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urbanismo fabio duarte CRISE DAS MATRIZES ESPACIAIS Sw 2 EDITORA PERSPECTIVA isl y \\ LM? 339 Dados Intemacionais de Catalogagaio na Publicagdo (CIP) (Cimara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Duane, Fabio, 1970 — Crise das matrizes cspaciais : arquitetura, cidades, geopolitics, wenocultura ¢ Pabio Duarte. -= Sio Paulo ; Perspectivas: FAPESP, 2002, — (Debates ; 287) Bibliografia. 1. Arquiteturs 2, Espago CArguitetura) 3. Geopolitica 4, Mattizes 5. Redes de informagio 6, Urbanismo L Titulo. IL. Série 02-4826 CDD-720,1 Indices para catilogo sistemdtico: |, Matrizes espaciais : Crise : Arquitetura 720.1 Direitos reservados & EDITORA PERSPECTIVA S.A, Av, Brigadeiro Luis Antiinio, 3025 ‘D1401-000 - Sic Paulo — SP — Brasil ‘Telefax: (0--11) 3885-8388 www .cditoraperspectiva.com.br 2002 SUMARIO deoradeniiiaiites avec para teneceniateaveteterd b Introdugéo Metodolégica . wae ate eave kS PRIMEIRA PARTE L. Do Espago vi... Espago Postulado . . wil diendedt 30 > Espaco Produzido viviawerwieccaien. 38 Consirugdes ... 0.0... | Construgio do Espago . | Construgio do Lugar . Construgie do Temitério : : 76 Concettos em Crise... cc cece eee eee BO Processos de Desterritorializagio .............., 90 | Espago/Teenolégica/Critica .......... Os: L Nio-lugares no seu Devido Espaco .... OT {42 Matrizes Espaciais . . . | Espago/Territério/Lugar | Espago/Espago .... | Espago/Territdrio . ‘Territério/Territério . , Territério/Lugar . , Lugar/Lugar .. “= Espaco/Lugar . 5. Cena Contempordnea. . Espagos da Modémidade ¢ e sua Crise . ae Continuidade ou Ruptura na Pés-Modernidade . . . Paradoxos da Globalizagao . ri Sociedade Informacional, suas Redes ¢ s seus si sluxos os SEGUNDA PARTE 1. Arqeitetiare Matriz Es) Blipse Cathe’ «ccc ceascenc Histéria e Linguagem, Aldo Rossi e Peter Eisenman .... 2. Cidades e Redes . Redes ......0. Cidades do Espaco de Fluxes. ‘ ets Silicon Valley, Silicon Alley e Cidade Multimidia a 3. Geopolitica . . Ne or cermcene ae Mundo Intemacional a wiser Matriz Internacional de ‘Rayawnd Aran. Sistemas em Xeque , , Matriz Civilizacional de Samuel Hun ington . Territdrios e Redes . 4. Tecnocultura .. . Cultura Tecnolégica € ‘Ciberespago ere Virtualidades .......... satettererts Transarquitetura de Marcos Novak 101 104 106 107 Log 12 1l4 115 M17 118 123 129 137 143 147 157 164 166 175 176 180 185 193 196 206 212 215 223 229 231 235 238 Arquitetura Fluida de Nox .. . Espagos Hibridos de Knowbotic Research. . Antértida tecnolégica ......... TO_dencies: maquinico urbana . . 5, Reflexdes Finais 253 Bibliografia . . INTRODL IGAO METODOLOGICA Os fundamentos do espago (como ele é vivido cotidiana- mente, proposto intelectual ¢ artisticamente, ou constitufde | politicamente) vém sendo questionados em diferentes iireas | do conhecimento como artes, arquitetura, sociologia, geopo- litica e filosofia. Porém, ao observarmos eventos contempora- neos ¢ argumentos dessas disciplinas, duas perguntas se colo- cam: de um lado, com opinides Lio diversas, sera que todas essas dreas tralam do mesmo espaco? De outro, sera que toda essa discussao sobre o espago nao seria apenas um dos apon- tamentos de uma transformagdo transversal das formas de conhecimento do mundo atual? * Essas perguntas ensejaram varias outras, que serdio aber- tas ao longo deste trabalho. Mas é necessirio desvendar que elas indicam duas abordagens tedricas ¢ metodoldgicas dis- lintas. Na primeira pergunta, o espaco é considerado como o objeto de pesquisa, sendo sua discussao aprofundada atra- vés do estudo dos variados eventos e de diferentes aborda- gens tedricas. Na segunda, 0 espago seria mais um instru- iz mento de pesquisa quando, a partir de sua