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O PODER DAS BIBLIOTECAS a meméria dos livros no Ocidente ERS Sob a diregito de Mare Baratin e Christian Jacob Tradugao de Marcela Mortara Editora UFRJ 2000 Sumério ERE Nota preliminar 7 Prefétcio Christian Jacob 9 Z Da ordem dos livros & carta dos saberes: utopias e inquietudes Redes que a raz4o desconhece: laboratérios, bibliotecas, colegdes, Bruno Latour 21 Ler para escrever: navegacdes alexandrinas, Christian Jacob 45 | Bibliotecas portdteis: as coletaneas de lugares- comuns na Renascenga tardia, Ann Blair 74 A biblioteca como interagdo: a leitura ¢ a linguagem da bibliografia, David Mckitterick 94 } Warburg continuatus, Descrigao de uma biblioteca, Salvatore Settis 108 Novas ferramentas, novos problemas, Roger Laufer 155 Entre dois mundos: a biblioteca de Gabriel Naudé RS Certamente, 0 Advis pour dresser une bibliotheque nao ¢ 0 mais conhecido dos livros de Gabriel Naudé. Mesmo nas obras de juventude, entre as quais se coloca, nunca teve a reputagio da Instruction a la France sur la vérité de Uhistoire des Freres de la Roze-Croix (1623), ou, sobretudo da Apologie pour tous les grands personnages qui ont été faussement soupgonnés de magie (1625). Nahistéria da libertinagem erudita, da qual Naudé é uma das grandes figuras, ¢uma das mais complexas, esse texto, reconhesamo-lo, no ocupa sendo um lugar secundério, ¢ René Pintard nao parece ver nele muito mais que uma obra de circunstancia, composta pelo autor para agradecer ao presidente de Mesmes, seu protetor, por Ihe ter devolvido suas fungdes de bibliotecétio, por ocasiéo do retorno inopinado de sua viagem de estudos em Pédua.! Depois de sua primeira publicagao, em 1627, o Advis nao foi freqtientemente teimpresso — para a Franga, duas edigdes no século XVII, em 1627 ¢ 1644, uma no século XIX, em 1876, duas reedigdes contempordneas em 1963 € 1990 — ¢, se nao foi de todo esquecido, é, ao que parece, essencialmente que uma ttadigao bibliogréfica, ou melhor, bibliotecéria, escolheu fazer le um marco na histéria de seus interesses. Tendeu-se, com isso, a fazer pequeno tratado de Naudé um texto fundador — 0 que ele provavelmente fio sustenta. As vezes, quis-se ver nele um manifesto isolado, quando, na dade, ele sé adquire sua plena significagao relacionado com os usos bates intelectuais de seu tempo. O Advis é a obra de um homem jovem — nascido com 0 novo século, jaudé tem 27 anos quando o publica — ¢ que passou a maior parte de sua lida no meio dos livros, ¢ com homens para os quais os livros compunham paisagem mais familiar. Estudante brilhante e precoce, passou incessantemente uma biblioteca a outra, essencialmente em Paris, depois na Itélia do Norte, nte alguns meses de uma permanéncia interrompida pela morte do pai. © PODER DAS aipLioTEcas bots Munpos (..) as de Milo e Pavia (..), as da Espanha eas velhas de Cambridge e Oxford (.), a5 da Franga (..."4 Foi nos livros, nao nas prateleiras, que Naudé aprendett algo sobre 2 maioria delas, De modo geral, ele gosta de citar, Compraz-se em elaborar intermindveis listas de referéncias, n3o 2 maneira dos escoldsticos, preocupados em se apoiar em autoridades, e sim pelo prazer de reconhecer e fazer conhecer a imensidade do mundo dos livros. A um século de distancia, e num contexto muito diferente, h4 um pouco de Rabelais esse espitito juvenil: o sentimento muito forte de que imensos painéis da “histéria da cultura jé estdo acessiveis, e de que é também legitimo redescobri- jos ¢ apaixonar-se por eles; o gosto dos vastos afrescos onde, em cinco frases quinze autores, cle traga um esboco da histéria das heresias cristas ou do ‘istotelismo, da medicina ou da astronomia moderna. Por mais brilhante ue tenha sido, Naudé nao leu, evidentemente, tudo o que cita, mas seria rado acusé-lo de fanfarronice. O que ele mostra admiravelmente é que sabe se situar na biblioteca universal. Com seu aprendizado universitdrio, mas provavelmente ainda mais com sua precoce freqiientagao dos meios eruditos, ele adquiriu facilidade para se mover no mundo livresco do conhecimento. Devemos entao nos surpreender se identifica tao espontaneamente a organiza- io da biblioteca e o dominio do saber? Certamente nao, pois, além de sua €quacao pessoal — seu zelo, seu talento, sua agilidade —, ele reencontra as Onvicgdes mais fortes e mais audaciosas de seu tempo. de M. de Mesmes, conselheiro do rei e presidente do Parlamento. O 0 cerca, pois, de todos os lados. No entanto, Naudé ainda nao ¢ um verdadeiro profissional. Falta. experiéncia ¢ a lenta acumulagio do saber. Os mais autorizados de contemporaneos tiveram consciéncia disso. Em outubro de 1627, Jacc Dupuy — que é, com seu irmio Pierre, uma das maiores figuras desse pec no mundo erudito — envia o Advis a Peiresc: “O autor é bem novato escreve. Fala de pessoas que nao conhece, e que também nunca tinham ow falar nele”. Citime, rancor de um mais velho diante de um individuo brilhe com pressa de marcar seu lugar e sua posigao? Peiresc parece confirméclo sua resposta, na qual compartilha o sentimento do amigo: “Esse Naudé m bem que sé viu a claridade por um buraco, como se costuma dizer, vis falou tio perfunctoriamente das pessoas cuja mengo era fundamenta tornar seu livro recomenddvel . Entretanto, agradeco-lhe o livro, do qual ficado avido, se nao o tivesse visto”.? Portanto, as primeiras razées da in desses homens maduros so bem claras: Naudé queimou etapas, nfo a seus predecessores a homenagem que tinham o direito de esperar de que devia tanto & prépria experiéncia deles, Mas, sem diivida, nao seria nos limitarmos a isso. O que se critica no jovem autor é também o tratar, de modo abstrato e, muitas vezes, peremptério e simplificado, de e escolhas longamente experimentadas numa prética cotidiana que tem, ou tem ainda téo pouco;? de apresentar como regras de evidé resultado de uma longa inteligéncia do livro, dos habitos da discussao en € da sociabilidade que se constituiu em torno delas, ¢ que se faz comb pelo nome ambicioso de Reptiblica das Letras. Assim, aos olhos dos velhos, Naudé se apresenta como o tiltimo a chegar, aquele que capit em seu proveito as aquisiges dos predecessores que o acolheram em cfrculos, e se atribui o direito de fazé-las conhecer 14 fora. A biblioteca ideal, em todo caso, a mais préxima do modelo que ele Poca no Advis, é, aos olhos de Naudé, a que ajuntou longamente, desde fados dos anos 1570, Jacques-Auguste de Thou (1553-1617), presidente ; Parlamento de Paris e autor de uma notavel Histoire de son temps, cujo pio volume, publicado em 1604, incorreu nas censuras eclesidsticas.