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| Historia da arte da Universidade de Cambridge A IDADE MEDIA Anne Shaver-Crandell Historia da arte da Universidade de Cambridge Anne Shaver-Crandell A IDADE MEDIA (a CIRCUCO DO LIVRO Agradecimentos Pela autorizacio para reproduzir ilustragdes, a autora ¢ 0s editores desejam apresentar seus agradecimentos as instituigdes mencionadas nas legendas. Também devemos agradecimentos As seguintes entidades: pl Courtauld Institute of Art; pp. 2 (no alto) ¢ 22, Fotografie della Societa Scala, Florenca; p. 6, La Documentation Francaise, © by Yan-tourisme; pp. 8, 14, 24, 28 (& direita), 36, 78 (embaixo, & esquerda, Martin-Sabon; embaixo, & direita, J. Feuille), 79 (J. Feuille), 105 ¢ 106 (Lefevre-Pontalis), © Arch. Phot. Paris/SPADEM,; pp. 11, 27, 32, 61, 67, 74, 75, 95, 104 e 107, The Mansell Collection; pp. 12, 13, 15, 17, 19, 20, 21, 33, 38, 39, 43, 44, 46, 66, 68, 70, 71, 72, 73, 77 ¢ 78 (no alto), @ James Austin; pp. 18, 28 (@ esquerda), 40, 41 50, Anne Shaver-Crandell; pp. 10, 23, 30 e 103, Ampliaciones y Reproducciones MAS; pp. 25, 29, 49, 58, 81, 82, 83, 97, 98, 101 e 102, Royal Commission on Historical Monuments, Crown Copyright; p. 34, reproduzido por cortesia dos Curadores do British Museum; p. 37, Peter Foster; p. 47, French Government Tourist Office; pp. 52 ¢ 53, Foto Wladimi Narbutt-Lieven; pp. 56, 64 e 65, Photographie Giraudon; pp. 84, 85, 99 100, Bildarchiv Foto Marburg; p. 92, Helga Schmidt-Glassner; p. 109, Cliché des Musées Nationaux, Paris. Mapa de Ron Jones, diagramas de Oxford Illustrators Ltd. CIRCULO DO LIVRO S.A. Caixa postal 7413 01051 Sao Paulo, Brasil Edigdo integral Titulo do original: “Cambridge introduction to the history of art: The Middle Ages” Copyright © by Cambridge University Press, 1982 ‘Traducdo: Alvaro Cabral Layout da capa: Anibal dos Santos Monteiro Licenga editorial para 0 Cireulo do Livro por cortesia de Zahar Editores S.A. ‘Venda permitida apenas aos sécios do Cfrculo Composto pela Linoart Ltda. Impresso e encadernado pelo Circulo do Livro S.A. 0 9 OG 5 A BF a 88 87 86 85 84 indice Introdugao 1 A ARQUITETURA E A ARTE ROMANICA .... 3 Saint-Sernin, em Toulouse: uma igreja do tipo “Cami nho dos Peregrinos” 4 A Porta Miégeville: a Ascenso de Cristo . 9 Sainte-Foy, em Conques: o santudrio de uma menina .. 13 Saint-Pierre, em Moissac: bela deformidade e beleza deformada . ee 16 La Madeleine, em Vézelay: 0 dom das linguas 20 San Clemente de Tahull: um Cristo pintado 22 Abadia de Fontenay: o ascetismo cisterciense 24 Durham: uma sdlida catedral anglo-normanda . 25 26 O complexo da catedral de Pisa: a arcatura toscana . Casas e castelos .... Resumo da arquitetura e da arte romanica ........... 30 O GOTICO PRIMITIVO: ARQUITETURA E ARTE . 3 A Abadia de Saint-Denis, o Abade Suger e a “verdadei- mw luz ever ae Sa eneee 31 O vitral ..... aus suerte 36 Chartres: o Portal Régio e a estatua-coluna . 38 A catedral de Laon e a conquista da altura 2 Notre-Dame de Paris e 0 arcobotante . 45 A catedral de Canterbury: o Gotico inglés primitivo .. 47 Artes utilitérias e tesouros preciosos . 9. Nicolas de Verdun, o Altar de Klosterneuburg e para- lelos tipolégicos . Scoala 50 © Saltério de Ingeborg ....... 34 Resumo da arquitetura e da arte gética primitiva .... 57 Indice © GOTICO CLASSICO: ARQUITETURA E ARTE .,, 58 Os pedreiros e a arquitetura gética . ve 5B A catedral de Chartres: uma enciclopédia gética....._ 59 A catedral de Reims: a harmonia do Gético classico .. 71 Saint-Etienne de Bourges: uma solugo diferente .... 76 A Sainte-Chapelle e 0 estilo radiante .... a9) A catedral de Salisbury: um projeto unificado ... 81 Elisabethkirche, em Marburgo: 0 Gético alemao . 