definigho coneei- tual, demonstrar-se-ia como cada uma de interpretagdes indicam mudangas nao exclusivas do espago, ¢ sim dis pro-- prias disciplinas que o trataram. Os dois procedimentos inves- tigativos seriam legitimos ¢ trariam bons resultados, mas sus- citariam réplicas imediatas: se usado como instrumento, coma: proposto na segunda alternaliva, pressupor-se-ia Um oi ceito definitive de espago, o que, pela primeira, é justamente o que parece estar sendo questionado — além do fato de que, possivelmente, cada uma das disciplinas entenderia 0 espa- co distintamente. Isso colocaria em dtivida a validade do pro- cedimento instrumental, obscurecendo ainda mais a aborda- gem tedrica, mea Para estudar o que as diferentes manifestagdes acerca do / espace revelam sobre ele e sobre si mesmas, percebeu-se en- tio a necessidade de trabalhar de modo sincrénico os dois. processos, tendo como objeto tedrico ¢ instrumental as matri- zes espaciais, permitindo atender as necessidades intelectu- ais despertadas pelos eventos em diferentes areas do conhe- cimento, no intuito de compreender a significagao do espagoy posto em evidéncia, e aquilo que esse espago multifacetad evidencia da dinamica conternporanea. O que es este try trabalho propée é a construgado de uma estra- tégia p paraa apreensio e comp io das crises de conceitos fundameniais que vivemos, priv eu CAL cardter espacial elegendo criteriosain como os seus trés conceitos de base © espace, 0 territério e o ‘lugar, que possuem substrato. co- mum, mas especificidades que Ih ‘discussiio de cada termo, propde-se a construgao de matrizes. entendidas como a organizagao de paradigmas de varias dis- ciplinas que formam uma predisposig#o para a apreensao, com- preensdo ¢ construgiio do mundo, Elas no sao o seu modelo, a sua forma; sio suas matrizes, que 0 constituem € por ele sao constitufdas. Desse modo, através da construgfio de matrizes intelectuais proposta neste livro, discutiremos a crise trans- versal das matrizes espaciais no mundo contemporaneo, to- mando como objetos de andlise obras ¢ eventos em arquitetu- ra, urbanismo, geopolftica e tecnologias informacionais, id A metodologia empregada durante a pesquisa para a este trabalho foi marcadamente heuristica, através da aproximagao atenta a obras ¢ eventos que tiveram fungao catalitica na cons- trugdo de um procedimento intelectual de pesquisa ¢ questionamento. O processo intelectual heuristico, discutido com profundidade por Puchkin arte da observacho de SERmUEGE HINGUONTER Gor cya “como ura reltmago” e possibilitam 6 eco de suas cal sficas em face de out de ouir outros. similares;-mas, pare-que-sirvanr de instrume ental i intelectual, nece ssitam dé uma sistematizagaa, tanto para serem compre- endidos | como para permitirem a consirugao de instrumentos genéricos de conhecimento, Com esse procedimento, nao se busca Tormalizar um corpo tedrico que induza a conclusées pretendidas. A heurfstica é inicialmente um processo abdutivo, buscando as conexdes entre os eventos por suas possiveis similaridades, a partir do que se pode ou nao esbogar em um sistema ltedrico coerente. Seu procedimento no é, portanto, linear, com uma resolugao levando imediatamente 4 outra, mas faz com que a cada aproximagio dos objetos, qualidades nao apreendidas despertem a atengao para novos problemas, ¢ a estrutura intelectiva seja questionada e incrementada, Ou seja, um método que pernita, como escreveu Lucrécia Ferrara (1986: xiii), a “ihuminagao reciproca entre o objeto de estudo eo arse- nal de informagoes de que disp6e o pesquisador”. Por fim, pode-se pensar na diferenga metodoldgica entre dispars ¢ compers, discutida por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995). Compars