> peers, 38 seu tempo, a mais bela biblioteca particular de Paris, ela k Bescon lo oa de6 mil volumes Por ocasido da morte de seu fundador. Rican » No ce sua importincia numérica que Ihe vale seu prestigio, Se ae jaudé a apresente como exemploa seu protetor-empregador, is . © Mesmes, mas, antes, suas caracteristicas culturais e técnicas, estreitamente dependentes das primeiras. De fato, 0 que ele conhece de primeira mao das biblioteca, em est4 limitado, além de Paris, & de Padua e & Ambrosiana de Milao, que 4 no caminho. Portanto, néo nos deixemos enganar pelas listas nas enumera, com um prazer visivel, “as bibliotecas de Roma, Napoles e Fl :, Be itliones “chuanienne”, como a denomina freqiientemente a moda sua $3 Pea, € uma insttuigfo particular. Este primeir tago merece cg ltado, pois signiicaivo de um momento histérico em que as los particulares vém substituir instituig6es tradicionais, As desordens 218 219 © rope pas mipuiorecas das guerras de Religiéo prejudicaram, ¢ as vezes devastaram, as coleg eclesidsticas, em particular as bibliotecas dos mosteiros: muitas vezes, tamb abalaram os recursos materiais das casas religiosas. As bibliotecas dos seming ainda nao vieram substitui-las (e sabemos que, na Franca, os efeitos da refory muito freqiientemente miserdveis. A biblioteca do rei - da qual de Tho diretor de 1593 até sua morte, em 1616 - também ficou sujeita &s vicissi do tempo, € nao encontrou, de parte dos sucessivos soberanos, um in referéncia absoluta por seu tamanho e pela riqueza de suas colegGes, € das manifestagées vistveis do poder total do rei muito cristao. Nesse int foram as colegdes particulares que, durante boa parte do século as de familias aristocréticas, de membros do alto clero, bispos ¢ cOm também as de personagens de grande linhagem. Chegamos aqui a um segundo cardter da biblioteca de Jacques-At de Thou. Ela é, com um certo numero de outras, obra de um alto magis parisiense, e manifesta a importancia e a forga da cultura da classe park: na Franca moderna, Trata-se aqui de um macigo cultural, cuja andlise conjunto, apesar de numerosos trabalhos eruditos j4 existentes, tem aind ser escrita. Robert Mandrou tinha reconhecido seus grandes eixos num trab que, infelizmente, ndo péde ser acabado. Denis Richet e seus discipulos particular Robert Descimon, mas também uma vigorosa historiografia an saxOnica, enriqueceram muito nossos conhecimentos nos tiltimos vinte Lembremos, pelo menos, que se trata de um meio ligado, por sua ao crescimento do Estado moderno, mas que — durante o longo periods perturbagdes que vai de meados do século XVI a meados do século X das Guerras de Religiio a Fronda — pés seu civismo e seu peso politi servico de um papel, muito diversamente expresso, de mediador entre as em conflito. Legalista e galicano, de Thou concentra em sua pessoa 0s 4 que, coletivamente, caracterizam 0 grupo parlamentar. Rico em pare ¢ em aliangas poderosas no seio da alta magistratura e no episcoP desempenhou um papel politico importante entre 0 assassinato de Hen III ¢ o restabelecimento da paz civil, na virada do século. Mas essa ati nao é separdvel da vontade, do engajamento e das preocupacées de um que, no momento em que tudo parecia ameagé-la, se esforcou por § 220 Entre Dots muxpos coesio social ¢ politica do reino, ¢ que nao cessou de refletir sobre os meios de tornar isso possivel. F aqui que sua atividade propriamente cultural adquire todo o sentido, ¢ ultrapassa a sensibilidade ¢ os interesses — bem reais — da pessoa particular. ‘A biblioteca que de Thou constituiu em condigées extraordinariamente dificeis ¢ precérias é uma das pecas, a seus olhos essencial, de um projeto politico geral. Ela é, por sua concepgéo ¢ pela sociabilidade intelectual que ele quis provocar em torno dela, um lugar aberto de encontros e debates. Ei destinada a mostrar, pela prtica cotidiana, que 0 comércio das idéias ¢ dos homens ainda é posstvel, se soubermos reunir as condigées para isso. De Thou foi preparado para essas escolhas por uma educago européia, menos universitéria que diplomdtica, que 0 pés, quando ele tinha 20 anos, em contato com homens ¢ lugares de saber, primeiro na Itdlia, depois nos Paises- Baixos, na Alemanha, na Sufga. Foi entdo que ele comegou a tecer a rede de conhecimentos, de amizades, de informagées, de compras também, cujos efeitos sua biblioteca vai capitalizar. Ele o faz nas piores condigées politicas, numa Europa em via de compartimentagao répida, onde a suspeita, 0 édio ¢ a guerra desorganizam os mais antigos circuitos de comunicagao. Mas podemos pensar que ¢ precisamente a ameaga j4 agora permanente contra a circulagao das idéias e dos homens, que valoriza, aos olhos dos membros da Republica das Letras, a salvaguarda, ou melhor, o alargamento de uma solidariedade dos letrados, sejam quais forem sua religido, sua fidelidade Politica, sua origem nacional. A correspondéncia e a troca de livros séo os dois meios principais. Para isto, a biblioteca é 0 ponto de apoio preferencial. E ali que as pessoas se encontram, no contato fisico do saber universal, para discutir livremente. Em torno de Jacques-Auguste de Thou, sobrepuseram- Se, beneficiando-se um do outro, um circuito imaterial de correspondentes €um grupo concreto de eruditos avidos de encontros e debates: de um lado, Joseph-Juste Scaliger, 0 amigo distante, mas também Justo Lipsio, Paolo Sarpi, Béze, Peiresc; do outro, os figis da biblioteca “thuanienne”, Isaac Casaubon, bibliotecitio do rei, Claude Dupuy (aparentado com ele) e seus tibes, Nicolas Rigault, Pierre ¢ Frangois Pithou, Claude Chrestien, Jean Jorman, Louis Servin, homens reunidos por interesses comuns, freqiientemente '82dos profissionalmente ao exercicio do direito, mas, em primeiro lugar, ‘Omens tolerantes, muitas vezes catdlicos galicanos desconfiados em relagao Roma, e atentos em nao romper com seus amigos calvinistas (como Scaliger ®4 Casaubon). 