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TUPIS, TAPUIAS E HISTORIADORES Estudos de Historia Indigena e do Indigenismo John M. Monteiro Departamento de Antropologia 1ECH-Unicamp _ Tese Apresentada para o Concurso de Livre Doeéncia Area de Etnologia, Subarea Historia Indigena e do Indigenismo Disciplinas HZ762 e HS119 Campinas, agosto de 2001 TMUNICAMP M7é4t-:* 1150053682/IFCH Intreducao Capitulo Capitulo 2 Capitulo 3 Capitulo 4 Capitulo 5 Capitulo 6 Capitulo 7 Capitulo 8 Capitulo 9 Capitulo 10 Referéncias Citada UNICAMP SUMARIO Redescobrindo os indios da América Portuguesa: Incursies pela Histéria Iudigena e do Indigenismo... As *Castas de Gentio” na América Portuguesa Quinhentista: Unidade, Diversidade e a Invengéo dos Indios no Brasil... ‘A Lingua Mais Usada na Costa do Bra Gramiticas, Vocabulérios e Catecismos em Linguas Nativas na América Portuguesa. Entre o Etnocidio ¢ a Etnogénes Hdentidades Indigenas Coloniais Bartolomeu Fernandes de Faria ¢ seus indios: Sal, Justica Social e Autoridade Régia Paulistas e Indios no Cédice Costa Matoso .. A Meméria das Aldeias de Sio Paul: Indios, Paulistas ¢ Portugueses em Arouche e Machado de Oliveira Entre o Gabinete ¢ 0 Sertao: Projetos Ctvilicatérios, Iuctusio e Exclusiv dos indios no Brasil Imperial As “Ragas” Indigenas no Pensamento Brasileiro do Império.. Tupis, Tapuias ¢ a Historia de Sao Paul Revisitando a Velha Questéo Guaiané... Ragas de Gigantes: | Mesticagem e Mitografia no Brasit e na India Portuguesa .. BWlioieca - PCH INTRODUCAO Redescobrindo os fndios da América Portuguesa Incursées pela Historia Indigena e do Indigenismo HA QUASE TRINTA ANOS, A HISTORIADORA NORTE-AMERICANA Karen Spalding chamou a atengio dos historiadores para um rico fildo praticamente inexplorado pelos estudiosos da ‘América espanhol2: 0 “indio colonial” (Spalding, 1972), Longe da figura obstinadamente conservadora, presa as amarras da tradi¢@o milenar, ¢ mais longe ainda do mero sobrevivente de uma cultura destrogada e empobrecida pela transformagao pés-conquista, este novo “indio colonial” passava a desempenhar um papel ativo e criativo diante dos desafios postos pelo avango dos espanhéis, Mesmo possuindo um horizonte cosmolégico arraigado de longa data, as comunidades nativas e suas liderangas politicas e espirituais dialogavam abertamente com os novos tempos, seja para assimilar ou para cejeitar algumas das suas caracteristicas Com seu artigo, Spalding idemtiticou um processo ja em curso na historiografia latino-americana ¢ latino-americanista da época, envolvendo 0 abrupto deslocamento dos holofotes dos colonizadores para os colonizados, De fato, segundo nos passos das obras pioneiras de Miguel Leon-Portilla © de Charles Gibson, toda uma geragdo buscou dimensionar, documentar e interpretar a experiéncia das populagdes nativas sob 0 dominio espanhol. Esta nova bibliografia, por seu turno, apoiava-se numa ampla tradigdo de estudos juridicos e institucionais, que tratava de forma densa ¢ sofisticada temas como ‘6 debate em tomo dos direitos dos espanhdis sobre terras, trabalhadores e almas indigenas, as formas especificas de exploragdo da mao-de-obra nativa e, vinculado a ‘esses problemas, a politica e legislagdo indigenistas de modo mais geral ' ' As obras pionsiras as quais me refiro so, obviamente, Miguet Leon-Portilla (1961) ¢ Charles Gibson (1964). Quanto 4 bibliografia sobre politica ¢ legislagao, destacam-se dois autores fundamentais: Silvio Zavala e Lewis Hanke Redescobrindo os Indios da América Portuguesa 2 Outra caracteristica marcante dz nova historiografia voltada para a anélise da experiéneia indigena na América espanhola reside na exploragio de testemunhos nativos, abrangendo desde as crdnicas e as genealogias escritas por indios ¢ mestigos aos relatos mais prosaicos que figuram em registros territoriais, em documentos dos cabildos das comunidades indigenas, em testamentos, em processos da Inquisigao, em investigayoes criminais ¢ em litigios de todos os tipos, entre tantos outros. Uma quantidade impressionante de manuscritos em linguas nativas — nahuat!, quiché, quichua, aimaré mesmo guarani — permitiu aos historiadores atribufrem uma voz propria 20s indios.” Para além da eserita, as representagdes pictéricas elaboradas por artistas indigenas também tém alimentado uma interpretago mais compreensiva das maneiras pelas quais diferentes populagdes indigenas vivenciaram a conquista e seus dramaticos desdobramento: Imagens Cristalizadas Os estudos sobre a América portuguesa apresentamt um contraste radical com esse quadro. A ausénoia quase total de fontes textais © iconogrdficas produzidas por escritores e artistas indios por si so impde uma séria restrigdo aos historiadores. No entanto, o maior obsticulo impedindo o ingresso mais pleno de atores indigenas no paleo da historiogratia brasileira parece residir na resisténcia dos historiadores ao tema, considerado, desde hi muito, como algada exclusiva dos antropstogos. De fato, 0 isolamento dos indios no pensamento brasileiro, embora ja anunciado pelos primeiros escritores coloniais, comegou a ser construido de maneira mais definitiva a partir da elaboragdo inicial de uma historiografia nacional, em meados do século XIX. Uma primeira afirmagao nesse sentido foi impressa ha cerea de 150 anos pelo Visconde de Porto Seguro, Francisco Adolfo de Vamhagen, que escreveu a primeira Historia Geral do Brasil a partir de uma ampla e pioneira investigagdo em documentos do periodo colonial. Ao refletir sobre os indios, ditow Vambagen: “de tais povos na valor e 05 limites dos testemunhos indigenas coloniais na América do Sul slo esmiugados em Frank Salomon (1999). + A bibliografia relevance & demasiadamente extensa e especifica para wm detalhamento aqui. Uma pene considerivel (hoje com uma defasegem de 10 anos) é arrolada em John Monteiro ¢ Francisco Moscoso (1990). Vale @ pena destacar, no entanto, duas obras que considero fundamentals para ilustrar estas tendéacias. Serye Gruzinski (1988) e Jemes Lockhart (1992). : Redescobrindo os Indios da América Portuguesa 3 infincia n&o ha historia: hd s6 etnografia” (Varnhagen, 1980 [1854], 1:30). Esta afirmado ecoava, sem divida, algumas visdes jé francamente em voga no Ocidente do século XIX, que desqualificavam os povos primitivos enquanto participantes de uma historia movida cada vez mais pelo avango da civilizagdo europtia ¢ os reduzia a meros objetos da ciéncia que, quando muito, podiam langar alguma luz sobre as origens da histéria da humanidade, como fosséis vivos de uma época muito remota, Varnhagen também tomava como ponto de partida a sugestiva, porém claramente pessimista, postura de Carl Friedrich Philippe von Martius que, poucos anos antes, havia vencido 0 concurso de “Como Escrever a Historia do Brasil’, patrocinado pelo recém-fundado Instituto Histérico © Geogrifico Brasileiro, Parcial as teorias sobre a decadéncia dos natives americanos, von Martius considerava os indios como populagdes que em breve deixariam de existir. © “atual indigena brasileiro”, segundo ele, “no € sento 0 residuo de uma muito antiga, posto que perdida historia” (Martius, 1982 [1845], 91-92). O pessimismo foi mais contundente num texto anterior, dé 1838, sobre “O Estado de Direito entre os ‘Autéctones dos Brasil”. Esereveu von Martius que “ndo ha divide: 0 americano esta prestes a desaparecer. Outros povos viverio quando aqueles infélizes do Novo Mundo jt dormirem 0 sono eterno” (Martius, 1982 {1838}. 