84 A iluminura de manuscritos: a “Jerusalém Celestial” 86 As figuras do coro de Naumburg e o naturalismo gético 91 Resumo da arquitetura e da arte gética classica ..... 93 © GOTICO TARDIO: ARQUITETURA E ARTE ......... 94 Santa Croce, em Florenca: uma igreja de pregagio franciscana a A catedral de Gloucester: 0 estilo perpendicular Peter Parler ¢ a catedral de Sao Vito em Praga Duas capelas aaa Residéncias particulares cee A escultura do Gotico tardio: Giovanni Pisano ... A Virgem de Joana d'Evreux ........ eu tea secre 108 Manuscritos do Gético tardio: Les heures de Jeanne dEvreux . scheneonsnnee As tapecarias do unicérnio: “O unicérnio no cativeiro” 113 Resumo da arquitetura e da arte gética tardia 12115 Glossério nie Bibliografia suplementar . Indice analitico Arcos dupios no interior da mesquita, hoje catedral, de Cérdoba, na ‘Espanha, século VIII. Introducéo Este livro trata da arte ¢ da arquitetura da Europa ocidental desde a segunda metade do século XI até o final do século XIV. A arte e a arquitetura da parte inicial desse periodo sao designadas pelo nome do estilo que nele predo- minou — o Romanico —, 0 qual estabeleceu as bases para as criagdes do estilo, mais conhecido, que 0 sucedeu: 0 Gético. Evidentemente, supor que a arte romanica teve inicio por volta de 1050 é formular uma divisdo artificial. A arte é criada por artistas € artesaos que dao forma a belas coisas para aqueles que querem e podem possui-las. Essa atividade vinha tendo continuidade na Europa ocidental desde os tempos dos gregos e romanos e durante todos os séculos conhecidos como a Idade das Trevas. Qs clientes eram habitualmente os governantes — da Igreja ou do Estado. O imperador Justiniano, por exemplo, se fez retratar, e a alguns de seus cortesfos, em refulgente mosaico na parede da igreja de San Vitale, em Ravena. No ano 785 da nossa era, Abd-al-Rahman, o emir muculmano de Cordoba, na Espanha, iniciou a construcdo de uma grande mesquita, combinando a decoracio islamica com um sistema de arcos provavelmente derivado dos aquedutos romanos. As claboradas decoragées de manuscritos feitas pelos monges irlandeses e a chamada Jéia de Alfredo s4o famosas obras-pri- mas legadas por esses anos de “trevas”, ¢ hd intimeras outras, particularmente as obras da arte monistica. Recebendo sua inspiracio do fundador do monasticismo, S40 Bento (480-ca. 550), mosteiros disseminaram-se por toda a Europa. Eram centros de arte ¢ erudicao, onde se produziu um grande niime- ro de belas obras. Os mosteiros preservaram o melhor das tradigées do mundo antigo e adaptaram ou assimilaram novos estilos dos povos que, vindos do norte e do leste, estavam se estabelecendo em toda a Europa. Seria necessario um estu- do detalhado das obras de arte produzidas nesses tempos tur- bulentos para se compreender as origens da arte medieval, e os exemplos citados podem indicar apenas algumas tendéncias. Para entendermos de maneira mais completa a arte e a arquitetura da Idade Média, precisamos também conhecer = Acima O imperador Justiniano € cortesaos, mosaico da abside de San Vitale, em Ravena, século VI A direita Joia de Alfredo, feita na Inglaterra, ca, 880 de nossa era, comprimento: 63,5 mm. Ashmolean Museum, Oxford. A inscricéo AELFRED MEC HEHT GEWYRGAN (“Alfred mandou fazer-me"). SSSA aos algo da vida medieval e estar familiarizados com os métodos de construcdo e as técnicas de producao de imagens desse periodo, assim como com os temas dessas imagens. Hoje, as pessoas, acostumadas As austeras e despojadas construgdes modernas, as esculturas livres ¢ as pinturas de cavalete, emol- duradas e penduradas em paredes, mostram-se as vezes per plexas diante do fato de muitos monumentos romanicos ¢ géticos serem grupos de imagens afixadas no interior ou no exterior de edificios. Por conseguinte, um dos objetivos deste livro é ajudar o leitor a entender os tipos, estilos e métodos de construgéo medieval. Quanto ao objeto de estudo, a maioria das obras que examinaremos foram feitas para a Igreja Catdlica Romana. Como seus ensinamentos ¢ objetivos j& ndo sao hoje to universalmente conhecidos quanto eram na Idade Média, este livro também fornecera alguns esclareci- mentos sobre a iconografia medieval, um estudo de tema que € distinto da andlise do estilo. 