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Rosa Maria Martelo Em Parte Incerta Estudos de poesia portuguesa moderna e contemporanea . * Em Parte Incerta 1 Modernidade e senso comum Se se compara a obra que cresce a uma fogueira, 0 comentador estd diante dela como o quimico, 0 critico como 0 alquimista. Enquanto para aquele, madeira e cinzas permanecem os tinicos objectos de andilise, para este, sé a chama contém um enigma, 0 do vivo. Assim, 0 critica interroga-se sobre a verda- de de que a chama viva continua a queimar por debaixo das ‘pesadas achas do pasado e da cinza ligeira do vivido Walter Benjamin 1. Quando Rimbaud, Mallarmé, Eliot e Pessoa — ou mesmo, embo- ra de maneira menos assertiva, Baudelaire, antes de todos eles — defen- deram, cada um a seu modo, a impessoalidade em poesia, fizeram-no no s6 com 0 objectivo de definir uma poética de produgio textual, reportando-se a relacao entre o poema e 0 poeta enquanto agente cria- dor, mas também de modo a impor um novo protocolo de leitura. Este outro objectivo é bem visivel na carta de Pessoa a Casais Monteiro acerca da origem dos heterdénimos, no conhecido ensaio “A Tradigao e © Talento Individual”, de T. S. Eliot, ou nas mais conhecidas das car- tas dirigidas por Rimbaud a Georges Izambard e Paul Demeny e por Mallarmé a Cazalis'. De resto, nao é certamente por mera casualidade que, independentemente de podermos encontrar, pot parte dos mes- mos autores, outras formulacées para esta questao, algumas das mais " Refiro-me as duas cartas de Rimbaud, a Georges Izambard e a Paul Demeny, conhe- cidas como “Lettres du Voyant”, de 13 ¢ 15 de Maio de 1871, respectivamente (cf. Arthur Rimbaud, EEwores Completes, org, Pierre Brunel, s.., LGE, 1999, pp. 236-243). A carta de Mallarmé a Cazalis a que me reporto é a datada de 14 de Maio de 1867 (in Scherer, Jac- ques, Le ‘Livre de Mallarmé”, Paris, Gallimard, 1977, p. 22). 213 Rosa Maria Martelo emblematicas — 0 “Je est un autre” de Rimbaud, o “Je suis maintenant impersonnel” de Mallarmé — constam de cartas, isto é, ocorrem num contexto em que se ptocura a cumplicidade de um destinatatio deter- minado, um leitor no qual nao sera demais vermos projectada uma possivel prefiguragao do leitor a vir. Em todos estes casos — € 0 ensaio eliotiano nao foge a esta situa~ cao, apesar de, ai, ela ser colocada em sentido mais amplo, tal como dela nao foge o poema “Autopsicografia”, de Pessoa, por exemplo -, € bem visivel a tentativa de supera¢ao de uma nio-coincidéncia entre um determinado modo de ler a poesia (chamemos-lhe o modo do senso comum, que seria o que antes fora imposto pela tradi¢io romantica, € particularmente por uma certa vulgata romantica) e o modo de, cons- cientemente, a escrever. Dito de outra forma, 0 que parece estar em causa é sempre a necessidade de fazer derivar de uma nova poética de ptodugio-textual a emergéncia de novos protocolos de leitura, sem os quais nem o seu pleno entendimento nem a sua legitimacao seriam possiveis. Ao publicar, logo em 1915, um breve comentario a0 aparecimento da revista Orphen, Pessoa recorre a uma estratégia de captacao do leitor que vai precisamente neste sentido. Por isso, depois de recordar 0 que chama 0 “éxito de gargalhada” obtido pela primeira edi¢io de Lyrical Ballads, de Wordsworth e Coleridge, Pessoa procura levar o leitor a de- senvolver uma relacio de empatia com a nova revista, lembrando-lhe © que, antes dele, escrevera o poeta inglés perante situacao idéntica. E cita extensamente uma passagem, da qual recordo: (..) todo 0 autor, na proporgéo em que é grande ¢ ao mesmo tem- po original, tem tido sempre que criar 0 sentimento estético pelo qual ha-de ser apreciado; assim foi sempre e assim continuard a ser... 2 Fernando Pessoa, “Orpheu — Revista Trimestral de Literatura ~ n.