70) Povos sem historia ¢ sem futuro; desta feita, instalava-se no bojo dos estudos praticamente fundadores da historia do pais, uma vertente pessimista com fortes desdobramentos na politica indigenista que se esbocava no Império, Cumpre lembrar, entretanto, que nio se tratava da dnica vertente, muito embora fosse tendéncia dominante. De fato, os indios foram objeto de um intenso debate que atravessou o século XIX, antepondo a postura de Vamhagen a uma vertente mais filantropico, inspireda sobretudo em José Bonificio, Se a tensio entre aqueles que promoviam a assimilagao os que patrocinavam a exclusio dos indios remetia aos conflites que brotaram enire agentes coloniais ja no século XVI, foi certamente aprofundada pelas mudangas institucionais introduzidas na década de 1840, com a implantagio das Diretorias Provinciais e com 0 apoio imperial a0 projeto missionario dos capuchinhos. Fosse nos elegantes recintos das academias e institutos ou no ambiente mais rude dos sertdes do Redescobrindo os Indios da América Portuguesa 4 Império, tomnaram-se cada vez mais dcidas as disputas entre partidarios da “catequese & civilizagd0” e os defensores do afastamento € mesmo exterminio dos indios.* Mesmo assim, parecem prevalecer entre os historiadores brasileiros ainda hoje duas nogées fundamentais que foram estabelecidas pelos pioneiros da historiografia nacional. A primeira diz respeito & exclusto dos indios enquanto legitimos atores historicos: so, antes, do dominio da antropologia, mesmo porque # grande maioria dos historiadores considera que ndo possui as ferramentas analiticas para se chegar nesses povos Agrafos que, portanto, se mostram pouco visiveis enquanto sujeitos histéricos. A segunda nogdo é mais problematica ainda, por tratar os povos indigenas como populagdes em vias de desaparecimento, Alids, & uma abordagem minimamente compreensivel, diante do triste registro de guerras, epidemias, massacres ¢ assassinatos atinginda populacdes nativas ao longo dos ultimos 500 anos, Por estes motives, pelo menos até 2 década de 1980, a histéria dos indios no 1. Dois bons exemplos deste tipo Brasil resumia-se basicamente erdnica de sua extingd de abordagem, misturando um tom de dendincia com a pesquisa em fontes histéricas, s40 6s livros de John Hemming (sobretudo Red Gold, de 1978, que permanece a imica obra que busca apresentar de modo sistematico a experigncia de todas as sociedades indigenas da América portuguesa), ¢ de Carlos Moreira Neto (/nctios da Amazénia: de maioria a minoria). Vitimas da terrivel onda de destruigdo desencadcada pela expanso européia, sociedades antes vigorosas ¢ independentes foram radicalmente diminuidas ou simplesmente deixaram de existir ¢ seus rastros foram apagados. Um dos perigos destas abordagens € que investem numa imagem cristalizada — fossilizada, ditiam outros - dos indios, seja como habitantes de um passado longinquo ou de uma floresta distante. & esfera da sociabilidade nativa é aquela que esta totalmente externa a esfera colonial, em parte porque o recurso da “projegio etnografica” frequentemente isola a sociedade indigena no tempo ¢ no espago, mas também porque nas percepctes marcadas pela perspectiva de aculturagio, 0s indios assimilados ou + Ao comentar esta tensio persistente no pensamento brasileiro sobre a tematics indigena, Luis Casiro Faria (1995, 68-70), aponta para o interessante paralelo entre a célebre polémica Varnhagen-Jo20 Francisco Lisboa © os deseatendimentos posteriores entre proponentes do racismo cientifico © outras correntes, sobretudo a positivista. O contexto mais global destes debates e suas implicagdes para a Formulagio da politica e da legislagao indigenistas encontre-se esbogado em Manuela Carneiro da Cunha (19922, 133-154), Redescobrindo os indios da América Portuguesa 5 integrados sociedade que os envolve seriam, de alguma maneira, “menos” indios. Trata- se de um proceso paralelo & arqueologia brasileira que, por muitos anos, exaltava a antiga “Wadigao tupi-guarani”, porém desprezava a cerémica colonial como algo ‘empobrecide técnica e esteticamente pela mistura (Morales, 2000). De certo, a poderosa imagem dos indios como etemos prisioneiros de formagdes isoladas ¢ primitivas tem dificultado a compreenso dos mutiplos processos de transformagio émica que ajudatiam a explicar uma parte consideravel da historia social e cultural do pais. Novos Rumos Fste quadro vem mudando gragas ao esforgo crescente — sobretudo de antropélogos porém também de alguns historiadores, arquedlogos e linguistas — que tem surgido em anos recentes em elaborar aquilo que podemos chamar de uma “nova hist indigena”, Deve-se observar, de imediato, que 0 tema ndo € nada novo nem para a historiografia, que desde o século XIX enfocou o indio Tupi como matriz da nacionalidade, nem para a etnologia indigena. que construiu uma parte importante de sew edificio nos alicerces colocados por Alfred Métraux € por Florestan Fernandes, que se valeram das fontes escritas nos séculos XVI e XVII para elaborarem sofisticados modelos para as sociedades tupi-guaranis.° Mas as questdes postuladas a partir do final dos anos 1970 introduziram duas inovagdes importantes, uma prética ¢ outra, teérica. Surgiv, de fato, uma nova vertente de estudos que buscava unir as preocupagdes tedricas referentes & relagdo historia/antropologia com as demandas cada vez mais militantes de um emergente movimento indigena, que encontrava apoio em largos setores progressistas que renasciam numa frente ampla que encontrava cada vez mais espago frente a uma ditadura que lentamente se desmaterializava. ‘A reconfiguragao da nogio dos direitos indigenas enquanto direitos Aistdricoy ~ sobretudo territoriais - estimulou importantes estudos que buscavam nos documentos coloniais os fundamentos histéricos e juridicos das demandas atuais dos indios ou, pelo menos, dos seus defensores. De fato, figuram com certa proeminéncia entre os primeiros exemplos deste renovado interesse pela historia dos indios alguns dossiés e laudos 5 Uma breve discussto das obras antropoliyicas encontra-se em Viveiros de Castro (1984-85) Redescobrindo os Indios da América Portuguesa 6 antropologicos que buscavam dar substncia as reivindicagdes de grupos tais como os Potiguara da Baia da Tmaigdo, os Xocd de Sergipe ¢ os Pataxé do sul da Bahia, entre outros. Neste sentido, o desenvolvimento de pesquisa nesta érea reproduzia um proceso similar desencadeado algumas décadas antes nos Estados Unidos, sobretudo a partir da promulgagao do indian Claims Act em 1946, quando muitos antropélogos comegaram a subsidiar reivindicagdes territoriais de grupos indigenas através de minuciosos levantamentos documentais (Faubion, 1993, 42-43). Cabe lembrar, ainda, que estes esforgos se desdobraram na fundagiio da revista Ethnohistory que, desde os anos 50, divuiga o lado académico dessa producio. Para varios antropélogos no Brasil, contuda, esta nova militincia politica do final dos anos 70 também proporcionou uma oportunidade para se repensar alguns pressupostes teoricos a respeito das sociedades indigenas. Marcada, de certo modo, pela divisdo entre uma tradigao americanista — na qual passou a predominar o estruturalismo sobretudo nos anos 70 — ¢ outra tradigdo, mais arraigada (desde os anos 50), voltada para ‘os estudos de contato interétnico®, a etnologia brasileira passava a integrar a seus repertérios as discussdes pos-estruturalistas de autores como Renato Rosaldo e Marshall Sahlins, entre outros, cujas abordagens davam um papel dindmico para a historia na discussdio das culturas, das identidades e das politicas indigenas.” Ao mesmo tempo, redescobria-se autores mais antizos, como Jan Vansina (1965), cujo uso de narrativas orais como fontes historicas mostrava-se um eaminho rico para se chegar as perspectivas nativas sobre o passado, Neste sentido, a utilizagao inovadora de documentos historicos & de teoria social, enriquecida por novas Jeituras de mito, ritual e narrativas orais como formas altemativas de discurso histérico, apresentava um roteiro bastante atraente para exploragdes em historias nativas, colocadas de forma instigante no plural. Ainda estamos cothendo 0s frutos deste esforgo coletivo, porém & possivel aferir alguns de seus pontos © Esta divisto, nem sempre muito clara, vem sendo explorada para demarcar posi¢des antag6nicas 1 anttopologia indigena contemporinea. Veja-se Oliveira (1998) € Viveiros de Castro (1995). 