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Copyright © 2003 by Maria Bliza Linhares Borges Projeto grafico da capa Jairo Alvarenga Fonseca (A Fotografia nas viagens de exploragio”, Reproduzido de Tissandier. Gaston. Le Merveilles de la photoyruphie, Paris: Hachette, 1874. In:. KOSSOY, Boris. Origem ¢ expansée du fotugrafia no Brasil: séculu XIX, Rio de Janeico: FUNARTE, 1980, p, 38) Coordenadores da colecao Carla Anastasia Eduardo Paiva Editoragdo eletranica Waldénia Alvarenga Santos Ataide Revisdo Ana Elisa Ribeiro Borges, Maria Eliza Linhares BS83t Historia & Fotogratia / Maria Eliza Linhares Borges — Belo Horizonte: Auténtica, 2003. 136p. (Colegao Histdria &.,. Reflexdes, 4) ISBN 85-7526-075-8 1, Fotografia-histéria. I. Thulo. H. Série. CDU 77(091) 791.43 SS 2003 Todos os direitos reservados pela Auténtica Editora. Nenhuma parte desta publicacio poderd ser reproduzida, Seja por meins mecdnicos, eletrénico, seja via copia xerogréfica sem a autorizacao prévia da editora, Auténtica Editora Rua Fanudtia, 437 — Floresta 3111-060 - Belo Horizonte - MG PABX: (55 31) 3423 3022 — TELEVENDAS: 0800 2831322 www autenticaeditora.com.br e-mail: autentica@ autenticaeditora.com.br A imagem fotografica é mais que a retencdo de um fragmento do real sobre um suporte. Sao trechos de wma realidade suspensa no tempo roubados da vida e devolvidos a cla com revelagées inesperadas. Luis Humberto SUMARIO InTRODUGAO...... Capituto 1 A Ciéncia Histérica na época da invengio da Fotografia... A ilusio de inovagao. A historiografia metédica ca rejeigao do documento fotogritico... ‘As fontes de pesquisa hist6rica ea educagao do ollie Capiruco If Tradigdo ¢ modemidade na mira O retrato fotogrifico: didlogos com a pintura Acera dos esttidios fotogriticos.. ‘A cra dos cartdes-postai A fotografia c as representagoes da morte Fotografia, imprensa ¢ politicas publics Cariruco TT A Histéria-conhecimento e o documento fotagrafico.. Pesquisa histérica e documentos visuais. Viagens fotograticas.. 'A Missdo Heliogritica Francesa e outras viagens... © Brasil eo imaginério dos fotdgrafos viajantes. CONSIDERAGOES FINAIS.. ForoGRaria: CRONOLOGIA... REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS.. INTRODUCAO Muito tem sido dito e escrito acerca das relagdes entre Imagens ¢ Ciencias Sociais. Basta correr os olhos pelossumérios das revistas académicas, pelos catélogos de editoras voltadas para 0 piblico universitério ou mesmo observar a disposigio dos livros nas estantes e vitrines das livearias para perceber a proliferagao de temas ligados a esse campo de estudo. Entretan- to, em que pese a inequivoca importincia das imagens visuais no trabalho de pesquisadores, estudantes ¢ no cotidiano dos di- ferentes setores da sociedade contempordnea, ainda € possivel constatar a caréncia de publicagées que preencham a demanda especifica por critérios teérico-metodoldgicos acerca da utiliza- cao de imagens fotograficas no campo daanilise hist6rica. Muito freqiientemente professores de Histéria de diferentes niveis educacionais nos relatam suas dificuldades para explorar, em sala de aula, a rica relagfio existente entre Histéria e imagens, particularmente entre Histéria e Fotografia. Este fivro, sobre a relag¢do entre a histéria-conhecimen- to ea fotografia, vem responder a algumas dessas demandas. Mais que teorizar sobre a natureza da imagem fotografica ou mesmo criar novas categorias analiticas voltadas especifica- mente para oestudo da iconografia safda da camera escura, nossa intengdo primeira € contribuir para um didlogo fértil entre a fotografia, aqui entendida como matéria do conheci- mento histérico, e a histéria-conhecimento. Para tal, busca- mos sistematizar conhecimentos disseminados em diferentes i Coiecho "Histor &... RELXCES” estudos, muitas vezes inacessiveis aqueles que, embora mo- vidos por inquietagdes metodolégicas, nao sabem por onde comecar essa busca. No primeiro capitulo, levantamos uma questao pouco explorada pelos historiadores que hoje vém se dedicando a refletir acerca do lugar e do papel das imagens visuais, da fo- tografia em especial, na pesquisa historica. Analisamos as ra- zées tedrico-metodolégicas que levaram uma parcela signifi- cativa da comunidade de historiadores do século XTX a estabelecer uma hierarquia de importancia entre as fontes de pesquisa histérica, a classificar ay fontes visuais como docu- mentos de pesquisa de segunda categoria e, finalmente, a nao incluir a fotografia no rol dos documentos de pesquisa em His- toria. Esse retorno a historiografia do século XIX ndo é gra- tuito. Nao podemos nos esquecer de que os pardmetros que nortearam o ensino e a pesquisa histérica nesse periodo trans- cenderam seu préprio tempo. Mais que isso, deram o tom, por décadas e décadas, & grande maioria dos manuais de histéria utilizados nas