busca extrair leis constantes de varidveis para cons- truirum modelo “legalista”: é modelo de conhecimento que opera como decalque; enquanto dispars propde-se a colocar as Varidiveis em estado de constante mutagio, buscando sin- gularidades na matéria ao invés da constituigdo de uma forma fixa: é como um mapa, sempre suscetivel a mudangas, deven- do ser lido em diferentes dimensdes, relacionando fatores dis- tintas aos interesses do observador e A escala estudada. Esse procedimento de trabalho nao é tanto feito por uma escolha consciente tomada antes de sua execugdo, mas pela contigio de estimulos constantes. Trabalha-se no limite da seguranga, pois, diversamente de uma pesquisa que parte de conceitos chaves para estudar um caso, a escolha é justamen- is te o estudo de eventos aparentemente jsolados com a inten- fo de se colocar intermitentemente em xeque os conceitas que, ao mesmo tempo, devem iluminar esses eventos. O risco acompanha toda a pesquisa € ainda finaliza com uma aparente traigtio que o autor faz-se a si mesmo, pois se durante todo o trabalho caminhou-se do despertar heuristico & busca dos fundamentos conceituais, a serem confirmados ou questiona- dos, no momento da apresentagio dessas reflexGes o cami- nho deverd ser invertido. Mas essa iniversiio possibilitou a construgio de uma base conceitual ¢ metodolégica comum e& coerente para todo o trabalho, Assim, o livra se inicia com as reflexdes tedricas, passando pela apresentagao do panorama que envolveu as acontecimentos, questionamentos € pesqui- sa, para entao se deter em obras ¢ eventos que despertaram a reflexao tedrica e agora serdo por ela iluminados. Vale, por fim, tomar algumas idéias de Thomas Kuhn para clarear 0 modo como a pesquisa foi feita, Para ele (1983), a histdria das ciéncias nfo deve ser considerada como um pro- cesso evolutive, mas transformada por revolugSes paradig- maticas. Revolugdes que provenharm ou incitem crises no seu meio de pesquisa podem ecoar em diversas fireas de conheci- mento, a ponto de alterar as idéias bisicas de uma sociedade sabre o mundo. Apés uma revolugao, héum drduo periodo de depuragiio das novas teorias € experimentos. Trabalho de lim- peza tedrica que caracteriza um dos conceitos chaves de Kuhn: a ciéncia normal, que se fundamenta em diversas posigdes tedricas aceitas pela comunidade, através das quais cré-se ter instrumentos suficientemente aptos pata se explicar os fatos. ‘A ciéncia normal é basicamente cumulativa ¢ seu trabalho sobre certos paradigmas tende & constituigio de regras que deverm reger todos os eventos, Até que elas nfo sejam mais adequadas. Hé entao uma crise da ciéneia normal, que Kuhn -vé se resolver de trés modos: ou ela mostra-se eficaz o sufici- ente para absorver 0s novos problemas e resolvé-los a partir de seus patadigmas ¢ logicas interiores: ou ni os resolve e, nenhum outro procedimento intelectual surgindo para eselarecé-los, tais problemas sio deixados de lado para uma aproximagao futura; ou, finalmente, surgem dessa crise novos pardimetros que nao se enquadram na eiéneia normal existente 16 o—iss—s—*”r Serio aceifos como norteadores dos novos procedimentos ntificos. Daf vém as revolugdes paradigmiaticas. Kuhn adverte que, mesmo nao sendo abordadas, tai Se mudangas de paradigmas nao devem ser lomadas sem- pre como ‘algo intern iéncias, mas freqiientemente como Tesultake-{au, ao menos, profundamente influen iadas) por fatores externos, sejam ideoldgicos, religiosos ou tecnoldgicos oO destaque dado as crises cientificas apontando seu desen- volvimento marcou uma importante itansformaciio na maneira. de se ver as ciéncias, ressaltada por diversos autores que desde entiio se reportam a Kuhn, ‘Fnire eles, Edgar Morin (1977: 