7 As obras mais significativas foram Rosaldo (1980) e Sahlins (1980 ¢ 1985) Uma coletinea muito interessante com exploragSes neste sentido com referéncia a sociedades sul-americanas € Jonathan Hil (1988). Redescobrindo os indios da América Portuguesa 7 mais fortes e algumas de suas limitagdes no nimero cada vez maior de publicagdes sobre a historia indigena.* A geragio de historiadores que vivenciou este mesmo periodo de mobilizagio politica de reorientagdo tedrica continuou a deixar de lado a temética indigena, talvez mais por resisténcia ao tema do que propriamente por falta de novos elementos, A principal tendéncia da historiografia brasileira na década de 1980 foi o progressivo abandono de marcos teéricos generalizantes, sobretudo de inspiragdo marxista, ¢ a crescente profissionatizagio do quadro de historiadores nas universidades, que fundamentavam seus trabalhos cada vez mais numa base mais sélida de pesquisa ‘empirica, Os estudos cotoniais, de tradigao antiga, tiveram uma espécie de renascimento neste periodo, com a exploragdo de arquivos antes inexplorados (como dos cartorios ¢ das dioceses) € com um nove aproveitamento dos ricos acervos portugueses, com certo destaque para os processos do Santo Oficio. O resultado foi uma verdadeira explosio de estudos sobre 0s escravos e a escravidio, sobre os cristios novos ¢ a Inquisigdo, sobre as mulheres, sobre 05 pobres, sobre os “desclassificados”, enfim sobre um vasto elenco de novas personagens que passaram a desfilar no palco da histéria brasileira, junto com novas perspectivas sobre a histéria social, demogréfica, econémica ¢ cultural. Mas se alguns esquecidos da histéria comegaram a saltar do siléneio dos arquivos para uma vida mais agitada nas novas monografias, os indios permaneceram basicamente esquecidos pelos historiadores, O indios entre a Histéria e a Antropologia Os estudos que compdem 0 corpo desta obra exploram uma ampla gama de temas ligados A historia dos indios no Brasil. Para comegar a discussio em torno dessa histéria, © primeiro texto volta para os inicios da colonizagio ou, pelo menos, quase ao inicio. Dividido em duas partes, © estudo aborda a obra de Gabriel Soares de Sousa em dois tempos, primciro no contexto da época em que foi eserita (final do século XVI) e, © A referéncia mais importante continua sendo Camiro da Cunha (1992), recentemente republicado con: algumas pequenas revis6es. Tembém hé de se destacar outras publicagées do Nucleo de Historia Indigena e do Indigenismo que apresentam discussdes muito ricas dentro desca vertente. entre ‘outros, Viveiros de Castro ¢ Cameiro da Cunka (1993) e Gallois (1993), este timo explorando diferentes _géneros narrativos dos indios Waidpi do Amapa de maueira muito inavadora Redescobrindo os Indios da América Portuguesa 8 segundo, no contexto historiogréfico no qual apareceu a sua edigdo definitiva (meados do século XIX). Introduzido neste capitulo, um primeiro grande tema que perpassa o conjunto de estudos diz respeito a defasagem ¢ aos deslizamentos temporais que marcam as maneiras pelas quais 0 passado indigena tem sido pensado ao longo dos tltimos cinco séculos. O estudo sobre Gabriel Soares sugere que 0 panorama etnografico do Brasil no seu marco zero é produco de uma dupla refragdo: a defasagem entre 0 periodo do descobrimento e a produgdo de conhecimentos sisteméticos, por um lado e, por ouiro, uma segunda defasagem entre a produco de obras coloniais € sua efetiva publicagio ¢ circulagao, eventos muitas vezes separados por séculos Este movimento envolvendo a circulagao e a reapropriagdo de idéias e imagens em momentos muito distintos também marcou a trajetiria de um padro bipolar que condicionou as maneiras de perceber e interpretar passado indigena, constituindo um segundo grande tema que esta no centro de sarios capitulos. Inscrito inicialmente no bindmio TapwiaTupi, este padriio foi reciclado em virias conjunturas distintas, reaparecendo em outros pares de oposigiio, tais como bravio/manso, barbaro‘policiado ou selvagemeivilizado. Mas essas petvepches © interpretagdes ndo ficaram apenas nas divagagdes historiogrificas ou nos debates antropologicos em tomo da unidade € diversidade dos indios, pois tiveram um impacto profundo sobre a formulagdo de politicas que afetaram diretamente diferentes populagdes indigenas. Mais do que isso, também foram recicladas reapropriadas entre alguns segmentos indigenas, 0 que torna esta historia mais complicada ainda, © Capitulo 2, ao abordar as obras jesuiticas em linguas natives, aprofunda a nogao de que a construgio de modelos para compreender 0 universo indigena esta intrinsecamente ligada aos processos ¢ as experincias coloniais, bem como a interpretagdo desses processos ¢ experiéncias no periodo pés-colonial, O terceiro capitulo também avanga nessa direcdo, fornecendo alguns subsidios para caracterizar melhor os indios sob © dominio colonial, Este € 0 capitulo que mais se aproxima A “historia indigena” no sentido mais estrito da expresso, ao problematizar a produgdo das identidades nas manifestagles ¢ priticas sociais registradas na documentago colonial Mas o passado indigena também alimentou, de modo muito particular, a formagao de outras identidades coloniais ¢ as maneiras pelas quais se reconstituiu essas identidades Redescobrindo os Indios da América Portuguesa 9 ‘em tempos posteriores. Os Capitulos 4, 5 e 6 exploram a construgio de uma identidade paulista em trés momentos diferentes. © estudo sobre o famoso régulo Bartolomeu Fernandes de Faria e seus capangas indigenas e mestigos permite adentrar 0 universo violento e ambiguo dos paulistas numa conjuntura de mudangas marcantes, diante de uma escravidao indigena que desmaterializava e de uma autoridade extema que se mostrava cada vez mais proxima. Em relagdo aos indios, os paulistas demarcavam a sua identidade pela dominagSo caracteristica do mando senhorial. Paradoxalmente, recoriam a marcadores indigenas para estabelecer a distinglo entre eles e os colonos de outras reeides e, sobretudo, dos portugueses: isso se manifestava no apenas por meio do uso da lingua geral, como também nos conteido simbdlicos dos ataques & autoridade da coroa e dos assassinatos praticados e apurados numa longa investigago criminal. Ja 0 Capitulo 5 enfoca esta mesma época do inicio do século XVIII através das lentes da meméria, comentando a extraordindria “Colegio das Noticias dos Primeiras Descobrimentos das Minas na América”, compitada pelo ouvidor-intelectual