salas de aula das instituigdes universitérias edo ensino fundamental e médio no decorrer do século XX. Em grande medida, pode-se dizer que a forga dessa heranga muito contribuiu para dificultar o desenvolvimento de metodologias capazes de fazer falar as fontes visuais. No segundo capitulo, buscamos mostrar que, embora re- jeitada como fonte de pesquisa historica, a fotografia introdu- ziu um novo tipo de ver e dar a ver a diversidade do mundo modemo, rapidamente incorporado por homens e mulheres do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Sem pre- tender desenvolver uma histéria da fotografia, elegemos algu- mas representagdes fotograficas de maior expressao nesse pe- riodo para, a partir delas, buscarmos compreender os usos € as fungées sociais a elas atribufdas pelos fotdgrafos, profissionais e amadores, dos anos oitocentos. Simultaneamente a esse des- cortinar do ofhar fotogrdfico introduzimos alguns dos critérios 12 Historia & Fotografia que hoje orientam a andlise dessa importante fonte de pesqui- sa histérica. No terceiro e tltimo capitulo, tratamos da relagdo hoje existente entre a histéria-conhecimento 2 o documento foto- grafico, Apés uma reflexdo sobre a natureza da linguagem fo- tografica e de suas similitudes com outras imagens, fizemos uma breve incursio sobre as viagens fotograficas, de estran- geiros e nacionais, através do Brasil imperial e republicano. Certamente que ac transitarmos por esse longo periodo, mais que secular, que marca de um lado o surgimento da foto- grafia e de outro a sua incorporagio & pesquisa histérica, niio abordaremos todas as questOes relativas a convivéncia entre essa imagem € a histéria-conhecimento. Temos, no entanto, a convicgfo de que a natureza € a abrangéncia da abordagem aqui proposta hao de contribuir para o estimulo a utilizagao, cada vez maior, das imagens fotograficas na pesquisa € no en- sino da Historia. A tealizag&o deste livro contou com a contribuigdo de diversas pessoas. Dentre elas gostaria de expressar minha gra- tiddio A Amélia Aurora de Magalhies, a Amelinha, pelo incen- tivoe pela leitura criteriosa de partes da primeira versdo. Tam- bém nio posso deixar de agradecer ao jovem fotégrafo Felipe de Freitas Dutra, pelo empréstimo de bibliografia; aos organi- zadores desta coleciio, Carla Maria Junho Anastasia ¢ Eduar- do Franca Paiva, pela confianga; a0 Otdvio e 4 Luiza, meus amores e companheiros de cada dia; e 2 Marlucia pelas xica- tas de café. Como de praxe, gostaria de dizer que as falhas, porventura contidas neste livro, so de minha inteira responsabilidade. CAPITULO}. A Ciéncia Histérica na €poca da invengao da Fotografia A ilusGo de inovagao Antiga héspede da literatura, da politica e da filosofia, a Histéria busca, ao longo do século XIX, construir sua propria morada. No decorrer desse perfado, historiadores de diferen- tes correntes tedrico-metodolégicas empenharam-se na defi- ni¢do da fisionomia e da identidade cognitiva da Histéria com © objetivo de distingui-la das demais ciéncias do homem. E também esse 0 momento do surgimento de um novo tipo de imagem visual: a fotografia. Desde entio, sua trajetériae suas relagdes com a histéria-conhecimento tém passado por per- cursos variados ¢ até mesmo inimaginaveis por seus criadores e pelos historiadores de oficio do século XIX. Hoje, a andlise da relacao entre a histéria-conhecimento e a fotografia, objeto central deste livro, comporta multiplos caminhos ¢ diferentes abordagens. No entanto, esse didlogo, cada vez mais fértil, nem sempre foi celebrado de maneira positiva. No decorrer do século XIX e das primeiras décadas do século XX, um grupo significative de historiadores se re- cusou a langar mao da fotografia como fonte de pesquisa his- térica, muito embora os diferentes setores da sociedade ¢ de outras dreas cientificas tenham valorizado ¢ utilizado esse tipo de imagem desde o seu surgimento. Neste capitulo, analisaremos as razGes da rejeigao da fo- tografia pelos historiadores ligados A historiografia metédica 15 Couecio “HistOm &... REREXOrs” do século XIX. Mas por que iniciar 0 estudo da relagiio entre a histéria-conhecimento e a fotografia a partir de sua negagao? Nio sera esta op¢do um contra-senso? Por mais de uma vez temos presenciado 0 uso da foto- grafia, como um recurso pedagdgico destinado a despertar 0 interesse de alunos do ensino fundamental pelo estudo da histéria de sociedades passadas. O problema ¢ que iniciati- vas como essas, por certo louvaveis, tém, muitas vezes, se reduzido a mera reuniiio ¢ exposig&o das imagens coletadas. Os cuidados necessarios para a compreensio das particulari- dades da linguagem fotografica sao, freqiientemente, descon- siderados. Tal procedimento acaba por reforgar nos alunos a idéia de que os homens e mulheres de ontem viviam exata- mente como se apresentam nas