° 1” [1915], Fernando Cabral Martins (ed.), Critica ~ Ensaios, Artigos ¢ Entrevistas, Lisboa, Assirio 8 Alvim, 2000, p. 108. 214 Em Parte Incerta Pessoa esta a repetir nfio apenas as palavras de Wordsworth, mas também a prépria estratégia deste poeta, que, ja no prefacio 4 segunda edigio de Lyrical Ballads, alertara o leitor para a necessidade de rejeitar firmemente 0 canone critico daqueles que se atinham a um conceito € auma finalidade da poesia excluidos pela sua poética’. Gostaria de sublinhar, em todas estas intervengGes, nao apenas 0 facto de evidenciarem estratégias de formacio de novos leitores, ou de criagio de novas formas de leitura, mas também o modo como a explicitagao de uma nova poética, conduzindo a tentativas de alterag¢ao — quase se poderia dizer reeducac¢ao — do gosto, nao pode prescindir do didlogo com o que se recusa, porquanto se sabe ser 0 que se recusa ainda activado pelos protocolos de leitura dominantes. Esta linha de reflexio leva a reconhecer que a defesa da impessoa- lidade em poesia se fez necessariamente em didlogo com a tradigaio da poética romantica. Mas poderfamos actescentar pelo menos mais duas razOes para a existéncia desse didlogo, visto sabermos também que a sua matriz pode ser encontrada numa certa teorizagaéo romantica, do mesmo modo que aquilo que € rejeitado fazia parte de uma certa pratica romantica. “O romantismo” — dizia Baudelaire, em 1859 — “é uma bengio celeste — ou diabédlica — 4 qual devemos os nossos eternos stigmas”. Se confrontarmos 0 modo como Victor Hugo articula a subjecti- vidade poética com a experiéncia vivencial do poeta, no prefacio de Les Contemplations, e as posigdes de Eliot, no ensaio “A Tradicao € o Talento Individual” — para recorrermos a dois exemplos paradigm: ticos —, deveremos reconhecer que a grande diferenga entre os dois * Antevendo a incompreensio da critica perante a novidade do seu léxico poético, Wordsworth escreve: “(..) ha muitos eriticos que, quando se confrontam com estes pro- safsmos, como eles Ihes chamam, supdem ter feito uma descoberta notivel e rejubilam perante 0 Poeta como se este fosse um ignorante do seu oficio, Ora estes homens iriam estabelecer um cénone critico que o Leitor concluira dever rejeitar liminarmente se quiset apreciar estes volumes” (William Wordsworth, “Preface to the Second Edition of the Lyrical Ballads” (1800], E. de Selincourt (ed.), The Poetical Works of William Wordsworth, ed., Oxford, Clarendon Press, 1952, pp. 390-1). + Apud Hugo Friedrich, Structures de la Poésie Moderne (1956), trad. Michel-Frangois Demet, Paris, Denoél/Gonthier, 1976, p 31. 215 SseipaiipesS-nierpetmniln 4 { ; Rosa Maria textos se coloca menos ao nivel do reconhecimento da flutuagao da categoria do sujeito do que ao nivel do conceito de poesia que Sustenta essa flutuacao e suas implicagdes. De varias formas, Hugo insiste na ideia de, na sua poesia, o ew ser subsumivel num ¢w (todos nos lem- bramos da exclamativa frase “Ah! insensé, qui crois que je ne suis pas toi!”); no entanto, também nao devemos esquecer que a argumentagao desenvolvida assenta sempre num conceito de poesia onde esta surge inseparavel da vida. De acordo com o mesmo preficio, os dois tomos: de Les Contemplations seriam constituidos pelas “Mémoires d’une