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la... iD EST = Dietrich Bonhoeffer © Traduzido do original alemao Nachfolge, 4" edigao, 1952. © 1937 Chr. Kaiser Verlag, Miinchen, Republica Federal da Alemanha. Os direitos para a lingua portuguesa pertencem a EDITORA SINODAL, 1980. Caixa Postal 11 93001-970 Sio Leopoldo/RS Fone/Fax: (51) 3037-2366 editora@editorasinodal.com.br www.editorasinodal.com.br Tradugao: Ilson Kayser Revisao: Geraldo Korndérfer c Luis M. Sander Coordenagio editorial: Luis M. Sander Série: Estudos Biblico-Teolégicos NT — 11 Publicado sob a coordenagao do Fundo de Publicagdes Teoldgicas/Instituto Ecuménico de Pés-Graduagao da Faculdades EST da Igreja Evangélica de Confis- sdo Luterana no Brasil (IECLB). Tel.:(51) 2111 1400 Fax: (51)2111 1411 est@est.edu.br www.est.edu.br Bonhoeffer, Dietrich Discipulado / Dietrich Bonhoeffer; tradugao Ilson Kayser. 8. ed. — Sd0 Leopoldo: Sinodal, 2004 15x 21 cm. ; 208 pag. ISBN 85-233-0767-2 Titulo original: Nachfolge. 1. Teologia crista. 1. Kayser, llson. II. Titulo. CDU 251 Catalogagao na publicagao: Leandro Augusto dos Santos Lima - CRB 10/1273 1* Parte: Discipulado . 2 1 - A graca preciosa 9 2-O chamado ao discipulado . 20 3- A obediéncia simples 38 4-0 discipulado ¢ a cruz... 44 5 - O discipulado e o individuo Sl 6.1.2 - A Igreja visivel 6.1.3 - A justiga de Cristo 69 6.1.4 - O irmao 74 TL 80 6.1.7 - A vinganga. 83 6.1.8 - O inimigo — 0 “extraordinario” . 87 6.2 - Mateus 6 — Da abscondicidade da vida cristi 94 6.2.1 - A justia oculta 6.2.2 - A abscondicidade da oragao 6.2.3 - A abscondicidade das praticas piedosas . 6.2.4 - A singeleza da vida despreocupada .. 6.3 - Mateus 7 — A separagdo da comunidade dos discfpulos . 113 6.3.1 - Os discipulos e os descrentes 6.3.2 - A grande separacao . 6.3.3 - O final 7 - Os mensageiros ( Mt 9.35-10.42) 7.1- A ceifa...... 7.2 - Os apéstolos . 7.3 - O trabalho .....ccsccssecsseseeesesseesneseeessesessesneeneseeenees 7.4 - O sofrimento dos mensageiros . 7.5 - A decisao ...... 2" Parte: A Igreja de Jesus Cristo ¢ o discipulado .... 1 - Quest&es preliminares ............sccsscseseeeessssenesesessesseseenes 139 2-0 Batismo 3 - O Corpo de Cristo 4-A Igreja visivel 5 - Os santos 6 - A imagem de Cristo indice de passapens.- biblicas sistas attics cite dausaetes obese 205 Prefacio Epocas de reavivamento eclesidstico trazem consigo um enrique- cimento nas Sagradas Escrituras. Por detras das necessarias palavras de ordem da controvérsia eclesidstica, surge uma procura, uma busca mais decidida por aquele a quem unicamente interessa achar — pelo préprio Jesus. Que pretendia Jesus nos dizer? Que espera de nés hoje? De que maneira ele nos ajuda a sermos cristaos fiéis hoje? Em ultima andlise, nao nos interessa tanto saber as idéias deste ou daquele expoente da Igreja, mas aquilo que Jesus quer € o que queremos descobrir. Indo & igreja para ouvir a pregacdo, 0 que queremos ouvir é sua Palavra — isso nao apenas em interesse proprio, mas também por amor das pessoas para as quais a Igreja e sua mensagem se tornaram estranhas. Somos também de opiniao que se o préprio Jesus, e tao-somente Jesus com sua Palavra, estivesse em nosso meio na pregagao, seria outro o grupo de pessoas a escutar a Palavrae outro o grupo a rejeita-la. [sto nao significa que a pregagao da nossa Igreja tenha deixado de ser a Palavra de Deus; no entanto, quanto som estranho, quantas leis humanas, duras, quantas esperancas falsas e falsos consolos turvam ainda a cristalina mensagem de Jesus, dificultando a decisio auténtica! A culpa nao deve ser procura- da exclusivamente nos outros, quando acham dura e dificil a pregagao— mesmo que esta pretenda ser tao-somente pregagdo de Cristo — por estar carregada de formulas e conceitos estranhos aos ouvintes. E