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EDUARDO LOURENCO TEMPO E POES EDITORIAL INOVA © PORTO salém das itimas consolsgies © transparéncias, & de ‘io, sua ganga e tribulagées que Vitorino Nemésio retira ‘© necosstrio viético. O seu itineririo 6, como 0 dos gran- es pootas da sua geracio, experiéneia de ardente e ardida ‘alvagio. A diferenga esti om que a graga e a redencio tio a espera do exereilo solitirio de uma impugnacio ‘equivoea de Deus e menos ainda doa poderes transfigue rrantes do acto poético concebido como sufictente oragio. ‘A poesia de Nemésio, aa sua maior profundeza que 6, naturalmente, a da mixima altura postica, é verbo submisso, transido do mistéro da realidade que o aliments fe arrasta apés si. Daf o seu caricter do ascese, a busca do um despojamento integral do «mol halssable>, a sun vontade de nude e a sua glosa da existéncia, como os80 Dbranguejando tem fim por baixo da roupa e da epiderme perecivels, No panorama da nota poesia eepiritual — e ‘num corto sentido, embora equlvoco, «espirituaista> — grande pocsia do Nemésio, a do Nem Toda a Noite @ Vida, 0 Pio ¢ a Culpa e 0 Verbo ¢ a Morte, desenha um espago privilegiado, & uma poosia fundamentalmonte esmitifieante, nfo idolétrica, porgue é, na sua esséncia, ade um verbo atravessado pela morte ¢ tirando dessa invisivel ¢ mortal ferida muito humana), vicentinamen- te falando, luz com que nos fere, nos deslumbra © nos ccongrege sun volta DIALECTICA MITICA DA NOSSA MODERNIDADE, santa claresa com ue 00 Pootas alam nas trevas das ‘A modernidade, em sentido emodernos — pols pode- mos conecber outros — tera, como & stbido, um pai e um ‘vate. A simples mongio om percepeéo do novo da novi- dade como fen6menos culturais, mesmo a sua clara mitiéi- ‘eagio, nio bastam para nos introdusir nos areanos da Modernidade. Hm Baudelaire e ji arquetipamente, a mo- dernidade apresenta uma configuragio ambigua. Talver conven eserover: diaetion, A modernidade 6 w forma, através da qual éelevada A conseiéncia plena de si mesma, sob a figura de mito, a realidade moderna por exceléncia, que é a Cidade, Nao uma cidede qualquer mas a Metré- pole que a revolucio industrial faz deseolar do aed esta- tuto e ritmo milenérios, Para Baudelaire, a moderaidade € Pais, monstro fascinante © ambiguo, j6 adivinbado por ‘Balzac e Vietor Hugo e espera de ser elinicamente des- vventmado por Zola. Assim exist ji uma certa prosa de Paris e uma certa poesia, mas antes de Budelaire nfo ‘8 havia visto com soberane acuidade que Paris era nova rosa ¢ mais aquém ou além, envolvendo-a, postica novt. ‘A apreonsio do fenémeno e a elevagio no mundo da forma que the corresponde, fora da qual muito platoni- camente nada existe, desst realidade ao mesmo tempo monstruosa ¢ fascinante que & Paris, tal 6 0 conteido eoncreto, quer dizer, histérico, da modernidade baude- Initiana. sso 0 notou, em tempos, Walter Benjamin, em ensalo pouco conhecide. Antero chamou a Baudelaire, Dante do ‘Boulevard. Ignoramos se 0 epitato é dee. Hm todo 0 cas0 60 eplteto justo. Nos seus poemas a citta dolente nio 6 0 sobrenatural reflexo doe dilaceramentos que abrem amunciam 0 mundo moderno, mas a dor multiforme do parto ainda nfo terminado da Urbe-Megalopolis onde 0s ‘trfs reinos de Dante se indistinguem, teatro de um herots- ‘mo anénimo desconheeido das épocas passadas: 6 a Cida- odo gis, do carvio, do vapor, com seus ergistulos- -fibrieas ¢ seus gladiadores-proletirios, que a si mes- ‘mo se