2 1. A arquitetura e a arte romanica dintel] pilar Sistema de pilar¢ dintel © peso de uma parede & exercido de cima para baixo. Se alguns blocos forem removidos, os outros continuam se sustentando uns aos outros © suportando 0 empuxo de dentro para e de cima para A abertura pode ser feita de maneira mais clegante, ¢ blocos em forma de cunhas (aduelas) sao ajustados Para se sustentarem Uns a0 outros no topo da abertura. Precisam ser amparados por uma armagao de madeira (cimbre), que é retirada quando 0 arco esta completo. A designacao “Romanico” é uma invencao do século XIX, ¢ significa “semelhante ao romano”. Esse termo foi usado originalmente com relacao a arquitetura, ¢ se referia & seme- Ihanga existente entre as construgées tipicas do final do século XI e do século XII na Europa e as estruturas abobadadas e de grossas paredes de alvenaria dos antigos romanos. © trago mais caracteristico da arquitetura romanica ¢ a utilizagdo da abébada. “Abébada” designa a cobertura de espagos com tetos recurvados feitos de pedra, em lugar da solugao mais comum, que é a cobertura de um véo mediante vigas horizontais assentadas sobre colunas ou umbrais. Este Ultimo sistema é chamado, por vezes, de pilar e dintel ou pilar ¢ verga. A base estrutural da abébada da-se o nome de sistema de arco e pilar. Um pilar é um suporte sdlido de pedra para sustentagiio dos arcos de uma abébada. Um arco, a partir do qual se desenvolve uma abébada, é uma unidade estrutural composta de uma série de blocos de pedra em forma de cunha, chamados aduelas, utilizada para cobrir um vao. Como um arco pode abranger um espaco mais vasto do que um simples dintel, 0 construtor usard menos suportes numa estrutura abobadada. Os construtores cristéos consideraram isso uma grande vantagem, pois o interior das igrejas que edificavam devia ter o menor ntimero possivel de obstrucées internas. Grande parte dos ritos do culto cristéo so coletivos, e toda a congregacio devia ter condigdes de enxergar 0 sacerdote que guiava os figis em suas oracées. Uma outra vantagem da construgao em abébada era a sua imunidade contra 0 fogo. Em quase toda a arquitetura religiosa dos periodos cristo primitivo, carolingio e otoniano, que prece- deram © romanico, o telhado era feito de madeira, pois esse material era abundante na Europa e tais edificios eram de construgdo relativamente simples. Mas as crénicas medievais estéo repletas de tragicas descrigdes de incéndios que devas- taram igrejas construidas com telhado de madeira. Quando as populagées se cansaram de ver suas igrejas em chamas, trata- ram de aprender a construir abébadas de pedra ou alvenaria. ERD ZN , ERS, Abobada de arestas Aarquitetura eaarie romanica A abdbada mais simples ¢ um arco ampliado lateralmente e cuja curva é determinada por um segmento de circulo. Rece- be o nome de abébada de berco. Como esse tipo de cobertura é muito pesado e permite escassa entrada de luz no interior, 0s construtores da antiga Roma desenvolveram a abdbada de arestas, que consiste na intersecao de duas abébadas de berco em angulos retos, formando um dossel ou palio sobre quatro pilares. As juntas ao longo das quais as duas abébadas de berco se unem chamam-se arestas. Embora seja dificil cons- truir uma abébada de arestas sobre um plano que tenha qual- quer outro formato que nao 0 quadrado, essa forma, pelo fato