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eS eee In: Cultura de Massa no Século XX: Neurose Edgar Morin 9 ed.Rio de Janeiro: Forense Universitaria,1997 2 A Indistria Cultural As inveng6es técnicas foram necessdrias para que a cultura industrial se tornasse possivel: o cinematdgrafo e 9 telégrafo sem fio, principalmente, Essas técnicas foram utilizadas com frequente surpresa de seus inventores: 0 cinematdgrafo, aparelho destinado a registrar 0 movimen- to, foi absorvido pelo espetaculo, 0 sonho e o lazer; 0 TSF, primeiramente de uso utilitario, foi por sua vez absorvido pelo jogo, a mtisica e o divertimento, O vento que assim as afrasta em diregio A cultura é © vento do iuero capitalista. E para e pelo iuero que se desenvolvem as novas artes técnicas. Nao ha duvida de que, sem o impulso prodigioso do espirito capitalista, essas invengoes niio terlam conhecido um desenvolvimento tio radical e macigamente orientado. Contudo, uma vez dado esse im- ‘pulso, 0 movimento ultrapassa o capitalismo propriamen- te dito: nos comegos do Estacio Sovietico, Lenine ¢ Trotsky reconheceram a importancia social do cinema. A industria cultural se desenvolve em todos 0s regimes, tanto no qua- dro do Estado quanto no da iniciativa privada, Dois sistemas Nos sistemas ditos socialistas, o Estado 6 senhor abso- luto, censor, diretor, produtor. A ideologia do Estado pode, portanto, desempenhar um papel capital. No entanto, mesmo nos Estados Unidos, a iniciativa privada nunca fica inteiramente entregue 4’ sua propria evolugio: 0 Estado €, pelo menos, policia, Do Estado-soberano cultural ao Estado-policia ha uma gama de situagées intermedidrias, Na Franga, por 22 VUNY Tankot Tower Cormumiceccs exemplo, o Estado s6 interfere na imprensa para dar auto- rizagéo prévia, mas tem sob sua protepio a agéncia nacio- nal de informagéo (AF'P.); no cinema, ele autoriza e pro!- ‘be; subvenciona em parte a industria do filme, controls uma sociedade de produgio; no rédio, ocupa um monopd- io de direito, mas tolera a concorréncia eficaz de emisso- ras periféricas (Luxemburgo, Europa n.° 1, Monte Carlo, Andorra); na televisio, esforga-se por manter seu mono- Os contetidos culturais diferem mais ou menos radical- mente segundo o tipo de interveneio do Estado — negativo (censura, controle) ou positivo (orientagéo, domestieacao, polltizacéio) — segundo o cardter liberal ou autoritério da. intervengéo, segundo 0 tipo de Estado interveniente. Nao levando em conta essas varldvels, pode-se dizer que se hi igualmente a preocupagio de atingir o maior pi- iico possivel.no sistema privado (busca do méamo lu- cro) e no sistema do Estado (Interesse politico e ideols- gico), o sistema privado quer, antes de tudo, agradar a0 consumidor. Ele faré tudo para recrear, divertir, dentro dos limites da censura. O sistema de Estado quer conven- cer, educar: por um lado, tende a propagar uma ideologia que pode aborrecer ou irtitar, por outro lado, nao ¢ esti- mulado pelo lucro e pode propor valores de “alta cultura” (palestras clentificas, musica erudita, obras cldssicas). O sistema privado 6 vivo, porque divertido. Quer adaptar sua cultura ao publico, O sistema de Estado 6 afetado, for- ‘ado. Quer adaptar o pubblico a sua cultura. # a alternativa, entre a velha governanta deserotizada — Anasticia — ¢ a pin-up que entreabre 0s Idbios. Sendo preciso colocar o problema em termos norma- tivos, ndo existe, a meu ver, escolha a fazer entre o sis- tema de Estado’e o sistema privado, mas a necessidade do instituir uma nova combinagao. Enquanto isso, 6 na concorréncia, no selo de uma mesma nagio, entre sistema privado e sistema de Estado (para 0 rédio, a televisio e 0 cinema) que os aspectos mais inquie:antes de um e de outro tém as melhores