aparece como ambfguo inferno e niio menos equi- vyoeo peraiso entreaberto & sombra (ji entio) do haxixe edo pio. A modernidade 6, pois, conscitneia positiva de uma realidade hist6ries nova, maa 0 solo sobre que dea- onta 6 uma expéele de lodo infame que a alquimia dolo- rosa do Posta deve transfigurar em oure. Como eo 30 ‘titulo famoco ed apressada leitura dos poemas, uma ‘grande parte dos seus contemportneos — e em particular 0 lusindas poctas que o reflectiram — 96 retiveram as malsis flores do mals, ignorando « alguimia da sua ‘metamorfose. Mats superticialmente ainda, leram a Nova, Poesia na perspectiva cebitica e critica abstracta a que Justamente Baudelaire punha termo inserindo a palavra, Podtica na textura da Cidade. Apestr disto, o lado maldito 204 do poeta da Modernidade e, por conseguinte, a maldigo Inerente a essa moderndade, nfo Ihes passaram desperce- Dbkdos. Da modernidade baudelairians até hoje — que & provavelmente o fim dela por ser 0 da Cidade como lugar insélito, uma ver que o mundo Intelro se tornou poten- clalmente essa Cidade — a poesia que a eaptou (e€ tanto ‘do Apolinaire como a de Proust, a de Pessoa como a de ‘Joyce, de Musil ou Kafka) contim, como fundo inexau- ive, @ erition d Cidade, matriz de sofrimentos sem apa- rente redengio, mas igualmente a exaltagio do fantéstico ‘quotidiano, equivalente hodierno doe lugares méigicos da Poesia antiga. A Modernidade, no seu comego fulgurante, apresenta-se logo como intrinsecamente constituida de mé-conscléncia e de apetite de surrealidade. Isto basta ‘ara distinguir na postoridade baudelairiana — que 6a de toda a poesia ocidental — a auténticn da falsa moderni- dade, em rogra geral designada, com maior ou menor pro- priedadc, de modernismo, Aquilo a quo Baudelaire confere ‘uma expressio prdpria marca o ponto de ruptura de dolt mundos e abre a era de uma espécie de : 4a alma do Ocidento, 0 refluxo da maré alta do titanismo ‘romintico, Abandonsda do Deus excessivo a que aspirara, afine pointer dessa alma que 6 a poesia, Heine ow Bau elaire, s6 pode ealebrar 2 propria busca, desesperads, ‘aginiea © burlesca. Que a Modernidade tenha aparecido como. signo & ‘como expresaio de uma crise da Cultura particularmente ‘gud, nil fol indiferente para o futuro dessa Modernl- dade. Na orla de um futuro que € ainda o nosso, mas em plono coragio da Era Burgu:sa, sob o esplendor real © ficticio do uma humanidade conquistadora e implacivel, aparece sob a forma do Tio premonitério, de que Baus elaire 6 0 posta inspirado e o «dandys, a fractura se- coreta, em seguida cada ves mais larga, de uma Civiliza- co intelra, A partir de Baudelaire no haveré nenbum ‘grande poeta da Modernidade — qualquer que tenha sido ‘forma dos seus poemas — que nfo haja interioriado ssa ferida invisivel de um mundo e de uma Civilizagio. © poeta constréi ou apela som cescar «um algures rallarmiano eli-basy ou pessoana ellha dos mares do ssul> — capar de restaurar a existéncia inteira e de a ccurar desea fractura que constitui a Modemnidade, Mes- ‘mo nos poetas mais da realidade, que & sempre natural ¢ eultural, como Claudel, Saint-John Perse ou Jorge Guillén, se pereebe essa expécie de auséncia constitutiva da existincia burguesa (em sentido largo) que define o horizonte da Modernidade, Mas o auténtico trabalho da conscigncia poftica moderna nio consistin ‘aa invengio desses «alguress capazes de adormecer 0 ‘Tédio intrinseeo que Ihe é proprio, mas na mais diieil