de ser mais aberta, é desejavel na medida em que permite a entrada de maior quantidade de luz no edificio. Essas duas formas, a abébada de berco e a abdbada de arestas, foram usadas na grande maioria das igrejas romanicas, Visualmente, essas abébadas transmitem a impresdo de soli- dez, calma e repouso... de auséncia de esforco ou tensiio. Suas superficies so lisas e as linhas semicirculares fazem nossos olhos voltarem ao chdo depois de cada volta pelo espaco. Também caracteristicos do estilo romanico sao os pilares maci¢os que sustentam as abdbadas ¢ as paredes espessas e lisas de alvenaria, com estreitas aberturas como janelas. SAINT-SERNIN, EM TOULOUSE: UMA IGREJA DO TIPO “CAMINHO DOS PEREGRINOS” Podemos ter uma idéia melhor da arquitetura romanica se observarmos uma construcao especifica, a basilica de Saint- Sernin, na cidade de Toulouse (sudoeste da Franca), que foi a antiga capital do reino do Languedoc. Saint-Sernin é um exem- plo de igreja romanica, do que se chama muitas vezes de tipo “Caminho dos Peregrinos”, que foi criado, em parte, para re- solver um problema de tréfego humano. Durante a Idade Média, tal como hoje em dia, as pessoas viajavam em peregrinacdo a lugares santos, por vezes na espe- ranca de cura para uma enfermidade, outras vezes como alter- nativa A prisio por causa de alguma malfeitoria cometida em sua terra, ou ainda porque a Igreja Catélica prometia salvacéio eterna para as almas dos peregrinos, A parte os beneficios mé- dicos, legais e espirituais, a peregrinacdo oferecia uma das rela- tivamente poucas oportunidades de viajar que estavam ao aleance das pessoas comuns naquela época. Até mulheres po- diam participar das peregrinagdes, que eram freqiientemente 4 = Laon, “Reims Véaslay Benrge Tiiyerdrios de peresrinegaio Santiago de Conspostera 7 Roias principals ° 100 mithas son has Lu ° 160 km Conques stoissac fries ‘Santiago de Compostela Burgos organizadas de maneira semelhante as excurs6es em grupo com guia dos tempos atuais. As metas mais prestigiosas da peregri- nacfo crista eram Jerusalém, onde Jesus Cristo nascera e mor- rera; Roma, local do martirio do primeiro papa, Sao Pedro, € centro administrativo da Igreja; e Santiago de Compostela, no noroeste da Espanha (na provincia galega de La Corufa), onde se acreditava estar enterrado o apéstolo Tiago. No século X, verdadeiros caudais humanos comecaram a atravessar a Franca e a Espanha para visitar o santudrio de Sao Tiago. No século XII, ja existia até um guia para viajantes que informava aos peregrinos os melhores itinerérios, a loca- lizagio de reliquias sagradas particularmente eficazes, a pureza dos mananciais de agua locais e os hébitos desagradaveis ou hostis dos nativos das varias regides que seriam atravessadas. A medida que a afluéncia a esses itinerarios recomendados se intensificava com a crescente popularidade da peregrinacio a Santiago de Compostela, as igrejas locais comecaram a ter pro- blemas por demais conhecidos, nos tempos modernos, pelas pessoas que vivem perto de localidades de grande atracdo turistica — a interferéncia de forasteiros no fluxo normal da vida cotidiana em cidades e edificios habitualmente usados apenas pela populac&o local. Muitas igrejas guardavam reli- quias de santos. Acreditavase piamente que elas possuiam mi lagrosos poderes curativos. Os peregrinos queriam ver essas reliquias exibidas, assim como outros objetos preciosos guar- dados em sacrérios, ao passo que as populagées locais deseja- 5 Saint-Sernin, em Toulouse, ca. 1080-1120. Vista aérea e planta. Saint-Sernin, em Toulouse vam apenas assistir a suas missas didrias tranqiiilamente, sem serem perturbadas. Para acomodar os peregrinos, que representavam uma im- portante fonte de receita, os arquitetos projetaram uma planta