errado afirmar que todas as palavras de critica A nossa pregacio constituem ja por si rejeigao de Cristo, anticristianismo. Quereriamos, de fato, negar a comunhio com todas as muitas pessoas que vém 4 nossa pregagao, querem ouvi-la, acabando, porém, sempre concluindo que lhes dificultamos demasiadamente 0 acesso a Jesus? Elas acham que nao é propriamente da Palavra de Jesus que querem esquivar-se, mas que en- tre elas e Jesus ha demasiados elementos humanos, institucionais, dou- trinais. Quem de nos nao teria imediatamente & mao as respostas corre- tas, respostas que facilmente nos isentam da responsabilidade por aque- las pessoas? No entanto, nao seria também uma resposta se nos pergun- 6 téssemos a nds mesmos se nao nos tornamos, muitas vezes, empecilho para a Palavra de Jesus, apegando-nos talvez demasiadamente a deter- minadas formulagées, a um tipo de pregagao por demais dirigido para sua respectiva €poca, seu local, sua estrutura social, pregando, quem sabe, em termos muito dogmaticos, mas alheios a realidade da vida, repetindo sempre certos conceitos biblicos, relegando, porém, ao esque- cimento outras palavras importantes, pregando ainda em demasia opini- Ges € convicgdes pessoais, ¢ muito pouco a Jesus Cristo? Nao poderia haver nada t4o oposto & nossa intengdo e, a0 mesmo tempo, mais perni- cioso para nossa mensagem do que sobrecarregarmos com pesadas leis humanas os cansados e oprimidos que Jesus chama a si, afastando-os as- sim dele uma vez mais. O quanto estariamos, com isso, expondo ao ridi- culo perante cristaos e pagdos o amor de Jesus Cristo! Como, porém, nes- te caso de nada servem perguntas generalizadas e auto-acusagées, volte- mos as Escrituras, 4 Palavra e ao chamado do préprio Jesus Cristo. Neles procuramos, partindo da pobreza e estreiteza de nossas proprias convic- ces e perguntas, a amplitude e a riqueza que nos sao dadas em Jesus. Queremos falar do chamado ao discipulado de Jesus. Procedendo assim, colocaremos nés sobre o ser humano um jugo novo e mais pesa- do? Iremos acrescentar aos preceitos humanos, sob os quais gemem cor- pos e almas, preceitos ainda mais duros e implacaveis? Ao lembrar 0 discipulado de Jesus, iremos, porventura, espetar um aguilhao ainda mais agudo nas consciéncias j4 tao inquietas e feridas? Estarfamos, como acon- teceu tantas vezes na hist6ria da Igreja, instituindo exigéncias impossf- veis, atormentadoras, excéntricas, cuja obediéncia poderia constituir um luxo piedoso, privilégio de alguns poucos, mas que teria de ser rejeitada pelo trabalhador preocupado com o sustento, com a profissao, com 0 cuidado pela familia, como sendo a mais impia tentacao de Deus? Seria, porventura, do interesse da Igreja impor uma tirania espiritual aos seres humanos, ditando e ordenando por si prépria, sob ameaga de castigo terreno e eterno, aquilo em que se deve crer e 0 que se deve fazer para ser salvo? Deverd a mensagem da Igreja trazer nova tirania e violéncia sobre as almas? Até mesmo € possivel que pessoas anseiem por tal es- cravatura, mas poderia a Igreja jamais satisfazer tal desejo? Quando as Escrituras Sagradas falam do discipulado de Jesus, pro- clamam a libertagao do ser humano de todos os preceitos humanos, de tudo quanto oprime, sobrecarrega, provoca preocupagées e tormentos & 7 consciéncia. No discipulado, o ser humano sai de sob 0 jugo duro de suas pr6prias leis e submete-se ao jugo suave de Jesus Cristo. Seria isso menosprezo da seriedade dos mandamentos de Jesus? Nao. Antes, so- mente onde permanece de pé o mandamento integral de Jesus, o chama- do ao discipulado sem restrigGes, é que se toma possivel a plena liberta- gio da pessoa para a comunhio com Jesus. Quem segue indiviso ao mandamento de Jesus, quem se sujeita sem resisténcia ao jugo de