221 © rover pas aiptiotecas eae Mincs A biblioteca serve de nicho a essa sociabilidade preservada pela intelig ec pela vontade de didlogo. Mas, em compensagéo, é marcada por ela; responder as condigdes ¢ expectativas do circulo “thuanien”, ela deve enciclopédica, irrepreenstvel em tudo o que pertence & tradicao, &s autoridad mas também decididamente aberta 4 novidade, inclusive a mais audacig Nao é uma biblioteca de bibliéfilo, e sim de trabalho. Dai as exigéncias, Naudé faz suas no Advis: a primazia dada, antes, & qualidade das edigdes, gundo os critérios dos eruditos, que as obras raras ou preciosas; a preocuy em juntar o saber critico elaborado através do tempo e os comentario grandes obras; o interesse pela produgao contemporanea, a recusa dos interd das exclusdes, mas também das hierarquias aceitas com excessiva faci Essa concep¢ao traduz uma visdo otimista ¢ voluntarista, fundada nu: presentagao cumulativa do saber na histéria, que nao se deixa obnubilar, pelo prestigio dos antigos nem pelas partilhas abusivas que tentam imp hdbitos ou as autoridades. Ela comanda também uma concepgio total pragmatica do que se chamaria hoje de biblioteconomia. O tesouro dos deve ser ordenado segundo as classificagdes que serio, 20 mesmo tem| mais simples, as de uso mais ficil, e, sobretudo, deve ser 0 mais larga acessfvel. Je De Mesmes reproduz 0 modelo de De Thou em seus tragos principais, ge um circulo rico ali se encontra para realizar “conferéncias de livros” — de “nde saird o Advis —, 0 tom tende, pouco a pouco, a se alterar. Enquanto sobem as altas 4guas da reforma catdlica (€ sobretudo parisiense), sem que 5 ideal de tolerancia seja realmente questionado, 0 proselitismo comeca a se fazer sentir de modo cada vez mais insistente, ¢ a empobrecer o debate jatelectual. Sobretudo, enquanto o Estado absolutista afirma suas ambigoes ¢ prerrogativas, © meio parlamentar, cujo papel foi tio central no perfodo precedente, ndo esti mais s6 a encamar 0s valores que defendia no tempo de agitagbes, e esses valores se transformam. Se é preciso esperar até os anos 1660 para ver aparecer uma grande politica publica do livro, com o surgimento, energicamente sustentado, da Biblioteca Real, a continuidade comega a ser garantida por iniciativas politicas e culturais que ja sfo de outra natureza: 4s poderosas colegées reunidas por Richelieu, por Mazarin (pela qual Naudé seré responsdvel de 1642 a 1652), por Colbert, em grau menor pelo chanceler Séguier, ainda sio iniciativas privadas, mas criadas por grandes figuras que querem ilustrar assim sua acéo publica. Da heranga de De Thou, conservaram muitos de seus princ{pios ¢ praticas, a comesar pela abertura a0 mundo dos letrados, mas elas estio mais préximas do poder, ¢ sua sociabilidade se esvaziou, pelo menos em parte, de seu fervor militante, Néo imaginemos uma brusca substituico: trata-se, antes, de uma transi¢ao lenta, que vé coexistirem formas afins — pensemos no gabinete dos irmaos Dupuy -; diversificadas, mas que tendem a se tornar auténomas. Alids, outros lugares de confronto, outros ircuitos se oferecem aos militantes da Republica das Letras. O humanismo parlamentar est longe de ter desaparecido, mas nfo é mais que um dos tlementos de um dispositive mais complexo. E esse, extremamente resumido, o modelo que Gabriel Naudé ten mente, quando redige seu tratado em 1627, ainda mais porque a biblio de Thou, além de sobreviver a seu fundador, € continuada, ou mel ampliada por seus herdeiros ¢ continuadores, ¢, pelo menos até os anos I 1650, permanece, em Paris, uma referéncia inconteste. E nela que se insp as colegdes que retinem, nesse tempo, outros parlamentares, os Lamoignon, Bouhier d’Aguesseau, que ilustram entao o humanismo juridico e galicano. Também a colegao de Henri de Mesmes, da qual Ns € encarregado. Portanto, nao devemos nos surpreender se 0 vemos evo orgulho ¢ o sentimento de identidade de magistrado de seu protetof, abertura do Advis: Nao & apenas essa reorganizacio parcial da rede intelectual que esta Sendo questionada. As idéias também mudam. A libertinagem erudita, de que Naudé é uma das grandes figuras, distancia-se, nesses anos, do fundo de Convicgdes ¢ valores que tinham nutrido a cultura parlamentar. Distancias matéria de religido, mas também em matéria de polftica, como sabemos Besde © grande livro de René Pintard. Ela concebe também sua atividade Mtelectual em outros termos: mais discreta, 4s vezes mais secreta, est4 em busca de modalidades novas no que concerne as relagdes entre 0 bom uso «. f40 ¢ 0 exercicio do poder. Nao solicitaremos 0 texto do Advis para pres- ‘tir os tragos dessa evolugao. Mas a transformacio em curso, e a redefinicgao Cial dos objetivos e meios da Republica das Letras em sua versio francesa, © ao texto de 1627 uma situagio ambigua, pois ele tira a ligio de uma XPeriéncia que comega entao a cair no passado. [.u] Parece-me certo, uma vez. que 0 senhor domina e é superior em todas as ag6' naladas, que nunca permanega na mediocridade das coisas boas ¢ louvaveis; € no tem nada de baixo e comum, que também aprecie acima de todos os outros ea reputacdo de possuir uma biblioteca, a mais perfeita e mais bem equipada e conser de seu tempo! No entanto, no momento em que Naudé resumia o balango dé experiéncia de cingiienta anos, a situagao j4 comegava a mudar. Se a bibli 223 © PopeR pas pistiorecas Isso constitui um dos interesses do Advis que mereceria ser mai blinhado do que tem sido. Ha trezentos e cingiienta anos, ¢ hoje mais aj escolheu-se, com razio, ver nesse curto tratado um primeiro manii biblioteca moderna, ¢ é justo fazé-lo, embora nao seja tinico e pertenga tradigo mais ampla, na Franga e na Europa. No entanto, seria deplo —e, a meu ver, perigoso — erigi-lo como modelo intemporal, ou mesmo lo apenas na longa duragao da histéria da cultura livresca. O Advis € tan um texto datado, que se situa numa virada decisiva dos valores ¢ das p intelectuais do infcio do século XVII. Se o canonizarmos demais, correr 0 risco, atentando apenas para o que ele ainda nos diz, de perder de as sutis modificagées que assinala e que nos permite descobrir. Pois, verdade que a obra de Naudé é 0 manifesto de uma cultura do livro quer aberta, acesstvel, organizada unicamente segundo as exigén conhecimento critico, ela nos convida também a refletir sobre as cot concretas e varidveis em que esse programa geral e generoso pode ser do. Caberia pois retomar a vida ea obra inteira de Gabriel Naudé, confront todos os aspectos de uma atividade multiforme. Bibliotecdrio, ele se rigorosamente, em particular a servigo de Mazarin, aos princtpios proclamara no Advis, Erudito ¢ militante, teve também de se adentrz soube fazé-lo — por outros caminhos — os que as mutages de seu tem impuseram reconhecer.” Jacques Revel 224 PARTE Ill A TRANSMISSAO, A PERDA EO ESQUECIMENTO ORE Da biblioteca & gramdtica: 0 paradigma da acumulagéo ope ‘A propria génese da gramatica esté ligada & biblioteca. Provavelmente, ‘existiu um ensino gramatical antes de toda biblioteca, pois, assim que foi constituido um sistema gréfico