ame” (expresso que Antero também vird a utilizar, a propdsito dos Sometos Completo;)°, precisamente porque 0 cerne do poético se situaria além do poema, nas virtualidades poéticas de uma alma em cujo “fundo” (o termo é de Hugo) a vida se depositara sob a forma de poesia. Que essa “alma” ja se desenhava como especialmente capaz de alteridade, pela sua abertura 4 ironia e 4 fragmentacao e pelo assumir de uma fungao mediadora, é uma questo que nao irei desenvolver. Mas gostaria de “vincar que todos esses aspectos devem ser articulados com o facto de © poema ai ser entendido como um efeito da poesia, sendo esta franca- mente maior do que o poema, ou, se nao quisermos ir tao longe, pelo menos descoincidente relativamente a cle. Os poemas sio as “memérias de uma alma”, porque também sao a memoria da poesia, a sua cristalizacao discursiva — enquanto poesia tera sido a experiéncia que Ihes deu origem. Por consequéncia, quando Victor Hugo pede ao leitor que leia 0 seu livro como se lesse 0 livro de um morto, devemos situar tal deser¢Ao neste contexto, embora reco- nhecendo que a génese da impessoalidade das poéticas da Modernida- de poderd estar ja nesta “morte”, que deixa o e gramatical 4 deriva ea mercé de um / que transfigure uma alma noutra alma. 5 “Memérias de uma consciéncia”, “memérias de uma alma”, “memérias morais € psicolégicas”, “documento psicolégico”, “autobiografia psicolégica” e “autobiografia de um pensamento” sio algumas das expressdes que Antero utilizou para se referir aos Sone- tos Completos (cf. Helena Carvalhio Buescu, “Sujeito, voz e ficcionalizagaio nos sonetos de Antero”, in Isabel Pires de Lima (org) Antero de Quental e 0 Destino de Uma Geragéo, Porto, Edigdes Asa, 1993, pp. 66-7) 216 Em Parte Incerta 1 E 0 que sao cles [os poemas] comparados 4 poesia sem forma nem consciéncia que palpita nas plantas, raia na luz, sorri na crianca, brilha na flor da juventude, arde no amante coracio das mulheres? — E con- tudo é esta a poesia primeira, a origindria, sem a qual nfo existiria, por certo, a poesia do verbo.’ As palavras de Friedrich Schlegel mostram-nos a génese do concei- to de poesia que encontramos no prefacio de Les Contemplations. Por elas, podemos ver claramente que, no quadro do idealismo romintico, © poema € o resultado de uma unio dada ao poeta entre o Um e 0 Tudo, para usar uma formulagao de Novalis, sendo que o leitor deve entender 0 poema como uma mediagio que lhe da acesso a expe- iéncia idéntica. Dai as marcas da enunciagio lirica e a cumplicidade romintica com o leitor. Ainda no mesmo preficio, Hugo nao se cansa de repetir que a vida de um homem, tal como esta se apresenta no poema, é a sua ¢ é a dos outros, unidas num mesmo e Unico destino, podendo o leitor reconhecer-se nela como diante de um espelho. E uma perspectiva cuja inteira amplitude se compreende melhor se a pusermos em didlogo com o modo como August Schlegel encara a relagio entre o espirito humano e o universo, dela inferindo uma de- finigao da arte: Ora a clareza, a energia, a plenitude ¢ a completude com as quais 0 Universo se reflecte num espitito humano, e com as quais este reflexo por sua vez nele se reflecte, determinam o grau da sua genialidade at- tistica e permitem-lhe dar forma a um mundo dentro do mundo. Seria, pois, igualmente possivel definir a arte como sendo a nature- za filtrada pot um espirito realizado, concentrada ¢ transfigurada para uso da nossa contemplacio.” “F Schlegel “Entretien sur la poésie” (1800), in Philippe Lacoue-Labarthe e Jean- -Luc Nancy (org), L’Absolu Litéraire, Théorie de la Littérature du Romantisme Allemand, Paris, Editions du Seuil, 1978, p. 290. 