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A ficgao brasileira contempordnea e as redes
hipertextuais
Ana Claudia Viegas
(UERJ / PUC-Rio)
As intersecgGes entre literatura e informética suscitam di-
versas questdes tedricas, no necessariamente inéditas, mas
redimensionadas pela reconfiguragdo do circuito de produgio,
circulagdo e consumo da escrita pela internet: intercruzamento
das figuras do leitor e do autor, através do modo de leitura
hipertextual e das praticas de criagao coletiva de textos; discussio
das nogées de autor e obra, a partir da disseminagao da colagem,
montagem, apropriagio ¢ recriagdo como processos de criagio
artistica, dando-se mais um passo no deslocamento da aura da
obra de arte; delicadas questdes sobre a autoria e seus direitos
juridicos de propriedade sobre o texto, cuja legislaco necessita
revisdes e atualizagdes, de acordo com esse novo modo de circu-
ago do texto literdrio; redefinigao dos critérios de atribuigdo de
valor ao texto literdrio, dada a sua circulag%o em meio a uma
multiplicidade de tipos de textos, imagens e sons.
Pensar as mudaneas sociais trazidas pelos novos meios im-
plica no pensé-los como fontes de inovacdes em si, mas, sim, a
interagao entre essas novas priticas de comunicagao e as transfor-
mages sociais. Ou seja: deslocar a anilise dos meios até as medi-
ages sociais (Martin-Barbero 2001). Walter Benjamin (s/d). em
seu clissico texto sobre a “reprodutibilidade técnica”, aponta para
a historicidade tanto dos valores estéticos como da percepgao
humana, indicando que novos meios significam transformagoes
nos corpos, consciéncia e agdes humanas, ¢ ndo somente novas
formas de expressio.
Na virada do século XX para o XXI, a articulagdo dos cir-214 ‘Revista Brasileira de Literatura Comparad, 9, 2006
cuitos de produgdo, transmissao e recepgao da literatura com ou-
tras esferas da midia e a apropriagdo de recursos expressivos des-
tas pelos textos literdrios langam novos desafios para essa pratica
tradicionalmente fundamentada na cultura do livro, mas hoje
hibridizada com géneros nio-literdrios e meios de comunicagio
audiovisuais. Afinal, a difusio desses meios, sobretudo a televisio
a partir dos anos 1950, e, jé no final da década de 1970, os com-
putadores, marcaria um novo limite nas transformagées das re-
presentagGes e dos saberes. Para autores como Pierre Lévy, vive~
riamos um destes raros momentos em que, a partir de uma nova
configuragio técnica, “um novo estilo de humanidade inventa-
do” (Lévy 1993: 17).
Uma concepgao dinamica de leitura embaralha as fungdes
de leitor e autor, na medida em que aquele, na posigao de navega-
dor, edita o texto que Ié, participando da estruturagao do hipertexto,
criando novas ligagGes. O questionamento da nogdo de identida-
de autoral vista como uma subjetividade integrada, responsdvel
pela doagao de sentido ao texto, também encontra eco na leitura-
escrita hipertextual, na qual a condigio do texto singular, propri-
edade de um autor tnico, cede lugar ao texto em constante trans-
formagiio pela participagao das miltiplas vozes autorais.
‘A conexao em rede permite ao internauta navegar através,
de sites e links diversos, fazendo da leitura da tela um deslizamento
entre superficies, acompanhado da montagem fragmentéria de
novos textos, num processo semelhante ao ato de “zapear” entre
imagens de diferentes canais de tevé. Trata-se de duas experiénci-
as cognitivas e comunicativas a que se pode atribuir a dimensio
corp6rea, sensorial identificada como tipica da modernidade por
autores como Georg Simmel e Walter Benjamin, 20 tratarem, res-
pectivamente, da caracterizagiio do homem da metrépole e da
“experiéncia do choque’
A base psicol6gica do tipo metropolitano de individualida-
de consiste, segundo Simmel, na intensificagdo dos estimulos ner-
vosos, resultante da alteragdo brusca e ininterrupta entre estimu-
los exteriores e interiores. Esses estimulos contrastantes, répidos,
concentrados ¢ em constante mudanga levam a atitude blasé, cuja
incia consiste no embotamento do poder de discriminar. “O
significado e valores diferenciais das coisas, e daf as proprias coi
sas, so experimentados como destituidos de substancia, Elas apa-fig brasileira contemporinea eas ree hipertextuais 215
recem a pessoa blasé num tom uniformemente plano e fosco; ob-
{eto algum merece preferéncia sobre outro.” (Simmel 1979: 16).