28) prescreve Oso atifocritico dos acontecimentos” com informagGes que podem desestraturar os sistemas concebi- dos para mantér certa coeréncia inteligivel (segindo 0 para igma dominante) do mundo, Mundo que tsando exemplo de orin, niio obedece auma ordem intema do Cosmos, mas sim se constroi por uma sucessao imprevisivel de acontecimentos que s¢ ramificam, metamorfoseiam-se. Mas € necessario cui- dado para nao sobrevalorizar a informagao em si, ou se espe- cializar ao extremo em acontecimentos singulares, como as ciéncias, na sua fase normal, tendem a fazer — o que, Kuhn concorda, exacerbou-se na modernidade. A atengiio aos acon- tecimentos éressaltada nao pelo privilégio de uma ciéncia em profundidade, mas para a ativagio de todo o pensamento, ] A valorizagao de um paradigma e a especializagao das ciéncias encontrou sucesso no que Bruno Latour (1995; 12) chamou de ciéncia feita, acabada, que, vista no interior dos laboratérios, bibliotecas ou no campo, pouco guarda do uni- verso complexo da pesquisa. Numa tdbua de dicotomias, o autor coloca a ciéncia (entendida como feita) como segura, sem ligagées com vida exterior em seu dominia, restrita me fatos que nfo séo discutidos; enquanto a pesquisa é arrisca- da, incerta, guiada por ramificagdes externas. Latour analisa que, apés vinte anos da critica feita por Morin, esta havendo uma crise da sobrevaloragéo da ciéncia perante a pesquisa, atestando uma mudanga de paradigma no préprio procedi- mento de se interessar por uma pesquisa, executa-la conside- rando fatores extermos ao laboratério e exp6-la durante todo a processo — que sc mantém, ao fim, aberto, Latour toma como i? exemplo o projeto Genoma que ha alguns anos deixou de um assunto de especialistas para atrair investimento m em equipamentos, com seus avangos e problemas intemos. discutidos em piblico, Essa mudanga de escala, envelvendo- mais pesquisadores de outras areas ¢ com investimentos en- curtande os passos do trabalho, seria ao mesmo tempo uma decisio cientifica, administrativa, técnica ¢ industrial, Os eon- ceitos, finalmente, niio seriam considerados paradigmas guias de uma neva ciéncia normal, mas entidades estratégicas para se conhecer e também se inserir no mundo. Se se pensar nos momentos criticos dos paradigmas de Kuhn, é importante notar que Latour indica uma crise no proprio fazer cientifico que alinge mais as ciéncias ditas duras que as ciéneias sociais € que o autor reconhece em questées puiblicas respondidas no final do livro. ‘Tais argumentos de Kuhn, Latoure Morin interessam aqui porque este trabalho vai trafegar por diferentes disciplinas tendo consciéncia de alguns perigos que podem se voltar contra 0 process de pesquisa. Primeiro, os acontecimentos nao serio tomados em si, como se através deles se vislum- brasse principios conceituais essenciais, ¢ sim por screm a mulerializagio de processos que nao se escondem neles, acon- tecimentos, mas nas possiveis relagdes que mantém com ou- tros, formando um sistema. Segundo, nao se quer partir de uma afirmagao tedrica para entéo induzir suas comprovagbes através de citagées esparsas em diversas disciplinas. O pas- seio por diversas reas de conhecimento é a constatagao i cial de que a crise das matrizes espaciais foi despertada por eventos digpares ¢ dispersos em campos do saber, o que pode indicar uma transformagio global, tanto da matriz espacial em si quanto de outros sistemas que, interdependentes, buscam entender ¢ organizar o mundo, Finalmente, a partir da constru- ¢fo de conceitos estratégicas, a0 mesma tempo instrumentos tedricos e metodoldgicos, a volta aos eventos que desperta- ram este trabalho lem o intuito de ressaltar ¢ entender como se da sua crise; porém, como o principio gerador