Jesus, aesta pessoa se torna leve o fardo que tem de levar, recebendo, na suave pressio desse jugo, a forga necessdria para percorrer 0 caminho certo sem cansago. O mandamento de Jesus é duro, desumanamente duro para quem se op6e a ele. O mandamento de Jesus é suave e facil para quem se sujeita voluntariamente a ele. “Os seus mandamentos nao séo penosos.” (1 Jo 5.3). O mandamento de Jesus nada tem a ver com tratamentos psicolégicos radicais. Jesus nada nos exige sem nos dar forcas para 0 realizar. O mandamento de Jesus jamais pretende destruir a vida, mas a conservar, fortalecer e curar. No entanto, continua a preocupar-nos o problema do que poderia significar, na atualidade, o chamado ao discipulado de Jesus para 0 ope- rario, a pessoa de negdcios, o agricultor, 0 soldado — a pergunta se nio estd sendo levado um conflito insuportével para dentro da existéncia da pessoa e do cristio que trabalham no mundo. O cristianismo do discipu- lado de Jesus nao seria assunto para um numero por demais restrito de pessoas? Nao seria ele um reptidio das grandes massas, 0 desprezo dos fracos e pobres? Mas nao sera assim negada a grande misericérdia de Jesus Cristo, que veio aos pecadores e publicanos, aos pobres e fracos, aos transviados e desesperados? Que diremos a isso? Sio poucos ou sio muitos os que pertencem a Cristo? Jesus morreu na cruz sozinho, aban- donado por seus discipulos. A seu lado pendiam nao dois de seus segui- dores, mas dois criminosos. No entanto, ao pé da cruz encontravam-se todos, inimigos e crentes, céticos e medrosos, zombadores e convictos, e todos eles, com seus pecados, estavam incluidos na oragio de perdio elevada aos céus por Jesus naquela hora. O amor misericordioso de Deus vive em meio aos seus inimigos. E 0 mesmo Jesus Cristo que, por graca, nos chama a ser seus discfpulos e cuja graca salva 0 assassino na cruz na hora derradeira. Aonde 0 chamado ao discipulado conduzird as pessoas que lhe obedecerem? Que decisGes e separagdes acarretard esse chamado? Te- 8 mos que levar essa pergunta aquele que é 0 tinico que conhece a respos- ta. Somente Jesus Cristo, que nos ordena que o sigamos, sabe aonde o caminho conduz. Nés, porém, sabemos que esse caminho sera, sem di- vida, caminho de miseric6rdia sem limites. O discipulado é alegria. Em nossos dias, parece tao dificil trilhar a senda estreita da deci- sio eclesidstica a passo firme, e, no entanto, permanecer com os fracos e os sem-Deus em toda a amplitude do amor de Cristo para com todos os seres humanos, em toda a amplitude da paciéncia, da misericérdia, da “filantropia” de Deus (Tt 3.4)! Todavia, estas duas coisas devem ficar lado a lado; do contrario estaremos percorrendo caminho humano. Que Deus nos dé, em toda a seriedade do discipulado, a alegria, em todo “n&o” ao pecado, o “sim” ao pecador, em toda defesa contra os inimi- gos, a palavra convincente e cativante do Evangelho: Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vdés 0 meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coragio; e achareis descanso para a vossa alma. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve. (Mt 11.28-30). 1* Parte: Discipulado 1. A graca preciosa A graga barata € a inimiga mortal de nossa Igreja. A nossa luta trava-se hoje em torno da graca preciosa. Graga barata é graga como refugo, perdio malbaratado, consolo malbaratado, sacramento malbaratado; é graga como inesgotavel tesou- ro da Igreja, distribufdo diariamente com miaos levianas, sem pensar € sem limites; a graga sem prego, sem custo. A esséncia da graga seria justamente que a conta foi liquidada antecipadamente e para todos os tempos. Estando a conta paga, pode-se obter tudo gratuitamente. Por ser infinitamente grande o prego pago, sao também infinitamente grandes as