pparadoxal invengio das figuras dessa auséncia de si a ‘meama que a ceracterizam, A consciéacia poética — como a consciéneia em geral — niio suporta o vazio. Se ‘existdncia burguesa revela uma faha incurével, a cons- clénela postion saber’ mobilar, cada vez com mais preci- ‘oe fulgor, esse lugar vazio, inventando os mitos que ao rmeemo tempo 0 aasinslam © 0 negam, de Flaubert a Beckett ou de Baudelaire a Pessoa. ‘© expirito da Modernidade é 0 de uma epopela do Negativo, 0 que nfo quer dizer, ao menos para nés, uma negativa epopela. Com ele entramos no reino do anti- “hori, passivo em Flaubert, activo em Baudelaire e Rim- baud, ji profeticamente gémeo do novo-herdi da margina> Nidade telunfante que hoje nos rodeia assinalando o tarmo 4a disolugho do universo burgute. Vietor Hugo apreende- ‘ma easéncia do mundo burgués como ferormente antitét- ‘a, mas soba forma da Excepeio ou de uma oposigio ainda Superficial. Os seus herdis populares, & margem da socie- dade ou por ela marginalizados, buscam 0 seu reconhee!- ‘mento, como os de Alexandre Dumas. Nio sio crimino- 08, mas inocentes injustamente eulpados © 6 ease inoctn- tla em busea de justica quo Hugo celebra. Baudelaire ‘elebrari 0 crime mesmo, como emanagio justa e, por ‘assim dizer, redentora de am mundo que ilo conhece mais redengio que a do Dinheiro e da Oniem que o glori- flea, A poesia respirart este «ar do crimes que Rimbaud cevocou, na ordem ética. Mas sob ela, uma fundura mais radical e deciaiva para os destinos da poesia da moder- nldade, processs-se o combate contra 0 disourso — in- ‘luindo © podtico — através do qual a visio burguess se vive e se eounela, B nease expago do discurso que se auto- Aestréi, © a visio sacral que nele naufraga, mals do que no foleérieo «ar do erime> ou nas deseidas tempordrias fo inferno, que se deve buscar 0 mais intimo sentido da Modernidade. Ao nivel dos seus mitos e emblemas mais cconhecidoe, como em Baudelaire, 6 ainda o romantismo (que triunfa por inversio, A mais funda exigéneia da Modernidade — a modernidade superlative adstrita & famosa injunglo de Rimbaud: faut étre absolument ‘moderne — tem jh poueo que ver com o frenesi vanguar- dista que 6 costume ler nela, Ser eabsolutamente moder zo» 6 pura Rimbaud renunciar, como Nietzsche, consola- ‘Go Uusdria de deste fitimo retomado rnima perspeetiva sures: lista eonheceri um dos avatares mais preciosos da, nossa ‘Modernidade. Fernando Pessoa, que nfo fol apenas mo- ‘dorno, mas a Moderaidade mosiaa — a nossa muito egpe- cifieae ambigua modernidade — nfo se enganou cha- ‘mando a Ceaério o mestre da sua e celebrando em Nobre toda a nossa irredenta infincla com o infantiliamo que rela vai. A ambos portm faltou o que no mesmo Pessoa sobreabunda: a conseitncia do emistério de existir» que tio 6 apenas o de uma particular existéncia confrontada com 0 sofrimento 0 mal, mas da exiaténcia histrica inteira e nela incluida o diseurso plural com que desde ‘sompre busca compreender-se. Ter escrito os poemas onde ‘colhemos essa experiéncia ¢ aceder com eles ao carne mais Inequlivoco da Modernidade é a mesma coisa, ‘A visio dan contradigées objectivas da experiéncia histérica que o coneeme, tanto quanto a dos plurais dis- cursos que as nfo suprimem, instalaram Fernando Peason ‘numa espéeie de terra de ninguém da alma, num deserto hstérico onde o sentido mesmo da sua prépria realidade pessoal naufraga. Para esta desintegragio do proprio ‘sujito da Poesia, Pessoa néo encontrou