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Racismo E CONTROLE SOCIAL NO BRASIL: HISTORIA E PRESENTE DO CONTROLE DO NEGRO POR MEIO DO SISTEMA PENAL RACISM AND SUCIAL CONTROL IN BRAZIL: HISTORY AND THE PRESENT OF CONTROL OF THE BLACK THROUGH CRIMINAL JUSTICE SYSTEM Luiz Pueure Dat SANTO Mestrando em Criminologia Critica e Sicurezza Sociale ~ Devianza, Istituzioni e Interazioni Psicosociali ppelas Universidades de Bologna e de Padova, Pos-Graduado em Direito Penal ~ Parte Geral pela Anca vo Direro: Penal Resumo: Em consideragao desproporcionalida- de racial na representacao da populacdo carcer riage entre jovens mortos pela policia, o presente artigo realiza uma andlise histérico-sociolégica com 0 escopo de apontar a estrutura racista do sistema penal brasileiro € seu funcionamento historicamente - mas no exclusivamente - vin- ‘culado ao controle social da populagao negra, re- chagando a hipotese da permanéncia de praticas racistas como meros ¢ eventuais comportamen- tos e manifestagdes individuais. Encontra nas relagbes coloniais 0 suporte material para cons- trugéo do conceito racial, instrumento a partir do qual emergiria o discurso criminolégico de inferioridade racial e se determinariam mecanis- mos especificos - violentos, punitivos e letais - de controle, de modo a legitimar € permitir 2 continuidade das relagdes de dominio, explora~ 80 € dependéncia preexistentes. Sequindo uma ‘ordem cronolégica apoiada em ampla revisdo bibliogrética, analisa o processo de integraco & rmarginalizagao do negro na sociedade capitalista Universidade de Coimbra. Advogado criminalista, \uizphelipee@hotmail.com Recebido em: 01052017 _—__Aprovado em: 0606:201/ {tima versio do autor: 19.06.2017 ‘Asstract: Considering the racial disproportiona- lity in the representation of the prison popula- tion and among young men killed by police, the present work performs a historical-sociological analysis aiming to point out the racist structure of the Brazilian criminal justice system and its operation historically - but not exclusively — lin ked to the social control of the black population, rejecting the hypothesis of the permanent racist practices as single and eventual behaviours or individual manifestations. It finds in colonial re- lations the material support for the construction of racial concept, from where emerges the cri- rminological speech of racial inferiority and from which specific mechanisms of control - violent, punitive anid lethal ~ are determined, in order to legitimize and permit the continuity of relations of pre-existing subjugation, exploitation and de- pendence. Following a chronological order based ‘on a large bibliographical review, it analyses the process of integration and marginalization of the black community in capitalist society after “Suto, Luiz Phelipe Dal. Racismo e controle social no Brasil historia € presente do controle do negro por meio do Sistema penal. Revista Brosieira de Ciencias Criminois. vol. 138. ano 25. p. 269-303. Sao Paulo: Ed. RI, dez. 2017. 270 Revista Brasiveira ve Ciéncias Criminals 2017 © RBCCaIM 138 apds a aboligao da escravidéo, recupera marcos _the abolition of slavery. It also recovers racist racistas no desenvolvimento do controle penal landmarks in the development of criminal ‘no Brasil e identifica, no presente, 0 sistemético control in Brazil and identifies, nowadays, the cumprimento de sua historica finalidade em re- systematic fulfilment of its historical objective feréncia, adaptado e materializado na politica de mentioned, adapted and materialized in the guerra as drogas. war on drugs policy. Patavas~cHave: Racismo - Colonialismo -Con- _Keyworos: Racism - Colonialism ~Social control - trole social - Politica criminal - Guerra as drogas. Criminal policy ~ War on drugs. ‘SuuAnw: 1. Introdugdo. 2. Controle social e praticas punitivas coloniais ¢ imperiais. 3. Cons- trugdo racial, criminologia manutenc&o de explorago pés-aboligéo da escravidéo. 4. Po- litica de guerra as drogas. 4.1. Militariza¢ao da marginalidade urbana ¢ letalidade policial 4.2. Sistema judiciario e 0 encarceramento em massa de negros. 4.3. A negagao a perma- néncia do racismo. 5. Consideracdes finais. 