possibilidades de uso e dissipagdo. Que seria a graga se nao fosse barata? Graga barata significa a graga como doutrina, como princfpio, como sistema; significa perdao dos pecados como verdade geral, significa 0 amor de Deus como conceito cristéo de Deus. Quem 0 aceita j4 tem o perdao de seus pecados. A Igreja participa da graga ja pelo simples fato de ter essa doutrina da graga. Nesta Igreja, 0 mundo encontra facil co- bertura para seus pecados dos quais nao tem remorsos e€ nao deseja ver- dadeiramente libertar-se. A graga barata é, por isso, uma negagao da Palavra viva de Deus, negac¢éo da encarnagio do Verbo de Deus. Graga barata significa justificagao do pecado, e nio do pecador. Como a graga faz tudo sozinha, tudo também pode permanecer como antes. “Afinal, a minha forga nada faz.” O mundo continua sendo mun- do, e nés continuamos sendo pecadores “mesmo na vida mais piedosa”. Viva, pois, 0 crente como vive 0 mundo, coloque-se, em tudo, em pé de igualdade com o mundo, e nao se atreva — sob pena de ser acusado de heresia entusiasta! — a ter, sob a graca, uma vida diferente da que tinha sob o pecado! Que se guarde de encolerizar-se contra a graga, de enver- gonhar essa graga grande e barata, e de instituir um novo culto do litera- 10 lismo tentando ter uma vida de obediéncia de acordo com os manda- mentos de Jesus Cristo! O mundo ¢ justificado pela graca, e, por isso — por amor da serie- dade dessa graca, para que nao haja resisténcia a essa graca insubstituf- vel! — que ocristio viva como o resto do mundo! E certo que ele gostaria de realizar algo de extraordinario, e constitui, sem dtivida, um grande sacrificio nao poder fazé-lo, mas ter que viver mundanamente. Contudo, ele precisa fazer esse sacriffcio, praticar a autonegagao, renunciar a uma vida que se distinga da do mundo. Tem que deixar a graga ser realmente graga, para nao destruir ao mundo a fé nessa graca barata. Todavia, que o crente, em seu mundanismo, nessa rentincia necessdria que tem de fazer por amor do mundo — nio, por amor da graga! — continue consola- do e seguro (securus) na posse dessa graga, que tudo opera sozinha! Por isso, que o crente nao seja discfpulo, antes se console com a graga! Isto € graga barata como justificagao do pecado, mas nao justificagao do pe- cador penitente, que abandona 0 pecado e se arrepende; nao € 0 perdio que separa do pecado. A graca barata é a graca que nds dispensamos a nés préprios. A graga barata é a pregagao do perdao sem arrependimento, € 0 batismo sem a disciplina comunitaria, é a Ceia do Senhor sem confissao dos pecados, é a absolvigio sem confissdo pessoal. A graga barata é a graca sem discipulado, a gracga sem a cruz, a graca sem Jesus Cristo vivo, encarnado. A graga preciosa € 0 tesouro oculto no campo, por amor do qual o ser humano sai e vende com alegria tudo quanto tem; a pérola preciosa, para cuja aquisi¢ao 0 comerciante se desfaz de todos os seus bens; 0 senhorio régio de Cristo, por amor do qual o ser humano arranca 0 olho que o faz tropegar; 0 chamado de Jesus Cristo, pelo qual o discfpulo larga suas redes e 0 segue. A graga preciosa € 0 Evangelho que se deve procurar sempre de novo, o dom pelo qual se tem que orar, a porta 4 qual se tem que bater. Essa graca é preciosa porque chama ao discipulado, e é graga por chamar ao discipulado de Jesus Cristo; é preciosa por custar a vida ao ser humano, e € graga por, assim, lhe dar a vida; € preciosa por condenar 0 pecado, e € graga por justificar o pecador. Essa graga € sobretudo pre- ciosa por ter sido preciosa para Deus, por ter custado a Deus a vida de 11 seu Filho —“‘vocés foram comprados por prego” —e porque nao pode ser barato para nés aquilo que custou caro para Deus. A graga é preciosa sobretudo porque Deus nao achou que seu Filho fosse