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Norberto Bobbio O CONCEITO DE SOCIEDADE CIVIL Tradugé Carlos Nelson Coutinho Capa: Cléudio Mesquite (Lavre) 1 eigdo: Agosto de 1982 ‘Tradurdo do orginal italiano Gramsci ele concezione delle societécivile Dirsitos adquirides para a lingua portuguese no Brasil EDICOES GRAAL LTDA. Rua Hermenegildo de Barror, S1-A — Gléria 20241 Rio de Janeiro — RJ — Brasil Fone: 2528582 © Copyright by Giangiacomo Felrineli Eatore Impresso no Brasl / Printed in Brit Vozes imprimia CIPBrasil Catalogaséomafone Sindcato Necionsi dow Eaves de Lio, RU Bobbio, Norberto, Bes7g © 'Conctito de sociedade civil / Norberto Bobbio ; tradugio de Carlos Nelson Coutinho. — Rio de Janeiro: Edies’Grasl, 1982 iliteca de ences socials; ¥. m. 25) 1. Gramsci, Antonio, 18911957 2. Ciéncla politica ¢ fil sética's. "Sociedade" Flosofia I, Titulo I. Sétie cop — 320.5 DU = 350'86 . 820555 1 Gramsci, Antonio INDICE Introdugio GRAMSCI E A CONCEPCAO DA SOCIEDADE CIVIL Da sociedade 20 Estado ¢ do Estado & sociedade A sociedade civil em Hegel e em Marx aeNe estrutura-superestrutura e diregio-ditadura 5. Uso historiogréfico ¢ uso pri ceito de sociedade civil ico-politico do con- 6. Diregio politica e diregao cultural. T. Sociedade civil e fim do Estado REPLICA ... NOTA SOBRE A DIALETICA EM GRAMSCI 19 24 32 36 41 49 INTRODUCAO Nao gostaria que se pensasse que — por ter lido em um dos muitos livros recentemente escritos sobre Gramsci que eu era o autor de um ensaio “famoso"' sobre a diver- géncia entre Gramsci e Marx — terminasse por acreditar nisso. A razio pela qual aceitei o convite para republicar meu texto sobre O conceito de sociedade civil em Gramsci (que, como me dizem, tornou-se de dificil acesso) ¢ outra.” E a seguinte: pareceu-me que a tese central do ensaio — segundo a qual o que Gramsci chama de “sociedad civi um momento_da_superéstrutura_ideoldgico-politi ‘como em. Marx,da_basereal — tornou-se objet interpretagdo—distorcida desde 0 primeiro momento, isto €, desde 0 momento em que o ensaio foi apresentado no Simpésio sobre Gramsci de 1967. Devo esta interpretagdo distorcida a0 meu primeiro critico, Jacques Texier, que — to logo expus minha tese — interveio com a finalidade de declarar que estava “em profundo desacordo com 0 con- junto da conferéncia de Norberto Bobbio”, j4 que minha tese implicava a idéia de “que a originalidade filoséfica de Gramsci devia ser buscada a partir dos pontos de ruptura 1M. A, Macsicechi, Per Gramsci, Il Mulino, Bologna, 1974, p. 45 (Ed brasileira: A'javor de Gramsci, Par e ‘Terra, Rio de Tanclio, 1916) 2. “Essa exposicio for publcada nas Alas do Simpésio Tateracional de Estudos Gramselanos, realizado em Cagliari, 2 2527 do abel do I96?, ntl das’ Gramsci ¢ la eitura contemporanea, Editor! Rlunil, Roma, 1963, val Pp. 75100. No mesmo volume, fol publicade também’ minha." Replica PD. 1954199, com Marx”.* Nao sei se foi esse ataque, desferido com cer- ta “rudeza”, ainda que com inegével brilho, a fazer com ‘que um comentador dos trabalhos do simpésio tenha podi- do escrever que cabia a Bobbio “o mérito de ter rompido, desde 0 inicio de sua exposigao, com a atmosfera de de- voraio filolégica na qual 0 simpésio cotria 0 riseo de sub- mergit”; e€ a anotar, com evidente exagero, que a minha “provocacao” suscitara “um coro de protestos entre os or- todoxos”, de modo que eu teria sido acusado, alternada- mente, “de ser um idealista ou mesmo um giobertiano travestido, de ignorar 0 conceito de classe e, sobretudo, de no levar em conta a realidade histérica”.* Embora eu ti- vesse tentado imediatamente, quando fui chamado a res- ponder as objecGes, jogar égua_na fogueira, observando a Texier que minha exposigo no era um texto polémico mas analitico, e afirmando que “na realidade eu nfo acre- fer colocado Gramsci fora do sistema marxista”, jé que Hao havia “nem por um minuto de distragio esque- cido que a chave do sistema marxista, do marxismo te61 co, é a relaco entre estrutura e superestrutura”,? Texier voltou depois amplamente ao tema e a0 mesmo motivo po- Kémico, num longo artigo publicado em Critica Marxista, Coneretizando seu pensamento e ampliando a acusagio, o autor — depois de contrapor ao “método de pensamento puramente analitico [...] 0 trabalho totalizante da raziio dialética” — afirma que eu teria posto em evidéncia uma diferenga substancial entre Marx e Gramsci, em razio da qual “Gramsci no ¢ 0 continuador de Marx'e de Lénin, 0 critico da concepedo croceana da histéria como histéria éti- co-politica, mas 0 critico inconsciente de Marx e 0 disci- pulo genial de Croce” A quem me enviara as provas do 3 Gramsel ¢ ta cultura contemporanea, cit, vl. 1, p. 152 4. foretia, T'due Gramsc! le operesoni troppo. cars", in 1! Gloro, 28 de abril de 196i, p< 5. Gramsel e lt cultura contemporanea, cit, vol. 1, p. 196 8, 1 Tenier, “Gramse! teorca dele sovastnatare © W conesto di soc civil, in Celed mares, Vi 1968. p. 8 8 artigo antes de sua publicagdo em Critica Marxista, es- crevi uma carta — que se conservou inédita — da qual extraio duas passagens que esclarecem melhor 0 meu pen- samento, “Confesso que nem de longe me passou pela ca- beca a idéia de defender a tese segundo a qual Gramsci no era marxista, e, mais do que isso, que era idealista, Provavelmente, dando por suposto (sobretudo em um sim- POsio de especialistas) 0 marxismo de Gramsci, nfo me precavi o suficiente contra o perigo de que alguém enten- desse mal minhas intengGes, que eram as de mostrar que — no ambito da tradi¢éo do pensamento marxista — Gramsci ndo fora um repetidor, mas um intérprete origi- nal. Parece-me estranho, porém, que o Sr. Texiet nao te- nha absolutamente levado em conta 0 primeito parégrafo de minha exposigo, no qual — depois de esboar uma breve histéria da relacdo entre sociedade pré-estatal e Es- tado até Hegel, e depois de ter sublinhado a inversio ope- rada por Marx — concluia: ‘A teoria do Estado de Anto- nio Gramsci [...] pertence a essa nova histéria.’ Como se no bastasse, precisamente ao encerrar a passagem na qual documentava o diferente significado de ‘sociedade civil’ em Gramsci e em Marx, acrescentava: ‘Com isso, nfo se pre- tende absolutamente negar 0 marxismo de Gramsci, mas chamar a atengao para 0 fato de que a reavaliagao da so- ciedade civil no € 0 que liga a Marx, mas talvez 0 que © distinga dele.’ Mas se o Sr. Texier, que é um leitor ex periente e certamente nao desatento, me acusa por tet con- fundido Gramsci com Croce, pode-se ver que no me pre- cavi suficientemente.” “Idealismo é a filosofia segundo a qual a realidade € Idéia ou Espirito; materialismo € a fi losofia segundo a qual a realidade ¢ Matéria ou Natureza. ‘Com Marx, inigia-se uma concepeSo da realidade e, em par- ticular, da histéria muito mais complexa, néo_monista mas dicotémica ou dialética, na qual se contrapdem e se con- vertem umas nas outras as condi¢Ges objetivas e as con- digGes subjetivas, 0 momento estrutural € © momento su- 9 Perestrutural ete, Compreende-se que, no desenvolvimen- to de uma concepgdo tao complexa, haja interpretagdes que acentuam 0 momento objetivo, outras que acentuam 0 mo- mento subjetivo, sem que nem umas nem outras abando- rem 0 espitito geral do sistema, Quem desconhece o fato de que toda a histéria do marxismo é uma continua alter- niincia de interpretagdes tendencialmente mais objetivistas e de interpretagdes tendencialmente mais subjetivistas? Para indicar a posigio de Gramsci com relago as duas dicoto- mias — entre estrutura e superestrutura e entre sociedade civil ¢ Estado —, servirame do verbo ‘privilegiar’ (hor rivel palavra, se se quer, porém cémoda); ou seja, dissera — como o proprio Texier repete — que Gramsci privile- giara na primeira dicotomia o segundo termo, enquanto privilegiara o primeiro na segunda. Ora, ‘privilegiar’” um dos dois termos de uma relacdo nio significa excluir 0 ou: tro. Isso era claro para mim; mas pode-se ver que nio se revelou igualmente claro para os meus ouvintes, se é que ‘meu presente interlocutor escreveu um artigo para demons- trar que cu expeli Gramsci da tradicao do pensamento mar- xista, quando a minha intencdo fora a de determinar sua justa colocagio no Ambito dessa tradigao.” Confesso que mesmo agora, & distincia de anos, te- nho dificuldade em compreender, relendo meu artigo, como pode tet ocorrido o malentendido através do qual um ar- tigo escrito para sublinhar a originalidade de Gramsci pode ser interpretado como uma tentativa para fazer de Grams- ci um croceano, um idealista, um anti-Marx; © como uma desarticulagdo analitica do sistema de idéias gramsciano, feita com a finalidade de mostrar sua riqueza, sua com- plexidade e fecundidade, pode ser acusada de Iesa-marxis- ‘mo, Posso ver tio-somente uma razdo: enquanto eu pen- sava que Gramsci é um pensador de tal grandeza que me- rece ser considerado e avaliado por si mesmo, indepen- dentemente da maior ou menor fidelidade de seu pensa- mento & imagem legada (quase sacralizada) de Marx e de 10 Lénin, € ao marxismo-leninismo como arquétipo, meu con- traditor — a quem evidentemente importava mais uma concepedo abstrata (e, por isso, pura de contaminagdes de desvios) do marxismo do que a interpretagao historica das idéias de Gramsci, mais 0 marxismo como idéia pla- tonica imutével no tempo do que Antonio Gramsci como homem de carne e oss0 — considerava que a finalidade de um estudo sobre 0 pensamento de Gramsci devia ser, prin- cipalmente, a de mostrar a validade, a correcdo, a linea ridade, a perfeigfo e a pureza do seu marxismo. Eu supu- nha, entre outras coisas, j4 ter expresso com bastante cla- teza 0 meu modo de aproximacao ao estado de Gramsci quando escrevi: “E quem adquiriu uma certa familiaridade com os textos gramscianos sabe que o pensamento de Gramsci tem tracos originais e pessoais, que ndo permitem as féceis esquematizacdes, quase sempre inspiradas em mo- tivagdes de polémica politica, do tipo ‘Gramsci é marxista- leninista’ ou °é mais marxista que leninista’, ou ‘nao € nem marxista nem leninista’, como se os conceitos de marxis- ‘mo, leninismo © marxismo-leninismo fossem conceitos cla- ros € distintos, nos quais seria possivel resumir essa ow aquela teoria ou grupo de teorias, sem deixar margens de incerteza, e que pudessem ser usados como se usa um fio de prumo para medir o alinhamento de uma parede.”” Mi- nha impressio € que continua a dominar ainda 0 modo contrério de ler Gramsci: um insigne exemplo disso, a meu ver, € 0 recente volume de Nicola Badaloni, intitu- lado I marxismo di Gramsci, que no casualmente poe de lado o meu ensaio com um tinico adjetivo: “decepcio: nante”.* Para uma leitura desse género, o que conta nio é tanto o que Gramsci efetivamente disse, mas se 0 que cle disse era verdadeiramente marxista, em que sentido do marxismo o eta, em que filéo da tradigéo marxista pode 7. Gramsci e lo culty contenporansa, city vo. 1, pp. 7829, sa Bett mars a Grama, nau, Bain, 1995, yp. 181 i ser inserido, que pais (marxistes) the podem ser atribut- dos ete, A julgar pelos comentarios que se seguiram nos anos sucessivos, tanto por parte de leitores benévolos quanto por parte dos criticos, deveria dizer que a colocasio ini cial de Texier — resumfvel na tese “o ensaio de Bobbio € inaceitével porque termina por excluir o pensamento gramsciano da tradi¢ao do pensamento marxista-leninista” — foi a determinante, apesar da interpretacdo correta da minha exposi¢ao que foi apresentada na resenha do sim- pésio, feita por Franco Calamandrei para Critica Marxis- fa, a qual dizia textualmente: “E deve ficar bem claro que no se discute a interpretacdo de Bobbio do ponto de vista de uma defesa ‘ortodoxa’ de Gramsci, mas do ponto de vista da historicidade de sua obra, da afirmacao de sua no- vidade € de seu alcance.”” E foi determinante apesar de, i no proprio simpésio, Iring Fetscher ter respondido a ‘Texier com uma observacio que captava exatamente 0 sentido de minha argumentacio, e que ainda hoje nao posso reler sem subscrevéla plenamente: “O que Bobbio quis dizer & que hé algo novo no pensamento de Gramsci, que no se encontra nem no pensamento de Marx nem no de Lenin; e, se hé algo novo, hé também necessariamente uma diferenea, Parece-me essencial sublinhar — ainda que se trate de uma coisa Gbvia — que a grandeza de um pensa- dor nao consiste jamais em sua proximidade ou distan- cia em relagdo a um outro autor, mas unicamente na pro- ximidade entre seu pensamento © a realidade contempo- rinea, na precisio € na amplitude com que ele fornece uma imagem dessa realidade. E a grandeza de Gramsci me parece residir no fato de que ele soube interpretar a historia atual da Itélia e do mundo inteiro, dizendo coisas que outros néo haviam dito antes dele.” 93. F; Calamandrei, "Sul convegno gramsciano di Cogla naa, 19 18 10." Grane! Ya cultira