7 A.W, Schlegel “Lecons sur Vart et la littérature” (1801), in Philippe Lacoue-Labarthe Jean-Luc Nancy (org), gp.dit, p. 347. 217 Rosa Devemos, pois, reconhecer que a imbricagao romantica entre sia e Vida, porque tem um sentido ontoldgico e activa um pensat espiritualista, se constitui como uma articulacéo muito ampla — que aquela que Schelling sintetizou, ao definir a beleza como “o in! numa apresentagio finita’’*. No entanto, sabemos também que entendimento veio a sofrer uma vulgarizacao simplificadora. Qu: E¢a de Queirés faz Tomas de Alencar dizer “diante de um montao. penedos”, em Sintra, o seu idilico poema “6 de Agosto” (e repare na preciso diaristica do titulo), para logo depois o poeta apontar rochedos e dizer um “foi ali” que deixa 0 maestro Cruges com a sac&o de ter perante si um “sitio histérico”’, nao est a ironizar sobre; protocolo de leitura romantico, mas sobre a sua redu¢ao a uma onde o senso comum acabara por pessoalizar o que, 4 partida, era principio subjectivo que resistia 4 personalizacao e pressupunha a tidade de um modo absoluto, sendo, alias, esse um dos motivos: quais a poesia excedia o poema. Com as poéticas da Modernidade, os limites da poesia passam, entanto, a coincidir com os limites do poema ou da escrita poéti desde logo porque a catabase que Baudelaire encenou na célebre ale= goria “Perte d’auréole”"’ vem langar o poeta num mundo sem trans~ cendéncia, ou, talvez seja melhor dizé-lo assim, num mundo reificado onde esta é experimentada como auséncia. Por conseguinte, falar da poesia, tornar-se-4 um equivalente de falar do poema enquanto enti- dade discursiva, ou, quando muito, de falar da linguagem poética. “Ser impessoal”, na acep¢ao que esta expressao tem em Mallarmé, pressu- pe, como todos sabemos, que seja dada “a iniciativa as palavras”". E certo que ha muito de heranca romantica no contexto textual: onde ocorre esta defesa mallarmeana da impessoalidade, sobretudo pelo modo como ela se apresenta ao servico de uma capacidade do In op. cit, p. 342. ° José Maria Ega de Queirés, Os Maias (1888), Lisboa, Livros do Brazil, s.d., p. 240. " Charles Baudelaire, Le Sphen de Paris, Euvres Complites, I, Paris, Gallimard, Biblio- théque de la Pléiade, 1975, p. 352. " C£. Stéphane Mallarmé, “Crise de Vers”, (Exores Completes, Paris, Gallimard, Biblio- théque de la Pléiade, 1945, p. 366. 218 Em Parte Incerta “Universo Espiritual” para “se ver e se desenvolver”. E no entanto, 0 modo como Mallarmé articula o verbo ére (usado no passado e na terceira pessoa) com o pronome pessoal complemento (usado na pri- meira pessoa) constitui aqui uma marca inequivoca de modernidade: Je suis maintenant impersonnel, et non plus Stéphane que tu as connu, ~ mais une aptitude qu’a Univers Spirituel a se voir et & se développer, a travers ce qui fut moi." Disse que pretendia comparar as posigdes de Hugo que antes des- crevi com as de Eliot no ensaio “A tradi¢ao e o talento individual”. Chego agora ao segundo termo desta comparacao. Quando Eliot de- fende que “[a] emocio da arte é impessoal. E [que] 0 poeta nio pode alcancar inteiramente essa impessoalidade sem se render totalmente 4 obra a fazer”, nao fala de uma rendi¢ao 4 poesia, mas de uma rendigao 4 obra. A emogio a que Eliot se reporta é, como ele mesmo esclarece, uma “emog’o que tem vida no poema e nfo na histéria do poeta”, Trata-se, portanto, no s6 de impedir o leitor de alargar os limites