Caetano da Costa Matoso em 1752. Nesse documento, varios povoadores antigos rememoram os velhos bons tempos nos quais os paulistas se aventuravam pelos series e fornecem preciosos indicios para a compreensio dos jogos de identidade que orm distanciavam, ora aproximavam os paulistas de suas origens indigenas. No Capitulo 6, estas questées sao recontextualizadas nistas de José Arouche de Toledo Rendon ¢ José Joaquim por meio das obras indi Machado de Oliveira que, em suas respectivas propostas voltadas para a definigio de novas ditetrizes para a politica indigenista, langaram méo de uma analise historica, Este sexto capitulo, que estabelece uma ponte entre a Coldnia eo Império; introduz um outro conjunto de questdes que marcam os capitulos subsequentes. A mais importante destas diz respeito 4 relagdo entre as interpretagdes histéricas que genharam fOlego no decorter do século XIX ¢ as politicas referentes aos indios cnsaiadas nas diversas provineias da nova nagdo. Se 0 Capitulo 6 enfoca particularmente a Provincia de Sto Paulo, 0 Capitulo 7 expande essa perspectiva para varios outros casos, com uma certa anfase nas provincias de Minas Gerais ¢ Santa Catarina, Nesse capitulo, busca-se compreender o vai-vem de idéias ¢ experiéncias entre o gabinete ~ referénoia tanto a0 gabinete ciemtifico quanto ao politico ~ ¢ o sertdo, com 0 intuito esclarecer como as discussdes em torno dos indios durante 0 império no sé dialogavam explicitamente com Redescobrindo os Indios «a América Portuguesa 10 as experiéncias coloniais como também informariam de maneira significativa a modema politica indigenista a ser implantada ja no século XX. A relagdo entre o sertdo e o gabinete também se faz presente nos capitulos 8 e 9, 36 que introduzindo, para além da historia © dos historiadores, a antropologia © os antropélogos. © Capitulo 8 & construido em tomo da Exposigfio Antropologica de 1882, em certo sentido marcada pelo forte contraste entre o Tupi histérico © 0 Tapuia contemporineo, papel esse representado exemplarmente pelos Botocudos. No Capitulo 9, is da este mesmo contraste € estudado para o caso particular de Sdo Paulo nos anos ini Repiblica. Ao reinvocar 0 velho debate sobre se os Guaianas de Piratininga eram Tupis ou Tapuias, 0 estudo busca mostrar 0 complexo jogo entre a construgio de uma mitografia paulista ~ na qual os Tupi ocuparam um papel central ~ © a destruigdo dos Kaingang nos sertées que se tranformavam rapidamente em cafezais ¢ nas terras ue valorizavam da noite para o dia com a implantago das estradas de “desocupadas” ferro titimo capitulo aprofunda a questio das mitografias, confrontando dois autores que elaboraram numerosas obras sobre as remotas origens coloniais de dois conjuntos de populagdo “eugénicos”. Escrevendo na fronteira entre a histéria ¢ a antropologia ~ decerto no a mesma fronteira que s¢ reexplora hoje em dia - Alfredo Ellis Jr. em Sao Paulo e Alberto Cartos Germano da Silva Correia em Goa construiram duas “ragas de gigantes” a partir da incorporagio ou nao de elementos indigenas. Se a parte sobre Alfredo Ellis fecha um ciclo de estudos sobre historia ¢ identidade indigenas ¢ pautistas, a incurstio pela histéria da india portuguesa marca um novo rumo nas minhas pesquisas, que pretendem recuperar um eto perdido na histéria da expansdo portuguesa, trazendo questdes que muito podem nos ensinar sobre 0 passado brasileiro. Escritos em momentos diferentes e para finalidades distintas, alguns dos capitulos foram publicados em revistas e coleténeas especializadas no pais ¢ no exterior. O Capitulo 1 foi publicado apenas em inglés, ao paso que os capitulos 3, 6, 7 ¢ 10 siio inéditos. Capitulo 2 fez parte de um catalogo de exposigio publicado em Portugal. Os demais apareceram em revistas brasileiras, conforme se detalha no inicio de cada um deles. Todos eles sofreram revises, corregdes e acréscimos ~ sobretudo na forma de notas de rodapé — inclusive para garantir uma coeréncia maior entre eles. Também foi Redescobrindo os Indios da América Portuguesa 1 feita uma padronizagl0 estilistica ¢ formal, trazendo para o interior do texto as referencias bibliogréficas ¢ guardando as molas de rodapé para explicagdes complementares. Finalmente, no que diz respeito a questdes formais, cumpre esclarecer trés procedimentos hibridos que foram adotados. Primeiro, se as referencias a obras impressas remetem a uma bibliografia dnica compilada no final da obra, as informagdes sobre os manuscritos utilizados so. registradas em notas de rodapé. Segundo, a ortografia de nomes proprios e de citagdes de textos antigos — inclusive os impressos — foi atualizada, para facilitar a leitura, sempre levando em consideragio o risco de deturpar o sentido original dos textos. Em casos onde a ortografia antiga registrava alguma informagao que seria perdida ou deturpada na atualizagfio, como por exemplo em nomes étnicos, foi mantido o original. Terceiro, néo obedeci plenamente as normas vigentes para a grafia de nomes étnicos, até porque nado ha consenso em torno da grafia de etndnimos historicos. A referéncia a povos indigenas é feita no singular coletive com maiiiscula (os Tupi) ¢ as formas adjetivadas aparece com miniscula e acompanham 0 substantivo se € no plural (povo tupi, populagdes tupis) CAPITULO 1 As “Castas de Gentio” aa América Portuguesa Quinhentista Unidade, Diversidade e a Invengao dos Indios no Brasit’ (Os PORTUGUESES ALCANCARAM 0 LITORAL SUL-AMERICANO pela primeira vez em abril de 1500, porém foi apenas no iltimo quartel do século XVI que comegaram a produzir relatos sistematicos com o intuito de descrever e classificar as populagdes indigenas, Excetuande-se a suméria Histéria da provincia de Santa Cruz, de Pero Magalhdies Gandavo, impressa em Lisboa em 1576, € algumas cartas jesuiticas amplamente disseminadas na Europa em diversas linguas, 0s textos portugueses mais significativos permaneceram inéditos por séculos.* Tanto o rico tratado descritivo de Gabriel Soares de Sousa, considerado por muitos como o mais importante dos relatos quinhentistas, quanto os escritos do jesuita Fem’o Cardim circularam apenas em copias manuscritas ¢, provavelmente, s6 comecaram a ter um grande impacto a partir do século XIX. Ainda assim, 0 Tratado Descritivo ~ titulo posteriormente atribuido @ obra, na verdade constituida por dois textos distintos ~ de Soares de Sousa, bem como os Tratudos da Terra & Gente do Brasil, uma compilagdo da obra de Cardim, proporcionam claros indicios das percepgdes ¢ imagens acumuladas ao longo do século XVI pelos portugueses 2 Texto inédito ern portuguds, uma versdo anterior foi publicada na Hispanic American Historical Review, 80:4, nov. 2000, com o titulo “The Heathen Castes of Sixteenth-Century Portuguese America: Unity, Diversity, and the Invention of the Brazilian Indians". Trechos da primeira parte foram publicadas rng exo de divuigagio “A Descoberta dos indios”, D. O. Leirura, S20 Paulo, Ano 17, 00. 