contemporansa, ct, vol. fp. 164 "in Critica 12 Para comegar pelos juizos negativos, o mais severo — um massacre puro e simples — foi formulado por Leo- nardo Paggi, o qual, depois de ter visto em minha andlise um esforco para “fixar detalhadamente os sucessivos graus de desvio da elaboracdo gramsciana em relagdo as formu- ages de Marx e Lénin” (quando, se eu detalhara algo, fora unicamente por ocasiéo da tentativa de fazer emer- gir a contribuicao original de Gramsci na elaboragao de algumas das categorias principais do universo te6rico mar- xista, de fazer de Gramsci um pensador vivo ¢ néo um eo morto), afirma que “o problema da compreensao inter- na ¢ externa de seu pensamento se abre precisamente no onto em que Bobbio considera a questo encerrada.”" Nao menos negativo, ainda que mais argumentado, € 0 juf- zo de Nicola Auciello, 0 qual, porém, limita sua critica a dois pontos nao essenciais, ou seja, minha observagio segundo a qual, em Gramsci, haveria uma tendéncia a afir- mar o primado das ideologias sobre as instituicdes € & mi- nha interpretaco da tese gramsciana da extinedo do Es- tado.* Entre os juizos positivos, cabe mencionar, antes de qualquer outro, 0 de Luigi Cortesi, que — numa detalha- da resenha do simpésio de Cagliari — disse que “s6 Bob- bio safra" dos parametros precisos e predeterminados nos quais o simpésio havia sido enquadrado pelos ortodoxos, esclarecendo que ‘As pardfrases glorificantes de partido, apoiadas em alguns conceitos internos & concepcao grams- ciana que dio por suposto o seu cardter marxista e visam ao ‘enriquecimento’ e superacio ‘ocidentalista’ do leninis- ‘mo, contrapésse — iinica novidade cientifica do simpé- sio — a exposigao de Bobbio”. Nao diversamente, ainda que com maior brevidade, Salvatore Sechi — depois de WE, L. Peeei, Antonio Gramsci e il moderno principe. 1: Nella erst det socialima taliano, Editor Rion, Roma, 1910, p57 12." N. Aucelo, Socalsmo ed egeionia in" Gramact © Togliat, De Do- ato, Bel, 1974, pp.9798 e pp. 12021, nota 4. "5, "1. C."*Un coavegnd su Gramcl", in Revista storiea del socialismo, X, ab 30, 196, p. 170, 15 ter igualmente acusado o simpdsio de conformismo, ou seja, de ter “consagrado o triunfo da linha habil e inteli- gente de Giorgio Amendola” — observa em certo ponto: “Se excetuarmos as exposicGes de Norberto Bobbio, a ‘mais original e estimulante, e de Massimo L. Salvadori [...], as outras foram confiadas a estudiosos que nao po- diam provocar [...] uma real confrontacao de pontos de vista, uma dialética de interpretagdes, que vitalizassem 0 debate fazendo-o escapar dos lugares-comuns, das banali- dades candnicas, das falsas batalhas entre exegetas de f€ togliattiana e de fé nenniana.”* Ainda mais marcadamen- te “apologético”, 0 comentério de Romano Luperini con- tinua, completa € acentua 0 juizo dos dois anteriores: “No simpésio gramsciano de Cagliari, ocorrido em abril, a tni- ca contribuigao original foi trazida por Norberto Bob- bio; a excepcional importincia e até mesmo o ‘aleance re- volucionério’ de sua exposicdo foram justamente acentue- dos por Luigi Cortesi [...]. Essa interpretacdo analitica- mente correta de Bobbio nao tem valor apenas pela vira- da que representa no campo da andlise te6rica e dos estu- dos gramscianos, mas também pela uz que lanca sobre toda a cultura de esquerda do pds-guerra.”"* Por fim, gos- taria ainda de citar juizo de Robert Paris, 0 qual, como os anteriores, vai bem além das minhas intengdes ¢ me faz um elogio que creio imerecido, e que devo confessar, com candura, que nada fiz para atrair sobre mim: “Ade- mais, no creio — como outros o fizeram — que Gramsci seja um te6rico do aparelho de Estado. Considerei exce- Iente a intervenc4o de Bobbio no simpésio gramsciano de 1967, na qual ele mostra como Gramsci nfo sabia distin- guir entre sociedade politica e sociedade civil, erro comum 145, Sechi, “Antonio Gramsci ovvero “Sel modo di produzione ide tice™in Nuovo impegno, n= 8 maloulho de 1967, pp, SLT, que cito do Volume Cultura e idologla della nuova siitra, 0s ciidados de G- Bechslont, Ealziont dt Comunia, Milgo, 1973, p. 712. NS. R. Luperini, “Bobbio, Gramae! ed sleune ipotest sul ‘marsiomo ex fico’, in Nuove inpepno, n2 8, malojulho de 1967, pp. 9137, que cto do volume’ Cult ¢ Weologir della miova sinista, cl, p. 217 14 a alguns tedricos maoistas, que nos falam da China e di zem que a luta de classe faz parte das superestruturas, um erro que nem sequer é hegeliano, mas idealista. Bobbio ex- plicou isso ao falar de Gramsci, que nao faz uma teoria marxista, 4 que assume uma espécie de osmose, de con- fusdio permanente entre sociedade civil e politica.” Como se pode ver por tais citagdes, tanto os criticos quanto os defensores tiveram em comum a conviesao de que 0 resultado da minha anélise consistia em retirar 0 pensamento de Gramsci da tradiggo genuina do marxis- ‘mo; ou seja, apresentaram — ainda que com finalidades ‘opostas — a mesma interpretagao dada pelo meu primei- ro interlocutor. Partindo da mesma convicgao, formutaram ‘um juizo negativo os que consideraram que a tese segundo a qual Gramsci no é um verdadeiro marxista é uma st bestimagao da importincia e do significado histérico do seu pensamento; e formularam um juizo positivo os que con- sideram que a mesma tese, a0 contrério, é uma justa ava- Tiago dese mesmo pensamento e uma mais exata colo- cago do mesmo no contexto histérico. © que me inte- ressa sublinhar € que tanto o juizo negativo quanto 0 po- sitivo partiram de uma idéntica interpretacdo do ensaio, considerado como uma demonstragio do nio-marxismo de Gramsci: ndo-marxismo que, para uns, para os que consi deram 0 marxismo de Gramsci um fato inquestiondvel, era a prova do meu erro; € que, para outros, para os que fa- ziam da desvalorizagdo de Gramsci um elemento de sua polémica politica contra os tedricos do Partido Comunis. ta, era, ao contratio, uma prova do fato de que Gramsci eta precisamente o que eles queriam que fosse, néo o mar: xista que 0s “ortodoxos” pregavam, mas um idealista, um subjetivista, um estruturista ete, Todavia, repito que — embora ndo me movesse a menor preocupacao de saber se Gramsci era marxista (mesmo porque eu dava essa con- 16, “La sinistra francese he scoperto Gram”, entrevista corn G, Marin R. Paris, C. BueiGlucksmann, ia Mondoperio, 1975, n° 2, ps 65 15 digo como pressuposta) — minha andlise, se tem algum significado, é unicamente