opor- tunidades de se neutratizarem, e que seus aspectos mais interessantes (investimento cultural no sistema de Estado, consumo cultural imediato no sistema privado) podem Ae /50 43 ere dosenvolver-se, Isso, bem entendido, colocado abstrata- mente. ‘Nao examinarei neste ensaio 0 problems dos apéndices culturais da politica de Estado, nem o sistema cultural dito “socialista”, ainda que, com excegao feita & China, exista em seu seio penetragao de elementos da cultura de massa & americana, Q objeto de meu estudo sio os pro- cessos culturais que se desenvolveram fora da esfera de orientagso estatal (religiosa ou pedagdgica) sob o impulso primeiro do capitalismo privado e que podem, de resto, se difundir com o tempo até nos sistemas culturais esta- tals, Para evitar qualquer confusao, empregarei o termo de cultura industrial para designar os caracteres comuns a todos os sistemas, privados ou de Estado, de Oeste ¢ de Leste, reservando 0 termo de cultura de massa para a cultura industrial dominante no Oeste. Produgéo-Criagéo. © modelo burocratico-industrial Em um e em outro caso, por mais diferentes que sejam os contetidos culturais, hd concentragéo da indus- tria cultural. A imprensa, 0 rédio, a televiséo, 0 cinema so indtis trias ligeiras pelo aparelhamento produtor, sao ultraligel- ras pela mercadoria produzida: esta fica gravada sobre a folha do jornal, sobre a pelicula cinematogréfica, voa sobre ‘as ondas e, no momento do consumo, torna-se impalpdvel, uma vez que esse consumo € psiquico. Entretanto, essa industria ultraligeira esté organizada segundo 0 modelo da indtistria de maior. concentracao técnica e econdmics. No quadro privado, alguns grandes grupos de imprensa, ‘algumas grandes cadeias de radio e televisio, algumas so- ciedades cinematogrdficas concentram em seu poder 0 aparelhamento (rotativas, esttidios) ¢ dominam as comu- nicagées de massa. No quadro publico, 6 0 Estado que assegura a concentragao. ‘A essa concentragio técnica corresponde uma concen- tragfio burocritica, Um Jornal, uma estagio de radia e de televisio sio burocraticamente organizados. A organiza 24 fo burocrdtica filtra a idéia criadora, submete-a a exame antes que ela chegue as mios daquele que decide — 0 pro- dutor, 0 redator-chefe. Este decide em fungio de conside- sages andnimas: a rentabilidade eventual do assunto pro- posto (iniciativa privada), sua oportunidade politica (Es- tado), em seguida remete ‘0 projeto para as mios de té nicos ‘que o submetem a suas préprias manipulag6es, Em um e outro sistema, o “poder cultural”, aquele do autor da cangio, do artigo, do projeto de filme, da idéia radio- fonica se encontra imprensado entre o poder burocratico e 0 poder técnico, A concentragéo téenico-burocrética pesa_universal- mente sobre a produgdo cultural de massa. Donde a ten- déncia b despersonalizacao da criagio, & predominancia da ‘organizagio racional de produgao (técnica, comercial, po- Mitica) sobre a invengio, & desintegracio do poder cultural. No entanto, essa tendéncia exigida pelo sistema indus. trial se choca com uma exigéneia radicalmente contréria, nascida da naturesa propria do consumo cultural, que sempre reclama um produto individualizado, e sempre novo, ‘A industria do detergente produz sempre o mesmo p6, Umitando-se a variar as erabalagens de tempos em tempos. ‘A indiistria automobilistica, sé pode individualizar as sé- ries anitais por renovagGes técnicas ou de formas, enquanto 5 unidades so idénticas umas &s outras, com apenas ‘algumas diferencas-padréo de cor e de enfeites. No entan- to, 4 indvistria-cultural precisa de unidades necessaria- mente individualizadas. Um filme pode ser concebido em ‘fungio de algumas receitas-padrao (intriga amorosa, happy end) mas deve ter sua