da poesia para além dos limites do poema (por mais ilimitados que a am- biguidade e a polissemia os facam set), mas também de fechar qual- quer possibilidade de subordinacao da poesia a experiéncia vivencial do autor, agora irremediavelmente desvalorizada, porque secularizada numa “waste land” que Baudelaire tera sido dos primeiros a entrever. Ou seja, Eliot esta.a estabelecer um protocolo de leitura que pretende evitar que 0 leitor active o romantismo empobrecido que entretanto se tornara.o protocolo de leitura do senso comum, embora a impessoa- lidade que defende possa dialogar (€ até repor, sob uma configuragio fragil) a altetidade inerente 4 subjectividade romantica. ® In Scherer, op. ait, p. 22. ©. S. Eliot, “A tradicZo ¢ o talento individual” (1920), trad. com colab. de Fernando de Mello Moser, J. Monteiro-Grillo (org), Ensaios de Doutrina Critica, 2. ed., Lisboa, Gui- maries Editores, 1997, p. 32. 219 = Rosa 2. Julgo que estas consideragGes poderio ser titeis se agora a mos no tempo e procutarmos compreéender 0 que esta em causa varias tentativas de descrigio de um quadro de mudanga emi na poesia do tiltimo quartel do século XX, mudanga essa que pelo que alguns j4 chamaram um retorno ao lirismo"’, embora importante acrescentar que é de um retorno ao lirismo “figurati que se trata (por contraste com a tendéncia impessoal ¢ abstracti: através da qual o lirismo da Modernidade interrogou as identic pessoais). Reportando-se 4 poesia espanhola posterior a 1975, José Luis cia Martin propds mesmo o conceito de poesia figurativa, criado analogia com a nogio de pintura figurativa (tomando por referéncia @ binémio figurativo/abstracto), para caracterizar uma poesia que teria repudiado a tradic¢ao da vanguarda, isto é, que teria abdicado da tradi- co de ruptura em favor da recuperacao do sentido’. Trata-se de um processo no qual muitos criticos ¢ poetas tém vindo a acentuar uma nova capacidade de reencontro com o leitor, designadamente com um leitor nao necessariamente especialista ou especializado. Outro poeta e critico espanhol, Miguel d’Ors, descreve essa mes~ ma evolu¢éo como um movimento que, entre outros aspectos, iria no sentido da recuperacio do eu, dos materiais autobiograficos, dos’ sentimentos e dos temas eternos e também de uma certa simplificagao estilistica’®. E é também neste mesmo sentido que Jean-Claude Pinson contrapGe ao emblematico ensaio “Estruturas da Poesia Moderna”, de Hugo Friedrich, um estudo que intitula “Estrutura da poesia con- tempordnea”, no qual procura demonstrar que a matriz abstracta que Friedrich fazia remontar a Mallarmé, Rimbaud e Baudelaire, e da qual resultariam as trés caracteristicas maiores da poesia da Modernidade — a desrealizagio, a despersonalizacio e 0 recuo do poeta perante © ¥ Cf. Jean-Michel Maulpoix, La Poésie Comme l’Amour, s., Mercure de France, 1998, p. 120. + José Luis Garcia Martin, La Poesia Figurativa, Sevilha, Renacimiento, 1992, pp. 209- -211 ' Miguel d°Ors, En Busca del Piblico Perdido, Granada, Impredisur, 1994, pp. 10-11. 