alfabético, e mesmo silabico, ele foi ensinado: “esse conhecimento das letras é a especialidade evocada por Platao (Le sophiste, 253a) com o nome de gramdtica (grammatike). O objeto desse ensino era, ‘entdo, o aprender a ler ¢ escrever, ¢, como isso se praticava a partir dos textos méricos, 0 mestre ensinava a acentuar corretamente a leitura, explicava as alavras ou as expressdes poéticas encontradas ao longo do texto, contava os diferentes mitos que podiam esclarecer-Ihe o sentido, e com isso dispensava finalmente um ensino elementar amplo, suscetivel de dar acesso & base da cultura da época. A fundagio da Biblioteca de Alexandria, no inicio do século I a.C., fez evoluir esse estado primitivo da gramatica. De fato, esse ‘ontecimento provocou a reuniao de um ntimero considerdvel de manuscritos, atestando freqiientemente tradicées diferentes dos mesmos textos — dat, a necessidade de classificar esses manuscritos, de estabelecer os textos, de comenté- s para tornd-los acessiveis ao ptiblico e justificar-lhes as escolhas criticas. Esse foi o trabalho dos fildlogos alexandrinos, e, além das edigdes criticas Propriamente ditas, tomou a forma de coletaneas de termos dialetais, poéticos, ‘fora de uso, de monografias sobre a lingua de um ou outro autor ou sobre ificuldades particulares, de comentétios estilisticos, de aperfeigoamento dos Métodos de edigao, etc.’ Originariamente, o ensino gramatical e a atividade filolégica eram distintos, Entretanto, os gramaticos eram, por sua formagio, °S mais aptos a realizar esse trabalho filolégico. Assim, essas duas atividades Sram, muito cedo, consideradas como as duas faces de uma mesma Pecialidade, a gramética: j4 no inicio do século II antes de nossa era, istéfanes de Bizancio, quarto bibliotecério de Alexandria, é tido como 0 ior gramdtico de sua época, assim como seu sucessor Aristarco. Esta ‘imeira etapa na formagao dessa disciplina é 0 término de um proceso de © PopeR bas sipLioTEcas acumulagéo: quando a multiplicaggo dos manuscritos atingiu um limiar g que sua reunido em grande escala devia se apresentar como uma necessi surgiu o problema da unidade do texto em face da pluralidade dos manuscrita © é com essa constatagao da variante que nasce a filologia, integrada & g miatica por intermédio da explicaco de textos. A atividade filolégica nao se fundiu na gramética: ela se manteve con tal, permanecendo a pritica propriamente filolégica da critica textual, longo da Antigiiidade, um aspecto da atividade gramatical. Todavia, introdugao da filologia no quadro gramatical induziu também, e sobre auma modificagio nas finalidades que os graméticos atribufam a sua ativida e, finalmente, na propria percep¢ao que tinham da lingua. Com efeito, d das observacées acumuladas pelos fildlogos alexandrinos, surgiu — no perio de transiggo do fim do século II a.C. ¢ do inicio do século I —a idéia de borar regras gerais que fossem independentes dos usos particulares de tal tal autor, mas que pudessem, eventualmente, explicar ou justificar esses u particulares. Essa evolugao é perceptivel no amplo debate que se travou, momento, em torno da definigao da gramética, e do qual Sextus Empit nos transmite alguns elementos (Contre les grammairiens, 57-90). Tratav de dar a gramatica uma posigao na escala do saber (€ uma ciéncia?), € delimitar seu campo (0s textos, ou, mais geralmente, a lingua2). Assim, o nos relata ainda Sextus Empiricus (Contre les grammairiens, 91-93), procedimento gramatical, torna-se fundamental uma oposigao entre u parte dita historikon, em que a anélise procede caso por caso, ¢ uma dita rebhnikon, em que se trata de determinar regras gerais de funcionamer Passou-se assim, progressivamente, nessa época, de uma concep¢a0 gramatica como competéncia em matéria de textos a uma concepsao da tica como sistema da lingua. Esse problema é correlativo de outra evolucao, que se percebe na mest época no ambito da retérica. Pelo menos desde Aristételes ¢ Teofrast retérica comporta uma andlise das “qualidades do discurso”, que S40 exemplo, as que cita Teofrasto: corregio, clareza, conveniéncia, orname” Entretanto, ha duas maneiras de conceber a “qualidade”. Pode ser, de in © que se distingue, para melhor, do comum; é 0 caso, por exemplo; ornamento, que é, em princ{pio, um melhoramento. Mas nem tod qualidades podem ser consideradas como melhoramentos em relacao @¥ norma: a corregio, em particular, néo pode ser concebida senZo como norma. O estudo da corre¢ao levava, assim, a um tipo de andlise espee 228 Da piBLioreca A cRamAtica em relagao 4 perspectiva retérica; realmente, a corregio depende de regras que se podem aplicar indistintamente a qualquer discurso, sem preocupacao com seu contetido ou suas intengGes, isto é, sem preocupacio com o que é apropria esséncia da perspectiva retérica. Interessar-se pela correcao ¢ interessar- se pelo que, num enunciado, ¢ independente das circunstancias em que € emitido ou da pessoa que o usa. A corregao pertence & lingua, nao ao discurso. O estudo dessa qualidade que ¢ a corregao dissociou-se, pois, decididamente, daanilise retdrica, tornando-se o amago de uma disciplina vizinha, a gramatica. Fst4 af todo o sentido da concepgao da gramatica como sistema: tratava-se de por em evidéncia as propriedades comuns ¢ invaridveis da Iingua, numa palavra, seus aspectos sistemdticos.? Levando mais longe a indagacio, no século I antes de nossa era, os gramiticos se interrogaram sobre os fundamentos do “sistema”, sobre 0 que aucorizava a dizer (além da constatagao empfrica espontinea) que uma forma era ou nfo correta. Interrogaram-se, entio, a respeito dos proprios critérios da corregio: este é 0 tema das pesquisas sobre a analogia, o principal critério do ponto de vista de um sistema de Iingua, ¢, mais geralmente, dos numerosos estudos Peri hellénismou, continuados mais tarde no dominio latino sob 0 titulo De latinitate, e atestados desde 0 século I a.C. Tendo chegado a esse ponto, a gramitica antiga se apresenta como a racionalizacao de uma acumulagao: autoridades lingiifsticas, os textos sao a diversidade, materializada e manifestada em sua origem pela biblioteca, e a gtamdtica, nascida dessa acumulagao, se apresenta como o princfpio racional que permite nos encontrarmos na diversidade, e, por conseguinte, lé-la. Todavia, essa concepgao da gramética encerra uma contradigéo que Sextus Empiricus explorou no século II d.C., mas que existia desde a origem da gramdtica como sistema. A critica de Sextus (Contre les grammairiens, 209- 216) se aplica ao préprio