6. Referencias bibliograficas 1. InTRODUCAO Nao € raro o discurso de que formamos, no Brasil, uma sociedade que ha tempos superou 0 racismo. A abolicdo da escravidao, 0 reconhecimento da igualdade juridica (formal) e a criminalizacao da injuria e discriminagao ra- ciais sao elementos que reforcam a ideia de representarmos uma suposta de- mocracia racial. Em sentido contrario, jovens negros sao encarcerados e mortos sistematica e diuturnamente. Pesquisas empiricas constatam haver desproporcionalidade racial na composicao do sistema carcerario e das vitimas da letalidade poli- cial: no que se refere & populacao prisional, dois a cada trés entre os 607.731 detentos so negros'; ainda, negros (pretos e pardos, segundo a classificacdo dos Censos Demograficos realizados pelo IBGE) representam 73% das mortes violentas intencionais*. Quanto aos homicidios por arma de fogo, em 2014, 9.766 brancos ¢ 29.813 negros foram assassinados. Isto é, a cada 100 mil habi- 1. Dados obtidos no Levantamento Nacional de Informacées Penitencidrias INFOPEN, realizado pelo Departamento Penitenciario Nacional do Ministério da Justiga, em ju- nho de 2014, p. 1. Disponivel em: [wwwjustica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo- -relatorio-do-intopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf]. Acesso em: 16.03.2017. 2. O termo inclui vitimas de homicidios dolosos, de latrocinios, lesoes corporais se- guidas de morte e mortes decorrentes de intervencées policiais. Dados obtidos no Anuario Brasileiro de Seguranga Publica de 2016, realizado pelo Forum Brasileiro de ‘Sato, Luiz Phetipe Dal. Racismo e controle social no Brasil: historia e presente do controle do negro por meio do sistema penal. Revista Brasileira de Ciéncias Criminais. vol. 138, ano 25. p. 269-303. So Paulo: Ed. RT, dez. 2017. Crime € SOcIEDADE 271 tantes, 10,6 brancos e 27,4 negros sao mortos (WAISELFISZ, 2016). Ademais, 0 mais recente Atlas da Violencia indica haver, entre 2005 e 2015, uma redugao da taxa de homicidios de nao negros em 12,2%, enquanto, no mesmo periodo, verificou-se um crescimento de 18,2% nos mimeros de homicidios de negros (IPEA, 2017). Frisa-se que uma parte consideravel dessas mortes é causada pelos proprios agentes da seguranca publica. Segundo apontado no relatorio O bom policial tem medo: os custos da violencia policial no Rio de Janeiro, elaborado pela Human Rights Watch (2016), os negros, que representam 52% da popu- lacao do Rio de Janeiro, correspondem a 77% das pessoas mortas pela policia carioca em 2015. Nao por outro motivo, faz-se necessario tornar claro como as supracitadas desproporcionalidades sao construidas em um contexto de radismo estrutural € institucionalizado, expandido a todas as areas da vida. De tal sorte, preten- de-se apontar aqui 0 racismo nao como praticas individuais oriundas de des- virtuosos atores das agencias do campo de controle do crime, que fazem mau uso da lei. Portanto, distante de um cenario conjuntural, intenta-se definir 0 racismo institucional presente na politica criminal brasileira como um instru- mento especifico de controle social da populacao negra, o qual emerge em um determinado periodo historico e se estende até o presente. Nesse sentido, urge iniciar a abordagem de tal questao pela raiz do proble- ma, isto €, por uma breve andlise sobre o colonialismo e seus efeitos, sendo certo que a opcao metodolégica tomada no presente artigo nao segue um re- lativismo epistemologico radical, aceitando, portanto, a possibilidade de utili- zacao e comparacao de marcos tedricos e conceitos acumulados de contextos heterogeneos, todavia necessariamente adeyuando-os a realidade brasileira de modo empiricamente possivel. 2. CONTROLE SOCIAL E PRATICAS PUNITIVAS COLONIAIS E IMPERIAIS Considerando a confusao conceitual de “controle social”, antes de se dis- correr acerca das particularidades de seu modelo no Periodo Colonial, € con- veniente apresentar duas principais compreensdes do termo em questao. A primeira se refere a ideia do Leviata de Hobbes, da qual se extrai que a tinica maneira de se evitar 0 caos ¢ a sujeicdo ao Estado soberano, cujo controle so- cial € exercido pela manifestacao do poder, legitimada pelo pacto social. Outra Seguranea Publica. Disponivel em: [wwwforumseguranca.org.br/storage/10_anua- Tio_site_18-11-2016-retificado.pdf]. Acesso em: 16.03.2017. ‘Sau, Luiz Phelipe Dal, Racismo e controle social no Brasil: historia e presente do controle do negro por meio do sistema penal. Revista Brosileira de Ciéncias Criminais. vol. 138. ano 25. p. 263-303. S80 