o de ter sublinhado alguns pon- tos caracteristicos do sistema tedrico gramsciano, no in- terior da tradicdo do pensamento marxista, que abarca bem mais coisas do que habitualmente estdo dispostos a admitir, ainda que por razes opostas, tanto os ortodoxos quanto heterodoxos. Uma critica mais pertinente, talvez, tenha sido a que me foi dirigida mais recentemente por um es- tudioso que se coloca em atitude polémica em face tanto do gramscianismo oficial quanto do antigramscianismo da nova esquerda; uma critica que, mesmo aceitando a minha tese segundo a qual a sociedade civil em Gramsci € algo diverso do que era em Marx, reprova-me por ter feito de uma diferenga terminolégica uma diferenca substancial, “quase como se Gramsci houvesse transportado para o plano superestrutural néo s6 0 termo ‘sociedade civil’, mas também os contetidos que esse termo tinha na terminolo- gia marxiana”." Entre os estudiosos de Gramsci desses tltimos anos, © que me parece ter levado em maior conta 0 meu ensaio foi Hugues Portelli, ao qual remeto para a apresentacdo das teses em contraste € também para uma solucao dessa problemética central de qualquer interpretagao do pensa- mento gramsciano. Cito uma das passagens conclusivas: “Portanto, € um falso problema o do primado de um ou de ‘outro elemento do bloco histérico, jé que — se se leva em conta a articulagao desse bloco — torna-se evidente que 0 elemento decisive é representado pela sua estrutura s6- cio-econémica; mas é igualmente evidente que, em cada proceso histético, as contradigdes de fundo se traduzem © se resolvem no nivel das atividades superestruturais. A relagio entre esses dois elementos, portanto, € uma rela- lo a0 mesmo tempo dialética e orginica.”* Em vez de 17. G. Bonomi, Partito riolusione in Gramsci, Feltsneli, Mili, 1975, . 50 18 -H. Poreli, Gramsel e Hl Blocco stereo, Lateres, Béti, 1975, p. 60. 16 empenharse na demonstragio de que Gramsci ¢ apenas marxista ou apenas leninista, ou, a0 contrério, comprazer- se com 0 fato de que alguém finalmente conseguiu demons- trar que Gramsci nao € nem marxista nem leninista, Por- telli afirma — a guisa de conclusdo — que “parece que a anélise gramsciana completa a de Marx ¢ a de Lenin": a de Marx porque, através da andlise dos intelectuais, forne- ce uma iradugio concreta, com precises implicagées so- ciais, para 0 nexo orgénico entre estrutura e superestrutu- ra; a de Lénin porque, como foi de resto observado pela maioria dos intérpretes, Gramsci tem em vista as socie- dades ocidentais mais evoluidas e mais complexas do que as orientais, nas quais Lénin operou.”” uma critica, mas uma complementagao e confir- magio, é 0 que recolho, finalmente, da intervengio de Va- lentino Gerratana ao simpésio de 1967? que chamou a atengdo para a importincia das passagens, de resto conhe- cidissimas, mas que eu ndo citara, nas quais Gramsci — aplicando a distingdo entre guerra de movimento e guerra de posigio & teoria da revolucdo — distingue entre os es- tagios mais avancados, “onde a ‘sociedade civil’ tornou- se uma estrutura muito complexa e resistente as ‘irrupgdes catastréficas do elemento econdmico imediato (crises, de- Presses etc.)’” e onde “o Estado era apenas uma trin- cheira avancada por trés da qual estava uma robusta ca- deia de fortalezas ¢ casamatas”, por um lado, e, por ou- tro, 0 Estado dos paises orientais, “‘onde o Estado era tudo © a sociedade civil era primitiva ¢ gelatinosa”. Essas pas- sagens servem para confirmar a importincia que assume nas rreflexOes gramscianas a categoria da “sociedade ci- vil”, enguanto categoria intermedifria entre a base eco- némica ¢ as instituigées politicas em sentido estrito, tan- to em seu uso historiogrdfico quanto em seu uso politico. Aproveito a oporttnidade da republicagio do ensaio sobre a sociedade civil para recolocar em circulacao tam- 18. Tid, p. 165 20. Grains e le culture contemporanes, city vol. 1. p. 172. 7 bém um outro ensaio que escrevi sobre Gramsci, Nota so- bre a dialética em Gramsci, de muitos anos atrés, € que, a diferenga do primeiro, passou completamente desperce- bido.* O leitor que ird 1é-lo pela primeira vez verd que 0 método que chamei de “‘analitico”, com o qual examinei © conceito de dialética em Gramsci, € 0 mesmo que em preguei muitos anos depois para estudar a sociedade civil. Vera também, desde as primeiras linhas, que 0 fato de ser Gramsci um pensador marxista foi sempre para mim uma coisa pacifica NB 12 de janeiro de 1976 Zi, Publicado em Studi gramscian. AUT del consegno tenuto a Roma nei ior 1115 gennaio 1958, EdKor! Rivnit, 1988, pp. 7886, e também em Societa, XIV, 1958, pp. 2158. 18 GRAMSCI E A CONCEPCAO DA SOCIEDADE CIVIL 1. Da sociedade ao Estado e do Estado a sociedade © pensamento politico moderno, de Hobbes a Hegel. caracteriza-se pela constante tendéncia — ainda que no in- terior de diferentes solugdes — a considerar o Estado ot sociedade politica, em relacio ao estado de natureza (ow so- ciedade natural), como 0 momento_supremo e definiti vo da vida comum e coletiva do homem, ser racionaf; como 0 resultado mais perfeito ou menos finperfeito daquele pro- onalizagdo dos instintos oui das paixdes ou dos interesses, mediante 0 qual o Teino da forca desregrada se transforma no reino da liberdade regulada. © Estado € con. cebido como produto da razfo, ou como sociedade Facio- nal, nica na qual_o homem_poderd ter uma vida confor- Mie A razdo, isio é, conforme a sua natureza, Nessa tendén- cia, encontram-se e miesclaniSé faiito as teorias realistas, que descrevem o Estado tal como é (de Maquiavel aos tedri- cos da razfo de Estado), quanto as jusnatuxalistas (de Hob- bes a Rousseau ¢ a Kant), que propdem modelos ideais de Estado, que delineiam o Estado tal como deveria ser a fim de realizar seu proprio fim. O processo de racionalizacao , do Estado (o Estado como sociedade racional), que € pré- prio’ das teorias jusnaturalistas, encontra-se ¢ ‘confunde-se com 0 processo de estatizacio da Razio, que é ptdprio das teorias realistas (a razéo de Estado). Em Hegel, que repre- senta a dissolugio ¢, ao mesmo tempo, a realizagao dessa 19 historia, os dois processos direito, a ritiondlizagio. db Estado: celebra 0 seu proptio triunfo e, similtaneamente, & representada fifo mais como proposta'de um modelo ideal, porém como compreenstio do movimento histérico real; a racionalidade do Estado nao € mais apenas uma exigencia, porém uma_realidade; nao mais apenas um ideal, mas um evento da historia.’ O jovem Marx captou de modo exato esse cardter da filoso- fia do direito hegeliana quando, no seu comentario juve- nil, escreveu: “O que se deve lamentar nao é que Hegel tenha descrito 0 ser do Estado moderno tal como é, mas que apresente o que é como sendo a esséncia do Estado. ‘A racionalizagio do Estado ocorre mediante a uti zagio constante de um modelo dicotémico, que contrapoe © Estado enquanto momento positive & sociedade_pré-es- tata Gx aniestaal,depradada a momento. negative No In terior desse modelo, podem-se distinguir — ainda que com tum certo esquematismo — trés variantes principais: o Es tado_como negacao radical e, portanto, como eliminagio ¢ inyersio do estado de naiureza, isto é, como renovagio ‘ou restauragao ab imis com relacéo & fase do desenvolvi- mento humano anterior ao Estado (modelo Hobbes-Rous- seau); 0 Estado como conservacio-regulamentaciio da_s0- ciedade naturale, povtanie, n> tals Como aliemaiva, porém como realizacéo verdadeira ou aperfeigoamento em relacdo a fase que o precede (modelo Locke-Kant); 0 Es- 3 tado como conservaco ¢ superaciio da sociedade pré-es- tatal (Hegel), no sentido de que o Estado ¢ um momento ovo € nao apenas um aperfeicoamento (diferentemente do modelo Locke-Kant), sem porém constituir uma negagao absoluta e, portanto, uma alternativa (& diferenga do mo- delo Hobbes-Rousseau). Enquanto 0 Estado hobbesiano & 1. Para msioes detalhes, cf. mew enssio “Hegel e il giusnaturalismo”, in Risa it flosofia, LVI, 1966, py, 597 2. K. Marx, Crea dela flosoia hegeliana del dito, in Opere flloso- fiche ova ad. alana de G: Dell Volpe, Editor Rani, Roma, 1963, P. Tousstauniano exclui definitivamente ¢ estado de natureza, ° Exado hegelino contém a socedade civil (que &a histo ricizagio do estado de -natureza ou soci aturat dos jusnaturalistas): contém e supera essa sociedade, transfor- mando uma universalidade meramente formal (eine for- melle Allgemeinheit, Enciclopédia, § 517) numa tealida- de organica (organische Wirklichkeit), ao contritio do Es- tado lockeano, que contém a sociedade civil (que em Locke ainda se apresenta como sociedade natural) nfo para trans- cendé-la, mas para legitimar suas exigéncias ¢ finalidades. Com Hegel, o processo de racionalizago do Estado atinge © ponto mais alto da pardbola, Nos mesmos anos, através dos escritos de Saint-Simon — que, registrando a profunda transformacao ‘da soctedade produzida nao pela revolucio politica, mas pela revolucdo industrial, previam © advento de uma nova ordem regulamentada por cientis- tas ¢ industriais, em contraste com a velha ordem dirigi- da por metafisicos ¢ militares’ —, injciava-se_a parabola descendente: a teoria, ou apenas a crenga (0 mito), do ine vitével desaparecimento_do Estado. Essa teoria ou cren- ga tornar-se-ia um trago cafacteristico das ideologias polt- ticas dominantes no século XIX. Marx e Engels fariam dela um dos fundamentos do seu sistema: o Estado nao é mais a tealidade da id © racional em si e para si, mas = conforme a fariosa definicéo de O Capital — “viol cia concentrada_e organizada da sociedade”* A antitese a tradicdo jusnaturalista que culmina em Hegel néo podia ser mais completa. Em contraste com o jprimeiro modelo, © Estado ndo é mais coneebido como eliminagéo, mas ae// como conservacio, prolongamenio ¢”estabilizagio doe. tado de natureza: no Estado, 0 reino da forga nao & supri ‘mid6, Tas antes perpetuado, com a Gnica diferenca de que xa 75, ; 4. K. Mar It Capital, Bon Ris, Roms, 1961196, vl. 1 p. 814 {et braces © Coit BS, Ciao Brae, Rio de onc, 18 19, + por extmplo, SsintSimon, “Lorganisatew”, in Cuvres, v. WV, a guerra de todos contra todos foi substituida pela guerra de uma parte contra a outra parte (a luta de classes, da qual © Estado € expresso e instrumento). Em contraste com 0 2 segundo modelo, a sociedade da qual o Estado € 0 supremo regulador nao_é uta sociedade natural, conforme & na- tureza eterna do homem, mas dade historicamen- te determinada, caracterizada por certas Tormas de. prodt- (GSO © por Cettas relacdes sociais; e, portanto, o Estado — enquanto comité da classe dominante —, em vez de ser a expresso de uma exigencia universal e racional, € ao mes- ‘mo tempo a repetico e 0 potenciamento de interesses par- 2. ticularistas, Finalmente, em contraste com o terceito mo! delo, o Estado ndo se apresenta mais como superacio da )sccigdede-eivr mas como o siples reflex delaise « 50- |ciedade civil € assim, assim Eo Estado. O Estado contém a sociedade civil, nao para fesolvéla em outra coisa, mas para conservé-la tal qual é; a sociedade civil, historicamen- te determinada, nfo desaparece no Estado, mas reaparece nele com todas as suas determinagdes concretas. Dessa triplice antitese, podemos extrair os trés elemen- tos fundamentais da doutrina marxiana e engelsiana do Es- 4) tado: 1) 0 Estado como aparelho coercitivo, ou, como dis- semos, “violencia concentrada ¢ organizada da sociedade”: ‘ou seja, uma conce instrumental do Estado, que € 0 ‘posto da concepeao finalista ou ética; 2) 0 Estado como instrumento de dominacio_de_classe, pelo que “o poder politico do Estado is do que um comité, que administra os negécios comuns de toda a burguesia”:* ou seja, uma concepedo particularista do Estado, oposta & concepeao universalista que & propria de todas as teorias do direito natural, inclusive Hegel; 3) 0 Estado como mo- 7) mento secundario ou_subordinado com relagéio & sociedade civil, pelo que “noo Estado que condiciona e regula 5. Marangel, Manifesto del partido comunins, in, Opere sel, Raion uni, Roma 1366-9. 257 fed. Brass bron Paola, Ed. Alt ‘megs, S0Paulo. 