As diferengas qualitativas se traduzem pela quantidade, dentro da
“filosofia do dinheiro” (Simmel 1978), 0 maior dos niveladores,
pois expressa todas as diferengas qualitativas das coisas em ter-
mos de “quanto?”.
Ao analisar 0 tema da multidiio em Baudelaire, Benjamin
define como “se conquista a sensago da modernidade: a dissolu-
io da aura através da ‘experiéncia’ do choque” (Benjamin 1975:
70). A morte da aura na obra de arte nos fala, mais do que da arte,
dessa nova percepeo, dessa nova sensibilidade das massas, a da
aproximagiio, mesmo das coisas mais longinquas e sagradas, com
a ajuda das técnicas. Quando Benjamin elege o cinema como 0
cenario privilegiado da atengao distraida e fragmentada, sintoma
de transformagées profundas nas estruturas perceptivas, no se
trata de um otimismo tecnolégico ou da crenca no progresso, mas
de um modo de pensar as transformagdes da experiéncia que 0
tornam um pioneiro, ao “vislumbrar a mediago fundamental que
permite pensar historicamente a relagdo da transformagio nas
condigdes de produgdo com as mudangas no espago da cultura,
isto 6, as transformagdes do sensorium dos modos de percepgio,
da experiéncia social” (Martin-Barbero 2001: 84).
A indiferenciagao e a mudanga na percepgio, caracterizada
pela “atengio distraida” solicitada por meios de massa como 0
cinema e a televisdo, nos parecem ferramentas titeis para se pen-
sar o modo de leitura hipertextual. A leituraem computador pode
ser definida como uma edigdo, uma montagem singular, através,
da qual uma reserva de informago possivel se realiza para um
leitor particular. Pierre Lévy distingue os pares real/possivel e atual/
virtual, de modo que o virtual no se opie ao real, mas 20 atual. O
possivel se define por ser como o real, apenas sem existéncia,
Iatente. Estando jé todo constituido, ao se realizar, nao implica
ctiagto, A atualizagio do virtual, a0 contrério, constitui a inven-
40 de uma solugdo exigida por um complexo problemitico, Nao
se trata de ocorréncia de um estado predefinido ou escolha entre
um conjunto predeterminado, mas de produgo de qualidades
novas, invengio de uma forma a partir de uma configuragao dind-
mica de forgas e finalidades. Seguindo estas concepg6es filos6fi-
cas, as imagens digitais no so virtuais, mas imagens possiveis216 Revista Brasileira de Literatura Comparada, 0.9, 2006
sendo exibidas. A dialética virtual/atual s6 se d4 com a interagao
centre 0s sistemas informéticos ¢ as subjetividades humanas, “quan-
do num mesmo movimento surgem a indeterminagao do sentido
propensio do texto a significar, tensfo que uma atualizago, ou
seja, uma interpretagdo, resolverd na leitura” (Lévy 1996: 40).
ato de leitura se define, assim, como uma atualizagio das
significagdes de um texto, sendo o hipertexto uma virtualizagao
dos processos de leitura, A organizacdo do texto escrito em pard-
grafos, capftulos, sumérios, indices, notas, remissOes contribui para
sua articulagdo além da leitura linear, fazendo do ato de ler um
processo de seleio, esquematizaco, construgio de uma rede
intertextual. A estruturagdo do hipertexto em uma rede formada
por nds e pelas ligagGes entre esses nds ndo o restringe ao suporte
igital. Conceitos como os de intertextualidade e dialogismo
pressupdem o texto como tecido de miltiplas textualidades, as-
sim como a leitura de uma enciclopédia jé € do tipo hipertextual.
O que se apresentaria como novo na digitalizagao seria a rapidez
da passagem de um né a outro e a associagdo, no mesmo media,
de textos, sons ¢ imagens em movimento.
Pierre Lévy, em suas reflexdes sobre 0 que é 0 virtual, afir-
ma que “o texto continua subsistindo, mas a pagina furtou-se”
(Lévy 1996: 48), apagando-se esta sob a inundagio informacional,
indo seus signos, no mais cercados pelas margens, juntar-se &
torrente digital. O texto, desterritorializado, em fluxoe metamor-
fose constantes, apresenta-se nas telas como a atualizagdo de um
hipertexto de suporte informético.