personalidade, sua originalidade, sua unicidade. Do mesmo modo, um programa de radio, ‘uma cangéo. Por outro lado, a informagao, a grande im- prensa pescam cada dis, 0 novo, o contingente, o “acon- tecimento”, isto 6, 0 individual. Fazem 0 acontecimento assar nos seus moldes para restitui-lo em sua unicidade. A industria cultural deve, pois, superar constantemen= te uma contradicao fundamental entre suas estruturas bu- rocratizadas-padronizadas ¢ originalidade (Individuali- dade e novidade) do produto que ela deve fornecer. Seu ‘proprio funcionamento se operaré a partir desses dois pa- 26 res antitéticos: buroeracia-inveng&o, padréo-individualt- dade# Esse paradoxo é de tal ordem que se pode perguntar de que modo ¢ possivel uma organizacao burocrético-in- dustrial da cultura. Essa possibilidade reside, sem duvida, na propria estruttira do imagindrio. O imagindrio se es- trutura segundo arquétipos: existem figurinos-modelo do espirito humano que ordenam os sonhos e, particularmen- te, 08 sonhos racionalizados que sto os temas miticos ou romanescos, Regras, convengées, géneros artisticos impéem estruturas exteriores 2s obras, enquanto situagdes-tipo & personagens-tipo lhes fornecem as estruturas internas. A andlise estrutural nos mostra que se pode reduzir os mitos a estruturas mateméticas. Ora, toda estrutura cons- tante Pode se conciliar com a norma industrial, A indistria cultural persegue a demonstragao § sua maneira, padro- nizando os grandes temas romanescos, fazendo clichés dos arquétipos em esteredtipos. Praticamente, fabricam-se romances sentimentais em cadeia, a partir de certos modelos tornados conscientes e racionalizados. Também o coragho pode ser posto em conserva. ‘Com a condig&o, porém, de que os produtos resultantes da cadela sejam individualizados. ‘Eixistem téonicas-padrao de individualizagéo que con- sistem em modificar 0 conjunto dos diferentes elementos, do mesmo modo que se pode obter os mais variados obje- tos a partir de pecas-padrio de meccano, Em determinado momento precisa-se de mals, preci- sase da invencdo. 1 aqui que a producio nfo chega a abafar a crlag8o, que a burocracia € obrigada a procurar a invengio, que 0 padréo se detém para ser aperfeigoado pela originalidade. Donde esse principio fundamental: a criagio cultural nio pode ser totalmente integrada num sistema de produ- co industrial. Dai um certo nimero de conseqiiéncias: por um lado, contratendéncia & descentralizacéo e & con- ‘corréncia, por outro lado, tendéncia & autonomia relativa da criag&o no selo da produgéo. PereR BancHuin, Histéria Bcondwica do* Cinema, referénela nn Bibliogratia, pag. 155. 26 De qualquer maneira, hé, varlavel segundo as indtis- trias, um limite a concentragio absoluta. Se, por exemplo, ‘0 mesmo truste de sabo (Lever) é levado mio s6 a langar Concorrentemente sobre o mercado varias marcas de de- tergente (Onio, Rinso, Sunil, Tide, Persil), mas ainda a dotar cada marca de uma cetta autonomia, principalmen- te na organizago da publicidade, € porque existe, mesmo nesse nivel clementar, uma necessidade de variedade e in- dividualidade no consumo, e porque a méxima eficécia co- mercial se encontra nessa forma estranha, mas relativa~ mente descentralizadora de autoconcorréncia, ( limite & concentragio aparece bem mais nitidamen- te na industria cultural. Se hé concentragio na escala financeira 6 nao s6 concebivel, mas freqliente (por exem- plo, varios jornais concorrentes dependem, de fato, do mesmo oligopdlio, como France-Soir e Paris-Presse), & concentragéo em um s6 jornal, uma s6 emissora de radio, um s6 organismo de producdo cinematogrifica contradiz demais as necessidades de variedade e de individualidade, a flexibilidade minima de jogo que ¢ vitalmente necessé- ria & indiistria cultural. ‘© equilibrio concentragéo-descentralizagio, até mes mo cancentragio-concorréncla, se estabelece ¢ se modifica em fungéo de wmiltiplos fatores. Donde as estruturas de produgio hibridas e moventes. Na Franga, por exemplo, apés a crise de 1931, os trustes de cinema desmoronaram; fa produgio se fragmentou em pequenas firmas indepen: dentes; somente a distribuigéo flcou conrtolada em algu- mas grandes sociedades que, por efeito retrospective de reconcentracao rélativa, controlam freqilentemente @ pro- dugdo por avango sobre receltas. Nos Estados Unidos, apés @ concorréncia da televisio, as grandes sociedades ‘como a Fox se descentralizaram, detxando as responsabili- dades de individuagéo a produtores semi-mdependentes. ‘Em outras palavras, 0 sistema, cada vez que é forga- do a isso, ‘tende a voliar ao clima de concorréncia do capitalisme anterior. Do mesmo modo, cada vex que & foryadg a isso, s¢ deixa penetrar por antidotos contra o Durocratismo. No sistema de Estado, de uma outra ma. neira, mantém-se permanentemente ‘grandes resisténcias antiburocréticas: estas se ‘tornam virulentas desde que ‘uma brecha racha o sistema; em alguns casos, as possi- 27 pilidades criadoras dos autores podem ser malores do que no sistema capitalista, uma vez que as consideragdes & respeito de luero comercial so secundarias nesso tipo Ge sistema. Foi 0 caso do cinema polonés de 1955 a 1967. (O equilibrio — e 0 desequilfbrio — entre as forgas contrérias burocrdticas e antiburocriticas depende igual- mente do proprio produto. A imprensa de massa 6 mais Durocratizada do que no cinema, porque @ originalidade © a individualidade j4 Ihe séo pré-tabricadas pelo aconte- cimento, porque 0 ritmo de publicagdo é didrio ou semanal, @ porque a leitura de um jornal est ligada a fortes ha- ‘bitos. O filme deve, cada vez, encontrar 0 seu puiblico, e, acima de tudo, deve tentar, cada vez, uma sintese dificil do padriio e do original: 0 padrao se beneficia do suces- ‘0 passado e o original é a garantia do novo sucesso, mas (© jé comhecido corre o risco de fatigar enquanto 0 novo corre 0 risco de desagradar. 2 por isso que o cinema pro- cura a vedete gue une 0 arquétipo ao individual: a partir dai, compreende-se que & vedete seja o melhor anti-risco pecifica entre a lgica industrial-burocratica-monopolistica- centralizadora-padronizadora e a contraldgica individualis- ‘ta-inventiva-concorrencial-autonomista-inovadora. Essa c0- nnexio complexa pode ser alterada por qualquer modifica- ‘go que afete um s6 de seus aspectos. F uma relacdo de forcas submetidas a0 conjunto das forcas sociais as quais mediatizam a relagio entre 0 auto! ¢ seu publica; dessa ‘conexao de forgas depende, finalmente, a riqueza artistica e humana da obra produzida. Essa, conexio crucial se opera segundo equilfbrios ¢ esequilibrios. A contradigao invengio-padronizagio é a contradigéo din&mica da cultura de massa, © seu meca- nismo de adaptacio ao piiblico e de adaptagao do pubblico a ela, £ sua vitalidade. a existéncia dessa contradigao que permite compre- ender, por um lado, esse universo imenso estereotipado no filme, na cangio, no jornalismo, no rédio, e, por outro lado, essa invengdo perpéiua no cinema, na cangao, no jornalis- mo, no ridio, essa zona de criagdo e de talento no seio do conformismo padronizado. Pois a cultura industrializada 28 integra os Bressons e os Brassens, os Foulkners e os Welles, ora sufocando-os, ora desabrochando-0s, Em outras palavras, e industria cultural precisa de um elétrodo negative para funcionar positivamente. Esse elétrodo negativo vem a ser uma certa liberdade no selo de estruturas rigidas. Essa liberdade pode ser muito restrita, essa. berdade pode servir, na maioria das vezes, para dar