Paulo: Ed. RI, dez 2017, 272 Revista BRASILEIRA DE Ciencias Criminals 2017 © RBCCaiM 138 concepcao compreende controle social como o relacionamento e a interacéo dos individuos entre si em determinados grupos sociais, estendendo-se a to- das as relacdes sociais. Segundo Melossi (1997, p. 79, traducao livre), controle social consiste na “reproducao das relacées sociais e politicas tipicas de uma certa formagao social, econdmica e cultural”. Prevalece, nesta ultima, 0 con- trole social informal, sendo secundario o ambito repressivo do controle social formal, Nao obstante, mais importante aqui € a abordagem da pratica de controle social em patses que, como o Brasil, foram colonizados. Stanley Cohen (1988, P. 172-189) oferece duas possiveis interpretacées de tal processo nesse contex- to: transferéncia benigna, que € compreendida como decurso natural da ordem de progresso ou modernizacao da sociedade, como um proceso linear de evo- lucao da civilizacao humana; e colonialismo maligno, que compreende controle social como um meio de producao e reproducao de relagdes de dominacao poder, relacdes desiguais ¢ hierérquicas, que acabariam causando, consequen- temente, a relacao de dependéncia dos paises de Terceiro Mundo. E € exatamente a partir da segunda interpretacdo que se construiré a relacao entre controle social, criminologia e construgao racial. Até a promulgacao da Independéncia do Brasil, em 1822 — isto 6, a0 longo do sistema colonial? -, a pratica punitiva e 0 controle sacial eram domésticos. Nesse sentido, Zaffaroni e Nilo Batista (2015, p. 414) asseveram que (...) a predominancia de um poder punitivo doméstico, exercido desregu- lamentadamente por senhores contra seus escravos, ¢ facilmente demons- travel, e constituira remarcavel vinheta nas praticas penais brasileiras, que sobrevivera a propria abolicdo da escravatura. Essa forma de poder punitivo foi também facilitada pela inexistencia de uma estruturacao burocratica minima (ZAFFARONI, BATISTA, 2013, p. 419). Além da violencia ilimitada por meio das praticas punitivas domésticas da exploragao de trabalho forcado como processo civilizador, destaca-se como representacao do violento método de colonizagao o genocidio indigena co- 3. Apenas como curiosidade, indica-se uma participacao indireta do Brasil nas praticas Punitivas globais na época em tela: a extracao de pau-brasil, primeira atividade exer- ida no processo de colonizacdo em meados do século XVI, resultava na exportacao da madeira a Holanda, sendo utilizada nas atividades de extracao de tinta nas rasphuis de Amsterdam (ZAFFARONI; BATISTA, 2015, p. +12), as quais antecederam 0 mo- derno modelo de institui¢ao prisional (MELOSSI; PAVARINI, 2006). ‘Saw, Luiz Phelipe Dal. Racismo e controle social no Brasil: histriae presente do controle do negra por melo do sistema penal. Revista Brasileira de Ciéncias Criminais. vol. 138, ano 26. p, 269-303. S80 Paulo: Ed. RI dez. 2017, ‘ CrIME € SOCIEDADE 273 metido pelos colonos, para viabilizar 0 processo de acumulacao primitiva’ em terras brasileiras. Conforme assevera Sartre (1968, p. 9), “a violéncia colonial nao tem so- mente o objetivo de garantir o respeito desses homens [colonizados] subjuga- dos; procura desumanizé-los”. Nessa conjuntura, ressalta-se que o controle social, no Brasil, tem origens extrema e essencialmente autoritarias, repressivas e de sujeic¢ao nas relagdes sociais. Destarte, assim se constitui, como violencia primaria, a violencia es- trutural, que consiste na privacao e repressao de direitos, ou melhor, de ne- cessidades dos individuos colonizados, dominados e explorados, quando nao exterminados. Dessa violencia estrutural, que interfere e prejudica qualquer projeto de desenvolvimento concreto de cidadania e democracia®, emergiria a violéncia institucional, das instituigées e dos instrumentos do Estado, que se prorrogaria até os tempos atuais. Na primeira metade do século XIX, tem inicio no Brasil 0 processo de co- dificacao. Em 1824, uma Constituicdo liberal, e em 1830, um Codigo Crimi- nal que seguira a principiologia iluminista da burguesia liberal europeia. Com eles, um notavel paradoxo: em que pese ter sido assumido (juridicamente) © ideal liberal, manteve-se a mao de obra escravizada. Esse mesmo Codigo de 1830 reconhecera o escravo nao mais como coisa, como era na lei civil do Império, mas como imputavel. Ao mesmo tempo, em razao dos interesses pri- vados dos senhores, preservou-se a autonomia do castigo aos proprietarios de escravos (DIETER, 2012, p. 621), 0 que ja indicava, desde aqueles tempos, a intima relacao entre poder estatal e poder econdmico privado. Assim, com a cousolidagao do poder senhorial’ ¢ do sistema escravagista como centro das relacdes de producao, confirma-se a constatacao de Rusche e 4. Cf. MARX, 2013, p. 959-1014. 