amago do dispositive gramatical de andlise da Correcao, isto ¢, ao exame do solecismo, ¢ Sextus integra essa critica em uma argumentacao destinada globalmente a negar a validade da nogéo de correcao €m matéria de gramatica. A base da argumentagao de Sextus é que s6 hé dois Stitétios possiveis: ou o uso (e, nesse caso, um solecismo € simplesmente uma Sombinagio de palavras que nao corresponde, como tal, ao que se diz comu- Mente), ou entdo a analogia (e, nesse caso, um solecismo é apenas uma combi- Macao de palavras que nao est4 conforme com a sistematizagao gramatical). Se @ analogia for empregada sozinha como critério do solecismo, chegar-se-4 a Absurdos, pois fSrmulas muito usadas deverio ser qualificadas de solecismos, 229 © rover vas 1OTECAS quando, manifestamente, nao sao erros; por exemplo, a formula Athinay polis (“Atenas é uma bela cidade”) é um solecismo em relagdo & sistemati gramatical, pois hd incoeréncia entre o plural Arhénai e o singular kale p ¢, no entanto, essa formula corresponde a um uso constante, que seria abs denunciar como erréneo. Por outro lado, se o critério utilizado for o isto significa que a analogia nao serve para nada, nem, por conseguin gramdtica. Em suma, o dilema no qual Sextus encerra a gramética visa efeitos da acumulagao: a gramética ¢ a ciéncia dessa diversidade que da acumulagio, mas, para dizer essa diversidade, ou simplesmente a rep € no serve para nada, ou entdo a sistematiza e, com isso, nao a diz Constata-se essa tensio nos tratados de gramética que chegaram nds? De fato, vemos neles uma tensio desse género, mas entre a estrutt desses tratados ¢ os exemplos citados, isto é, 0 corpus no qual se fundam esquema de andlise gramatical que se impés, ¢ que foi se afinando consta mente, € 0 da Ars grammatica, decalque do grego Tekbno, isto é umm de apresentacao da acumulagio sistematizada. Com efeito, a maioria dos tudos que nos chegaram segue um esquema tinico, de forma piramidal: defi ao de conjunto da categoria abordada, depois enumeracao das subcateg (accidentia), que podem ser elas prdprias subdivididas, ¢ assim ao infi de modo que hd virtualmente lugar para tudo (as classificasoes superpo nao sendo homogéneas), mas permitindo selecionar tal classificagao preferéncia a tal outra, para conservar apenas o que parece o mais sistemat Sem dtivida, cada gramitico € livre para efetuar, no detalhe, as escolhas n variadas: a selegéo deste ou daquele elemento a ser examinado, a 01 adotada, € nao apenas a doutrina aceita em cada ponto, tudo difere de u tratado a outro, sem que nenhum estabeleca em realidade uma verdade norma.’ No interior do que se supde ser a acumulacio sistematizada, a des dem € completa, a tal ponto que os gramAticos tardios experimentam 4 vex mais dificuldades para organizar sua matéria ¢ justificar a progressa0 q adotam,® Mas essa deriva apenas vem sublinhar 0 projeto inicial de sist matizacao: em seu principio, o esquema artigréfico visa uma explicacao glo do sistema da lingua. Diante desse projeto, qual é a lingua em questao? 7 0s exemplos que o indicam. Ora, em geral, sio exemplos de autores, mas autores arcaicos ou classicos, ao passo que os tratados de gramatica que poss mos sio tardios.” Em Prisciano, no século VI de nossa era, os autores latin¢ mais freqiientemente citados s4o Teréncio, Cicero e Virgilio, e o mais rece! © mais “moderno” é Juvenal, anterior de quatro séculos ao gramatico. gramdticas nao dao conta da lingua do gramdtico, a lingua usada, ¢ si 230 Da nipuiorEca A GRaMAtICA jingua dos autores, a lingua autorizada, e, sob esse aspecto, clas s4o, antes, reflexo da biblioteca do gramitico. Reflexo real ou suposto: nem sempre é possivel distinguir os exemplos tomados de empréstimo diretamente aos autores daqueles que o gramatico recebeu de seus predecessores. Mas 0 mago de fichas se apresenta aqui como uma biblioteca ideal: reduzida, limirada a alguns exemplos esclarecedores, moldada pela sistematizacao artigréfica, a diversidade inicial da qual se devia dar conta encontrou-se laminada pelo es- quema artigréfico, A fonte dessa evolugao est4 no outro componente original da gramatica, ou melhor, no tinico componente original da gramtica, a saber, a atividade pedagégica fundada na explicacio dos textos fundamentais. Enquanto a pritica filolégica era mais especializada, mais erudita, 0 ensino gramatical escolar devia primeiro assegurar uma base elementar. As Artes do III ao V século, que sao, antes de tudo, manuais, ilustram esse fendmeno, apresentando um leque restrito de autores citados. Em suma, a propria idéia de sistema generalizado, susceptivel de transcender a infinita diversidade surgida concre- tamente com as acumulagées de textos, tem como resultado, através de sua recuperagao escolar, servir de reflexo a uma biblioteca limitada. Essa contradigéo se patenteia, no extremo fim da Antigiiidade, no ul- timo grande texto gramatical que ela produziu, as Jnstituigées gramaticais de Prisciano. Neste tratado, redigido nos anos 525-527 em Constantinopla, Prisciano redefine os limites da exposigao sistematica de gramatica em relagao A tradigao latina, introduzindo, apés a apresentacao dos sons e das silabas, e em seguida, dos constituintes do enunciado (as diferentes categorias de palavras), um nivel Superior da andlise, que vem corod-la e conclus-la: a constructio, decalque do Btego suntaxis, isto é, o exame da combinacao dos constituintes do enunciado Uns com os outros. Esse tipo de andlise j4 havia sido praticado por gramaticos 8regos, notadamente pelo principal inspirador de Prisciano, Apoldnio Discolo, Ro século II de nossa era, mas em tratados independentes, ao passo que Prisciano 0 introduz numa obra de tipo artigréfico, isto é, numa perspectiva de conjunto, construfda segundo um esquema destinado a um brilhante futuro, pois nele se reconhece a tripartigao fonética/morfologia/sintaxe. Essa Movacao leva Prisciano a reencontrar o procedimento inicial da gramitica, 2 saber, a busca de uma racionalidade. Com efeito, todo o objeto da andlise, JA definido na introducao dos dois livros, 17 ¢ 18, consagrados & constructio, Sonsiste em encontrar a ratio, o principio explicativo, que rege as construcées 231 © PODER DAS BiBLIOTECAS atestadas pelo usus, pelo uso — ficando entendido, a titulo de pressuposy que todo enunciado inteligivel ¢ construido, e que toda construgao respon aum funcionamento sistemético, suscettvel de ser descrito. De fato, essa br de um funcionamento sistemético capaz de dar conta, do princ{pio ao fi de todas as construgées