propriamente Uma Ainguagem postica mas uma alegoria vivida quo parado- xalmente multiplicoy 0 in possivel sujelto eriador. Com le nio 6 apenas anteria.a morte, universal e abetracta, ra sua generalidade, que desce & rua da nossa poesia, mas ‘uma ausénoia gem nome, como que matricial, uma espécle eo nada fulgurante, no horizonte do qual, misteriasamen- te, « mais trivial dag realidades (mala de viagem ou obrada-a-moda-to-Porto) adquirs uma vida fosfores- ceente, A mais radical negagio do mundo tal como é — ‘mas para Pessoa «a realidades 6 semelhante — constitui (© dleitmotiv> inieo da sue poesia. Alberto Caciro & a irdnica megaglo dessa negucto, poeta imaginério no sen- tdo literal do termo, 0 mais imagindrio dos hetorénimos fe noo coneretos ou a expresso do . (0 aceaso directo ao mundo enquanto objecto do canto do um cu ko menos eapontineo © substante, sueito do seu universo, ou antes, deus no abrigo da realidade que sob todas as formas 0 des-realiz, jh (ou ainda) no pare- ce posevel. Uma intrinseca autocontestacto da palavre pottiea define « forma contemporinea da Modernidade. On talver melhor, nenhuma palevra poétioa realmente ‘moderna ae constitai como tal se nko for a contestacko no s6 da realidado nela viseda como de si mesma. meceestrio que nea se clcbre a distincla que @ sopara de toda a outra palavra que cré visar e dizer 0 mundo sem ‘aber que 0 mito diz. Todo o pooma se tornou espelho ds ‘sua propria aventura e lh onde nto ae pereebe o rasto deste expecticulo sem expectador podemos estar certos que nko sopra o espirto da Modernidade, esprito trigico ¢ dialée- tico, salvo de si mesmo por uma autodironia da conscién cin poéticn que assim transfere para o seu proprio acto © taligico meramente exterior da sujectiva relaglo nossa que nfo corresponde a este paradigmitico estatuto, 0 cexemplo que primeiro ocorre 6 o de Eugianio de Andrade. Poesia do éxtase lirico depuredo © puro, testomunhando lum encontro que nfo se quer menos puro entre uma. cons cidncia adimica e um mundo nio menos adimico, como Inelf-la nessa Modernidade eujo pulsar 6 @ suspeita onto- logics Sntiea? Na realidade uma certa forma de euspelta fest Ji integrada no poema que de raiz abdica da dial6e- tea om forma de tonel das Danaides, de Pessoa, para se Ingtalar no reino da para imagem, aquém ou além do tor- ‘mento por si mesmo, Nio sem mérito, pols 0 seu pootar no procede nem aprendeu em Pessoa ligéo alguma, salvo poseivelmente a de uma misiea verbal que refinard. entre ‘As suas mics, A sua modernidade radiea no desejo de as- similar o pooma a uma harmonia subsistente, dupla. ou Incarnagio da que sem palavrae esti jé inserita na exis téncia como acto pottico, existéncia como rosa, fonte, navio, pissaro, prosenga amada e amante. Toda 4 reall- dade 6 metifora e neste metaforismo radical que suspeita ‘© mundo transfigurando-o reside « modernidade da poesia de Bugénio de Andrade, O narcisiamo inegivel da sua visio & menos o da consciéacla que se desdobra e com- Placentemente se revé no seu Jogo de espelhos ou na sua Inguietude, que © de uma conscitucia sufocada pelo es plendor ou a fugasidade exaltante da realidade puramen- ta terres, O seu mundo & ertranbo como poucos & dia letiea e & psieologia e por isso constitufu um marco eapl- tal do processo da nossa consciéncia poétien em lute con- tra uma discursividade através da qual, mesmo ns visio nilista de Pessoa, o mundo se restaurava adquirindo wm sontido participével. Num