9s. vl I 22 sociedade civil, mas_a sociedade civil que condiciona ¢ regula o Estado”’" ou seja, uma concepcao negativa do Es- tado, que € 0 oposto da concepcio positiva propria do pensamento racionalista. Como aparelho coercitivo, parti- cularista e subordinado, 0 Estado nao é 0 momento altimo do movimento histérico, algo que nao possa ser ulterior- mente superado: 0 Estado ¢ uma instituico transitéria. Assim, a inversio das relagdes entre sociedade civil ¢ so- ciedade politica tem como conseqiiéncia uma completa in- versio na concepcao do decurso histérico: 0 progresso nfo mais se orienta da sociedade para o Estado, porém, a0 con- trario, do Estado para a sociedade. O processo de pensa- ‘mento que se inicia com a concepeao do Estado que supri me 0 estado de natureza termina quando surge e ganha for- a a teoria segundo a qual o Estado, por sua vez, deve set suprimido. A teoria do Estado de Antonio Gramsci — refiro-me, em particular, ao Gramsci dos Cademos do Cércere — pertence a essa nova histéria, para a qual, em resumo, 9 Estado nao é um fim em si mesmo, mas um aparelho, um instrumento; € o representante_ndo de interesses univer sais, mas particulares; nao € tima éntidade superposta & sociedade subjacente, mas € condicionado por essa e, por- tanto, a essa subordinado; nao € uma instituigao perma- nente, mas transit6ria, destinada a desaparecer com a trans- formagio da sociedade que the & subjacente. Nao seria di- ficil encontrar, entre as milhares de piginas dos Cadernos, assagens em que ecoam os quatro temas fundamentais do Estado” instrumental, particular, ?subordinado, ‘transitéri Todavia, quem quer que tenha adquirido uma cera familiaridade com os textos gramscianos sabe que 0 pen- samento de Gramsci tem tragos originais ¢ pessoais, que 1ndo permitem as faceis esquematizacoes, quase sempre ins- piradas em motivos de polémica politica, do tipo “Gramsci 8. F. Engels, Per ta sora delta lega del comunis, in It porto e Ftnter nacional, Eason! Rinse, Romy 1868 p17 23 € marxistaleninista”, ou “€ mais leninista que marxista”, ou “é mais marxista que Ieninista”, ou “nao é nem mar- xista nem Ieninista”, como se os conceitos de “marxismo”, “Ieninismo”, “‘marxismo-leninismo” fossem conceitos cla- ros € distintos, com os quais se pudesse resumnir essa ou aquela teoria ou grupo de teorias, sem deixar margens de incerteza, e ser usados como se usa um fio de prumo para medir o alinhamento de uma parede. A primeira tarefa de ‘uma investigagao acerca do pensamento gramsciano € a de destacar e analisar esses tragos originais e pessoais, sem outta preceupagdo que nfo a de Teconstruir as linhas de uma teoria que se apresenta fragmentéria, dispersa, nao sistemética, com algumas oscilagdes terminolégicas, ainda que apoiada — especialmente nos escritos do cétcere — numa unidade de inspiragéo fundamental. Uma reivindi cago (por vezes excessivamente detalhada) de ortodoxia em relagdo a uma determinada linha de partido suscitou, como reacao, a atitude oposta dos cagadores da heterodo- xia, quando nfio mesmo da apostasia. A apologia apaixo- nada esté alimentando, se nfo me engano, uma atitude — ainda subterrnea, mas j4 perceptivel por alguns indicios de malestar — até mesmo iconocléstica. Mas, assim como ortodoxia e heterodoxia nao sio critérios vélidos para uma filoséfica, do mesmo modo exaltagao e irreveréncia slio predisposigdes enganosas e desviantes para a compre-~ ensdo de um momento da historia do pensamento. 2. A sociedade ci em Hegel e em Marx Para uma reconstrugao do pensamento politico de Gramsci, 0 conceito-chave, 0 conceito do qual devemos partir, € 0 de sociedade civil. Deve-se partir do conceito de sociedade civil, ¢ nao do d&Estado, porque é mais no pri- meiro caso do que no segundo que o emprego gramsciano desses conceitos se afasta tanto do emprego hegeliano quanto do marxiano ¢ engelsiano. bp 24 Desde 0 momento em que o problema da relagio He- gel-Marx deslocou-se do confronto entre os métodos (0 uso do método dialético e a chamada inversio) para 0 con- fronto também entre os conteiidos — e, para essa nova Perspectiva, foi fundamental a obra de Lukécs sobre 0 jo- vem Hegel —, os pardgrafos dedicados por Hegel & andli- se da sociedade civil passaram a ser estudados com maior atengdo: a maior ou menor quantidade de hegelianismo em. Marx € agora avaliada também pela maior ou menor me- dida em que a desctigio da sociedade civil em Hegel (mais precisamente, da primeira parte sobre o sistema das neces- sidades) pode ser considerada como uma prefiguracio da aniilise e da critica ‘marxiana da Sociedade capitalista. Foi © prOprio Marx quem revelou esse nexo entre aan marxiana da sociedade capitalista e a anélise hegeliana da sociedade civil, numa conhecida passagem do “Prefacio” & Contribuigao a critica da economia politica, quando escre- Ve que sua revisio critica da filosofia do direito de Hegel “chegou & conclusio de que tanto as relagdes juridicas quaniovas Tormas do Estado nao podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, nem através da chamada eyo- lugo geral do espirito humano, mas tém as suas raizes, ao contrdrio, nas relagdes materiais de existéncia, cujo con- junto é abarcado por Hegel — segundo o exemplo dos ingle- ses e dos franceses do século XVIII — sob 0 nome de ‘socie- | dade civil’; ¢ que a anatomia da sociedade civil deve ser| buscada na economia politica.” Mas, de fato, por um lado,! 08 intérpretes da filosofia do direito de Hegel tenderam a concentrar sua atengio na teoria do Estado ¢ a negligenciar a anflise da sociedade civil — cuja importncia emerge nos estudos hegelianos efetuados em torno dos anos 20 —; por outro, os estudiosos de Marx tenderam, durante muito tem- Po, a considerar o problema das relagdes com Hegel ex. 7K Mars, Per ta critica delfeconomla politica, Editor Riunti, Roma, 1969,"p. 4 fod. brasileira: Para a criiea da economia’ politica, in "Os Ponsa ores"! Abrif Cultura, Sio’ Paulo, 1978, vol, XXXVI 25 clusivamente & luz da assimilagao do método dialético por Marx, Sabe-se que, nos maiores estudiosos italianos de Marx — como Labriola, Croce, Gentile e Mondolfo —, alguns dos quais cram hegelianos ou estudiosos de Hegel, nao se encontra nenhuma referéncia ao conceito hegelia- no de sociedade civil (embora se encontre em Sorel), Gramsci é 0 primeiro escritor marxista que, em sua and lise da sociedade, serve-se do conceito de sociedade civil, inclusive, como veremos, com uma referéncia textual a Hegel. Desse modo, a0 contrério do conceito de Estado, que tem atras de si uma longa tradigio, o conceito de socieda- de civil — que deriva de Hegel ¢ reaparece atualmente, em particular, na linguagem da teoria marxiana da socie- dade — € usado, até mesmo na linguagem filoséfica, de modo menos técnico € rigoroso, com significagées oscilan- tes, que exigem uma certa cautela na comparagio e algu- mas precisdes preliminares. Acredito ser ttil fixar alguns Pontos, que mereceriam uma anélise bem mais aprofunda- da do que a posso ¢ sou capaz de fazer. a) Em toda a tradico jusnaturalista, a expresso so is, em vez de designar a sociedade pré-estatal, como iré ocorrer na tradic&o hegeliano-marxista, € sindni- mo — segundo 0 uso latino — de sociedade politica, ou seja, de Estado: Locke usa indiferentemente um e outro termo. Em Rousseau, état civil significa Estado. Também Kant, que — a0 Tado de Fichte — é 0 autor mais préximo de Hegel, quando fala (nas Idee zu einer all gemeinen Ges- chichte in weltbuergerlicher Asicht) da tendéncia irresis- tivel que a natureza impGe ao homem no sentido da cons- 0 do Estado, chama essa meta suprema da natureza em relacdo & espécie humana de biirgerliche Gesellschaft.