respectivas fotografias. Quando utilizada sob essa perspectiva, a imagem foto- grafica estd sendo concebida como um dado natural, quet dizer, como testemunho puro e/ou bruto dos fatos sociais. Os que assim procedem, encaram a fotografia como duplicagao do real. Transformada em espetho do real, a fotografia dis- pensa o emprego de metodologias capazes de fazé-la falar. Assim concebida, 0 tratamento dado & fotografia € o mesmo que os historiadores do século XIX davam aos documentos por eles considerados como fonte de pesquisa histérica Nessa época, ao historiador de officio cabia coletar os do- cumentos oficiais, aplicar-lhes as regras do métode eritico, respons4veis pela verificagio da autenticidade, da procedén- cia e da veracidade de seus contetidos e, finalmente, enca- ded-los em uma seqiiéncia temporal e espacial. A narrativa detivada desse procedimento acabava por naturalizar os acon- tecimentos histéricos. Em outras palavras, ao partir do pressu- posto de que “as coisas sio como so”, a seqiiéncia dos fatos narrados era apresentada como sendo a expressao natural da verdade sobre o passado. “ Nao Por outra raz4o, acredita-se, naquele momento, que ‘a hist6ria — res gestae — existe em si, objetivamente, e se 16 Historia & Fotogratia oferece através dos documentos”.! Por isso mesmo, 0 trabalho do historiador era dar visibilidade ao passado até entdo escon- dido nos documentos guardados nos arquives. Nao por acaso os criticos desse modo de abordar a Histéria dizem que a his- toriografia metédica instituiu a mistica de um conhecimento essencialmente objetivo e mecanico, ou seja, natural. Ora, quando o conceito de conhecimento hist6rico deixa de ser percebido como dado natural ¢ passa a ser entendido como conteido cultural sujeito a interpretagoes, estamos di- ante de um outro paradigma. A essa altura, j4 ndo se pode mais aplicar as evidéncias hist6ricas e aos documentos 0s mesmos conceitos de fonte e de pesquisa histérica propostos pelo para- digma que dava suporte a historiografia metédica. Como nos lembra Thomas Khun, um paradigma éum modo cientifico de produzir conhecimentos. Seu funcionamen- to pressupde um arranjo entre perguntas e tentativas de res- postas, mediado por hipsteses, que. durante um certo tempo, orienta os rumos da pesquisa da comunidade de praticantes de uma ciéncia. Toda e qualquer questo que nao se encaixe nes- se arranjo — ao qual Khun chama de anomalia ou de violagiéo de expectativas — é tida como elemento perturbador e, por isso mesmo, deve ser desconsiderada por aqueles que se guiam pela légica do respectivo paradigma.* Eis aonde queremos chegar! Pelas razGes que veremos um pouco mais adiante, acomunidade de praticantes da his- toriografia metédica entendia que a imagem fotografica nao preenchia os requisitos necessdrios para ser considerada fon- te de pesquisa histérica. Percebida como uma anomalia, foi deixada de lado. | RESIS, José Carlos . A Histéria entre u filosofia ¢ a ciépera. Sao Paulo: Atica, 1996, p. 13. 2 KUHN, Thomas. A estrumura das revolucdes cienifficas. 2.¢d., S50 Paulo: Perspec tiva, 1978, p. 13. Conecao “Hist Bi... Rereexcts” Hoje, entretanto, a cogni¢o em Histéria percorre cami- nhos bem distintos. Se a fotografia vem sendo cada vez mais utilizada como fonte, como objeto de andlise e como recurso pedagdgico, é porque a comunidade de praticantes da ciéncia hist6rica nado mais se orienta pelos fundamentos do paradigma metédico. Entretanto, hd quem acredite que 0 uso de imagens fotograficas na pesquisa hist6rica signifique inovar, mesmo quando se Ihe aplica o mesmo conceito de documento histérico utilizado pela historiografia met6dica, Nao se percebe, por exem- plo, que no novo paradigma nem a Histéria é um conhecimento mec4nico destinado a traduzir a verdade dos fatos, nemo docu- mento fala por si mesmo ¢ nem o historiador é um mero trans- missor das informagées nele contidas. Portanto, reunir imagens fotograficas de um determinado periodo e apresenta-las como fiel retrato do passado é um procedimento em tudo e por tudo igual a pratica dos pesquisadores do século XIX. Lembremo-nos de que eles negaram 0 estatuto de docu- mento histérico as imagens fotogrdficas, muito embora tenham langado mao das iconografias contidas tanto na emblematica quanto nas pinturas de histéria, j4 que “ilustravam” exatamen- te o que estava posto nos documentos escritos. Ora, se usamos as imagens fotograficas sob essa mesma perspectiva, estamos, na realidade, criando uma flusdo de inovagdo. Quando utiliza- da com fins compreensivos, a fotografia, ou qualquer outro tipo de iconografia, demanda o emprego de metodologias con- soantes com a légica e os fundamentos tedricos que a defi- nem como fonte de pesquisa hist6rica. Inseri-ia na pesquisa, a titulo de inovagao, e aplicar-lhe o conceito de documento de um paradigma