universo easencialmente meta- ‘rico, mesmo se espelha uma visio «paradisiacas da rea- as lidade —e isto menmo & metifora — o «sentidos dissol- ‘yese mums pluralidade de fulguragées, de momentos m- sleals como que arrancados (e em seguida inscritos) a um ‘spago insubsistonte. Uma corta que ge tem notado na poosia de Bugénio de Andrade prende-se & sua cessencial yoeagio extitica, a essa espécle de misica es- telar que em si mesma se goza. Nota-se menos que esse 60 preco de uma ambicio rara e desmedida e a primeira ‘grande aventura de ligar a sorte do poema aos intransfe- rivela sortilégioa da matéria sonora de que é feito. Por isso, e contraditoriamente, a poesia de Kuginio de An- rade concentra em si o méximo de boa-conseléncia pos- tea, pois assume 0 acto poétieo como magia que muito ‘noo-romantieamente nog instala no coraglo do mundo, fe uma conereta mi-conscitneia, no menos extrema, na ‘medida em que significa recusa do.modo ¢ dos poderes do discurso postico tradicional. O mimetismo mais ou ‘menos original a que o seu gesto poético deu lugar, cen- ‘trouge sobretudo no uso ¢ abuso do seu metaforiamo aro, a. ponto de dar origem a uma verdadeira havia no neo-realismo 4 levada a cabo por postas contemporineos das contribul- Ges decisivas de Eugénio de Andrade e do Surrealismo. ‘Dessa. poesia, encontram-se em Hgito Gongalves, em Ale- xandre Pinheiro Torres, num Carlos de Oliveira jé distan- te dos seus comegos, exemplos brilhantes, Airavéa. da temftica do amor, subtrafdo & sua fungio. meramonte inter-subjectiva e convertido em methfora eritca da reall- dade, s0 efectuou a descolagem de um discurso poitieo de ébvia apropriagio para um outro de superior autono- ‘mia e, por conseguinte, modernidade. Uma expressio mais Incisive desse processo, pela adjunglo de um outro grat e lberdade © humor surge nessa altura. no_primelro Ramos Rosa e, sobretudo, em Alexandre O'Neil, Mas paralela, ¢ anterior a todo este processo que abrange o8 ‘anos 40'e os comecos de 50, existe uma outra forma de sutocontestagio postica, cujos frutos 36 mais tarde serio ‘isiveis, embora de importinela capital. A sua raiz pode Dbuscar-se na poesia do Casnia Monteiro no gosto antl lirico que a originou, ao converter © prosatsmo éplco de 5 Caciro-Campos em melodia stonal e na aparéncia anti- poétiea. Algo semelhante, mas mais intrinsecamente inorginieo, teve lugar ao mesmo tempo ns poesia de Jodo Falco (Irene Lisbot). em cada um, mas com ressonfin- cias complexas om Casais Monteiro, a mancira de reagir, no & Poesia mas & funcio inconscientemento alienante {de que pode ser oeasito enquanto ebeleza eonsumivel>. A clara e mais relovante dimensio deste Inerente a existéncia burguesa e is mals adequadas das suas expresodes poéticas, uma forma exasperada de crenga ‘na realidade migica do poema, Assim comparece a aventura drfica de Anténio Maria Lisboa © igualmente, fembora com miltiplas e imprevistas rasteiras & sua pro pila soriadade visceral e formal, a que so encontra na Poesia do Cesariny. Cortada yoluntariamente de tio alta us ambigio, integrada mais prosieamente no mundo eit. cunstante que Iho serve de fingida mira, a poesia de Ale- xandre O'Nelll popalarizou um Jogo postico e uma inven- ‘Go subtil em si mosmos poueo aceasivels, [Na poesia surrealista se encontrs, como em perpétua festa, a auttnticn posteridade de um certo Alvaro de Cam- os mas iguaimente a heranca transfigurada da fantasia, hhetoréclita e ibérrima de um Marlo