* % Ed, Vorlindr,p. 10. Na Mewphysik der Sten, burgerlche Gexellchalt quer dizer satus cil of 3}, Estado no sentido tradicional da palavra i, Mp ae a) 26 b) Na tradigao jusnaturalista, como se sabe, os doi termos da antitese no so — como na tradigao hegeliano- marxista — sociedade civil/sociedade politica, mas sim es tado de natureza/estado civil. A idéia de um estagio pré- estatal da humanidade inspira-se nao tanto na antitese so- ciedade/Estado quanto na antitese natureza/civilizagao. Ademais, vai abrindo caminho, inclusive em escritores Jus- naturalistas, a idéia de que o estado pré-estatal ou natural nao é um estado associal, ou seja, de guerra perpétua, mas uma primeira forma de estado social, caracterizado pela predominncia de relagdes sociais reguladas por leis natu- rais (como eram — ou se acreditava que fossem — as re- laces familiares e econémicas). Essa transformagio do status naturalis em uma societas naturalis € evidente na pas- sagem de Hobbes-Spinoza a Pufendorf-Locke. Tudo 0 que Locke encontra no estado de natureza, ou seja, antes do stado, juntamente com as inslituigoes familiares, as rela- ges de trabalho, a instituigao da propriedade, a circulacao dos bens, 0 comércio etc. revela que — embora ele cha- me de societas civilis o Estado — a imagem que tem da fase pré-estatal da humanidade € muito mais uma anteci- pacio da biirgerliche Gesellschaft de Hegel do que uma continuagtio do status naturae de HobbesSpinoza. Esse modo de entender 0 estado de natureza como societas na- turalis prossegue, tanto na Franga quanto na Alemanha, até bem perto de Hegel. A contraposigao entre société na- turelle, entendida como sede das relagdes econémicas, ¢ a société politique & um elemento constante da doutrina fisio- erética. Numa passagem da Metafisica dos costumes de Kant, obra de onde Hegel parte para sua primeira critica &s doutrinas do direito natural, afirmase claramente que © estado de natureza é também um estado social, e, portan- to, “o oposto do estado de natureza nao é o estado social, mas 0 estado civil (biirgerliche), porque pode muito bem existir sociedade no estado de natureza, mas no uma so- ciedade civil”; e, por sociedade civil, entende-se aqui a so- siedade politica, ou seja, 0 Estado, aquela sociedade — 27 como explica Kant — que_garante o meu ¢ o teu através de_leis piblicas.” ©) A inovacdo de Hegel com relagio a tradigo jus- naturalista € radical: na Giltima redagao do seu elaboradis- simo sistema de filosofia politica e social, tal como apare- ce na Filosofia do direito de 1821, ele se decide a chamat de sociedade civil — ou seja, com uma expresso que, até seus ‘TmediaTOs prEdecessores, servia para indicar a socie- dade politica — a sociedad itica, isto é, a fase da sociedade humana que era até entdo chamada de socieda- de natural. Essa inovacao € radical com relagdo & tradigio jusnaturalista, porque Hegel, ao representar a esfera das relacdes pré-estatais, abandona as andlises predominan- temente juridicas dos jusnaturalistas, que tendiam a redu- zir as relagdes econdmicas aS suas formas juridicas (Teoria da propriedade e dos contratos), e, desde os anos juvenis, serve-se dos economistas, especialmente ingleses, para os quais as relagdes econdmicas constituem 0 tecido da socie- dade pré-estatal e nos quais a distingdo entre o pré-estatal © 0 estatal é figurada cada vez mais como distincao entre a _esfera das relagdes econémicas e a esfera das institui- ges politicas: costuma-se remontar esse uso A obra de ‘Adam Ferguson, An Essay on History of Civil Society (1767), traduzida na Alemanha no ano seguinte, ¢ que He- gel conhecia; mas, nela, a expresso civil society (traduzi da em alemao como biirgerliche Gesellschaft) pretende de- notar mais uma antftese como “sociedade primitiva” do que com “sociedade politica” (como em Hegel) ou com: “sociedade natural” (como nos jusnaturalistas), néo sendo casual que — num contexto andlogo — seja substituida por Adam Smith pela expressio civilized saciety."" Enquan- to 0 adjetivo “civil” tem em inglés (como igualmente em francés © em italiano) também o significado de ndo-bér- 9, Metaphysik der Siten, que cito ds edigio italiana; 1, Kant, Seritt polit, Ute, Tarim, 1956, p. 422. 10. A. Smith, Am Inguiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, Methuen, Londres, 1820, p. 29, 28 ~~ bato, ou seja, de “civilizado”, na tradugio alemi — ao tornar-se biirgerliche (e nao zivilisierte) — é eliminada a ambigiiidade entre o significado de nao-bérbaro e de na estatal, continuando porém a se conservar a outra e mais grave ambigiiidade, a que da lugar o uso hegeliano, ou seja, entre pré-estatal (enquanto antitese de “politico”) ¢ esta- tal (enquanto antitese de “natural”), 4) A inovagéo terminolégica de Hegel ocultou fre- qiientemente 0 Verdadeiro significado de sua inovagao subs- tancial, que no consiste — como foi varias Vezes repeti- do — na descoberta e na andlise da sociedade pré-estatal (4 que essa descoberta e essa anélise j4 haviam sido intro- duzidas pelo menos desde Locke, ainda que sob o nome de estado de natureza ou sociedade natural), mas na interpretaco que a Filosofia do direito nos oferece de tal sociedade: a sociedade civil de Hegel, a0 contrério da so- ciedade desde Locke até os Tisiocratas, ndo é mais 0 reino de uma _ordem_n: il, que deve ser libertada das restri- ‘90@Se distorgdes impostas por més leis positivas, mas, ao contrario, o reino “da dissolugao, da miséria ¢ da corrup- cfo-fisiea EXIGE” © esse reine deve sor regilarientado, dominado ¢ anulado na ordem superior do Estado, Nesse sentido, e somente nesse sentido, a sociedade civil de He- gel — e no a sociedade natural dos jusnaturalistas, de Locke a Rousseau e aos fisiocratas — ¢ um conceito pré- marxista, Apesar disso, deve-se ainda advertir que o con- ‘ceito de sociedade civil em Hegel é, sob certo aspecto, mai amplo e, sob outro, mais