Os textos literdrios brasileiros produzidos nos anos 90 do
século XIX e nas primeiras décadas do século XX jé foram estu-
dados a partir de sua interagdo com as invengdes modernas: 0
bonde elétrico, o aeroplano, 0 automével, a fotografia, o telefone,
0 fondgrafo, o gramofone, o cinema e, em especial, a maquina de
escrever. Escapando das frageis ¢ oscilantes classificagées em pré,
6s ou neo alguma coisa, Flora Stissekind aborda, na ficgdo brasi-
Ieira desse perfodo, “um trago que Ihe sera bastante caracteristi-
co: 0 dilogo entre forma literdria e imagens técnicas, registros
sonoros, movimentos mecdnicos, novos processos de impressio”
(Siissekind 1987: 18). Partindo da representagao desses artefatos
industriais na literatura da época, a autora analisa como o contato
com essas inovagdes deixa de ser apenas objeto de descrigd0 ouA fiego brasileira contemporinea eas ede hipertextuis 217
discussao, para enformar a técnica de certos autores.
Interessa-nos agora pensar como essa interagao literatura
tecnologia vem se dando nas tiltimas décadas, na passagem do
século XX para o XXI. Se a méquina de escrever foi a imagem
privilegiada pela autora de Cinematégrafo de Letras para pensar
esse didlogo na virada do século XIX para o XX, quais as marcas
deixadas pelo computador na escrita das iltimas geragdes? As
chamadas “novas tecnologias”, digitais e virtuais, compdem 0
cenério contemporaneo, participando tanto do cotidiano quanto
do imaginério atual. Se esses novos meios caracterizam novos
modos de pensar, sentir e perceber, como sua presenga se faria
notar nos textos contempordneos?
Esse didlogo, assim como no caso dos autores que antece-
deram a Semana de Arte Moderna em 1922, se da de diversas
formas, estando as tecnologias virtuais presentes tanto como ob-
jeto de representaco quanto como influéncia sobre as estratégias
ret6ricas utilizadas na escrita atual, No primeiro caso, temos a
paisager urbana repleta de telas, imagens, celulares, computado-
res toda uma paraferndlia tecnol6gica utiiizada por personagens
e narradores das ficgdes contempordneas. Quanto a marcas dei-
xadas no fazer literdrio, podemos citar a fragmentagio, a forte
visualidade, a utilizagdo de miltiplos recursos grifico-visuais, os
microrrelatos. Sem falar, & claro, em toda a produgdo de textos
no impressos, veiculados pela internet, que adquirem, pelo novo
meio de circulagao, caracteristicas especificas, constituindo, tal-
vez, uma ret6rica propria,
‘Ao pensarmos a literatura brasileira contemporanea em did-
logo com as novas tecnologias, queremos observar, de um lado,
de que modo 0 uso destas se tracuz em inovagSes estéticas nas
narrativas atuais, ou seja, como se dé o transito entre pagina
tela, de que modo a primeira, tendo-se “furtado”, se recompoe
para expressar esse texto virtualizado; e, de outro, como 0 novo
suporte enforma os textos produzidos para nele circularem.
Ao longo da histéria da literatura, tem havido propostas
inovadoras de narrativas no lineares, assim como a imprensa ven
ctiando diversos mecanismos opostos ao poder da linha. Tais de-
safios, contudo, ganham nova dimensdo ao disporem de uma nova
tecnologia textual que nao tem por base a linearidade. Também
16s, leitores, ao lermos um livro de forma nao seqiiencial, pulan-218 Revista Brasileira de Literatura Compared, .9,2006
do capftulos, buscando a informagiio desejada através de indices
remissivos, compondo novos volumes com textos fotocopiados
de obras diversas, desafiamos a linearidade do texto impresso,
lendo-o como um hipertexto. Colocamos em pratica, na produ-
¢4o ou recepgao de textos, uma das trés linhas evolutivas
identificadas por Benjamin nas intersecgdes entre arte e técnica:
“em certos estgios do seu desenvolvimento as formas artisticas
tradicionais tentam laboriosamente produzir efeitos que mais tar-
de sero obtidos sem qualquer esforco pelas novas formas de arte”
(Benjamin s/d: 185).
