Erkennbarkeit(..). Nao & que 0 passado esclarega 0 Ssente uo presente esclarega o passado, Mas uma i E aguilo em que 0 que foi {das Gewesenc] vem juntarse ‘manera fulminante ao Agora para formar uma constela [outros trmos: a imagem &a dialéctica em estado de pensio (Dialektik im Suilitand]. Porque enquanto a 100 ‘ABROCAE ASSUASFANTASMAGORAS {ed prsen com pana parame empo a Iso do auf com opr dcx no de ton ude mae ears ies (Benjamin, 1982: 480). rm Aap dale" da beds ebscron Kall Tena, “etd Oe se Bare onion so ta de mae Nm cape ima ean aia cans sa : camo és imagem moat al me gai sence se ae hana bat ms ec wad sabe Tee do Tao sca foe nse iol deta hierar psc ea en ‘ohne Eins inti de ae pow ele os hae modelo estético da historia, es tur)”

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