que nao a inclui no rol de suas fontes, é 0 ™mesmo que produzir um coquetel tedrico-metodolégico, por certo nada esclarecedor. Quando as imagens visuais, dentre elas a fotografia, sao uti- lizadas como fontes de pesquisa hist6rica, € porque funcionam come mediadoras e ndo como reflexo de um dado universo 18 Historia & Fotografia sociocultural. Integram um sistema de significagio que nio pode ser reduzido ao nivel das crengas formais e conscientes. Pertencem a ordem do simbélico, da linguagem metaférica. So portadoras de estilos cognitivos préprios. Um retorno, breve que seja, ao paradigma metédico pode nos ajudar a evitar a falécia do que estamos chamando de ilu- sfio de inovagao. A historiografia metédica e a rejeigdo do documento fotografico O sucesso da publicagdio, em 1898, de Introdugao aos Estudos Histricos nao foi gratuito. Ao lado da edigio dos mimeros de A Revista Histérica, surgida em 1876 na Franga, a obra de Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos, dois pro- fessores de Hist6ria da Sorbonne, teve o mérito de condensar ¢ divulgar os fundamentos epistemolégicos da Hist6ria, entendi- da como “um conhecimento cientificamente conduzido”. Se, por um lado, esse “ensaio sobre o método das cién- cias histéricas” se encarregou “de subtrair A ciéncia histérica as causas sobrenaturais, de colocar em xeque o finalismo mar- xista ¢ 0 progressismo racionalista”, por outro, resgata uma antiga tradicdo da pesquisa histérica. Embora tivessem um en- tendimento proprio do processo de cognigao histérica, Lan- glois e Seignobos sustentaram a tese de Tucidides de que a pesquisa histérica se inicia com a suspeita. Segundo ele, acei- tar os documentos em seu conjunto, sem um exame prévio de sua autenticidade e procedéncia, equivaleria a reproduzir o senso comum, fortemente comprometido com os interesses desse ou daquele ator social. Na era moderna, o legado tucidiano de critica docu- mental foi fortalecido pelas contendas entre Lutero e a Igre- ja. Ao colocar em divida a interpretacao que a Igreja dava 19 Ir eee Corea "Histon &... Retexors” ao texto bfblico, Lutero e seus seguidores contribufram para disseminar o princfpio da divida e, indiretamente, favorecer a critica dos textos oficiais. No decorrer do século XVM, Des- cartes estabelece uma relagdo direta entre a divida metédi- ca, a aplicagdo dos métodos de pesquisa ¢ o conhecimento cientifico. Grosso modo, pode-se dizer que esse clima de desconfianga diante do texto acabou por favorecer a ndo-acei- tagio passiva das informagées contidas nos documentos uti- lizados pelos historiadores. Em 1681, 0 beneditino Dom Mabillon (1632-1701) pu- blica uma espécie de manual, De Re Diplomdtica, destinado a distinguir documentos falsos de documentos que, com 0 tem- po ¢ as cépias, iam sendo adulterados, conscientemente ou nao. Nao é incorreto dizer que essa obra de critica textual fun- ciona como um marco para a construgéo de um método de anilise histérica do documento escrito. No século XIX, 0 his- toriador alemao Leopoldo von Ranke reafirma a necessidade de o historiador buscar a autenticidade e a legitimidade dos documentos histéricos. $6 assim eles nos mostrariam 0 acon- tecido “tal como efetivamente tinha sucedido” 3 Como nos lembra o historiador Sérgio Buarque de Ho- landa, essa afirmativa, proferida em 1824, foi fargamente di- fundida entre a comunidade de historiadores europeus, des- de o inicio da segunda metade do século XIX. Embora ela tenha sido proferida por um historiador que, na pratica, in- terpretava os documentos e neles buscava um exo de senti- do para explicar os fatos narrados, suas palavras foram des- contextualizadas e utilizadas de forma pragmitica, restrita e simplista. Dentre os responsaveis pela vulgarizagao da tese de Ranke, encontram-se os autores de Introdugdo aos Estu- dos Histéricos. Sio eles, também, os defensores de um outro "HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.) Leopold ven Ranke: histiria. Si Paulo: Atica, 1979, p. 14 Histéria & Fotogratia fundamento da histéria metédica: o da fuso entre realidade e conhecimento histérico, entre Aistéria-maréria do conhe- cimento (hist6ria-fazer) e histdéria-conhecimento dessa ma- téria (hist6ria~-conhecimento). Esse conjunto de preceitos, jé incorporado por muitos pesquisadores desde meados do século XIX, transcendeu, ra- pidamente, a prépria comunidade de historiadores dedicados exclusivamente A pesquisa hist6rica. Foi partilhado por orga- nizadores de bibliotecas e de acervos documentais financia- dos pelos cofres piiblicos, além de ser reafirmado, dentro € fora da Europa, por professores de histériae autores de manuais diddticos dessa disciplina. Os contetidos expressos nesses ve- fculos de transmissio dos fundamentos do paradigma met6- dico entravam pelas portas e janelas das salas de aula e se alojavam no inconsciente dos alunos.