basica que criava um corredor continuo em torno da periferia da igreja. Os visitantes podiam caminhar, sem atrair as aten- Ges, ao longo dessas naves laterais, admirando a estrutura da igreja e visitando as reliquias locais e outros tesouros, que podiam agora ser expostos em pequenas capelas que irradia- vam do segmento curvo do corredor, 0 deambulatério, que circunda o altar-mor da igreja. ‘As missas desenrolavam-se regularmente, sem perturba- goes, na ampla nave central da igreja. Toulouse esta situada justamente em uma das principais estradas que, atravessando a Franca, levam a Santiago de Compostela. A igreja de Saint-Sernin é um espléndido exemplo do tipo de igreja que acabamos de mencionar. Como a regiao em torno de Toulouse tem muito pouca pedra para constru- io, a igreja foi edificada basicamente com os tijolos cor de péssego que se fabricavam no local. Os construtores sé usaram pedra para detalhes especiais, como as aberturas das janelas, vios de portas, molduras de esquinas e decoracao escultérica. A vista exterior mostra a disposicio em cruz latina, com uma torre elevada no cruzamento dos dois eixos da estrutura. Essa planta, que passou a simbolizar o corpo do Cristo na cruz, era tradicional muito antes do inicio da construcao de Saint-Sernin, em fins do século XI. Podemos ver a nave, onde os fiéis se congregavam e ajoelhavam, e 0 transepto, o braco tranversal da igreja. O conjunto leste, 0 lado da igreja que constitui o santudrio, tem o nome de chevet. Esta palavra significa “‘cabe- ceira”, em francés; a parte da igreja assim designada foi con- cebida como uma espécie de travesseiro para a cabeca de Cristo, quando pendia da cruz. Pode-se ver claramente como os altos volumes principais da construgio estao cercados pelo corredor periférico. Acima desse nivel e abaixo da culminancia dos espagos mais elevados, galerias continuas formam um nivel intermédio. 0 edificio ¢ organizado em massas amplas ¢ claras de alvenaria, delimitadas por contrafortes estabilizadores, for- mando unidades estruturais a cada uma das quais corresponde uma janela. Quando entramos no edificio, vemos a mesma subdivisdo observada em seu exterior. Isso é caracteristico da orga- nizacio das estruturas romanicas. Pilares compostos sustentam 7 Nave central de Saint-Sernin, em Toulouse, a arcada principal ou pavimento térreo. De cada um desses pilares compostos saem meias colunas que se clevam, para além das galerias providas de arcadas, até a altura da abébada de bergo que cobre a nave. As galerias so cobertas com abéba- das em semicirculo, que exercem pressfo contréria ao empuxo de dentro para fora ¢ de cima para baixo das principais absba- das de berco. Voltando ao nivel térreo, as naves Jaterais ¢ 0 deambulatério s4o cobertos com abébadas de arestas, e cada vao marca um espaco hexaédrico claramente definido. Esses 8 ] terete Co (cate Ls Ele 1 Planta simplificada do mosteiro projetado em Sankt Gallen, na Sufca. se4 6 | r>csmolaria i jardin i i I as — i cozinha refeitério ee Tatrina, fanheicd at vaos esto proporcionadamente relacionados entre si. Tal como a famosa planta da abadia de Sankt Gallen (século IX), na Suica, que, durante séculos, constituiu 0 modelo para o projeto ideal de uma igreja, a planta de Saint-Sernin depende de um médulo, 0 vao do cruzeiro. Os vaos da nave tém, cada um, metade do tamanho do vao do cruzeiro. Os das naves laterais tém, cada um, um quarto do vao do cruzeiro. O efeito sobre o visitante 6 de um espaco interior esmaga- doramente vasto e protetor, escuro e fresco, em contraste com a ofuscante luz do sol do lado de fora. Esse efeito acabrunhan- te é intensificado pelos ecos dos sons na extraordinaria exten- so da basilica. A PORTA MIBGEVILLE: A ASCENSAO DE CRISTO Numa época em que muito poucas pessoas sabiam ler ou escrever, a igreja recorria substancialmente as pinturas ¢ as esculturas para comunicar-se com os seus membros € com os nedfitos potenciais. Os interiores das igrejas exibiam freqiien- temente pinturas de cenas religiosas nas paredes ¢ abébadas. Qs escultores executavam esculturas em pequena escala nos capitéis, que sdo a parte superior das colunas e pilastras. Mas as informagGes visuais mais concentradas sao encontradas na escultura dos portais, na entrada do templo. 