deste trabalho & a suposigio de uma crise de paradigmas fundamentais (no caso, espaciais), os instrumentos metodoldégicos e tedricos que serao construfdos ¢ utilizados portam sua propria critica is em estado latente. E o risco a se tomar quando se tenciona discutir as crises; mas é também o fornento quando se quer um texto critica, Analisar a crise de paradigmas negando sua importincia como se néoexistissem ou tivessem sido superados, pode ser uma luz, mas apenas se for considerada a metifora de uma embarcagfio i deriva, que, sem saber como navegar num oce- ano de fluxos que n&o consegue ler, langa um tire luminoaso esperando salvamento. E chamativo, mas € fatuo. Como es- creveu Kuhn, um paradigma estrutural ¢ o dpice de uma cién- cia que, na seqiiéncia, dedica-se a comprovd-lo e a questiond- lo. Na sua auséncia completa ou pretendida, todas os fatos t6m a mesma importancia — que se no momento de ebuligdo da crise pode ser proveiloso, sua manutengio leva-os 4 impor- tincia nenhuma, Por isso o destaque de Kuhn na histéria das ciéncias como periodos normais, crise de paradigmas, cons- trugao de outros periodos normais — esses tanto esclarecen- do como alimentando as potencialidades dos novos paradig- mas e, ciclicamente, ao leva-los ao seu maximo, coloci-los nhovamente em xeque. Assim entendida a crise, pode-se passar a0 segundo ter- mo do titulo deste trabalho, as matrizes. Qutro conceito da mesma ordem, 0 de sistema, far-se-d presente aqui com certa conslincia, Mas nao devem ser confundidos, A principio, podemos entender os sistemas como compostos por elemen- tos que devem funcionar de determinada maneira regularmen- te, absorvenda e completando as fungies uns dos outros. Se 0 senso comum concorda que os sistemas so mais do que a_ soma das partes, Edgar Morin (19 -69) lemibra que sfio também menos que a soma das partes, pois para que um siste- ma seja e _Wdrias potencialidades de cada um de seus ele- mentos nao podem se manifestar em prol do funcionamen- ‘todo conjuints. A ciéncia normal exposta por Thomas Kuhn constitui-se em um sistema, com seus conceitos e instrumen- los caracteristicos que buscam explorar e explicar todos os fenémenos, A crise se dé justamente quando os fatores exte- riores so fortes o suficiente para demandarem certa conside- i9 ragiio que o sistema, pelos elementos que integra e pelo modo como os organiza, ndo mais responde devidamente, A ciber- nética estudou profundamente os sistemas e sua organiza- ao, buscando esclarecer as propriedades e as fungdes de elementos estranhos mas a eles compati Eo principio bisico da entrada e safda de dados numa caixa preta, Pode-se tanto desvendar o funcionamento do sistema analisando como os elementos entraram e como sairam ou, conhecendo 0 siste- ma, determinar as safdas correspondentes a cada elemento E © procedimento basico de compreensio tanto da caixa preta dos aviGes como da estrutura das linguas ocidentais. Conhe- cendo-se os caracteres é as regras da lingua portuguesa € poss{vel saber que, numa brincadeira de forea ou palavra cru- zada, por exemplo, apds um P nao se coloca um Z ou outro P, eainda se tema gama de elementos possiveis (as cinco vogais mais L ¢ R). Qualquer eventual inclusiio de outro elemento serd detectada primeiramente como um erro — mesmo que de- pois se constate uma mudanga das regras do sistema (no por- tugués brasileiro, hé algumas décadas o H seria também uma probabilidade} ou um possivel questionamenta do proprio sis- tema. A tecnologia é comumente consider: de uma ligagio retroalimentadora da ciéneia e da economia, a0 tesmo tempo em que substrato e fermento da civilizagio, & dita por Edgar Morin (1969: 70) como o feges universal. Ela tem em sistemas que funcionam adequadamente