‘ Contribufam abertamen- te para a formagfio de uma consciéncia histérica ancorada, de um lado, na aplicagio do método de andlise dos documentos escritos e, de outro, na valorizaciio das ages sociais daqueles que eram considerados os verdadeiros sujeitos da Hist6ria: os dirigentes politicos, civis e militares. Nio é demais lembrar que, além de pesquisadores, os autores de Introdugdo aos Es- tudos Histdricos, juntamente com outros praticantes da Esco- la Metdédica, também formularam os programas ¢ claboraram as obras de histéria destinadas aos alunos dos colégios e da escola primicia, (fundaram} simultaneamente uma disciplina cientifica e segregaram um discurso ideoldgico que continuou a dominar o ensino e a investigacio em his- t6ria nas universidades [francescs| até os anos de 1940; +O livro do espanhol Santiago Calleja Fernindez, Nociones de Histéria de Espahe, escrito em 1886 e utilizado nas escolas espanholas durante as trés primeiras déca- das do século XX, contém uma série de fundamentos presentes na obra de Langlois e Seignobos. CALLEJA FERNANDEZ, Santiago. Nociones de historia de Espa. Madrid: Casa Editorial Saturnnino C. Fernandez, 1886. 2 CouechtaHistoras &... REeruxées” e inscreveram uma cvolugde mitica da coletividade francesa - sob a forma de uma galeria de herdis ¢ de combates exemplares — na meméria de gerages de estudantes até os anos de 1960.* No caso especifico do Brasil, € possfvel encontrar ecos des- sa concep¢ao de Hist6ria tanto nos dois volumes do manual didatico de histdéria de Joaquim Manoel de Macedo (1820- 1883), Ligdes de Histdria do Brasil para uso dos alunos do imperial Colégio de Pedra II, assim como nas teses defen- didas por Jodo Ribeiro (1860-1934), autor de Historia do Bra- sil.’ Alguns estudiosos da atualidade mostram que tanto as idéias de Macedo quanto as de Jodo Ribeiro influenciaram, * Sobre os pressupostos dessa obra, ver: BOURDE, Guy « MARTIN, Hervé. As Excolds Histéricas. Lisboa: Europa-América, s/d. (Forum da Histéria), especifi- camente p. 94. *Q liveo de Joaquim Manoel de Macedo, escrito o primeiro volume em 1862 ¢ 0 segundo ¢ 1863, foi fortemente influencindo pelas idéias contidas em Histdria Gerat do Brasil, de Adolfo Varnhagen, historiador de confianga da Casa de Braganga ¢ um dos principais membros do Instituto Histérico Geogrifico Brasi- Jeico (THGB). Para além do iimportante papel desempechado por Varnbagem, jun- to a0 IHGB, sobretudo no que se refere a coleta e organizagao do acerve docu mental brasileiro relative aos séculos XVI, XVI ¢ XVI, os analistas da produgao historiografica do século X1X tém sido undnimes em atribuir a Varnhagem a di- fusdio de uma visio de uma histéria do Brasil calcada nas idéias da conciliagdo, da reforma e da cordialidade do brasileiro, Sobre essas questdes. ver: RODRIGUES. José Hondrio. Histiria Combatente, Rio de Saneiro: Nova Fron- teira, 1982, p. 191-296, BANDEIRA DE MELO, Ciro F. Seahures da Hisiéria: a construgdo do Brasil em dois manuais diddticos de Histéria nu segunda metade do sécute XIX, Sio Paulo; USP, 1997. (Fese de Deutoramento); MATTOS, Selma Rinaldi. Ligdes de Macedo, Uina pedagogia do stidito-vidadio no Império do Brasil, In: MATTOS, Hmar Rohloff de. (org.). Histériu do ensinn da historia no Brasil. Rio de Janeiro: Access, 1998, p. 31-44. 7 Alguns cstades charmam a atengdo para a clara influgacia, na obra de Jodo Ribei- ro, das idgias do alemao Karl Friedrich Philipp von Martiu que, em (840, foi vencedor de um concurso realizado pelo IHGB. com a obra Como se deve excre- ver a historia do Brasil. HA quem sustente que muitas das idgias contidas co livo de Jodo Ribeiro estiveram presentes na maioria dos manuais didaticos de Historia até 0 inicio de 1960. Sobre essa questic especificamente. ver: BANDEI- RA DE MELO. Ciro F. Senhares da Histiria: a consiruyo do Brasil em dois manudis diddticos de Historia na segunda metade do séculy XIX. Sio Paulo: USP, 1997. (Tese de Doutoramento). 22 —— ON OE OO Historia & Fotografia simultaneamente, a produgio didatica de historia e a pesqui- sa de historiadores e cientistas sociais como Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre.* Para o que nos interessa no momento, € importante lem- brar que muito embora os historiadores afinados com o pensa- mento da Escola Metédica nao tenham dispensado o uso de imagens visuais em suas pesquisas e em seus livros didaticos, sempre supervalorizaram o documento escrito na produgdo de suas narrativas. O uso da emblemitica, safda da filatelia e da numismitica, bem como o emprego das pinturas de histéria ajudaram-lhes a sustentar uma nogio de Histéria calcada na idéia de verdade sem macula. Além de confirmarem o que diziam os documentos escri- tos, as imagens visuais tormavam mais palatavel o entendimento do que estava posto nas fontes textuais. Sob essa perspectiva, os espécimes iconogrdficos acima referidos funcionavam tan- to como recurso didatico, quanto como documento histérico. Como fonte de pesquisa histérica ela apenas confirmava o que * Bimportante cessaltar que os livros de Juaquin Manoel de Macedo cncarnam uma visio da formagao ¢ da identidade nacional brasileira muito proxima dos ideais da Casa de Braganga. Jd 0 historiador Jodo Ribeiro tinha um forte cemnpromisso com 0s ideais republicanos. Entretanto, um outro foram defensores dos pressupostos gnoseoldgicos que alicergaram © paradigma metédic. Alguns estudos sobre a obra de Jofo Ribeiro sustentam que muitos dos fundamentos contidus em seus escritos estiveram presenes na mioria dos manuais diddlicas de Historia até o inicio de [960. Sobre esta questio especificamente, ver: RBANDEIRA DE MELO. Ciro F, Sentiores da Historia: a censtrugda do Brasil em dois manuais didéticos de Histiria na segunda metade di sécute XIX, S80 Paulo: USP. 1997. (Tese de doutoramento). E importante ressaltar que os livros de Joaquim Manoel de Macedo encarnam uma visio da formagao e da identidade nacional brasileira muito proxi- ma dos ideais da Casa de Braganga, Id 0 historiador Jode Ribeiro tinha um forte compromisso com as ideais republicanos. Entretanto, une outro foram defensores dos pressupostos gnoseolégicos que alicersaran @ paradigma metéico. Alguns estados sobre a obra de fodo Ribeiro sustentam que muitos dos fundamentos conti- dos em seus escritos estiveram presentes na maioria des mamuais diddticos de His- téria até 0 inicio de 1960, Sobre esta questo especificamente, ver: BANDEIRA DE MELO, Ciro F. Sevhores da Histirie: a consiragdo de Brasil emt dois maniis didéticos de Historia na segunda metade do séeuls XIX, S40 Paulo: USP, 1997. (Tese de doutoramentoy, HANSEN, Patricia Santos, A Histévia dv Brasil de Joo Ribeiro, Rio de Janeiro: Acces, 2000. (Feigdes & Fisionomia) 23 Cotecso “Histeoais &... REMoxdes” ja estava dito nos documentos escritos. Dada essa posigiio su- balterna na hierarquia de importancia dos documentos utiliza- dos na pesquisa histérica, as imagens visuais nao passavam de documentos de segunda categoria. Ora, constatar que as imagens visuais, aceitas pela histo- riografia metédica, desempenharam as fungées de ilustrar 0 texto escrito e de despertar sentimentos patridticos nos leito- res, ajuda-nos a entender apenas parte do que estamos buscan- do responder. Em outras palavras, compreender o lugar da em- blemitica e da pintura de histéria no paradigma metédico nao explica, por si 86, porque as imagens fotograficas levaram mais de um século para serem aceitas como fonte de pesquisa nas Ci€ncias Sociais ¢ na Historia em particular. Quando a fotografia surge, em 1826," suas imagens con- taram com 0 apoio de diversos homens de ciéncia, além de industriais, comerciantes e politicos. Ja em 1839, Francois Arago (1786-1853), membro do Parlamento francés, promove uma reuniao conjunta da Academia de Ciéncias e de Belas Artes da Franga com 0 objetivo de exaltar sua natureza precisa € exata. Seu sucesso e sua credibilidade imediatos estavam Jigados ao fato deta ser uma imagem produzida a partir de processos fisico-quimicos. Seu forte potencial analdgico, ain- da que passivel de adulteragdo, estimulava a crenga de que suas imagens eram uma reprodugao fiel do real, da “coisa tal como ela &”. Apesar da convicgéo generalizada de que o que sai da cdmera escura era cépia perfeita do real, a pratica da pesquisa histérica desenvolvida nas universidades e demais centros aca- démicos permaneceu inalterada. As imagens fotograficas nao *E importante assinalar que enire os estudiosos da histéria da fotografia permanece uma larga discordincia sobre a data da peodugiio da primeira fotografia, De acorda com Giséle Freud, Nicéphore Niépce teria criado a fotogeafia em 1824; ji para Gabriel Bauret, a primeira fow de Niépce data de 1826. Ein Era wna ver o cinenta, a primeira fotografia € datada em 1823. Os marcos cronolégicos referentes & hist6- ‘ia da fotografia ¢ dos fotdgrafos serio, neste livro, extraidos do DICTIONAIRE de Photo, Paris: Larousse, 1996. 