prego demasiado caro para pagar pela nossa vida, antes o deu por nds. A graga preciosa é aencarnacio de Deus. A graga preciosa é a graga como santuario de Deus, que tem que ser preservado do mundo, nao langado aos cies; e por isso € graga como palavra viva, a Palavra de Deus que ele proprio pronuncia de acordo com seu beneplacito. Chega até nds como gracioso chamado ao discipu- lado de Jesus; vem como palavra de perdao ao espirito angustiado e ao coragao esmagado. A graca é preciosa por obrigar o individuo a sujeitar- se ao jugo do discipulado de Jesus Cristo. As palavras de Jesus: “O meu jugo é suave e o meu fardo € leve” sio expressao da graga. Por duas vezes Pedro ouviu 0 chamado: “Segue-me!” Foi esta a primeira e a ultima palavra de Jesus a seu discfpulo (Mc 1.17; Jo 21.22). Toda sua vida se situa entre esses dois chamados. Da primeira vez, Pe- dro, no Lago de Genesaré, ao ouvir o chamado de Jesus, largara as redes e abandonara a profissdo, seguindo a Jesus em obediéncia cega. Da ulti- ma vez, é 0 Ressurreto que 0 encontra em seu antigo officio, novamente no Lago de Genesaré; e mais uma vez 0 chamado é: “Segue-me!” No espago entre esses dois chamados, havia toda uma vida de discipulado de Cristo. No meio dela encontra-se a confissao de que Jesus é 0 Cristo de Deus. Por trés vezes a mesma mensagem foi anunciada a Pedro, no inicio, no fim e em Cesaréia de Filipe, ou seja, a mensagem de que Cris- to € seu Senhor e Deus. A graga de Cristo que chama: “Segue-me!” € a mesma que se revela a Pedro em sua confissao do Filho de Deus. Houve, pois, uma intervengio tripla da graga no caminho de Pe- dro, a mesma graga proclamada em trés ocasiGes diferentes; ela era, as- sim, de fato a graga do préprio Cristo e nao a graga que Pedro atribufa a si mesmo. Foi essa mesma graca de Cristo que venceu esse discfpulo, levando-o a largar tudo por amor do discipulado; foi ela que o impeliu a uma confissdo blasfema aos ouvidos do mundo; foi ela que chamou 0 infiel Pedro 4 comunhao derradeira, a do martirio, pelo que Ihe foram perdoados todos os pecados. A graga e 0 discipulado permanecem indis- soluvelmente ligados na vida de Pedro. Ele havia recebido graga preciosa. Com a expansio do cristianismo e a secularizagao crescente da 12 Igreja, a consciéncia dessa graga preciosa perdeu-se gradualmente. O mundo estava cristianizado, a graga passara a ser propriedade comum de um mundo cristao. Tinha-se tornado barata. No entanto, a Igreja Roma- Na conservava um Ultimo resto desta consciéncia. Foi de significado decisivo o fato de o monasticismo nao se ter separado da Igreja, e de esta ter sido suficientemente sabia para o tolerar. Ali, na periferia da Igreja, estava o lugar no qual se mantinha viva a consciéncia da preciosidade da graga, ¢ de que esta encerra em si 0 discipulado. Por amor de Cristo, homens e mulheres abandonavam tudo quanto possufam, procurando cumprir os severos mandamentos de Jesus na pratica didria. Foi assim que a vida monastica se transformou num protesto vivo contra a secula- rizac&o do cristianismo, contra o barateamento da graca. Todavia, pelo pr6prio fato de ter tolerado esse protesto e de ter evitado uma cisio defi- nitiva, a Igreja o relativizou, encontrando nele até a justificagao de sua propria vida mundana; pois agora a vida monastica transformava-se numa realizagao especial de carater individual, realizagdo essa que nao pode- ria ser exigida a massa do povo cristio. A limitacio fatal do mandamento de Jesus a um grupo limitado de individuos de qualidades excepcionais levou a distingao entre uma realizagéo mAxima e uma realizagaéo minima na esfera da obediéncia crista. Assim, a cada ataque renovado contra a secularizacao da Igreja, podia-se apontar para a possibilidade da vida monastica dentro da