acabamento-A producao-padrao, portanto, para servir & pa- dronizagdo; pode, algumas vezes, suscitar uma espécie de corrente de Humboldt, 2 margem ou no interior de grandes ‘Aguas (a corrente “negra” do filme americano de 1945 a. 1960, de Dmytrik, Kazan a Lazio Benedeck, Martin Ritt, Nicholas Ray, a corrente anarquista da cangio francesa com Brassens e Léo Ferré, ete.). Ela pode, algumas vezes, brilhar de maneira fulgurante: Kanal, Cinzas e Diamantes. Produgao e Criagao: @ criagdo-industriatizada © “criador®, isto 6, 0 autor, eriador da substancia e da forma de sua obra, emergiu tardiamente na historia da, cultura: 60 artista do século XIX. Ele se afirma’ precisa- mente no momento em que comeca a era industrial, Tende ‘a se desagregar com a introdugéo das técnicas industrials na cultura. A criacdo tende a se tornar producio. ‘As novas artes da cultura industrial ressuscltam, em certo sentido, 0 antigo coletivismo dé trabalho artistic, aquele das epopéias andnimas, dos construtores de cate- drais, dos ateliers de pintores.até Rafacl e Rembrandt. & surpreendente a analogia entre os herdis homeéricos ou os cavaleiros da Tavola Redonda cantadas por vagas sucessi- ‘vas de poetas esquecidos, e os herdis das epopéias de re- vistas em quadrinhos da imprensa de massa, ilustrados por ondas sucessivas de desenhistas que recaem no anon!- mato, Assim, por exemplo, John Carter, heréi de Edgar Rice Burroughs, inaugura sob forma romanesca 0 “western interplanetdrio”. Em 1984, 0 King Features Syndicate acusa o desenhista Alex Raymond de por em quadrinhos as aventuras dese herdi que se transforma em Flash Gor- don. Depois da morte acidental de Alex Raymond, Austin ‘Briggs o sucede (1942-1949). Este ultimo & substitiido por 29 ‘Mare Raboy e Dan Barry... Do mesmo modo o destino artigos de jornais devem comportar um determinado nti- ‘de Tarzan passa de mo em mio, Também assim, na Fran- mero de sinais fixando anteclpadamente suss dimensées; 2, 08 Pieds-Nickelés, feltos por diversos desenhistas, de- 0 programas de rédio sio cronometrados. Na imprensa, & pols da morte de Forton, atualmente o sio por Pellos. O padronizagio do estilo se di no rewriting. Os grandes te- novo coletivismo, porém, nfo fez nada mais que se recon mas do imagindrio (romances, filmes) sio, eles mesmos. cliiar com as formas primitivas da arte. Pela primeira vez fem certo sentido, arquétipos e esterestipos constituidos em na histéria, € a diviséo industrial do trabalho que faz padriio. Nesse sentido, segundo as palavras de Wright Mills surgir a unidade da criagdo artistica, como a manufatura em White, Collar, “a férmula substitul a forma”. faz surgir 0 trabalho artesanel. A divisio do trabalho, porém, nao é, de modo nenhum, A grande arte mével, arte industrial tipica, o cinema, incompativel com a individualizagéo da obra: ela j4 pro- institui uma divisio de trabalho rigorosa, andloga aquela, duziu sues obras-primas no cinema, se bem que, efetiva- ‘que se passa numa f4brica, desde a entrada da matéria mente, as condigées ideais da criagdo sejam aquelas em ruta até a safda do produto scabado; a matéria-prima do que 0 criador possa assumir, ao mesmo tempo, as diversas filme 6 0 script ou romance que deve ser adaptado; a ca- fungdes industrialmente separadas (a idéia, 0 conério, & deia comeca com o8 adsptadares, os cenaristas, os dialo- realizagdo e a montagem). A padronizagio em si mesmA gistas, as vezes até especialistas em gag ou em human néo ocasiona, necessariamente, a desindividualizagio; ela touch, depois o realizador intervém a0 mesmo tempo que pode ser 0 equivalente industrial das “regras” clissicas © decorador, o operador, o engenheiro de som, e, final- da arte, como as trés unidades que impunham as formas jente, o muisico e 0 