Saa. A outra metade 4a inesgotivel imagom de Campos, reeriagio © aprofun- Gamento original de uma similar sensibilidade, revive na obra de Raul de Carvalho, um dos mais autntloos o puros ppoetas do seu e nosso tempo. A torrente admirivel do seu lirismo encobre um pouco 0 seereto gesto que nela esti ‘empurrando sem cessar «a solidio do homem para um pponto que fies algures no universo». Na sua poesia se ‘unificam e resgatam até os bocados « mals que hevia na jarra definitivamente partida de Pessoa. O que. podia haver de antimodemo na generosidade e abundincla da sua inspiraglo, tanto como na sua agressiva e voluntéria Aesatencio cultural — afinal profética, como em tempos ‘ade Sebastigo da Gama — 6 coberto por uma permanente inyenefo de imagens aptas como poucas para fixar «a sombras inerente a toda a «vos» onde a modernidade eeoa, ‘Manos efusiva o ardento que a de Raul de Carvalho, 4 poesia de AntOnio Ramos Rosa, naseida no mesmo hori- zonte e um pouso das meamas fontes, de onde afinal ‘munca se nasee, instaurou pouco a pouco uma ascese da cconseincia poética sem paralelo entre nés ¢ com ela um processo de paralisa inteira de eonsequéncias ainda em ‘marcha. O reflexo medusante da sua aventura criadora- Alescriadora transformou-a na experitncia poitica. mais evolucioniria dos Gltimos vinte anos. A sua poesia & 0 219 resultado de um confronto entre uma palavra postica com vocagio de suprimir o siléncio das coisas e do mundo ceaptando-o © integrando-o em sl ¢ uma outra, émula de tum siléncio mais radical ainda, slléncio anterior ao nasei- mento do poema de onde ele a custo e eonhecendo a irre- utivel precaridade do seu gesto se deve levantar som fim. Se hi. alguém que introduaiu o lobo no redil do que sinda existia como boe-consciéneia eriadora, sssumindo assim plenamente o desastro plausivel da aventura impli- cita ma Modernidade, esse 6 Ramos Ross, Sem levar tho Jonge como o posta de «Pedra Nua> case combate suicida tno interior do eampo cerrado da palavra e sua impoténcia, original, o eco desta exigéncia brilha om todos os pootas ‘© quem 0 seu exemplo inculeou a vertigem do rigor, de Too Raul de Sousa a José Augusto Seabra. Mas isso mes- ‘mo no impedin que a sua aventura tena sido objecto de uma incompreensio sbsurda, embora bem slgnificativa da ruptura que assinsla no Ambito Tusiada. Tanto mais ab- ssurda quanto a sua poecia nada tem do formal © muito ‘menos de formalista ou de obsessivamente hermético, O oema de Ramos Rosa visa a intogragio de realidades simples e na sua simplicidade inacessiveis, égua, brancura 4de muro, ar, corpo com sua opacidade original e sus lin- ‘guagom clara. # contra o mais gensivel e préximo que 9 Aquebra 0 seu verbo exigente como nenhum outro e, como nenhum outro, suspelta feita verbo, © quo 0 situa no ‘centro e nos confins da Modernidade que ainda nko delxi- mos de ser. Podia terminarse aqui! um sintético itineririo dos ‘momentos criticamente significatives da nossa Moderal- dade que nio so, 26 por si, os tinieos momentos de grande poesia, Na verdade a aventura. poétiea contemporinea corren ¢ corre também por calhas mais abrigadas do agreste o vivificante vonto da Modernidade, calhas som noite interior ou anterior, construldas ainda com uma palavra aderente a confianca ontol6gica que The 6 conatu- ral, Poesia de contemplagio, de éxtase, de paixio, de Muminado fervor, cintiante arabesco ou positivo olhar deposto sobre as coisis, nela a pressio da Modernidade 4 