mes- ma Igreja, ao lado da qual se justificava plenamente a outra possibilida- de do caminho mais facil. Desse modo, apelar para 0 conceito que a Igreja primitiva tinha da preciosidade da gracga — conceito que ficara preservado no monasticismo da Igreja Romana — teve que servir, para- doxalmente, uma vez mais como justificagao final da secularizagao da Igreja. Em tudo isso, 0 erro decisivo do monasticismo nao residia no fato de — a despeito de tantos mal-entendidos quanto ao contetido da vontade de Jesus — ter seguido 0 gracioso caminho do discipulado rigo- roso. Antes, o monasticismo distanciou-se essencialmente do cristianis- mo por se deixar transformar ele préprio na realizagiio excepcional, vo- luntaria, de uns poucos, reivindicando, assim, mérito especial para si. Quando, por intermédio do seu servo Martim Lutero, na Reforma, Deus avivou uma vez mais o Evangelho da graca pura e preciosa, fez com que Lutero passasse primeiro pelo convento. Lutero era monge. Tudo abandonara e desejava seguir a Cristo em obediéncia perfeita. Re- 13 nunciou ao mundo e dedicou-se 4 obra cristi. Aprendeu a obediéncia a Cristo e a sua Igreja, pois sabia que somente 0 obediente é que pode crer. O chamado para o convento custou a Lutero a total consagragao de sua vida. Com 0 caminho escolhido, Lutero fracassou em relago ao proprio Deus. Este lhe mostrou, através das Escrituras, que 0 discipulado de Jesus nao era a realizagio meritéria de alguns, mas um mandamento divino a todos os cristdos. A humilde obra do discipulado convertera-se, no monasticismo, numa realizacio meritéria dos santos. A autonega¢io do seguidor revelou-se nele como a derradeira auto-afirmagao espiritual dos piedosos. Foi assim que 0 mundo se infiltrou no seio da vida monds- tica, mostrando-se de novo perigosamente ativo. A fuga do mundo reve- lara-se como a mais refinada forma de amor ao mundo. Nesse fracasso da liltima possibilidade de uma vida piedosa, Lute- to foi alcangado pela graga. Viu no colapso do mundo mondstico a mao salvadora de Deus estendida em Cristo. A ela se agarrou, certo de que “nossos esforcos nada podem nem mesmo na vida mais piedosa”. Foi a graca preciosa que lhe foi dada, e ela Ihe despedagou toda a sua existén- cia. Teve que largar uma vez mais as suas redes e seguir 0 Mestre. Da primeira vez, quando fora para 0 convento, abandonara tudo — menos a si mesmo, seu eu piedoso. Desta vez, até isso lhe foi tirado. Nao seguiu o Mestre por mérito proprio, mas baseado na graga de Deus. Nao lhe foi dito: “E certo que pecaste, mas tudo j4 esta perdoado; permanece onde estas e consola-te no perdio.” Lutero teve que abandonar o convento e regressar ao mundo, nao porque este, em si, fosse bom e santo, mas sim porque também 0 convento nada mais era do que mundo. O caminho de Lutero para fora do convento e de volta ao mundo constitui 0 ataque mais incisivo que o mundo sofreu desde os tempos da primeira Igreja. A rendncia do monge ao mundo é brincadeira compara- da 4 rentincia que 0 mundo experimentou por parte daquele que a ele regressara. O ataque agora era frontal; 0 discipulado de Jesus passaria a ser vivido no seio do mundo. Aquilo que, em circunstancias especiais e com as facilidades da vida monastica, era praticado como realizagio especial passava agora a ser algo necessario, ordenado a cada cristao no mundo. A obediéncia perfeita ao mandamento de Cristo deveria aconte- cer na vida profissional de todos os dias. Assim se aprofundou de forma imprevisivel 0 conflito entre a vida do cristo e a do mundo. O cristo atacava o mundo de perto; era uma luta corpo a corpo. 