sua base de desenvolvimento, o que se torna patente quando se analisa a industrializagio em face do desenvolvimento econdmico, po- litico ou urbano seu contemporiineo, Podemos nos lembrar de Metropolis, de Fritz Lang, filme do final da década de 1920, em que toda a organizagdo social ¢ politica devia funcionar de acordo com o sistema industrial hegemdnico, formando um grande sistema econémico, social, teenoldgico e ideoldgico. Tal temitica foi retomada diversas vezes tanto pela literatura quanto pelo cinema, da séitira de Ternpos Modems, de Charles Chaplin, aos episddios semanais de Chapéu Coco ¢ Bota de Coure, nao se alterando essencialmente no sério Alphaville, de Jean-Luc Godard, ou na sdtira ds casas modernas de Mew Tio, de Jacques Tati. Em todos os casos, havia um sistema que ida como resultado 20 tenia como esséncia ou abjetive a organizacdo de toda a socie- dade — mas que poderia ser subvertido, séria ou humoristica- mente —, demonstrando claramente a existéncia de elementos que o sistema nfo consegue integrar. A organizagao dinfmica de elementos de uma tecnologia industrial ¢ seu vinculo com o sistema econémico capitalista foi motive de estudos sobre como toda a sociedade, a partir desses dois paradigmas conectados, formaria um grande sis- tema, Claro, o espago foi lido af_pela sua inclusdo, Miltoy Santos (1989: 18) afirma que homens, firmas e instituigdes se- le um “verdadeiro sistema” comandado pelo dui lugda Gominante — ¢ sua consegiiente distrib 5 0 se emtende ¢ como se organiza o espaco, Uma implicagao des- Secalsictis Indusilal’s copntmico encontraré seu eco ideolégico no trabalho de Henri Lefebvre (1981) sobre o espa- ¢o, considerado ele proprio um produto desse sistema, Em certa medida foi uma questao aproximada que deu inicio a algumas obras de Milton Santos (1989: 5), que se pergunta “como passar do sistema produtivo ao espago?”. Ambos as autores serao discutidos em momentos oportunos, ressaltan- do, entretanto, que um dos fatores da crise — mote deste traba- lho - é que tal sistema, para o bem ou para o mal, niio funciona tGéo engenhosamente a ponto de determinar todas as instan- cias da vida. Nem do espago. Santos (1989: 23) vé a possibilidade de estudar o espago por estruturas conceiluais (econémicas, politicas ete.) e nfo sistemas, pois, para ele, a consideragiio das sistemas implica na determinagio precisa de seus elementos, seus atributos ¢ a telagdo entre eles, enquanto a idéia de estrutura absorve defi- nigdes mais amplas do que podem ser entendidos como seus elementos pertinentes. Em suas obras seguintes, que aqui te- rao maior importancia, o espago deixa de ser uma instincia como a econémica ou a sociolégica para ser tratado como um fundamento global. A critica ao entendimento de todos os aspectos do mundo como sistemas foi abordada por Jean Baudrillard quando tratou os objetos industrializados corri- queiros que constituem a paisagem do cotidiano. Concorda com o conceito de sistemas tecnoldgicos, sociais, cientificos al e econémices que engendram os objetos tecn¢ Hogicos até que saiam das fabricas ~ onde mesmo sua funcion lidade pre- cisa foi planejada, Mas, ¢ quando, através do uso, da pritica cotidiana, essas pretendidas fungdes sfio subvertidas’? Se ha um sistema de objetos, como ele comporla os usos imprevis- tos, que alteram sua fungi, seu significado e seu papel na dindmica cotidiana que, afinal, nao funciona tic engenhosa- mente como os sistemas tecno-ideoldgicos previam? Novamente recorrendo a Kuhn, a formagio de um siste- ma requer a exist@ncia técita de paradigmas norteadon es, Pois bem, quando se analisa a crise dos préprios para 418, nao se pode coneeber um sistema que funcione perfeitamente — algumas tentativas