atestadas, acaba se perdendo em contradigées eg vez mais frustrantes, como se vé no inicio do livro 18. Este livro, o tilt das Instituigdes gramaticais, € essencialmente consagrado A construgao d casos e dos modos. Prisciano est4 encurralado entre duas exigéncias: a de d¢ nir um principio explicativo (ratio) ea de resolver uma multiplicidad empregos atestados (uss). Sob essa pressio, os esquemas inicialmente utili tendem a se pulverizar, ruindo sob o ntimero das construg6es particul Com efeito, Prisciano dispoe de alguns valores semanticos de base, ch pouco numerosos, para explicar 0 valor do subjuntivo ou o valor dos cas mas esses valores se revelam insuficientes, ¢ ele recorre a uma quantidade valores secundérios, cada um dos quais corresponde a uma estrutura pai lar; mas eles no podem dar conta dos mecanismos que regem, em seu junto, as estruturas consideradas. Por isso, depois de um longo tatear, Prise no interrompe bruscamente o tipo de andlise que usa desde 0 comego do li 17 einicia outro, que ocupa todo o fim do livro 18 (GL III, 278.13 - 377.18 Esse novo ¢ tiltimo desenvolvimento é uma espécie de léxico. Varias estrutut sio tomadas uma a uma, sem outra ordem senio a alfabética aproxi Para cada uma, Prisciano assinala os paralelismos ou as divergéncias que obs va entre o grego ¢ 0 latim, Em certos casos, sublinha a diversidade de const Ges no interior de cada lingua, particularmente no caso de construcbes tiplas. Cada rubrica ¢ ilustrada com exemplos, as vezes numerosos. Nada toda tentativa de interpretacao desaparece atrds da pura enunciagao do meno, atrds da simples citagdo do uso. Ora, essas anotagdes nao constit um simples apéndice: elas invadem todo o fim da obra, estendendo-se f 100 paginas da edigio das Instituigoes gramaticais, abrilhantadas com de 750 citagGes de autores. E uma massa enorme de dados, apresentados estado bruto. Ali podemos encontrar de tudo: estruturas j4 examinadas outras de que nunca se tratara, pontos de sintaxe ¢ outros de semantica, lati grego, etc. A busca de um principio explicativo, de uma ldgica interna estruturas, s6 permitiu a Prisciano dar conta de algumas estrucuras damentais. Mais que Apoldnio, Prisciano é sensfvel a essa limitagao da 74 em relacdo ao usus, Eis por que, depois de se debater com princfpios tedtic que ele tentava perpetuamente adaptar a uma realidade fugidia, Priscia abandona qualquer principio teérico, ¢ deixa o campo livre a sua antit 232 Da BIBLIOTECA A GRAMATICA o usus. A gramdtica se apaga diante de seus préprios exemplos; desaparece odo comentirio, toda construgao da exposicao, todo fio condutor.* E a acumulagio reencontrada, e com o motivo confesso do prazer, como salienta Prisciano, introduzindo essa lista: (..) Isso me levou a pensar que era necessério reunir, para todas as categorias de palavras, tum grande niimero de construgées variadas, tomadas de empréstimo aos autores gregos ¢ latinos: 0s exemplos dessas estruturas so um verdadeiro prazer € um constante proveito para todos 08 que se dedicam a merecer a honra de ensinar as duas Iinguas. Esse prazer s6 tem fim em sua propria saciedade: mais que terminar, a obra se interrompe com uma citago de Teréncio, Sed postquam intus sum omnium rerum satur (“Mas agora que estou aqui saciado de todas as coisas...”), que diz. que o término desse gozo da acumulagao sé reside na saturagao. Por que essa reviravolta ultima, esse retorno final 4 acumulagio primeira, essa substituigéo derradeira da ordem pelo prazer, que, mais que a enciclopédia de Isidoro de Sevilha, marca o fim da gramdtica antiga? Nao é indiferente que, as vésperas do desaparecimento de tantos textos, aquele que tem o encar- go de pér ordem na Iingua afirme a supremacia da acumulacéo: o essencial esté na existéncia da diversidade, e a ordem nao faz mais que pretender expli- cé-las. Essa ultima reviravolta devolve a gramdtica 4 sua fungao de transmissao do patriménio, fora do filtro que, na prdpria origem da biblioteca, através do fenémeno da resolucao da variante, pretendia reabsorver 0 excesso de texto. A gramatica tinha acabado por perder de vista a acumulagio de que tinha © encargo: seu fracasso, no término do percurso de Prisciano, vem lembrar- Ihe que sua fungéo primeira é permitir circular na infinita variedade dos tex- tos, e nado reabsorvé-los em simplificagdes normativas. Marc Baratin 233 AS BIBLIOTECAS ANTIGAS E A HISTORIA DOS TEXTOS ‘A reflexéo de Técito tem um alcance universal: ele se exprime de uma forma ‘lusivas talvez vise, como sugeriu Ronald Syme, a situagao de seu tempo. Em todo caso, ele consagrou a Cremutius um relato bastante circunstanciado, cujo propésito é evidentemente, mais geral: ele descreve a luta entre “o livro” ¢ “go poder”, ¢ se declara persuadido da vitéria final do livro. No fundo, em sua qualidade de historiador-senador, fala de si prdprio. As bibliotecas antigas ea historia dos textos eRe Ahistéria, de Tibério a Hitler, abunda em situagdes compariveis. Leo Lowenthal, que esbogou, em 1983, uma histéria das fogueiras de livros, fala, apropésito disso, de um verdadeiro “calenddtio de Caliban”. Ovidio, 0 poeta perseguido por Augusto por razdes obscuras, deixou Roma ¢ foi exilado em Tomi, um vilarejo bérbaro no mar Negro; seus livros, mesmo os mais “sérios”, como As metamorfoses, foram excluidos das bibliotecas piblicas de Roma. E por isso que Ovidio imagina, em Tristes (IIL, 1), que seu livro personificado, depois de viajar de Tomi para Roma, tenta em vio ser aceito numa das bi- bliotecas da capital: aquela fundada pelo préprio Augusto sobre o Palatino, oua de Asinius Pollion, nos locais do antigo Atrium Libertatis. Esse livro per- sonificado lembra a invengdo de Frangois Truffaut, em Fahrenheit 451, onde os homens “revoltados” se identificam cada um a um texto, decorado e reci- > secretamente, para evitar a repressio dos dominadores-destruidores de livros. Num poema escrito no exilio, Bertolt Brecht imagina 0 furor de autor, ao constatar que suas obras tinham sido esquecidas pelos nazista quando estes haviam queimado os livros numa fogueira, em 10 de maio 1933. “Er eilte zum Schreibtisch / zornbefliigelt, und schrieb einen Brief ar die Machthaber. / Verbrennt mich! Schrieb er mit fliegender Feder, verbret mich! / Tut mir das nicht an! Hab ich nicht immer die Wahrheit berichte in meinen Biichern? Und jetzt / werd ich von euch wie ein Liigner behande ! Ich befehle euch /: verbrennt mich!”