Narrativas literdrias contempordneas fazem uso de procedi-
mentos e técnicas que parecem provir de géneros nao-literarios e
meios de comunicagao audiovisuais e digitais. Sio exemplo das
estratégias ret6ricas utilizadas por essa geragdo de escritores que
troca a méquina de escrever pelo computador as obras eles eram
muitos cavalos (2001), Mamma, son tanto felice (2005) ¢ O mun-
do inimigo (2005), de Luiz Ruffato. Como num zapping urbano,
a narrativa de eles eram muitos cavalos descreve 0 cotidiano de
So Paulo em setenta fragmentos, numerados e intitulados, sem
nenhuma espécie de continuidade, nenhum enredo como fio con
dutor, apenas a “montagem efervescente” de closes que se
entrecortam e justapdem. Trata-se de um mosaico de diversos ti-
pos de textos - um cabegalho, previsdes meteorolégicas, antincios
classificados, oragées, cartas, cardépios, conselhos astrolégicos,
simpatias, lista de livros, recados de secretaria eletrOnica, duas
paginas com um retdngulo preto - dispostos com diferentes
diagramagGes, formatos de letras, sinais tipograficos. Traduz-se,
de certa forma, na pagina impressa, a diversidade textual das p4-
ginas da web, por onde a literatura, mais um desses tipos de texto,
também circula.
A leitura pode comegar em qualquer ponto e seguir qual-
quer diregdo, a multiplicidade desafiando a linearidade, que tro-
pecae se desdobra indefinidamente. Assim como nos novos espa-
0s virtuais, “em vez de seguirmos linhas de errncia e de
¢ao dentro de uma extensao dada, saltamos de uma rede a outra,
de um sistema de proximidade ao seguinte” (Lévy 1996: 96). As
varias pistas intertextuais também nos levam a uma |
labirintica, multilinear. Os textos de Oswald de Andrade, Meméri-
as sentimentais de Jodo Miramar, e Cecilia Meireles, Romanceiro
"Néstor Garcia Canc define
cidade conemporinea “como
tum videoclipe: montagem
efervescente de imagens
‘escontinuas (Canc 1999),A ficgo brasileira contemporinea cas rede ipetextuis
*Sergei Eisenstein (1990) a
) Maquina de pinball, Das coi-
sas esquecidas tras da estante e Vida de gato; e Corpo presente,de
Joo Paulo Cuenca.(). Se 0s
livros de Averbuck so montados a partir de fragmentos selecio-
nados em seu site, Cuenca, no entanto, resolveu manter on line
uma espécie de making of de seu livro, depois de receber a pro-
posta da editora Planeta para publicé-lo, afirmando em seu blog
que seu livro no é um exemplo de blog que vira livro, mas exata-
mente o inverso: seu blog é que 6 sobre o livro e seus processos.
Em Das coisas esquecidas atrds da estante, Clarah Averbuck
discute 0 papel e 0 valor da literatura hoje e sua rela¢do com os
blogs. A autora, entretanto, discorda da idéia de que os blogs cons-
tituam um género especifico:
10/9/2003
Coletinea de um bloooog? Sim, amiguinhos, coleténea de um
blog . Existem livros de contos. De poesia. De crénicas. Por
que no uma coletinea de textos publicados em um blog? Afi-
nal, como eu estou cansada de dizer mas continuo repetindo22 Revista Brasileira de Literatura Comparaa,.9, 2005
porque nunca param de perguntar, blog & apenas um meio de
publicago para 0 que quer que 0 autor, dono ¢ soberano do
blog, queira escrever. ()
Ouso desse novo meio, no entanto, deixa marcas no texto:
‘Vocés notaram que eu desencanei completamente de usar pard-
grafos neste post? Parei. Parei de usar parégrafos na minha
cabega também, Notaram também que estou perdendo meu so-
taque e falando coisas completam: ulistas como
desencanar? Também tenho falado me amarro e demoré, pot
causa dos cariocash. Eu sou a primeira pessoa que pega sota-
que pelo ICO. (Averbuck 2003: 46)
A interagao com o piblico leitor e a influéncia deste sobre 0
texto escrito, caracteristicas dos blogs, sao tensionadas pela auto-
ra, que afirma, em alguns momentos, sua voz como tinica a po-
sigGo do leitor como a de quem, ao escolher ler aquele texto, deve
aceitar 0 pacto que Ihe é proposto.
2/9/2003
AA intemet ndo 6 como uma televistio aberta, onde voce zapeia e
passa por canais indesejados e vé coisas que ndo queria. Para
entrar aqui, no meu blog, é preciso digitar 0 enderego no
browser, ou entrar em algum Tink, ou seguir seu préprio
bookmark. Ou seja, tem que querer entrar aqui. E uma escolha.