220 Em Parte Incerta absoluto da lingua -, teria deixado de poder descrever a complexidade ¢ os miiltiplos caminhos da poesia contemporanea. “A actual «paisa- gem» da poesia francesa é suficientemente diferente do que podia ser ha uma vintena de anos para permitir que se levante a hipétese de ter havido uma mudanga” — defende Jean-Claude Pinson". F no contexto desta mudanga que podemos ver emergir novamen- te certas formas de desfasamento da poesia relativamente ao poema. Hoje, um poeta como Felipe Benitez Reyes valoriza sobretudo a re- lagio texto/leitor, ao dar-nos uma definigao de poesia em que esta é identificada com “a sensa¢ao que pode ser produzida por um bom poe- ma’”'®, E Juan Luis Panero, numa composicao que evoca um Festival de Poetas, em Roma, no ano de 1985, escreve: (.) Mas ali, no cenfio, no esta a poesia, nunca estar. ‘A poesia és tu a trazé-la, nesta noite torrida de fim de julho, sem saber nada de mim, nem sequer que escrevo sentada com os teus oitenta anos, o cabelo cuidadosamente pintado, ‘os teus medalhes, 0 teu pequeno gato numa caixa € as tuas mios no ar recitando d’Annunzio, na esplanada deste bar deserto da Piazza Cavour. () Duse Fingida desta noite louca, Carrancas de proa, rindo-nos tu ¢ eu, sem o querer, trouxeste-me de verdade, a poesia a sua mistura de fabula e sonho, de fantasma e fracasso, a sua verdade obscura que nunca se define.” Tal como na tradicAo romantica, a poesia volta a descoincidir do poe- ma, se bem que agora quase sempre se apresente de modo secularizado Jean-Claude Pinson, “Structure de la poésie contemporaine”, in Daniel Guillaume (org), Poétiques e> Poésies Contemporaines, s.1., Le Temps qu'il Fait, 2002, p. 43. ° Apad Fernando Pinto do Amaral, “A Porta Escura da Poesia”, Relmpago, n.° 12, 2003, p. 24. °8 Juan Luis Panero, “A Duse na Piazza Cavour”, Poemas, trad. ¢ preficio de Joaquim Manuel Magalhies, Lisboa, Relégio de Agua, 2003, p. 105. 221 Rosa Maria Martelo e implicando uma experiéncia sobretudo emocional e vivencial, tanto mais que esta situacao tem agora atras de si o baudelairiano mergulho do poeta “flaneur” na multidao citadina, movimento no qual Benjamin iria ver um primeiro sinal de aproximacio entre a poesia e a desolacao a que, em breve, estariam votados os habitantes das grandes cidades™. “Na pessoa do «flineur»,” — escreve Benjamin — “a inteligéncia vai ao mercado. Julga ela que para contemplar o espectaculo, mas, na verdade, para encontrar um comprador™", E, de certa forma, é a esta situagao de democratizacio/mercantilizacao da poesia que reage Juan Luis Panero ao contrapor, a um festival de poetas, a “verdade obs- cura” de um encontro ocasional em que uma leitora de d’Annunzio recita, por pura fruicio, os versos do poeta, como se estes intima- mente Ihe pertencessem da mesma maneira que lhe pertencem os medalhGes, o gato e o cabelo pintado. O poema de Juan Luis Panero, que comeca com os versos “Robert Creeley fala, inteligentemente, da sua poesia / e Dario Belleza dis- parata contra os poetas estrangeiros”, poderia, assim, conduzit-nos 4 distingo entre poesia sentimental e poesia ingénua, formulada por Schiller € recentemente recuperada por Jean-Claude Pinson: O poeta “ingénuo” (...) € aquele que esta em sintonia com o fluxo € 0s ritmos vitais do mundo, ¢, para ele, a poesia é antes de mais uma palavra que testemunha uma experiéncia do mundo, enquanto 0 poeta “sentimental” est4 mais predisposto a lancar-se nos espacos infinitos que lhe sio internamente descobertos pelas suas construcdes ideais.™ Tanto 0 poeta espanhol como o poeta e critico francés parecem partilhar o mesmo anseio por uma poesia capaz de recuperar 0 sen- timento e de se transformar em “maneira de viver”®. E, embora tal ® Walter Benjamin, Gallimatd, 2000, p. 58. 