montador dio acabamento & obra co- @ 0s temas. Os constrangimentos objetives ou sufocam, ou, letiva. verdade que o realizador aparece como autor do ao contrério, aumentam a obra de arte. O. western ndo é filme, mas este é o produto de uma ctiacdo concebida se- mais rigido que a tragédia cldssica e seus temas candnicos gundo as normas especializadas de produgéo. permitem as variagoes, mais Tequintadas, da Cavaigaaa ‘A divisfio do trabalho se estende, inegavelmente, aos Fantdstica a Broneo, High Noon, Shane, Johnny Guiter, demais setores da criag&o industrial: a produgio televisada Rio Bravo. obedece fis mesmas regras, ainda que em grau menor do Portanto, nem a divisio do trabalho nem a padroni- que a produgio cinematagrdtica. Jé a produgio radiof6- zagéo so, em si, obstdculos & individualizagéo da obra, Na realldade, elas tendem a sufocd-la e aumentd la go mesmo tempo: quanto mais a industria cultural se desenvolve, mais ela apela para a individuacdo, mas tende também a adronizar essa individuagio. Nao foi em seus comegos de artesanato que Hollywood fez apelo aos escritores de talento para seus roteirbs; € no momento do apogeu do sistema industrial que a usina de sonhos prende Faulkner Por contrato ou compra os direitos de Hemingway. Esse impulso em diregio ao grande escritor que traz 6 maximo de individuacdo ¢ ao mesmo tempo contraditério, porque, apenas contratado, Faulkner se viu, salvo uma excecio, na impossibilldade de eserever censrios faulknerianos ¢ se nica obedece de modo diverso, segundo as emlss6es, a essa diviséo de trabalho, Na imprensa periddica e, as vezes, didria, o trabalho redacional sobre a informagio bruta (despachos de agéncia, comunicagées de correspondentes), a colocagio em linguagem que constitti o rewriting, teste- munham a planificagio da diviséo racional do trabalho em detrimento do antigo jornalismo. Essa divisio de trabalho tornado coletivo é um aspecto geral da racionalizagio que chama o sistema industrial, Tacionalizagdo que comega na fabricagéo dos produtos, se segue nos planejamentos de produgéo, de distribuicao, Umitou a fazer floreios sobre temas padrées. = termina nos estudos do mercado cultural. Em-outras palavras, a dialética ee! ‘A essa racionalizagéo corresponde a padrontzacdo: a padronizacéo impSe ao produto cultural verdadeiros mol- ae des espago-temporais: o filme deve ter, aproximadamente, tuaco tende freqlientemente a se amortecer em uma es- 2.500m de pelicula, isto é, cobrir uma hora e mela; os Bédle Fe 30 1 © smpuilso no sentido da iridividuagao nio se traduz somente pelo apelo ao elétrodo negativo (0 “oriador”), ole se efetua pelo refigio em superindividualidades, as ve- detes. A presenca de uma vedete superindividualiza o filme. ‘A imprensa consome e cria sem cesar vedetes calcades ‘sobre 0 modelo de estrelas de cinema: as Elizabeth, Mar- garet, Bobet, Coppi, Hergog, Bombard, Rubirosa. As ve- detes’sio personalidades estruturadas (padronizadas) ¢ in- dividualizadas, a0 mesmo tempo, e, assim, seu hieratismo resolve, da melhor maneira, a contradicéo fundamental. Isto pode ser um dos meios essenciais da vedetizagio (so- ‘bre o qual ndo insisti suficlenteienté em meu livro a res- peito das estrelas). Entre esses dois pélos de individualizagéo, a vedete eo autor (cenarista ou realizador de filme, de emissio, redator do artigo), funciona uma dialética na maioria das ‘vezes repulsiva. Quanto mais aumenta a individualidade da vedete, mais diminui a do autor e vice-versa, Na maioria das vezes a vedete tem precedéncia sobre o autor. Diz-se “um filme de Gabin”. A individualldade do autor é esma- godo pela da vedete, Esta individualidade se afirma num filme sem vedetes. ‘Podemos abordar aqui o problema do autor, que a in- iistria cultural utiliza @ engana ao mesmo tempo em sua triplice qualidade de arfista, de intelectual e de criador. ‘A indiistria cultural atrai e prende por salarios muito altos os jornelistas e escritores de talento: ela, porém, nio faz frutificar senfio a parte desse talento concilidvel com 8 padres. Constitui-se, portanto, no seio do mundo da cultura industrial, uma intetigentsia criadora, sobre a ‘qual pesam grosselramente a divisio do trabalho e a buro- cracia e cujas possibilidades so subdesenvolvidas. O copy- desk, anonimamente, dé forma hs aventuras de Margaret no France-Dimanche. Conta 0 17 de Outubro como um suspense em que Lenine seria o teroelro homem. O rotel- rista constréi descuidadamente roteiros que ele despreza. ‘Um Dassin se submete & Lollobrigida para rodar La.Loi, um Lazlo Benedeck, para escapar ao silencio, aceita a ni- nharia convencional de um script. E assim vemos trequien- temente autores que dizem: “Isso néo é meu filme, fut obrigado a aceitar esta vedete, — tive que aceitar este happy end, — fui forgado a fazer este artigo mas nao o 32 assinarel, — € realmente preciso que eu diga isso neste programa de rédio”. No seio da indtistria cultural se mul- fiplica o autor nfo apenas envergonhado de sua obra, mas também negando que sua obra soja obra sua, O autor nao pode mais se identificar com sua obra, Entre ambos criou-se uma extraordindria repulsa. Entio desaparece a maior satisfagio do artista, que a de se identificar com ‘sua obra, isto 6, de se justificar através de sua obra, de fundar nela sua propria transcendénela, ¥ um fenémeno de alienagio nfo sem anstogia com © do operrio industrial, mas em condigdes subjetivas e objetivas particulares, e com essa diferenga essencial: 0 autor é excessivamente bem pago. © trabalho mais desprezado pelo autor 6, freqiiente- mente, 0 que lhe dé melhor remuneragdo ¢ dessa desmora- isante correlagdo nascem o cinismo, a agressividade ou ‘a mé consciéneia que se misturam & insatisfagio profunda nascida da frustragio artistica ou intelectual. B 0 que ex- plica que, negada pelo sistema, uma fragio dessa inteli- gentsia criadora negue, por sua vez, o sistema, ¢ cologue hho que ela oré seja 0 anti-sistema, o de Moscou, suas espe- rangas de destorra e de liberdade. © 0 que explica que um surdo progressismo, um virulento anticapitalismo se te- ham desenvolvido junto aos rotelristas mais bem pagos do mundo, aqueles de Hollywood (a “caca as bruxas” de ‘McCarthy revelou que a Cidade dos Sonhos padronizada estava subterraneamente minada pela mais radical con- testagio. Do mesmo modo, na imprensa francesa, no cine- mo francés, uma parte da inteligentsia acorrentada e bem Temunerada nutria sua contestagio no progressismo) . Contudo, sob a prdpria pressio que ele sofre, 0 autor espreme um suco que pode irrigar a obra. Além disso, @ Itberdade de jogo entre padronizagio e individualizacao Ihe permite is vezes, na medida de seus sucessos, ditar ‘suas condigdes. A relagdo padronizagio-invengéo nunca é estdvel nem parada, ela se modifica a cada obra nova, Segundo relag6es de forcas singulares ¢ detalhadas. Assim, & nouvelle vague cinematogréfica provocou um recuo real da padronizacéo, embora nao se saiba até que ponto & Por quanto tempo. Enfim, existe uma zona marginal ¢ uma zona central da industria cultural, Os autores podem expressar-se em. 3 filmes marginals, feitos com um minimo de despesas nos programas periférloos do radio e de televisdo, nos jornais de publico Iimitado. Inversamente, a pacronizagao restrin- ge a parte da invengao (levando-se em conta aigumas gran- des excegdes) no setor fechado da industria cuiturat, setor ultraconcentrado, o setor onde funciona a tendencia ao consumo mdximo, 34

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