E € por isso que eu no entendo esses leitores Mark Chapman
que vem aqui s6 pra torrar minha pequena e delicada paciéncia
ce encher minha caixa postal com suas opinides nao solicitadas,
()
No livro Das coisas esquecidas atrés da estante, a primeira
orientagao ao leitor & a epfgrafe de Charles Bukowski, uma das
referéncias constantes da escritora. “se voc¢ for tentar, v4 até 0 /
fim. / sendo, nem comece.” Aceite o pacto, leitor. As citagdes (Paulo
Leminski, Lou Reed, Vicente Celestino, Tangos & Tragédias etc.)
compéem a rede hipertextual, afirmando, também no texto im-
presso, a multiplicidade do sujeito que escreve:
“Bu estou de férias. Agora s6 vou falar pelas palavras dos
outros até recuperar as minhas préprias, que aspire nariz.aden-A ficgo brasileira contemporinea es rdes hpenextusis 2
‘ro em uma nota de um délar. Vou me internar dentro de mim
‘mesma até saber quem é quem. Esse negécio de ser duas ainda
vai me matar.” (Averbuck 2003: 108)
Se considerarmos, de acordo com McLuhan, que “o meio é a
mensagem’, podemos afirmar que esse novo modo de circulagao
do literério faz surgir um novo tipo de escrita? A constituigao do
termo “blog” ja traz em si idéias contraditrias: web (pagina na
internet) + log (diério de bordo) = “digrio intimo na internet”
Como um diario “intimo” pode ser exposto na rede para quem qui-
ser acessar e, além de ler, comentar, rasurar, participando do pro-
cesso de criagio? Se os didrios sempre trouxeram em si um
interlocutor, 4 que toda escrita se dirige a alguém, agora esse ou-
tro, ainda que virtual e desconhecido, se explicita e atualiza 0 pro-
ess0 ativo de toda leitura, Os papéis do autor e do leitor sio, assim,
compartilhados, fragmentando a figura do sujeito que se escreve.
“pacto autobiogréfico” realizado entre quem escreve €
quem 1é “escritas fntimas” se fundamenta, segundo o classico es-
tudo de Philippe Lejeune (1975), num contrato de identidade se-
lado pelo nome prOprio, que resume a existéncia do autor, pois
aquele seria a nica marca no texto de um fora-do-texto, remeten-
do auma pessoa real que assume a responsabilidade da enunciago
do texto escrito. No caso dos blogs, essa identidade se fraciona
tanto pela parceria com os leitores como pela pluralidade de no-
mes assumidos pelo blogueiro. Embora fale de seu cotidiano, suas,
opinides, ndo hé no texto, necessariamente, essa marca que “re-
mete & pessoa real”, podendo, inclusive, uma mesma pessoa ter
varios blogs, identificados por diferentes apelidos.
Ao caracterizar 0 narrador pés-moderno, em contraponto
aos narradores tradicional e moderno, tal como definidos por Walter
Benjamin, Silviano Santiago questiona: “S6 6 auténtico o que eu
narro a partir do que experimento, ou pode ser auténtico o que eu
narro e conhego por ter observado?” (2002: 44). Mais adiante,
conelui: “O narrador pés-moderno sabe que o “real” e o “auténti-
co” so construgdes de linguagem.” (idem: 46-7). Nesse contex-
to, a nogao de um segredo pessoal a ser revelado no papel ou nas
telas se relativiza: “a intimidade era teatro”, como disse a poeta
dos anos 70, Ana Cristina Cesar (1987: 50).
O segredo é uma das questdes fundamentais para os didrios204 Revista Brasileira de Literatura Comparada 19,2006
{intimos, redimensionada quando esses didrios se voltam para 0
piblico numa pagina da web. Ainda que expostos na internet, os
blogs nao excluem o segredo. Ha diversos niveis de segredos:
aqueles que se contam aos amigos mais préximos, 3 familia, ape-
nas a alguém muito intimo ou que nao se revelam aninguém, nem
asi mesmo, Essas diferengas se mantém nos didtios virtuai
‘Ao contrario do que se pensa, a exposig&o na internet nao anu-
laa possibilidade de se criar um segredo, mas estabelece novas,
formas de compartilhé-lo. (...) O diarista virtual determina quem
pode se aproximar de seus segredos mais intimos e quem no
deve suspeitar deles através de senhas, do texto cifrado e do
acesso restrito ao blog. E ele que estabelece o cuanto o leitor
comum deve saber de sua vida particular e 0 que deve ser man-
tido em sigilo. (Schittine 2004: 19-21),
O“contrato de cumplicidade” com o leitor se modifica, po-
dendo a confianga ser reforcada pela distancia e o desconheci-
mento quanto aos leitores ou ser questionada, ja que essa mesma
distancia facilita 0 uso de mascaras, fantasias, mentiras. Formam-
se “redes de segredos”: pequenos grupos que dividem segredos
entre si, com alguns nés em comum.