restrito do que 0 conceito de so- ciedade civil tal como ser acdlhido na linguagem marx-en- gelsiana, que depois se tornou a linguagem corrente. Mais, amplo porque, na sociedade civil, Hegel inc a apenas fera des relagSes econdmicas © a lorimacio das classes, também a administragao da justica © 0 ordenamento administrative © corporativo, ou Seja, dois temas do direi to pUblico tradicional; mais restrito porque, no sistema ti 1. G. W. P. Hegel, Philosophie des Rechts, § 185 de Hegel (ndo dicotémico como o dos jusnatura- listas), a sociedade i stitui_o momento intermedié- rio entre a familia e 0 Estado, e, portanto, néo inclui — a0 contratio da stiedade natural de Locke e da socieda- de civil no uso moderno predominante — todas as rela- Goes € instituigdes pré-estatais, inclusive a familia, A so- Ciedade civil em Hegel é a esfera_das relacdes econémicas €, a0_ mesmo tempo, de sua regulamentacdo externa, segun- do os principios do Estado liberal; e € conjuntamente socie- dade. burguesa € Estado burgués: Hegel concentra nela a critica da economia politica e da ciéncia politica, inspi- radas respectivamente nos principios da liberdade natural e do Estado de direito. ©) A fixagdo do significado de “soviedade civil” como algo que se estende a toda a vida social pré-estatal, como momento do desenvolvimento das relagdes econdmicas, que precede e determina 0 momento politico, e, portanto, como tum dos dois termos da antitese sociedade-Estado, essa fixa- gio ocorre em Marx. A sociedade civil torma-se um dos ele- mentos do sistema conceitual marx-engelsiano, desde os estu- dos juvenis de Marx (como A questdo judaica, no qual a referencia ngdo hegeliana entre biirgerliche Gesel- Ischajt e politischer Staat € o pressuposto da critica & so- lugio dada por Bauer ao problema judaico™) até os escri- tos mais tardios de Engels, como o ensaio sobre Feuerbach, que contém uma das passagens justamente mais citadas, por causa de sua incisiva simplicidade: “O_Estado,-a_or- dem politica, ¢ 0 elemento subordinado, enquanto dade civil, 0 reino das relagdes econdmicas, 6 0 12. °O Estado politico compete ¢, segundo sua propria esas, a vide do homem na esse em conrapoigso a son vido mater Todos o& pres Poste eves vide eg conta a se_mamter fore da cer. eta an Escedade burpuesa; mss como. qualidade" dr socedade burguesa" (K Mars, SGrnt potie! giosanl Einaudi, Turim, 1950, pp. 365360. Ct. também K Marx, Manoserlit economicotoofct det 1848, i Opere losofiche glovant, Shee EA socedade “tal como aparece ao economists 6 a scledade ci {20 30 decisive.” A importincia da antitese sociedade civil/Es- tado deve ser relacionada, também, 20 fato de que é uma das formas na qual se apresenta a antitese fundamental do sistema, ou seja, entre estgutura e superestrutura: se & ver- dade que a sociedade politica Ado esgota 0 momento st- perestrutural, & igualmente verdade que a sociedade civil coincide — no sentido de que tem a mesma amplitude — com @ estrutura. Na mesma passagem da Critica da eco- noma polifica onde Marx se refere 2 andlise hegeliana da sociedade civil, ele especifica que “a anatomia da socie- dade civil deve ser buscada na economia politica’; e, logo apés, examina a tese da relacio estrutura/superestrutura numa de suas mais famosas formulacdes."* Sobre isso, con- vém citar e ter continuamente em mente um dos trechos marxianos mais importantes sobre a questo: “A forma de- terminada de relagdes das forcas produtivas existentes em todos os estégios histéricos que se sucederam até hoje, ¢ que por sua vez as determina, é a sociedade civil {...J. Jé se pode ver aqui que essa sociedade civil é 0 verdadeiro centro, o teatro de toda histéria; e pode-se ver como & ab- surda a concepeio da histéria até hoje corrente, que se limita as aces de Iideres ¢ de Estados ¢ deixa de lado as relagdes reais [...]. A sociedade civil compreende todo o conjunto das relagées materiais entre os individuos, no in- terior de um determinado grau de desenvolvimento das for. as produtivas. Ela compreende todo o conjunto da vida comercial e industrial de um grau de desenvolvimento e, Portanto, transcende 0 Estado ¢ a naco, embora, por ou fro lado, tenha novamente de se afirmar em relagdo a0 ex: 13 owl, Ladwie Feuerbich «punto uporodo, dla fosfa gles test aon nit Rome, Foe, "9" ta fa rear solids. dite Omen, So" Pls Wk 3 14,0, conjunta eas rls de prod conta estraienscond aie da seid ou sea ase Teal Dive qual ase eam ieriig e'politea'c'h cua corespondem Terms Termine $n aoe sgt Soca Gates pr tof ct] terior como nacionalidade e de se organizar em relagdo a0 interior como Estado.” 3. A sociedade civil em Gramsci A anélise sumétia do conceito de sociedade civil, des- de os jusnaturalistas até Marx," terminou com a identifi- cago — realizada por Marx — entre sociedade civil e ‘momento estrutural. Essa identificagdo pode ser considera- da como 0 ponto de partida da anilise do conceito de so- ciedade civil em Gramsci, jé que — precisamente na iden- tificagio da natureza da sociedade civil e de sua colocagao no sistema — a teotia de Gramsci introduz uma_profunda inovagao em relagio_a toda _a tradicéo marxista. A socie- dade civil, em Gramsci, no pertence ao momento da es- trutiifa, mas ao da superestrutura, Apesar das numerosas anilises a que 6 congelto gramsciano de sociedade civil f submetido nos tiltimos anos, esse ponto essencial — sob ‘© qual assenta todo o sistema conceitual gramsciano — no me parece ter sido suficientemente sublinhado, ainda que nao tenham faltado estudiosos que puseram em des- taque a importéncia superestrutural desse sistema.” Bas- tard citar uma passagem fundamental de um dos textos mais importantes dos Cadernos: “Podem ser fixados, por coquanto, dois grande planos.sunerstutunis: 0 que pode ser chamado de “sociedade civil’, ou seja, 0 conjunto de or- ganismos habitualmente ditas privados, & 0 da sociedade politica ou Estado. E eles correspondem & funcad de hege- mionia queé"0 grupo dominante exerce em toda a sociedade; 8 do dominio direto ou de comando, que se expressa no 15, K Marx — F, Engel, Hideloga tedesca, EitortRiuniti, Rome, 1967, 28 » 6365. : PP i Pare indiasGes mais precise, remeto s0 mou sttigo “Sulla nosione 4 scot ivte™ in’ De homine, 1988, new 2425, pp. 1956. 17. Em pariclar, a0” ave eu saiba, G, ‘Tambureane, Antonio. Gramsct, cal, Mandoria: 1965, pp. 290, 20524 32

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