2 Idem, p. 59. % Jean-Claude Pinson, Sentimentale et Naive, Nouveaucc essais sur la poésie contemporaine, Champ Vallon, 2002, p. 16. ® Idem, p. 16. “Paris, capitale du XIXéme siecle” (1935), CEwores, III, Paris, 222 Em Parte Incerta no deva implicar uma atitude de alheamento relativamente a tradi¢io predominantemente sentimental (na acepgio schilleriana do termo) da poesia da Modernidade, implicara certamente a sua reformulacio e a renovacio dos protocolos de leitura por ela institufdos. “Mas o poema fala, fala de si” escreve, em Alka Noite em Alta Fraga, Joaquim Manuel Magalhies. Para acrescentar, todavia, que o poema: apanha o real porque nele esta quem o escreve, que sou eu que procuto deixar um sinal de quanto nos esmagam a todos que sio n6s.* Repare-se que um dos modos de evitar uma leitura a partir do tipo de protocolo instituido pela tradigio da Modernidade, particularmente pelo Modernismo, é aqui a forma como 0 eu é identificado como “quem escreve” 0 poema. Ainda que possamos restringit a sua presenca ade um autor textual que nao tem de ser forcosamente identificado com o autor empirico, o estabelecimento de uma relaco com o “autor” parece incon- tornavel. E a verdade é que Joaquim Manuel Magalhies estabelece, em varios momentos de Alta Noite em Alta Fraga, um protocols de leitura que exclui este tipo de analitismo, proscrevendo uma leitura mais “técnica”: () Melhor seria que no me lessem nunca 08 que por costume léem poesia. Muito além deles conseguir falar a0 que chega a casa e prefere 0 alcool, a miisica de acaso, a sombra de alguém com 0 siléncio das situagées ajustadas. Nao ser lido por quem lé. Somente pelos que procuram qualquer coisa ™ Joaquim Manuel Magalhaes, “Mae-da-Lua”, Alia Noite em Alta Fraga, Lisboa, Relé- gio d’Agua, 2001, p. 38. 223 Rosa Maria Marielo rugosa e ripida a caminho de uma revista onde fotografaram todo o ludibrio da felicidade. Que um poema meu lhes pudesse entregar, ademais da morte, um alivio igual ao de atirar os sapatos que tanto apertam os pés desencaminhados.* De acordo com o mesmo poema, este tipo de leitor seria o unico a quem a poesia poderia trazer ainda algum alivio, porquanto, a um leitor mais experimentado (entenda-se mais conhecedor da tradi¢gao poética da Modernidade), nao escaparia o quanto as palavras conti- nuam a transportar de irredimivel desolacao. Importa reconhecer, to- davia, que, apesar de, a primeira vista, nos poder parecer que estamos mais proximo de um protocolo de leitura de tipo romantico do que da impessoalidade e do abstraccionismo caracteristicos do lirismo da Modernidade, estamos, na verdade, perante uma outra coisa. Com efeito, é dificil acreditar que os leitores de Joaquim Manuel Magalhies possam ser outros que nao os que se formaram na tradi¢ao da poesia da Modernidade; e mais dificil ainda sera acreditar que pos- sam ser esses que folheiam as revistas 4 procura de pequenas amostras de felicidade enganosa. Porém, ja sera mais facil compreender este protocolo de leitura se aceitarmos que, na verdade, ele continua a di- rigir-se a um leitor habitual de poesia, embora para lhe dizer que leia doutro modo ou, mais exactamente, que reconheca nestes poemas uma tens4o que procura ser, pata usar uma expressao do préprio Ma- galhaes, “mais emocional” (do que gramatical) e que procura apoiar- -se num conceito mais figurativo de lirismo. De resto, € precisamente nesta pressuposi¢ao que, contrariamente ao que acontecia no quadro da tradicio da Modernidade, onde a experiéncia da poesia e do mundo que esta fazia surgir parecia destinada a um leitor a vir ou pelo menos a uma aristocracia de arte muito limitada, depois dos anos 70 do século XX, a relaco instituida por este tipo de protocolos de leitura admite que o leitor possa ser encontrado mais