4 Mal-entendido mais funesto nio pode ocorrer na interpretagao da obra de Lutero do que supor que ele tivesse proclamado, com o desco- brimento do Evangelho da graga pura, uma dispensa da obediéncia ao mandamento de Jesus no mundo, ou que a descoberta da Reforma tives- se sido a canonizacio, a justificagao do mundo mediante a graga que tudo perdoa. No conceito de Lutero, porém, a profissio secular do cris- tAo tem sua justificagao apenas no fato de nela o protesto contra o mun- do atingir a sua maxima intensidade. A vocagio secular do cristao rece- be nova legitimidade a partir do Evangelho somente na medida em que € exercida no discipulado de Jesus. Nao a justificagao dos pecados, mas sim a do pecador é que levou Lutero a sair do convento. Lutero recebera a graca preciosa. Graga, por ser 4gua sobre a terra sedenta, consolo na angiistia, libertagaio da escravidio do caminho auto-escolhido, perdio de todos os pecados. Graga preciosa por nao isentar ninguém da obra, antes chamando com insisténcia ainda maior ao discipulado. Mas justa- mente naquilo em que era preciosa é que ela era graca, e no que era graga, era preciosa. Era este o segredo do Evangelho da Reforma, 0 se- gredo da justificagdo do pecador. No entanto, 0 vencedor da histéria da Reforma nao é 0 reconheci- mento de Lutero a respeito da graga pura e preciosa, mas sim 0 apurado instinto religioso do ser humano para descobrir onde é que a graga pode ser conseguida mais barata. Bastou um deslocamento muito ligeiro, quase imperceptivel, da énfase, para se consumar a obra mais perigosa e des- trutiva. Lutero ensinava que, mesmo nos caminhos e obras mais piedo- sos, 0 ser humano nao poderia subsistir perante Deus porque, no fundo, procura-se sempre a si préprio. Em face disso, ele préprio agarrara-se, na fé, 4 graga do livre e incondicional perdao de todos os pecados. Ao fazé-lo, Lutero sabia que essa graga Ihe custara toda uma vida —e ainda Ihe custava diariamente, pois a graga nado o dispensara do discipulado, antes era agora que estava verdadeiramente comprometido com ele. Ao falar da graga, Lutero referia-se implicitamente 4 sua prépria vida, vida que somente através da graga fora colocada na obediéncia plena a Cris- to. Nao podia falar da graga de outra maneira. A graga tudo faz, dissera Lutero, e seus seguidores repetiam-lhe literalmente essa afirmacdo; com uma diferenga, porém: muito em bre- ve, deixaram de fora, deixaram de pensar e dizer aquilo que para Lutero sempre estava implicito em seu pensamento: o discipulado, aquilo que 15 ele j4 nao precisava dizer expressamente, pois falava sempre como pes- soa a quem a graga conduzira ao mais Arduo discipulado de Jesus. A doutrina de seus seguidores era, assim, inatacdvel do ponto de vista da doutrina de Lutero, e, no entanto, foi seu ensino que resultou no fime na destruigao do movimento reformatério como revelaciio da graca precio- sa de Deus na terra. A justificagao do pecador no mundo transformou-se em justificagao do pecado ¢ do mundo. A graga preciosa transformou-se em graga barata sem discipulado. Quando Lutero afirmava que nossos esforgos nada podem nem mesmo na vida mais piedosa e que, por isso, aos olhos de Deus, nada vale senio “a graga e o favor do perdio”, dizia~o como alguém que até entdo e naquele mesmo momento se sentia novamente chamado ao disci- pulado de Jesus e a deixar tudo 0 que tinha. O reconhecimento da graga foi para ele a ultima ruptura radical com 0 pecado de sua vida, jamais, porém, ajustificagaio do pecado. Na aceitagao do perdao, esse reconhecimento foi a ultima rentincia radical 4 vida sob orientagdo prépria, e, por isso, s6 entio tornou-se um chamado sério ao discipulado. A graga era para Lute- ro um “resultado”, mas um resultado divino, nao humano. Esse resultado, porém, foi transformado por seus sucessores em premissa basica para um calculo. Nisso consiste todo o desastre. Se a graga € o “resultado” da vida crista, dado pelo