24 Historia & Fotografia foram consideradas documento histérico. O que estaria, efeti- vamente, por detrés de tal rejeigao? As fontes de pesquisa historica e a educacao do olhar Nos livros VI ¢ VII da Repiiblica, Plato nos fala por met4foras. Sua Alegoria da Caverna nos remete a discussio do papel formador e transformador da educagio (paidéia ) que visa ao conhecimento do mundo inteligivel (diandia). Para Platdo, a educago é um processo complexo ¢ tortuoso que ao invés de atribuir ciéncia 4 alma, como se fosse pos- sivel introduzir a visio em olhos cegas, [a educagéo] éamancira mais facil de fazer dara voltaa esse drgdo fe othe}, uma vez que cle nao esta em posigiio correta ¢ nao olha para onde deve,"° Tanto ele quanto Aristételes concordam que a visio é ° mais completo e o mais nobre de todos os sentidos. Porém, para Plato ela apenas equivaleria ao Bem quando ese ijumina- da pela luz do sol. Com essa metéfora, quer dizer que 0 ato de ver no é um procedimento meramente técnico, nao brota natu- ralmente do movimento mecanico do otha. E, a0 contrario, um processo racional que depende da educagio da alma, isto é.da razio. Eela que coloca, segundo Platao, o olho na posigao cor- reta e permite ao fildsofo distinguir a cépia de seu original, ° certo do errado, 0 verdadeiro do falso. Sempre que uma ima- gem é lida sem a mediagio da razao, cla se transforma emum simudacro do real, ou seja, cria uma ilusdo de realidade. Ja para Epicuro e Lucrécio, 0 olhar € um ato sensitive & meramente receptivo. Para ambos, o homem que vé recebe, e propicia a evidal a % Metaforicamente o sol é 0 astro que representa a lur & propicia a evidencia & clarividéncia no lhar do filéyofo ¢ The permite conhecer as conexdes entre weal dee aparéncia, Sobre isso, ver: DIXSAUT, Monique. “Le trois images”. In: Phaton: Republique (livres VI et VH). Paris: Ed. Bordas, 1996, p. 114-15. 25 Conecno “Histon &.. RELEXOES* passivamente, as imagens do mundo mediante a contempla- go de suas formas e cores. Diferentemente desses dois filéso- fos, Platdo caracteriza esse tipo de olhar quase como uma mio- pia, j4 que a visdo receptiva, meramente sensitiva, apenas dava aconhecer a superficie das coisas. E, conhecer pela aparéncia é 0 mesmo que se iludir, diria Platio. Essas duas vertentes da filosofia do olhar sempre estive- ram presentes nos diferentes momentos da histéria do pensa- mento ocidental. No entanto, os que acolheram uma, rejeita- ram a outra. Por isso Bosi nos dir que 0 racionalismo moderno sempre se viu diante do dilema de “ou conhecer pelos sentidos ou conhecer pela mente”.!! Para o que nos interessa no momento, é importante frisar que a ciéncia modema atribui um peso excessive ao método € as técnicas de pesquisa no processo de explicagiio dos fend- menos fisicos e sociais. Aliados ao uso da razio critica, 0 cor- reto emprego dos métodos e das técnicas de pesquisa garanti- riam a neutralidade e a objetividade do conhecimento cientifico. Esta combinagio, prépria do pensamento empirico-raciona- lista, contribui para que a raziio filoséfica de Platao fosse aos poucos cedendo lugar a razdo pratica do mundo modemo, preocupada com a prova documental. Por isso se diz que “o olho do racionalismo modemo examina, compara, esquadri- nha, mede, analisa mas nunca exprime”.'? Por detrds da excessiva valorizagdo das técnicas e dos métodos de pesquisa se encontra uma légica de organizagdo da relagdo entre conhecimento e realidade. Ao primeiro cabe- tia transmitir a verdade contida nos atos dos atores sociais, expressas nos documentos escritos devidamente examinados. “Sobre ahistéria do olhar no Ocidemte, ver: BOSI, Alfredo. Fenomenologia do olhar, In: NOVAIS, Adauto (org.). 0 athar, Sdo Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 71 8 stor) ae ahistéria do olhar no ocidente, ver: BOSI, Alfredo. Fenomenologia do olhar. : NOVAIS, Adauto (org.). 0 Olfur. Sio Paulo: Companhia das Leteas, 1988, p. 71. 26 Historia & Fotografia Isso significa que caberia ao conhecimento cientifico discer- nir entre o falso e 0 verdadeiro, entre 0 certo ¢ 0 errado. Ora, ao criar 0 conceito de imagem como simulacro do real, Plato também entendia que 0 processo de percepgao do real se fazia mediante o didlogo entre os pélos do par verdade/ falsidade. Para atingir a verdade seria necessdrio educar o olhar do filésofo. $6 assim ele estaria em condigdes de eliminar o falso c ensinar a verdade. Na era moderna, parcelas descon- textualizadas do pensamento de Platao seriam adotadas pela historiografia metédica. De Platéo os racionalistas modernos herdaram tanto a tese que identificava saber e compromisso com a verdade, quanto a que sustentava a relagdo direta entre olhar no educado pela razdo e percepgao iluséria do real me- diante a produgio e/ou visualizagéo de imagens. Com o desenvolvimento da técnica da perspectiva, desde o Renascimento, ganha forga a antiga tese da relagdo entre educagio do olhar ¢ produgao de imagem realista. Acredita- se que toda e qualquer imagem visual que estabelega uma combinagao, exata, infalivel ¢ mateméatica, entre largura, es- pessura e profundidade é uma reprodugao fiel do real, inde- pendentemente das convengées sociais de seu desenhista, pintor, escultor ou arquiteto. Etimotogicamente o termo perspectiva significa o mes- mo que olhar racionalizado ou ver claro. Nao por acaso, 0 ar- quiteto, matemitico, critico de arte e cartégrafo italiano Leone Battista Alberti (1405-1472) intitulou de Construzione leggi- tima seu tratado sobre a perspectiva. Assim como Alberti, ou- tros tratadistas do Renascimento também entendiam que “o. artista [é] um emissor do mundo”, ja que seu otho nao faz mais do que “atrair a imagem do objeto para seu intelecto, assim como 0 ima atrai a linha de ferro”. 