5. Conforme assevera Baratta (1990, p. 14), “a historia dos povos e da sociedade se apresenta como a historia dos continuos obstaculos encontrados nesse caminho [da efetivacao dos direitos humanos e da consagracao do principio da dignidade huma- na], a historia da continua violacao dos direitos humanos, ou seja, da permanente tentativa de se reprimir as necessidades reais das pessoas, dos grupos humanos e dos povos”. 6. Sérgio Buarque de Holanda relata que “na Monarquia eram ainda os fazendeiros escravocratas ¢ eram filhos de fazendeiros, educados nas profissdes liberais, quem monopolizava a politica, elegendo-se ou fazendo eleger seus candidatos, dominando 0s parlamentos, os ministérios, em geral todas as posicoes de mando, e fundando a estabilidade das instituicdes nesse incontestado dominio” (HOLANDA, 2014, p. 86). ‘Sawa, Luiz Phelipe Dal Racismo e controle social no Brasil: histria€ presente do controle do negro por melo do sistema penal. Revista Brosilera de Ciéncias Criminais vol. 138. no 25. p. 269-303. Sao Paulo: Ed. RT, dez, 2017. 274 Revista BrasiteiRa dé Ciéncias Criminals 2017 © RBCCam 138 Kirchheimer (1999, p. 20) de que “todo sistema de producao tende a descobrir formas punitivas que correspondem as suas relacdes de producao”. Relacoes de produgao estas que garantem as condigées materiais a permitirem a orga- nizagao social de acordy com o sistema sociopolitico e economico vigente. As praticas punitivas dos senhores contra seus escravos mantiveram-se marcadas pelo dominio, por técnicas de poder sobre o corpo, pela disciplina para subor- dinacao do escravo ao seu senhor’. Com o passar do tempo, elementos politicos, juridicos e economicos resul- tavam em um cenario que tendia ao enfraquecimento da forca de trabalho es crava®, ao aumento da libertacdo das pessoas escravizadas e & centralizacao do poder punitivo ao poder publico. Assim, o sistema jurfdico variava de acordé com o status do sujeito ~ escravo ou homem livre. Em resposta a libertacao de escravos, instauraram-se mecanismos especifi- cos de controle social fundamentais para a manutengao das relacdes de domi- nio e poder. Destaca-se, nesse ambito, a autorizacao ao “o juiz de paz a ‘comi- nar’ as penas de multa, prisao até 30 dias ou internagdo por 3 meses em casa de correcao ou oficinas publicas aos ‘suspeitos da pretensao de cometer algum crime” (ZAFFARONI; BATISTA, 2015, p. 424), poder que posteriormente se- ria transferido aos chefes de policia, delegados e subdelegados (ZAFFARONI: BATISTA, 2015, p. 425). De maneira similar, Koerner (2006, p. 219) relata que: (...) com 0 crescimento das cidades, os escravos confundiam-se com a po- pulacao de cor em geral, tornando-se mais dificil distingui-los dos livres e % libertos. Os individuos negros ou pardos eram antes de tudo suspeitos, e a Policia os detinha com o objetivo de verificar se eram escravos. O controle manifestava-se de diversas formas, como as rondas noturnas, que detinham sem maiores explicagdes negros que circulavam na cidade apés 0 toque de recolher, (...) [com] a proibigdo da pratica da luta de capoeiras. A policia utilizava ad hoc a criminalizagao da vadiagem, o que Ihe permitia controlar a circulacdo dos individuos suspeitos e impor vigilancia continua sobre 0 comportamento dos individuos pobres. i 7. Nesse sentido, a lesao corporal ao escravo com fim disciplinar, por exemplo, era con- siderada excludente de ilicitude (cf. DIETER, 2012) 8. Conforme relatado por Caio Prado Jr. (1999, p. 99), em 1850, escravos correspon- diam a 31% da populacao total do Brasil, reduzidos a metade em 1872, até que, no ano anterior @ abolicao, correspondiam a “apenas” 5% da populacao. ‘Santo, Luiz Phelipe Dal. Racismo e controle social no Brasil: historia e presente do controle do negro por meio do sistema penal. Revista Brasileira de Ciéncias Criminais. vol. 138, ano 26. p. 269-303, Sao Paulo: Ed. RT, dez. 2017.

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