detida no limiar da porta. No é dificil enderegar eases epitates aos mundos potticos de Sophia Andresen, que quase todos podia reivindicar, de Vasco Miranda, David Mourio Ferreira ou Anténio Reis. Mas na verdade 0 decisivo da nossa aventura postica mais actual continua 4 processar-se no interior ou na linha de exigénela. en ‘camada a poétien de Ramos Rosa, mesmo quando a pritica posties enveredow por eaminhos ou atalhos que © poeta de «Ocupagio do Bspago> niio frequenta. Nio 6 cortamente um aeaso, 2e o licido prefaciador dease livro- chave da nossa préxima Modernidade, Melo © Castro, 6 ‘um dos teorimadores com Sallete Tavares um dos mais activos representantes de um Experimentalismo constra- tivista em que © cmuspeita» que constitul a esséncia, dessa Modernidade cientemente se auto-aniqulla © pela ‘mesma ocasiao nos instala num elima j exterior a ela. Se é exterior & poosia mesma, tal como uma venerivel tradigio a institufu e tem vivido, o futuro da nova expe- rigaeia 0 dirk. Do que pode duvidar-se 6 de que a palavra — € com la a nossa reulidade ou a falta dela — se deixe visar ‘como auténoma ¢ pura exterioridade susceptival de trans- Portar e sonhar por nés os sonhos que sideraimente ‘mortos abotidos como sujeitos hit muito se desprenderam. de quem cclebra aliviedo «a morte do homems. Mais préximas da Iuta (ainda spiritual) que a poética de ‘Ramos Rosa condensa © agoniza sio algumas das mais Drithantes aventuras posticas dos filtimes anos, de que destacamos, por significativas a mais de um i & utilisago dos seus blocos fulgurantes, sintee original de abjecclo regeneradora. e de eaplendor sarvistico, Menos flamojante ¢ mais classicamente dialétiea uma outra voz esmesurada, a de Ruy Belo, associa o seu profetismo angustiado ¢ irénico a este momento crucial em que a Modernidade de si mosma so despode deitando fogo aos ‘seus tumultuosos.sortlégios. ‘Wmbora secretamente estruturada, a aventura pos ‘ica de uma época é uma aventura de liberdade. Bem subemos que de fora ou apenas abusivamente presos nesta, suméria trama floaram incarnagSen de inogivel moder- aidade embors nola marginalizadas pelo facto mesmo de s0 nfo terem explicitamente responsabilizdo por ela. Him que estranha topologia dessa mesma. Modernidade seri. Postel inserever com alguma possibilidade de acerto ‘uma mfsica tio modemnamente marginal como a de Vito- ino Nemésio, ou marginalmente moderna como as de Alberto de Lacerda e Sophia Andresen, exemplos de puro liriamo oferecido ao liriemo do mundo? Em que expago imisticas © ininieas de um M.S. Lourengo e de ume Ana Hatheriy? Bm que cfrculo situar o verbo sombri, accreto ‘eantente de um Helder Macedo? Ou o metaforismo refina- 49 de um José Terra? Que acolhimento reservar 08 lab- inticos caminhos de Eros que das subtilezas platonizan- tas de Victor Matos e Sé e Fernando Gulmaries deseguou za imaginagfo concreta de Natilia Correia e tomou conta, 4o espaco familiar de Teresa Horta? Exclui-se da Moder- nidade a adesio ap mundo que Bros #upSe, ¢inehu-og nela a Linguagem onde o investem e se investem? No reino aberto da poesia, como no outro, que & possivelmente 4 tinica versio real do primeiro, hi moradas diversas, Deserevemos com mais detalhe (ou aludimos) Aquelas sobre que flutun com menor equivoco, destraldada aos cfus ficticioa do esplendor do sentido nenhum da vida», 12 filmula equivoes da Modernidade. Nice, 20 de Setembro de 1971

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