1, maio de 1999, suplemento 500 Anos de Brasil, pp. 6-T. Agradego a Manuela Carneiro da Cunha e Stuar: Schwartz, que comentaram a versio preliminar que Foi apresentada ma rcunido anual da Amiericas Historical Association, Janeiro de 2000, > Ao que consta, Géndavo era gramatico, tendo publicado um manual de ortografia en 1574, NBo se sabe muito sobre a sua estada no Brasil alguns autores duvidam que ele tenha mesmo colocado o pé ns “América. Sua Historia da Provincia de Santa Crus a que vilgarmente chamanos Brasil, impressa por ‘Antonio Gongalves com dedicaidria de Camdes, foi republicado junto com um manuscrito anterior, denominado “Tratado ¢e Tetra do Brasil” (Gandavo, 1980 (1576). Capitulo I: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 13 no que diz respeito a um universo indigena que se apresentava tio vasto ¢ variado quanto incompreensivel.? Este capitulo enfoca os escritos de Gabriel Soares de Sousa em dois momentos distintos: primeiro, dentro do contexto histérico do final do século XVI ¢, segundo, no contexto historiogrifico do século XEX, quando suas descrigées detalhadas e suas classificagdes esquematizadas foram absorvidas na qualidade de fatos etnograficos pelas primeiras geragdes de historiadores nacionais. Um dos problemas que isso apresenta reside na tendéncia dos historiadores projetarem para a data emblemdtica de 1500 — as vésperas do descobrimento ~ um retrato da diversidade indigena ¢ das relagées interétnicas que na verdade se consolidou mais tarde, j4 refletindo as profundas transformagdes que atingiram muitas das sociedades ao longo do fitoraf. Ainda assim, a semelhanga de outras tradigdes historiograficas nas Américas, tanto os relatos em si quanto a sua interpretago posterior pelos historiadores buscavam estabelecer uma imagem estética de sociedades pristinas, como se nfo tivessem sido atingidos pelo contate com os europeus. Ademais, esta abordagem tende a elidir 0 papel de atores e de unidades politicas indigenas em resposta 4 expansio européia, papel esse que foi de suma importancia para a articulagiio das configuragdes étnicas que na bibliografia convencional sempre aparecem como povos “originais”, atemporais e imutdveis, pelo menos até que o contato com os europeus levou a sua dilapidagdo e, em muitos casos , sua destruige por completo. Avangos recentes nos estudos etno-histérieos, no entanto, vém minando estas perspectivas arraigadas desde ha muito, introduzindo uma nova conjugagao entre pesquisa documenta! e perspectivas antropolégicas para produzir um renovado retrato das wvas dos atores indigenas que, apesar de todas as forgas contrarias, 2 4 obra do padre Cardim, Tratados da Terra e da Geme do Brasil, tuto esse atribuida no século XX, na verdade compreende tris textos distintos, Do Clima e Terra du Brasil e de afgumas coisas notdveis (que se avhumi na terra como nu mar (uma deserigao da flora ¢ fauna), Do Principio e Origem dos Indios a Brasil e de seus costumes, eloragdo e ceriménias (descrevendo os costumes ¢& diversidade dos indios), € a Narraiiva Fpistoler de na Viogem ¢ Missio Jesuitiea (am cevistro da prolengada viagem do visitador Jesuita Cristovao de Gouveia pelo Brasil entre 1583 e 1599). Os primeiros dois textos foram publicados em inglés por Samuel Purchas em 1625, porém a autoria foi atribuida erroneamente @ um: ouico jesuita. Sobre Cardi, ver a introduglo e notas de Ana Maria de Azevedo a edigdo mais recente (Cardim, 1997 (1583- ‘90)), bem como o excelente estudo de Charlotte de Castelnau-L'Estoite (2000) Capitulo 1; As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 14 conseguiram forjar espagos significatives na historia colonial, de modo que no é mais admissivel omiticlos do registro histérico.* Gabriel Soares de Sousa, Etnégrafo Em 1587, 0 senhor de engenho ¢ sertanista portugués Gabriel Soares de Sousa empreendeu a longa viagem de Salvador a Madri, com o intuito de granjear o apoio régio a seu projeto de devassar 0 vasto sertéo em busca de minas de prata. Para se credenciar junto & coroa, apresentou trés manuscritos ao Dom Cristovo de Moura, oferecendo informagdes preciosas e perspicazes sobre a terra, a gente ea historia das colénias portuguesas que brotavam na América.’ O primeiro texto, intitulado Roteiro Geral, com largus informagoes de toda a costa do Brasil, proporcionou uma descrigao sucinta do litoral desde a “terra dos Caribes”, a0 norte do rio Amazonas, até 0 estuario do Prata. O segundo € seguramente 0 mais imporinte texto € 0 Memorial ¢ Declaragdo das Grand uma desctigo pormenorizada da topografia, das plantas, da fauna e das populagdes sda Bahia de Todos os Santos, de sua fortilidudte e das notéveis partes que tent, nativas da Bahia, um texto to rico e evocativo em seus detalhes que € considerado por muitos como a maior obra sobre o Brasil escrita no século XVI." Finalmente, 0 terceiro texto constituiu-se muma pesada invectiva contra os jesuitas da Bahia, no qual se criticava ‘0 missionarios nao apenas pelas suas atividades supostamente gananciosas, mas também e sobretudo pela interferéneia dos padres no que tocava & mio-de-obra indigena, Bastante contrastante em relago aos outros textos, este alaque aos jesuitas proporciona uma visio mais clara dos contextos histérico ¢ politico nos quais Gabriel Soares de Sousa construiu ‘as suas impressées dos Tupinambé.” “ Uma étima discussdo desta questio com respeito ao Caribe encontra-se em Sued Batilo (1993). Vejase, também, Sider (1994), Boceara (1999) e Whitehead (1993a e 19830), todos enfocando o contexto de transformacio nas primeitas relagdes entre europeus ¢ indigenas em diferentes partes das Américas. Especificamente ao que diz respeito a0 Brasil, as novas erspectivas estto representadas em Carneiro da Cunka (1992p. 5 De acorde com Daurril Alden (19%, 87-88, 480}, D, Cristévao de Moura (1538-1613) eve um papel de relevo nesta fase inicial da Unite Ibérica, eomo “an ignoble Portugese quisiong in Philip's pay”. © por exemplo, Rodrigues (1979, 439) refere-se aos textos como “a enciclopédia do século XVI, 0 riaior livro que se eserevex sobre o Brasil dos quinhentos” 7 Serafim Leite, S.J, 0 mais importante historiador jesuita do Brasil, desenterrou uma copia deste documentos no arquivo da ordlem em Roma a publicou sob o titulo “Capisulos de Gabriet Soares de Sousa Capitulo I: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 15 Se 08 relatos de Soares de Sousa tém sido amplamente utilizados desde 0 século XIX na consolidago de uma tradigdéo de estudos tupis no Brasil, séo relativamente poucos os estudos sobre © autor propriamente dito ou sobre as condigdes nas quais ele conduziu as suas observagdes. A bem da verdade, pouco se sabe da vida do autor slém daquilo que se encontra em seus escritos, acrescidos do testamento que ele redigiu em 1584, posteriormente reproduzide por Francisco Adolfo de Varnhagen em sua edigdo critica do texto.’ Nascido em Portugal em data ignorada pelos historiadores, Gabriel Soares de Sousa partiu para o além-mar no inicio de 1569, possivelmente com destino as cobigadas minas de Monomotapa, na Africa Oriental, integrando a poderosa frota comandada por Francisco Barreto, antigo govemnador da india, que pretendia expulsar os mugulmanos daquela regio e tomar posse das minas.’ Nao se sabe exatamente porque resolveu desembarcar em Salvador quando a frota fez escala, 20 invés de seguir para o Estado da india, destino de outros escritores de talento contemporineos seus. Junto com seu info Jofo Coelho de Sousa, Gabriel Soares de Sousa se radicou no Brasil, estabelecendo um engenho no rio Jiquiriga, proximo a Jaguaripe, uma zona agucareira em franca expansdo ao sul do Recdncavo. Depois de receber algumas cartas geogrificas junto com amostras de pedras preciosas provenientes do sertio, objetos estes Iegados pelo seu falecido irmao, Gabriel Soares resolveu partir para a corte filipina em 1586 em busca de favores e mercés. Enquanto aguardava audiéncia, concluiu os textos sobre Brasil, os quais certamente ajudaram ele a atingir seu objetivo principal de assegurar concessies para procurar € eventualmente explorar minas de prata no sertdo, recebendo em 1590 a nomeagao de Capitio-mor ¢ Governador da Conquista © Descobrimento do Rio Sao Francisco. Ao assumir este novo cargo, voltou a América na urca flamenga Abrado, que buscava uma carga de agicar ¢ pau brasil. A embercagio naufragou na barra do rio contra os Padres da Companhia de Jesus que residem no Brasil” (Soares de Sousa, 1940 [1587)}, seguindo ‘o conselho do historiador Sérgio Buarque de Holanda. Leite, no entanto, editou este documento um pouco a ccontragosto, conforme se pode inferir do prefécio, onde ele rotula 0 texte como “o documento mais antijesuiticg” que se esereven sobre 0 Brasil. Deve-se observar, ainda, que 0 exemplar do Arquivo do Jesvitas no é o original, sendo uma copia alias enriquecida pelas respostas escritas por uma comissio de padres a cada “capitulo” ¢ intercaladas ao text. * Utliza aqui e edigao de 1971, com 0 texto estabelecide e anotado por Francisco Adolfo de ‘Varnhagen. Foi esta bascada na edicdo de 1851, considerada como a mais correta, Vale dizer que esta obra se ressente de uma nova edigio critica, algo na linha do bom trabalho executado por Ana Maria de Azevedo com os textos de Cardim. Capitulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 16 ‘Vazabarris, no Sergipe, ¢ grande parte dos equipamentos foi perdida no desastre. Ao chegar em Salvador apés uma boa caminhada, Soares de Sousa reorganizou a expedicao gragas ao patrocinio do govemnador D. Francisco de Sousa e logo partiu para o sertao do Sio Francisco, Contudo, as minas que jé haviem se mostrado tdo inatingiveis para seu irméo e outros exploradores nao foram alcangadas. Gabriel Soares de Sousa faleceu pouco depois da partida da expedigdo, quando o grupo jé se encontraya fundo no sertio, junto as cabeceiras do rio Paraguagu. A sua ossada foi remetida a Salvador para ser enterrada na igreja beneditina sob uma ldpide que rezava “Aqui jaz um pecador”. ‘As verses relatando a morte de Soares de Sousa sho discrepantes, porém apontam para a converséncia entre fato ¢ fantasia, o que ajuda a entender © contexto que informava o texto que ele escreveu sobre os indios da Bahia. De acordo com o frei Vicente do Salvador, Soares de Sousa faleceu préximo ao lugar onde havia morrido seu irm&o, apés cair doente “por as Aguas serem tuins e os mantimentos piores, que eram cobras e lagattos” (Salvador, 1982 [1627], 262-263}. Outro eseritor, Pedro Barbosa Leal, fomeceu uma versio alternativa, sublinhando outros perigos do sertdo. Certa noite, ectodiu “uma grande pendéncia” entre o “gentio manso ¢ o do sertdio”, recém introduzido a0 acampamento, Procurando apaziguar as partes, Soares de Sousa “saiu de sua barraca e a golpes de espada, maltratou a uns € a outros”, 0 que redundou na fuga de todos os indios da expedigdo, deixando os exploradores sem eira nem beira no miolo daquele “deserto”. Todos teriam mortido, salvo um mineiro pritico, Marcos Ferreira, que contou a historia.” Sem entrar no mérito de sua veracidade, pode-se afirmar que este relato revela 0 sentido duplo da expedigdo, que aliava interesses mineradores ¢ escravizadores, o que iria permanecer como uma das principais caracteristicas das expedigdes para 0 sertéo por muitos anos." Assim, a economia acucareira, o sertanismo e a escravidio indigena proporcionaram o contexto para a elaboragio do Roleiro e do Memorial de Gabriel Soares de Sousa. Com certeza, estes textos refletem a longa convivéncia entre 0 autor e os indios, durante as suas experiéneias de senhor de engenho e de sertanista, atividades ° Sobce a expediglo de Barreto, ver Newitt (1995, 56-57), 2 Bas versbes sto resumidas em Franco (1954, 397-398) " Sobre estas expedigdes, ver Monteiro (1994a), sobretudo capitulo 2. Capitulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 17 complementares nesta época em que a base do trabalho escravo era composta de indios egressos dos sertdes circunvizinhos.'* Gabriel Soares também conhecia os integrantes nativos dos aldeamentos do Recéncavo, que figuravam entre os auxiliares que acompanthavam este portugues em suas jomadas para o sertdo € que proporcionavam uma fonte de mo-de-obra na fain agucareira. Neste sentido, as informagdes historicas descritivas apresentadas neste relato foram produzidas neste contexto colonial, sendo que 0 proprios “informantes” do autor eram “indios coloniais”, por assim dizer. O autor tomou o cuidado de explicitar isto, baseando-se nas “informagdes que se tém tomado dos indios muito antigos...” (Soares de Sousa, 1971 [1587], 299). Isto ¢ significative quando se considera que grande parte do relato sobre os indios Tupinambé foi escrito em tom de meméria, como se a integridade e a independéncia deste povo fossem algo j4 do passado, De fato, um dos principais objetivos discursives do autor foi exatamente o de justificar a dominagao portuguesa, colocando-a numa sequéncia histérica de ciclos de conquista, a comegar pela mais antiga “casta de gentio”, os Tapuia. Num passado remoto, os Tapuia “foram langados fora da terra da Bahia e da vizinhanga thamado Tupinaé, “que desceu do do mar por outro gentio seu contrério”, um grupo tu sertdo, A fama da fartura da terra ¢ mar desta provincia”. Apés muitas geragdes, “chegando a noticia dos tupinambas a grossura e fertilidade desta terra”, este novo grupo invadiu as terras dos Tupinaé, “destruindo-Ihes suas aldeias ¢ rogas, matando aos que lhe faziam rosto, sem perdoarem a ninguém, até que os langaram fora das vizinhangas do mar”. Ao concluit este capitulo do Memorial, Soares de Sousa observou: “[A}ssim foram [os tupinambés} possuidores desta provincia da Bahia muitos anos, fazendo guerra a seus contririos com muito esforgo, até a vinda dos portugueses a ela, dos quais tupinambés ¢ tupinads se tém tomado esta informagao, em cuja memoria andam estas historias de sgeragtio em geracdo” (Soares de Sousa, 1971 [1587], 299-300). Derrotados, parecia restar 08 Tupinambés a meméria de sua antiga grandeza.'* "= © cootexto historico deste periodo vem muito bem detathado ¢ documentedo em Schwartz (0988, capituios 2 € 3). 'S pode-se dizer, é claro, que Gabriel Soares buscava apenas elaborar uma sequéncia historica de conquistas na qual 8 dominagSo portuguesa se encaixava de modo armonioso. Mas a ascensio dos ‘Tupinambé no litoral baiano na verdade proporciona um dos eventos mais significativos da historia pré- ‘colonial do Brasil, ao coincidir com a emergéncia de outros grupos tupis © guaranis ao longo do fitoral Capitulo 1: As “Castas de Gentio" da América Portuguesa 18 ‘Ao tratar dos indios em seu texto, a primeira tarefa que enfrentava Gabriel Soares de Sousa foi o de conferir algum sentido a intrigante sociodiversidade que tomiava 0 litoral brasileiro tfo dificil para deserever."’ A exemplo de varios outros autores quinhentistas, Soares de Sousa estabeleceu de inicio uma grande divisfo entre duas categorias maiores, a de Tupi e Tapuia. Se os Tupinamba da Bahia, descritos em detalhes por vezes sabotosos, proporcionaram o modelo bisico para a discussao da sociedade tupi, mostrava-se bem mais vaga 2 caracterizagio dos Tapuia. “Como os tapuias so tantos & estdo tao divididos em bandos, costumes e linguagem, para se poder dizer deles muito, era de propésito e devagar tomar grandes informagdes de suas divisdes, vida e costumes, mas, pois ao presente no possivel...” (Soares de Sousa, 1971 [1587], 338). Fiando-se basicamente naquilo que seus informantes tupis Ihes passavam, escritores coloniais como Gabriel Soares costumavam projetar os grupos tapuias como a antitese da soviedade tupinamba, portanto descrevendo-os quase sempre em termos negativos. ‘Ainda assim, em sua descri¢to dos Aimoré no Roteiro geral, 0 autor introduziu uma variante interessante, sugerindo que as diferengas basicas na vida € nos costumes desses indios possuiam fundamentos historicos: Descendem estes aimorés de outras gentios a que chamam tapuias, dos quais nas tempos de atris se ausentaram certos casais, ¢ foram-se para umay serras mut dsperas, fugindo «wn desburare, em que ox puseram seus contrdrios, onde residirum muitos anos sent verem outra gente; ¢ 08 que destes descenderam, vierum a perder a inguagem e fizeram owtra nova que se nav enrende de nenhuma outra nagao do gentio de todo este Estado do Brasil (Soares de Sousa, 1971 [1587], 78-79). Se o autor foi bem sucedido ao montar uma descrigo bastante detalhada dos costumes barbaros dos Aimoré, Soares de Sousa reconhecia as limitagdes de sua apresentagio, inclusive deslizando préximo A classificago destes indios como nao allintico, Sobre a “expansio” ou “migragdo” tpi, debate ali antigo na eiologia ¢ arqueotogia brasileiras, vero anigo de Frareisco Noell (1996), com comentarios de Eduardo Viveiros de Castro © Greg Urban, 1 Este dilems foi compartithado pelo Gabriel Soares de Sousa com virios outros excrtores quinkentistes, que buscavam conciliar aquito cue de fato testemunharam com as imagens dos poves do Nova Mundo que cireulavam nos textos e gravuras da época. Veja-se a discusslo em Carneiro da Cunha (1990), oferecendo um estimulante contraste entre as visdes francesa e portuguesa Capitulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 19 humanos, uma vez que “[cJomem estes selvagens came humana por mantimento, o que nao tem 0 outro gentio que a ndo com sendo por vinganga de suas brigas ¢ antiguidade de seus édios”, Concluindo, o autor sublinhava a diferenga desta “casta” das demais, por serem “tao esquivos inimigos de todo 0 género humano” (Soares de Sousa, 1971 [1587]. 79-80). ‘Ao estabelecer categorias bisicas para diferentes segmentos da populagdo indigena, Gabriel Soares buscou varias referéncias distintas. A principal abordagem residia no contraste com as instituigdes europeias, descrevendo as sociedades indigenas a partir daquilo que Ihes falteva, Langando mao de uma frase amplamente disseminada pelo gramético Pero de Magathiies Gandavo na década anterior, Gabriel Soares apresentava uma variants para o ditado sem /2, sem lei, sem rei, Apesar de impressionado pela “graga” da lingua tupi, 0 autor observou que “faitam-thes tés letras do ABC, que so F, L, R grande ou dobrado”. A primeira letra, “I, referia-se & f&, indicando que os Tupinamba néo possuiam religido alguma e, pior ainda, “nem os nascidos entre os cristios ¢ doutrinados pelos padres da Companhia tém fé em Deus Nosso Senhor” Continuando, Soares de Sousa explicou que eles no pronuneiavam a letra “I” porque “nfo tem lei alguma que guardar” e que “cada um faz lei @ seu modo e ao som da sua vontade”. Finalmente, a auséncia da letra “r° denotava a falta de um “rei que os reja” € que nao “obedecem a ninguém, nem ao pai o filho, nem o filho 20 pai” (Soares de Sousa, 1971 [1587], 302). Oscilando entre a inconstincia e a insubordinagao, 0s indios de Gabriel Soares de Sousa mostravam-se pouco promissores enquanto siiditos, apesar de que, paradoxalmente, era nessa condigdo que a maioria dos indios que ele conheceu vivia. Para além do binémio Tupi-Tapuia, surgiram outros pares de oposigao com a fungdo de introduzir alguma ordem numa situagdo as vezes confusa e imprevisivel. O contexto colonial produziu outras distingdes importantes, como a oposigio entre povoado € sertio, 0 que representava mais do que uma referéncia espacial pois, na verdade, delimitava dois universos distintos, um ordenado pela lei ¢ pelo governo, o outro livre de tais constrangimentos — sem fé, nem lei, nem rei, enfim, Pode-se vislumbrar um bom 'S Uma ceinterpretagdo bastante criativa da Vinconstancie”, vista como muito mais do que uma simples projegio européla, encontra-se em Viveiras de Castro (1992), Capitulo 1; As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 20 exemplo desta diferenga na experiéncia dos sertanistas mamelucos, que transitavam entre ‘a ordem rigida do povoado colonial ¢ a liberdade desenfreada do sertio."® A distingo entre indios cristfos e gentios proporcionava uma outra divisto crucial, ainda que eivada de implicagdes ambiguas, Para além de suas origens biblicas, o termo gentio, com efeito, ganhou forga como uma categoria intermediaria no campo da diversidade religiosa que adquiria novos contomos com a expansio européia, Os portugueses quinhentistas usavam este termo tanto para descrever hinduistas no subcontinente asiatico, com suas elaboradas iradigdes religiosas, quanto para designar populagdes afticanas ¢ sul-americanas, consideradas como destituidas de qualquer religido. Apés um certo tempo, no entanto, 0 contesto seméntico passou a sublinhar « distingo entre natives convertidos para o calolicismo aqueles nao convertidos ~ gentios neste caso seriam convertides potenciais, por assim dizer. Em seu Roteiro geral, Gabriel Soares de Sousa expressou esta distingio, apesar de se mostrar umn tanto cético quanto a elicacia da converse, No capitulo sobre Garcia d’Avila, o autor fez mengio da aldeia jesuitica de Santo Antonio, habitada por ~indios forros tupinambas” que, a despeito da sua conversfo, “é este yentio tio barbaro que até hoje nio ha nenhum que viva como cristo” (Soares de Sousa, 1971 [1587], 70). Esta observa¢do ganhou um reforgo mais agudo nos Capiinites contra os Padres Se os primeiros missionarios tiveram um éxito fenomenal na conversio, batizando “aos mithares cada dia, este éxito se mostrou ilusério, uma vez que “assim com facitidade se faziam cristdos, com ela mesma se tornavam a suas gentilidades, ¢ se foram todos para 0 sertio, fugindo da sua doutrina”(Soares de Sousa, 1940 [1587], 370). Embora no tenha feito mengao explicita no texto, € possivel que Gabriet Soares estivesse se referindo aos movimentos sociorreligiosos organizados por indios Tupinamba egressos das aldeias missiondrias ou fugidos dos empreendimentos coloniais, com destaque para a Santidade que grassava na época nos amredores de Jaguaripe, proxima portanto ao engenho do proprio Gabriel Soares.'” Mas 0 autor certamente também conhecia outras formas de resistencia — 0 que ele considerava uma propriedade natural dos indios © nao algo © Vejese, por exemplo, as declragSes do mameluco Tomacaiina perante 0 visitedor do Santo Oficio, em Vaintas (1997). O mesmo autor {raz uma abordagem bastante inovadora dos mamnelucos em cobia anterior (Vainfas, 1995, capitulo 6) Capitulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 21 vineulado a condi¢do colonial — inclusive as migragSes em massa tais como aquela descrita por Anchieta na mesma década de 1580, registrada mediante a fala de um principal nao fugimos Vamo-nos, vamo-nos antes que venkum estes portugueses (. da Igreja nem de tua companhia porque, se tu quiseres ir conosco, viveremos contigo no meio desse mate ou sertéo ... Mas estes portugueses ndo nos deixam estar quietos, e se (u vés que to poucos que aqui andam entre nis tomam: nossos irmios, que podemos esperar, quando os mais vierem, sendo que ands, ¢ as mulheres ¢ filhos fardo escravos? (Carta de Anchieta apud Fernandes, 1948, 36). Se os Tupinamba representavam, até certo ponte, uma categoria unificadora do ponto de vista linguistica e cultural, coube aos escritores quinhentistas explicar as pronunciadas disputas entre diferentes segmentos dos Tupi. Ao inteoduzir os Potiguar no Roteiro geral, Gabriel Soares encontrou dificuldades em tragar alguma distingao entre eles e 08 Tupinambé: “Falam a lingua dos tupinambas e caetés; tém os mesmos costumes e gentilidades .. Cantam, bailam, comem e bebem pela ordem dos tupinambas” (Soares de Sousa, 1971 [1587], 54-55). Mais adiante, ao diferenciar os Tupiniquim dos Tupinambé, o autor introduziu um interessante paralelo: “E ainda que sto contririos os tupiniquins dos tupinambés, no hé entre eles na lingua e costumes mais diferenca da que tam os moradores de Lisboa dos da Beira’ (Soares de Sousa, 1971 [1587], 88). 