.' Muito se escreveu sobre o “poder” do livro, ¢ esse proprio poder est na otigem da tensio que existe entre os livros eo poder. Goethe ficou impre sionado assistindo, um dia, & execugao capital de um livro, isto é, 4 climinaga fisica de um objeto inanimado na fogueira, segundo o procedimento usa para as bruxas. Lembramos também as palavras de Caliban em The tempe de Shakespeare, quando o detestavel beberrao sugere a seu companheiro mat Préspero, o humanista, c acrescenta: “Despoja-o, previamente, de seus livres privado de seus livros, ele é to tolo quanto eu” (ato III, cena II). “Livro de um exilado, estou chegando temerosamente a esta cidade para a qual ele me envia. Oferece leitor amigo, oferece uma mao benevolente ao Viajante cansado”: este ¢ 0 infcio da elegia de Ovidio. Nos versos seguintes, © livro se queixa de ter sido rejeitado em toda parte; até “a Liberdade” o expulsou: “De seu atrium, o primeiro que foi aberto as doutas obras, a Liberdade me proibiu o acesso”; entenda-se que os responsdveis pela antiga biblioteca de Asinius nao aceitaram em suas prateleiras o livro do poeta em desgraca. No fim do poema, 0 livro, decepcionado com tal acolhida, se dirige, pe tom lgtsmean. roll, a um piblico bem diferente: “E vés, diz - for possivel,, mdas plebéias, acolhei meus versos, envergonhados por terem sido rejeitados!”. Temos aqui uma indicagio preciosa sobre a difusio Popular” da leitura em Roma. A idéia de que os livros so investidos de um poder, ou de que el comunicam um certo poder a seus proprietdrios, € uma concepsao tipica 4 sociedades arcaicas, mas ela se prolonga até os nossos dias. A iniciativa ¢ imperador Tibério, que mandou queimar as Historias do senador-historiad Cremutius Cordus, é comentada por Técito nestes termos: Quanto a seus livros, os senadores encarregaram os edis de queimé-los, mas cles subsistira escondidos, ¢ depois publicados. As pessoas se comprazem mais cegueira dos que, por sua tirania atual, acreditam poder sufocar aréa seguinte. Muito pelo contririo, castigando os génios, aumenta-se stia autoridade, reis estrangeitos, ou 0s que exerceram a mesma crueldade, nao conseguiram nada {que vergonha para eles préprios e gléria para suas vitimas. (Armales IV, 35, 5) 7, a derivatur a liberare”, dizo Thesaurus da lingua latina (s.v. 1 27 4 etimologia é explicada por Cassiodoro (Unstiruriones, preficio do n ja maneira seguinte: ‘Liber dictus est a libro, id est arboris cortice H pto atque liberato ubi ante inventionem cartarum antiqui carmina lesctibebant”. Livro e liberdade se exprimem, pois, na lingua latina, com os Jembranga na geraga oa 235 © rover pas sisLioTecas mesmos signos alfabéticos. Podemos nos alegrar com esse feliz capricho lingua dos romanos. Em todo caso, liber permanece a palavra habitual, mes mo quando 0 rolo de papito se impée, ¢ 0 termo mais apropriado para indieg lo seria volumen. Haveria, pois, uma relagdo problematica entre os livros ¢ o poder, escala da histéria, nos confrontamos com dados contraditérios. De um |, 0 poder politico —a partir, digamos, da dinastia dos Ptolomeus, ou, em Rom a partir de Augusto — patrocina a criagao das bibliotecas; de outro, o pod exerce um controle mais ou menos rigoroso sobre a circulagao dos livros mesmo sobre sua existéncia. O imperador chinés Houang-ti mandou queim: todos os livros em 213 a.C. (trata-se do mesmo imperador que encerrou pais dentro da Grande Muralha). E preciso confessar que ele se comporta em relago aos livros, da mesma maneira que um imperador romano muit culto como Tibério, ao qual se deve, como lembrei, a iniciativa de ter m dado queimar os livros de Cremutius Cordus, historiador-senador tido com excessivamente “republicano”. A medida é, com certeza, diferente num & € no outro, mas o espirito que o inspira ¢ © mesmo. A lenda de Houang-ti é, podemos dizer, diametralmente oposta aquel quase contemporanea, de Ptolomeu II Filadelfo. Ambos dispoem de conselheiro: de um lado, Li Sseu, primeiro-ministro chinés, do outro, Demétr de Falero. Mas, enquanto Demétrio preconiza o desenvolvimento da biblio (pelo menos, se aceitarmos o relato um pouco fabuloso da Carta de Aris © primeiro-ministro chinés sugere a destruigo dos livros e dos arquivos. 0 objetivo que Demétrio ¢ Ptolomeu II visam é a acumulagao fantéstica livros do mundo inteiro num tinico lugar, o primeiro-ministro chinés horror ao conhecimento, julgado perigoso para a estabilidade do reino. E é consciente do fato de que a filosofia, o conhecimento histérico € a poe poderiam ser instruments para criticar o presente. Eis aqui suas palavtas “Qs que ousarem falar entre si do Céinone dos poemas e do Canone da histd serio executados, e seus corpos, expostos na praga do mercado”, diz Li Sset “Todo aquele que, referindo-se ao passado, criticar o presente, seré morte (...) Os livros que néo devem ser destruidos so os que tratam da medic da farmacia, da adivinhagio, da agricultura ¢ da arboricultura.” ‘Acrescentemos que a grande biblioteca dos Ptolomeus nao é, em pl cfpio, uma biblioteca piiblica: pelo contrdrio, era a biblioteca do rei, e mest os eruditos que a habitavam ¢ a animavam eram, em certo grau, “propried do rei. 236 AS BIRLIOTECAS ANTIGAS E A HISTORIA DoS TEXTOS Tudo que resta de uma civilizagio é 0 que ela escreveu. Pode-se escrever _ éverdade — tanto com os monumentos quanto com 0 alfabeto; mas, como diz Vitor Hugo num capitulo famoso de Nossa Senhora de Paris (1831), em eterminado momento isto, (o livro escrito) matou aguilo (a arquitetura- ssctitura). Entretanto, Hugo se engana quando afirma que a “arquitetura foi, ré.o século XV, o principal registro da humanidade”, e que, “nesse intervalo, nao apareceu no mundo um pensamento um pouco complicado, que nao se tenha feito edificio” (livro V, cap. 2). A formula é eficaz, mas unilateral. Tentemos imaginar o que seria nosso conhecimento da Antigitidade Classica, se nao pudéssemos nos apoiar em testemunhos escritos (manuscritos, sctig6es, etc.). Ora, a civilitas, a civilizagao urbana greco-romana, confiou sua meméria & escrita: os arquivos e as bibliotecas tornaram-se rapidamente, sobretudo a partir da conquista greco-macedénia do mundo oriental, os lugares € instrumentos privilegiados da meméria. Daf a importincia da histéria dos livros e das bibliotecas no mundo greco-romano. Essa histéria nos ensina como a meméria desta civilizagao foi conservada, ou parcialmente apagada, ou mesmo, em certos casos, totalmente perdida. Seguir os avatares das bibliotecas do mundo cléssico ¢ uma das condigées para compreender © estado de nossos conhecimentos sobre a Antigiiidade. A histéria de Atenas, que seus habitantes tinham