9 Porta Mitgeville, 1110, basilica de Saint-Sernin, A Porta Miégeville ¢ 0 portal que da acesso ao quinto vio da nave lateral sul da basilica de Saint-Sernin. Essa entrada, provavelmente executada por volta de 1110, constitui um dos primeiros grupos da escultura européia em grande escala que seria realizado apés a queda do Império Romano. Os romanos tinham grande experiéncia no uso de esculturas em edificios, mas a arte da escultura monumental havia sido esquecida du- rante os primeiros séculos da Idade Média, a par de outras comodidades da civilizago romana, como as canalizacées do- 10 Arco de triunfo romano ‘em Orange, ail provavelmente do inicio do século I de nossa era. mésticas. Pode-se notar que o tragado geral da Porta Mi se assemelha & forma de um tipico arco de triunfo romano, como o existente em Orange, no sul da Franca, que mostramos aqui para facilitar a comparacao. Na verdade, o portal da igreja medieval, em todos os periodos, pode ser interpretado como a entrada para um lugar de vitéria, o reino do Cristo, simboliza- do pelo santudrio do templo. Com isso em mente, podemos entender melhor por que a Porta Midgeville mereceu tanta decoragao escultural. Num portal, a area maior a ser decorada it Ascensao de Cristo, timpano da Porta Miegeville, basilica de Saint-Sernin, em Toulouse. com esculturas, chamada timpano, é a parede semicircular loca- lizada logo abaixo dos pesados arcos que emolduram o vao da Porta. No timpano da Porta Miégeville & representada a descri- s&o biblica da Ascensao de Cristo, sua elevacdo aos céus apés a Ressurreicao. A figura central é 0 préprio Cristo, ajudado por dois anjos em seu movimento ascendente. De ambos os lados, pares de anjos segurando cruzes emolduram o grupo central com seus corpos perfilados. No dintel, a verga que sustenta o timpano, dois outros anjos dirigem-se aos apéstolos, um tanto Perplexos, que esto observando seu bem-amado Mestre subir para junto de seu Pai no céu. Como acontece na maioria das representagdes romAnicas de eventos religiosos, a composigao ¢ muito simétrica, com 0 seu equilibrio enfatizando a solenidade da ocasido. A postura das varias figuras isoladas idealizadas revela a familiaridade do escultor com a escultura romana. Mas 0 achatamento ¢ 0 encur- tamento arbitrarios das figuras dos apéstolos, de modo a ajus- télas claramente ao dintel, indicam uma nova atitude por parte do artista. Ele parece preocupar-se menos com as pro- porgées idealmente belas do que com a apresentagio concisa de uma histéria dentro do espaco dispontvel. ‘Na parede do portal, de ambos os lados do timpano, estéio 12 Sainte-Foy, em Conques, século XI, concluida em 1140, relevos esculpidos de Sio Pedro e Sao Tiago. S40 Pedro foi o primeiro papa e simboliza aqui a Igreja Catdlica como entidade organizada; Sao Tiago figura porque algumas de suas reliquias estavam na igreja de Saint-Sernin e porque algumas pessoas que chegavam diante da Porta Midgeville estavam se encami- nhando, em peregrinacdo, ao seu santudrio em Santiago de Compostela. Ambos os santos sao apresentados calcando aos pés animais ferozes, como sinal de que venceram 0 deménio. Recorde-se que Cristo é mostrado triunfando sobre a morte pela ascensao ao céu, A mensagem da Porta Mibgeville é, por- tanto, a promessa & humanidade de redengao do pecado me- diante a fé em Cristo ¢ a obediéncia aos ensinamentos de sua igreja. SAINTE-FOY, EM CONQUES: 0 SANTUARIO DE UMA MENINA Outra igreja do tipo Caminho dos Peregrinos estd aninha- da num verdejante vale do centro da Franca, na pequena cida- de de Conques. Essa igreja foi construida em homenagem a uma menina chamada Foy (nome que significa “fé da aos nove anos de idade por suas crengas cristas A meméria da pequena martir mantém-se viva através de 13 Relicario de Sainte-Foy, tesouro da igreja de Sainte-Foy, em Conques. uma imagem extraordinéria, o relicdrio de Sainte-Foy, peca principal do tesouro da igreja. Os relicdrios eram muito comuns na Idade Média. Ossos, pecas de vestudrio ou outros remanes- centes fisicos de pessoas que haviam morrido em aura de santidade eram guardados em caixas ou cofres esculpidos e recobertos de ouro, de placas esmaltadas e de pedras preciosas. As reliquias de Sainte-Foy foram preservadas nessa figura sen- tada, que pode ser representada como uma pequena historia de uma s6 personagem da arte medieval nas 4reas do trabalho em metal e da lapidacao de pedras preciosas. A cabeca da santa era um elmo romano de desfile, reutilizado e remodelado com © aditamento de uma coroa e a incrustagao de pedras precio- sas, de modo a “atualizé-la”, A igreja de Conques parece uma versio menor da de Saint-Sernin construida em pedra cor de mel. No centro da fachada oeste hé um portal com um timpano onde é represen- tado o Juizo Final e que data de cerca de 1140. Ilustra a crenca em que, no ultimo dia do mundo, Cristo regressaré a terra para julgar as almas de todos os seres mortos e vivos, enviando 0s bons para o céu e os maus para o inferno por toda a eterni- dade. Cristo esté serenamente sentado no centro do timpano, dentro de uma mandoria salpicada de estrelas, de formato oval Pontiagudo, que sugere uma aura de luz como indicacao da santidade da pessoa colocada dentro dela, Sua mio direita (@ nossa esquerda quando olhamos para a imagem) est4 erguida Para o alto e para as almas bem-aventuradas, para quem o céu sera a nova morada. Sua méo esquerda aponta para baixo, na direcdo do inferno e dos condenados ao padecimento eterno. “4 Juizo Final, timpano, fachada oeste da igreja de Sainte-Foy, em Congques. Essa vinculagdo do lado direito de uma pessoa com o bem e do seu lado esquerdo com 0 mal é constante em toda a arte medieval. (A lingua latina pode ajudar-nos a recordar esse fato. A palavra latina para “esquerdo” & “sinister”, que em nossa Iingua passou a significar também “sinistro”, “malvado”, “de mau agouro”. O vocdbulo latino para “dircito” é “dexter”, donde deriva a nossa palavra “destro”, que significa 0 quanto as pessoas, em sua grande maioria, sao habeis e eficientes com a mao direita,) O lado celestial do timpano parece ter causado certos problemas para a imaginacao dos escultores. No céu, eles esperavam que as almas estivessem livres do fardo do trabalho constante, da pobreza e da doenca, que eram a condi- so fatidica para a maioria das pessoas na Idade Média. Por conseguinte, a representagao do céu caracteriza-se pela inativ dade. O inferno, por outro lado, foi muito facil de imaginar, pois os escultores deviam estar por demais familiarizados com ‘os equivalentes terrenos das torturas infernais descritas em suas esculturas. A violéncia fisica é abundante. Imediatamente abaixo dos pés de Cristo, a gigantesca Boca do Inferno traga mais uma infeliz vitima. Outros deménios, armados de diversas armas e de um inesgotavel suprimento de sadismo, espicacam, furam, assam, esfaqueiam, surram, algemam e estrangulam os corpos nus dos condenados & danagao. Nao admira que todos temessem 0 dia do Jufzo Final. 15

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