serfio discutidas, mesmo sabendo-as in- frutiferas até o momento. A idéia de estrutura que Santos le- vanta, nem o préprio autor dard continuidade explicita em suas obras seguintes, talvez pelo perigo por ele mesmo apontado de que, se desligada da fungdo, ela leve a um “estruturalismo anistérico ¢ formal” (Santos, 1989: 66), que nao consideraria, portanto, aimportancia capital das transformagées para a vida dos conceitas. Chega-se, assim, 4 idéia de matriz utilizada neste trabalho a partir de Paul Veyne (1986: 6-33), que as entende nio como evidéncias materiais, mas formadas por alguns dos conceitos ordenadores da realidade, A histéria deixaria de ser analisada pelos fatos inscritos num tempo e espago fisicos para ser en- tendida pela formalizagio de problemas ¢ idéias provenientes de varios sistemas conceituais interligados em matrizes, pelas quais a histdria seria tanto responsavel quanto por elas seria regida, Raymond Aron (1959; 87) deu como exemplo que a tempo que César levaria para chegar a Paris seria 0 mesmo que ode Napoledo, séculos depois, para chegar a Roma; entretan- to, a Roma de César e a Europa de Napolefio sfio espagos & tempos histéricos distintos. Portanto, as matrizes espaciais, privilegiadas neste estudo, nao devem ser entendidas como submetidas & histéria ou A geografia, mas como um dos con- ceitos instrumentais para a formagao e andlise de eventos so- ciais, culturais, econémicos ou politicos. 22 _Desse modo, entende-se uma matriz como a organizagao_ de paradigmas de varias disciplinas que formam uma predis- posigao para a aprecnsio, compreensio e construgio do mado, As fronteiras entre civilizagdes podem revelar os fun- damentos de diferentes matrizes, sejam temporais, sejam es- paciais. Quando os europeus chegaram 4 América, percebe- tam e intervieram no novo continente munidos de matrizes espaciais alimentadas pelos sistemas religiosos, filoséficos, econdmicos e técnicos que possuiam, ¢ que divergiam fron- talmente das matrizes dos habitantes locais. Estudando as representagdes que os europeus fizeram do Brasil, percebe-se que a carta de Pero Vaz de Caminha ao rei portugués descreve que encontrou filtrado pela matriz espacial que ele portava da Europa; 0 mesmo vale para representagdes da flora, fauna e indios brasileiros (que, alias, nao se imaginavam brasileiros) que sao freqiientemente misturadas com figuras mitolégicas européias ou simplesmente figuras imagindrias que povoa- yam qualquer mundo desconhecido, misterioso. Félix Guattari (1989: 27; 1992; 23-25), em suas constantes criticas 4 psicandlise freudiana, considera que mesmo as for- mas de subjetivagdo se transformam na histéria de acordo com certas matrizes; desse modo, assim como o teatro grego ou 0 amor corlés em suas épocas, oséculo XX tem em Sigmund Freud e sua insisténcia na sexualidade e na infiincia, na mito- logia e no passado reincidente, uma matriz repleta de neuro- ses, histerias e psicoses pela qual se poderia analisar o mundo contemporineo — que, em parte, ela mesma formou, Ainda sobre a psicandlise, é o que Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995: 52) eriticam em relagio & obsessiio a alguns moldes de andlise: “Freud nem escuta, olha seu cao ¢ responde: ‘é pa- pai’”. Para este trabalho, o que importa nio é o objeto da discussio de Deleuze e Guattari, mas notar como tal procedi- mento criticado pode representar o extremo das matrizes, quan- do elas esto a0 mesmo tempo na formacdo e na apreensio de um mundo até © ponto em que o discurso torna-se prisioneiro de si mesmo, ou seja, usa-se uma matriz para guiar uma leitu- rade uma realidade que se cré, desde o principio, ser formada pela mesma matriz.

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