facilmente. % Idem, “Sangramento”, op. dt, p. 21 224 Em Parte Incerta A experiéncia do sujeito poético apresenta-se como algo de par- tilhado, ou de facilmente partilhavel com o leitor, nao porque aquele tenha superado a des-figuragdo’® identitaria anteriormente somatizada como figura de construgao pela desagregacao gramatical do abstrac- cionismo litico, mas porque o leitor facilmente a reconhece como uma experiéncia comum. Quero com isto dizer que a des-figuragao do su- jeito pode nao implicar agora uma retérica da impessoalidade e uma actualizacao figural, em termos de tessitura discursiva, e pode reverter para a construgio de personagens facilmente reconheciveis para o leitor como des-figuragGes identitarias referencidveis no seu mundo habitual. Por conseguinte, o efeito de dissolugio identitaria nao sera agora muito diferente: 0 que acontece é que pode ser objecto de uma tematizac4o que pressupde que o leitor construa um efeito de reali mo que estava ausente do abstraccionismo litico da Modernidade. De resto, 0 acentuado discursivismo que caracteriza muita da poesia do Ultimo quartel do século XX poder mesmo constituir uma estratégia destinada a suster a des-figuracao identitaria e a reconhecida fragilida- de do sujeito. “Gostava de escrever (...) / (...) / Para restos de ninguém” — lé-se num dos poemas de Joaquim Manuel Magalhaes anteriormente cita- dos. Mas, no outro poema que referi, o eu procura “deixar um sinal / de quanto nos esmagam / a todos os que sao nds” (italico meu). E, abrangidos enquanto leitores, também nds seremos esses “restos de ninguém”. Ora esta cumplicidade, que a primeira vista poderia ser con- siderada neo-romantica, corresponde, de facto, a vulgarizacio da expe- riéncia que a Modernidade estética exprimira através do estilhagamento da tessitura enunciativa do poema. E por esse motivo, provavelmente, que o lirismo figurativo é apenas um dos desenvolvimentos da poesia do ultimo quartel do século XX. O lirismo abstractizante e impessoal % O termo des-figuragdo & usado no sentido em que ocorre em Paul de Man (“Autobio- graphy as De-facement”, The Rhetoric of Romanticism, Nova Torque, Columbia University Press, 1984, p.76), designadamente quando o ensaista considera a prosopopeia — eti- mologicamente, 0 conferir a um rosto uma mascara — como o tropo da autobiografia, insistindo nas relagdes entre figura, figuracio e desfiguragio. 225 Rosa Maria Martelo tem todas as condi¢Ges para permanecer, embora seja particularmente visivel (¢ interessante) a tendéncia para fundir as duas possibilidades numa espécie de sincretismo que, a0 mesmo tempo, recupera a tra- digo da Modernidade (pelo facto de a reutilizar/prolongar) ¢ a sub- verte, por poder combiné-la com um registo muito mais figurativo e susceptivel de produzir um efeito de realismo. Nas décadas de 40 e 50, quando o efeito de realismo eta obtido por referéncia a uma versio de mundo ontologicamente forte (0 marxismo, por exemplo), a sua pre- senga facilmente implicava que a tradicio da Modernidade fosse colo- cada “sob rasura”, Agora ambos parecem poder conviver sem grandes dificuldades. Entre outras razGes, pelo facto de hoje lermos depois de o mundo que a poesia da Modernidade antecipava se ter tornado um mundo habitual. Nesse mundo, a dissolugao ¢ a flutuacao identitarias tornaram-se um tdpico tio comum e tecorrente que tematizé-las de modo figurativo talvez seja mesmo uma forma de tentar resistir-lhes, embora reconhecendo-lhes a existéncia. 226

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