a possibilidade de escrever, nao remontaria mais longe que a Pisistrato ¢ Sélon. Com excegao de Homero, nao havia documen- tacdo relativa as fases anteriores: Herédoto e Tucidides 0 reconhecem aberta- mente, e 0 segundo mostra também, em sua Argueologia (ivro 1), que, final- mente, a Grécia inteira sofria da mesma meméria “curta”. Baseando-se numa documentagio escrita, que remontava a muito antes da guerra de Tréia, os sacerdotes egipcios podiam, com razio, definir os gregos da época de Sélon como “criangas”, conforme lembra Platéo no Critias. Isto posto, devemos confessar que sé conhecemos, mais ou menos bem, ahistéria de um mimero muito pequeno de bibliotecas cléssicas, e, sobretudo, ue nao é diretamente delas que provém o que nos resta da Antigiiidade Classica, Considerada em seu conjunto, a histéria das bibliotecas da Antigiiidade Go passa de uma série de fundagGes, reconstrugées e catdstrofes. Um fio Invisivel liga todos os esforgos feitos pela civilizagao do mundo helenistico- Tomano para salvar seus livros, esforcos miltiplos e, em geral, ineficazes. Tudo Someca em Alexandria: Pérgamo, Antiéquia, Roma, Atenas séo apenas Tepeticdes. Destruig6es, saques, incéndios atingem infalivelmente as grandes 237 © rover pas BLIOTECAS. colegdes de livros. Mesmo as bibliotecas de Bizancio nao constituem excegg Por isso, 0 que subsiste néo provém dos grandes centros, que so, em gera os mais vulnerdveis, mas, de preferéncia, da periferia. Edward Gibbon, o maior historiador da decadéncia romana, liga ad; ravelmente, em sua obra (Declinio e queda do Império Romano, cap. Ul), lembranga melancélica do destino das bibliotecas da Antigitidade a um esbog da histéria da tradigao. A ocasiao Ihe é fornecida pela conquista drabe d Alexandria (22 de dezembro de 640) e pela controvérsia sobre a destruigs dos livros conservados, nessa época tardia, na antiga capital dos Ptolomeu Lamento sinceramente bibliotecas mais preciosas, que se encontraram envolvid; na ruina do Império Romano. Mas, quando eu calculo seriamente a distancia dos tempe 05 prejuizos produzidos pela ignorncia, e, enfim, as calamidades da guerra, mais espan me causam 05 tesouros que nos restam que os que perdemos. Grande ntimero de fat curiosos interessantes cafram no esquecimento; as obras dos trés grandes historiado de Roma sé nos chegaram mutiladas, e somos privados de uma quantidade de p agradéveis da poesia Iirica, iimbica e dramética dos gregos; mas devemos nos alegrar que os acontecimentos ¢ os estragos do tempo tenham poupado os livros classicos, quais o sufrégio da Antigitidade outorgou o primeiro lugar do genio e da gléria. mestres no conhecimento da Antigiiidade tinham lido ¢ comparado as obras de set predecessores; e no hd motivo para crer que uma verdade importante ou uma descober itil tenha ficado perdida para nés. (Trad. M.F.Guizot (1812), Paris, Laffont, o Bouquins, 1983, ¢. Il, p. 569.) 4 Gibbon identifica assim um princfpio regulador da tradicfo: cont varam-se, em primeiro lugar, os autores cujas obras formam uma “bacia recepcao” dos conhecimentos que as precederam. Cita trés nomes: Aristételé Plinio e Galeno. O exemplo mais evidente é 0 de Plinio (Histéria na cujo primeiro livro é inteiramente consagrado, além dos sumérios de ea obra, & enumeragao de todos os autores (latinos ¢ estrangeiros) retomad em cada um dos livros. Quanto a Aristételes, é quase supérfluo lembrar t © trabalho de pesquisa que est4 na base de seus tratados: pesquisa das ob dos autores draméticos, dos oradores, dos historiadores, dos pensadores qi © precederam, No fundo, & como se dispuséssemos ainda, embora indire tamente, das bibliotecas onde tais autores “enciclopédicos” trabalharam. Pel menos, € 0 que Gibbon nos sugere. O modo pelo qual Gibbon liga imediatamente a consideracio do de tino das grandes bibliotecas ¢ a histéria dos textos é admirdvel, mas o bal que estabelece ¢ um pouco “ao estilo de Pangloss”. Seu otimismo sing 238 AS BIBLIOTECAS ANTIGAS E A HISTORIA DOS TEXTOS nao deixa de ter significagao “teleolégica”, tio pouca estima ele mostra em relagao ao que foi perdido. Para apreciar a extenso do desastre, é preciso partir, mais uma vez, da Biblioteca de Alexandria ¢ de seu crescimento inexordvel. Eu gostaria de examinar, inicialmente, dois campos: as tradugoes e os comentarios. Uma rica tradigao, que nao seria razodvel recusar, atesta que, na grande biblioteca, um setor considerdvel era reservado as tradugées: Epifanio, De mensuris et ponderibus, cap. 9; Tzetzts, Prolégomdnes de la comédie, p. 33, ed. Koster; Georges le Syncelle, p. 516, ed. Bonn; Georges Kédrénos, p. 289, Bekker. A partir de Pfeiffer, considera-se geralmente que uma fonte helenistica bem informada se encontra na base desta tradigao: os dados sao coerentes, as cifras, um pouco fantasistas. No dominio dos comentérios, ninguém pode arriscar cifras; mas Ié também temos indicios. Gracas ao papiro de Berlim, sabemos que o comentério de Didimo as Filipicas de Deméstenes compreendia dezenas de rolos. Alids, um indicio notavel de nossa ignorancia neste dominio parece-me set 0 fato de que uma carta particular de um advogado de Hermépolis nos revelou a existéncia de um comentario a Deméstenes até entdo desconhecido: 0 autor éAlexandros Klaudios (Pap. Berol. 21.849). Ainda a propésito dos comentarios, cabe assinalar a amplitude de outra obra exegética perdida, a de Clitémaco consagrada a Carnéades: ela compreendia cerca de quatrocentos rolos, como nos informa Didgenes Laércio (IV, 67) segundo um pinax. E o retérico Themistius, num discurso (Or. IV) pronunciado em honra de Constancio II, por ocasido da fundagao da Biblioteca do Palécio em Constantinopla, nos informa que, entre as obras em perigo, os comentérios de Homero ¢ de Hesfodo se encontram em primeiro lugar. Num outro dom{nio, a historiografia — que se desenvolveu sem inter- Tupcio em todo o mundo greco-romano, ¢ cujos novecentos autores conhe- cidos, ou quase, classificados na coletinea inacabada de Jacoby, nao sao mais que uma amostra devida ao acaso ~, Hermann Strasburger propés, hé uns dez anos, um conjunto de célculos cujo resultado é 0 seguinte: a relacio entre textos conservados e textos perdidos ¢ de um para quarenta. Relagio que se torna ainda mais desfavordvel, se levarmos em conta os inumerdveis textos Perdidos sem deixar vestigios. Para estabelecer o balango dessas perdas, devemos considerar, de inicio, @ extenséo do “fenédmeno” das bibliotecas no interior do mundo greco- 239

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