préprio Cristo, entao esta vida nao esta dispensada, um Unico momento sequer, do discipulado. Se, porém, a graca constituir premissa basica de minha vida crista, entao tenho nela, antecipadamente, a justificagao dos pecados que cometer durante minha vida no mundo. Posso agora pecar apostando nessa gra- ¢a, pois o mundo esta, em principio, justificado por ela. Permanego, por isso, em minha existéncia de cidadania mundana como até agora; tudo fica como antes, € posso viver na certeza de que a graga de Deus me encobre. O mundo inteiro tornou-se “cristao” 4 sombra dessa graca, mas oO cristianismo mundanizou-se sob essa graga como nunca. Desapareceu © conflito entre a vida crist4 e a vida profissional de cidadao mundano. A vida crista consiste em viver no mundo ¢ tal qual o mundo, sem dele me distinguir, seja no que for, nem devendo — por amor da graca — dis- tinguir-me dele, embora, em determinadas oportunidades, eu saia do mun- do para entrar no 4mbito da Igreja, para af me assegurar do perdao dos pecados. Estou dispensado do discipulado de Jesus — mediante a graga barata, que é inevitavelmente 0 mais acerbo inimigo do discipulado, e 16 que necessariamente odeia e ultraja o verdadeiro discipulado. A graga como premissa inicial é graga da mais barata; a graga como resultado éa graga preciosa. E assustador reconhecer 0 quanto depende da forma como uma verdade evangélica é expressa e posta em pratica. Eamesma men- sagem da justificagiio téo-somente pela graca; no entanto, a ma utiliza- Gao dessa mensagem conduz a completa destruigio de sua esséncia. Quando o Dr. Fausto, apés uma vida dedicada a pesquisa do co- nhecimento, diz: “Vejo que nada podemos saber”, estamos diante dum resultado, algo completamente diferente do sentido que esta mesma fra- se teria se pronunciada por um estudante de primeiro semestre, para jus- tificar sua preguiga (Kierkegaard). Como resultado, essa frase é verda- deira, mas, como ponto de partida, é uma ilusdo. Isso significa que 0 conhecimento adquirido nao pode ser separado da existéncia em que foi obtido. Somente quem se encontra no discipulado de Jesus, renunciando a tudo quanto possuia, pode dizer que é justificado téo-somente pela graca. Essa pessoa vé 0 préprio chamado ao discipulado como sendo graca, e a graca como sendo esse chamado. Engana-se, porém, a si pr6- prio quem se julga por ela dispensado do discipulado. Mas n§o teria o proprio Lutero se aproximado perigosamente des- ta total perversdo da compreensao da graca? Como entender a frase de Lutero: Pecca fortiter, sed fortius fide et gaude in Christo -““Peca com coragem, mas cré com coragem ainda maior e alegra-te em Cristo”? (En- ders III, p. 208, 118ss.). Isso significaria: afinal, tu és pecador e nada po- des fazer para te livrar do pecado; quer sejas monge, quer mundano, quer pretendas ser justo, quer sejas fmpio, nao conseguirds escapar a armadilha do mundo; pecas. Peca, pois, com coragem — justamente baseando-te na graca ja acontecida, é claro. Estarfamos nés diante da proclamagao aberta da graca barata, da carta branca ao pecado, da aboli¢ao do discipulado? Estariamos diante do convite blasfemo de pecar 4 vontade, confiados na graga? Haverd afronta mais diabdlica contra a graga do que pecar confia- do na graga que Deus nos concedeu? Nao tera razaio 0 Catecismo catélico ao reconhecer neste pecado o pecado contra 0 Espirito Santo? Para compreender bem esta relag&o, tudo depende da distingio entre resultado e premissa. Se a frase de Lutero for encarada como pre- missa duma teologia da graca, ent&o est4 proclamada a graga barata. Mas a verdadeira compreensao da frase de Lutero consiste em vermos nela nao o principio, mas exclusivamente o fim, o resultado, a pedra

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