34 no ‘Memorial, a0 retomar a descrigo dos Tupinaé, Gabriel Soares acrescentou uma ligeira alteragdo no paralelo, declarando que a lingua deles era to diferente da dos Tupinamba quanto a diferenga entre Douro ¢ Minho Lisboa, ou seja, os Tupinamba falavam um dialeto mais polido. Ao aprofundar sua explicagdo deste paradoxo de afinidade e diferenga, 0 autor especulou que “pelo nome tdo semelhante destas duas castas de gentio se parece bem claro que antigamente foi esta genie toda uma, como dizem os indios antigos desta nag3o [Tupinambd]". © motivo da divisto é que “tém-se por to contrarios infas (1992) proporciona a anise mais penetrante deste movimento, que também & 0 objeto ‘de um ertigo recente (Metcalf, 1999), cujo objetiva € inserir a santidade tum contexto mais ample de ~ catolicismo folk messianico” Capitulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 22 uns dos outros que se comem aos bocados, e no cansam de se matarem em guetras, que continuamente tem” (Soares de Sousa, 1971 [1587}, 332-333). Cabe um breve comentirio sobre 0 uso do termo “casta” para descrever os diferentes grupos indigenas. Varios textos quinhentistas classificavam as populagdes do litoral sul-americano como “castas” distintas, uma apropriagdo direta da terminologia. cempregada ao longo da costa sul-asiitica e amplamente disseminada através de relatos to antigos quanto os de Duarte Barbosa e Tomé Pires."* Ao que parece, esta literatura oriental no era estranha a Soares de Sousa, mesmo porque em certa altura ele estabelece entre 0 uso do fumo entre os amerindios e o habito de mascar uma comparagdo expli folhas de bétwla na india (Soares de Sousa, 1971 [1587], 317), Se varios escritores portugueses referiam-se explicitamente as varnas hindus 20 discutir a casta, 0 termo adquiria um sentido bem mais genérico, servindo para identificar sociedades ou segmentos sociais enquanto unidades discretas, cada qual possuindo marcadores culturais préprios, frequentemente enfeixados na nogdo de “usos ¢ costumes” * No interior do espaco colonial, contudo, os limites e as caracteristicas especificas dessas unidades distintas c, muitas vezes, endogdmicas enfrentaram 0 constante desafio da propria expansio européia, & medida que soldados, comerciantes, colonos e funciondrios do estado se envolveram cada vez mais com as sociedades nativas, seja através de aliangas ‘matrimoniais ou de arranjos menos formais. | Escrito numa conjuntura de transformagdes ripidas.e decisivas, as quais afetaram de modo particular as populagdes indigenas mais proximas aos estabelecimentos coloniais, 0 relato de Gabriel Soares de Sousa sobre os Tupinamba justapds imagens da grandeza pré-colonial com aquelas da decomposigdo pos-conquista.”” Estribadas nos 'S Sobre estas fontes, veja-se a obra erudita de Lach (1965) e 0 excelente ensaio de Curto (1997). 2% origem @ a variabilidade do termo “casta” constituem aspectos de um longo debate a antropologia e historiografia referemtes a india, Assim como os modemos, os antigos escrtores portugueses geralmente oscilavam entre duss concepcdes distinas para a organizac$o socal hinduista. O conceito de Yarna, estabelecido ema varios textos sagrados, divide a sociedade em quatro grandes grupos, ordenados fhierarquicamente’ brimanes (sacerdotes), Kshatriyas (guerreiros), vaishyas (comerciantes) e shudras (trabalhadores). © conceito de jati, por outro lado, refere-se & urupos de filiaeo, abrangendo um sem- inimero de “castas” (definidas por categorias de oficio, de grupos tribais e étnicos, entre outras) que, com o advento dos mugulmanos e dos euopeus se toraram cada vez mais fechadas e imoveis, Ver, entre outros, Bayly (1999), sobretudo capitules 1 € 3, e Perez (1997). ® Apresento uma discussio mais detathada destas transformagles em Monteiro (1999) Capttula }: As “Castas de Gentio" da América Portuguesa 23 relatos de indios aldeados, escravizados e cristianizados, as descrigées nos fornecem uma auto-imagem dos Tupinamba através da lente da situagio colonial que os oprimia e, lentamente, os destruia. Ainda assim, estabelecendo um exemplo que seria seguido por etndgrafos num futuro distante, texto do Memoria! buscava abstrair os Tupinamba deste contexto, como se 0s europeus nao os tivessem encontrado. Entretanto, 0 relato contém muitos elementos que sugerem que este “modo de ser® dos Tupinambé, apesar de reafirmar tradigdes e estruturas pré-coloniais, também tinha algo a ver com as condigdes concretas da expansto colonial, Assim, a deserisio da vida e dos costumes dos indios foi © produto de construgdes coloniais nao apenas dos portugueses como também dos Tupinamba. Em certo sentido, 0 Memorial destoava de outros relatos que buscavam tha projetar a situacio de primeiro contato, situagdo essa que, segundo Neil Whitehead, mais a ver com a “auto-representagdo dos ‘descobridores”” ou conquistadores do que com a efetiva interagdo envolvendo 0 autor-observador ¢ seus objetos nativos.”' Se ¢ verdade que Soares de Sousa se apresentava como descobridor de sertBes desconhécides ¢ da almejada riqueza mineral do mesmo interior, seus objetos natives configuravam, antes de tudo, indios que ja haviam experimentado 0 contato com os Europeus por um bom tempo, © proprio autor, visivelmente constrangido ao tratar da presenga de muitos mamelucos entre os Tupinamba, acabou reconhecendo que “ainda que parega fora de propésito 0 que se contém neste capitulo, pareceu decente eserever aqui o que nele se contém, para se melhor entender a natureza ¢ condigdo dos tupinambas... (Soares de Sousa, 1971 [1587], 331). Uma leitura mais atenta deste mesmo capitulo, no entanto, evoca um constante receio que 0s escritores coloniais cultivavam no que diz respeito mestigagem: Gabriel Soares parece ter se preocupado menos com o impacto que os brancos e seus deseendentes mesticos poderiam ter sobre os Tupinambé ¢ mais com a terrivel possibilidade de que os brancos também podiam tomar-se selvagens. ‘Ao buscar, deste modo, melhor entender a natureza ¢ condi¢ao dos Tupinam! Gabriel Soares implicitamente captou a necessidade de se reconhecer que as sociedades indigenas encontravam-se imbricadas numa trama hist6rica, na qual a determinagio de 2 Sobre a questi da representagdo destes “pristine contacts with wispoiled indigenes", ver Whitehead (1993, 53). E imeressente observar que este tipo de representag#o permaneceu como tema constante na iteratura e iconografia do contato nos séculos a seguir

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