A sinceridade da enunciagao “torna-se um falso problema”,
como jé anunciara Barthesem relaciio ao “autor de papel”: “a sua
vida ja nfo 6 a origem das suas fabulas, mas uma fabula concor-
rente com a sua obra” (Barthes 1988: 76). Ou, como diz em sua
autobiografia:
Este livro no 6 um livro de “confiss6es”; ndio porque ele seja
insincero,mas porque temos hoje um saber diferente do de on-
tem, esse saber pode ser assim resumido: 0 que escrevo de mim
‘nunca €a tiltima palavra: quanto mais sou “sincero”, mais sou
interpretavel, sob o olhar de instancias diferentes das dos anti-
‘20s autores, que acreditavam dever submeter-se a uma tinica
lei: a autenticidade, (Barthes 1977: 130).
Se 0 que escrevo sobre mim pode mudar de um dia para o
outro, os blogs podem registrar essas mudangas a qualquer
‘momento, sendo 0 intervalo de tempo da escrita menor que um
dia, Os disrios nas telas permitem que, a cada releitura, 0 texto
seja alterado ou as “falhas da meméria” preenchidas, sem deifico brasileira contemporiaea cas reds hipetextuis
xxar marcas dessas rasuras, Ao contrétio dos dirios de papel,
‘que guardam a caligrafia individual e diferentes materialidades
da meméria — pétalas, papéis de bombom, recortes etc. -, a
tipografia dos computadores uniformiza. Esses fatores, soma-
dos a possibilidade de fatha dos dispositivos de meméria das
novas tecnologias, levam a um registro imperfeito da mem6ria
pessoal, apesar da sua imensa capacidade de armazenamento
de uma meméria artificial. (Schittine 2004: 117-8).
Na “escrita de si” via internet, o trnsito entre documento e
ficgdo, vida real e virtual, constr6i uma intimidade meio encena-
da, meio realista. Parece-nos que, nessa vertente atual da literatu-
ra, vida e obra tomam-se dificeis de distinguir. A figura do autor
aparece dentro do texto ficcional, mas de maneira mentirosa, num.
confessional fingido.
Tanto nos blogs come nos livros, podemos constatar uma
tendéncia para o uso da primeira pessoa em textos que no so
autobiogréficos, mas que apresentam pistas da identidade autora.
No titimo romance de Marcelo Mirisola, Joana a contragosto, 0
personagem-narrador, um escritor, conta seus encontros &
desencontros com Joana, uma leitora com quem mantém inicial-
mente contato via internet até se conhecerem pessoalmente num
hotel e manterem um breve relacionamento amoroso-sexual. Va-
rigs tragos biograficos de Mirisola presentes na narrativa— as ini-
ciais M. M., a publicago de crénicas via internet, os livros Azul
do fitho morto e Heréi devolvido, a transformagao de escritores
seus amigos em personagens ¢ até o ntimero da conta no Ita —
tornam indecidiveis as fronteiras entre auter narrador, vida e
ficgao. Ao mesmo tempo em que o texto sugere uma
autoexposigao, deixa o leitor sempre desconfiado se os fatos nar-
rados tém uma referéncia real ou so completamente ficcionai:
“Nao se tratava apenas de ficgio” (Mirisola 2005: 10), “Fui eu
quem a inventei” (idem: 14), “Ninguém vai saber que € vocé,
Natércia.” (idem: 48).
A criago de diferentes identidades, caracteristica das pégi-
nas virtuais, extrapola seu suporte técnico, apontando um trago
da subjetividade contempordnea: plural, ambigua, ficcionalizada.
Sabemos que em qualquer relato autobiogréfico 0 compromisso
coma verdade é sempre relativizado pelas falhas da meméria e a
2526 Revista Brasileira de Literatura Compara, .9,2006
contaminagdo desta pela imaginacao. Parece-nos, no entanto, que,
num tempo em que a realidade se define como um cruzamento de
imagens e no como dados objetivos representados por elas, es-
ses textos contemporfineos investem na invengiio biogréfica, for-
mulando “autoficgdes”.
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