1 Sobre o papel da perspectiva no Renascimento, ver: BRUZZI, Hygina M. “Bastées cruzados”. In: Do visivel ao tangével - em busca de um lugar pés-utépico. Belo Horizonte: C/Arte, 2001, p. 98 e segs. 27 Corea “Histonia &., RSLEsOEs” Ao adotar essa teoria e aplicd-la ao uso das imagens visuais na pesquisa € no ensino da Histéria, a historiografia metédica, herdeira do racionalismo moderno, conjuga, de uma maneira singular, tradigiio ¢ modernidade. Mais que isso, chancela o antigo ditado popular — que ainda hoje conta com grande aceita- do no conhecimento ordindrio ~ que diz: é verdade porque vi com os préprios olhos. Assim, sempre que o visto, traduzido em imagens, emanasse de olhos que tivessem sido postos na posi- géo correta, porque educado pelas téenicas da perspectiva, ha- veria uma perfeita correspondéncia entre realidade e imagem. Mas, nem tudo que € matematico € exato e preciso € muito menos verdadeiro, advertiam, j4 no Renascimento, al- guns estudiosos da perspectiva. Embora dominante, acerteza da correspondéncia entre imagem e realidade, entre imagem e verdade, nao era tio undnime como possa parecer. Nessa me- dida, sua utilizag&o acabava por criar um certo desconforto entre aqueles que se preocupavam em demonstrar a perfeita sintonia entre iconografia e realidade. Para solucionar essa am- bigiiidade, a comunidade de historiadores, afinada com os pro- positos da escola metédica, apoiou-se na antiga tese da infali- bilidade da educagiio do olhar. Concebe como documento hist6rico visual apenas aqueles cujas imagens fossern fruto do aprendizado das academias de pintura. Kimportante lembrar que, a partir do sécufo XTV, princi- paimente, disseminaram-se por quase toda a Europa os espa- gos destinados a educar o olhar de desenhistas e pintores se- gundo a técnica da perspectiva: as Academias de Pintura & Escultura. Af se ensinava a produzir imagens que nao apenas espelhariam 0 real como também traduziriam os atos dos legi- timos sujcitos da Hist6ria: os reis ¢ seus circulos civil e mili- tar. A esse aprendizado, que nasce com a cultura de corte, cresce sob 0 patrocinio da Igreja, alarga-se com o poder da nobreza, sobretudo em Venezae em Florenga, importava mais a educa- ¢&o do olhar segundo objetivos previamente definidos do que 28 Historia & Fotografia propriamente a criatividade da obra. Dos artistas, esperava-se aprodugiio de pinturas que pudessem produzir, exprimir e trans- mitira seu ptiblico-alvo — os stiditos reais — a gléria dos feitos de seus dirigentes. Cria-se, assim, 0 oficio do pintor de hist6- via, responsdvel pela produgao de uma arte essencialmente pragmatica e funcional que exalta, celebra e comemora os fei- tos dos “herdis”, apesar de ser tida como essencialmente rea- lista e verdadeira. Ao longo do tempo, trés grandes requisitos foram orien- tando a confecgiio das pintusas de histéria. O primeiro era a exigéncia de que esses funciondrios, pages pelo erario real, passassem pelo treinamento das Academias; 0 segundo pres- supunha que suas obras contassem com o reconhecimento dos reis; ¢ 0 terceiro exigia que tais obras fossem publicamente re- conhecidas mediante a aprovacéio em concursos, requisito para suas exposigées nos saldes.'* Realismo, perfeigdo € veracidade eram os principais atributos das imagens produzidas pelos pin- tores de histéria, figuras obrigatérias nas campanhas civis ¢ militares de reis; principes ¢ generais du Antigo Regime e dos governos liberais do século XIX. Fruto da observagio in loco e elaboradas segundo os canones do paradigma perspectivo, acre- dibilidadc dessas imagens advinha, muitas vezes, do fato de se- rem encomendadas. Nessa medida, pode-se dizer que elas eram uma ilustragéio do contetido inscrito nos textos escritos. Sentimentos de ordem, respeito, patriatismo, heroismo € consciéncia nacional e cidada foram, nos diferentes momentos da Histéria, objeto dessa pedagogia pragmiética do olhar. Nao resta a menor divida de que o discusso da educagado do olhar do pintor de historia serviu para transformar suas imagens em um recurso de auioridade. As imagens por eles produzidas podiam ser consideradas um documento para a pesquisa histérica nao apenas porque ilustravam 0 texto escrito. + WILLIAMS, R. Cudtu, Rio de Junvieo: Pay ¢ Terra, 1992, p. 189-190. 29 COUGAD "HISTOR &.- REFLEXOES” mas sobretudo porque traziam a assinatura de uma autoridade reconhecida nos circulos do poder. Como veremos a seguir, a produgdo fotogrdfica ndo se encaiaava nesse critério de vali- dacao cientifica da imagem. Nao podemos nos esquecer de que nos primeiros anos do aparecimento da fotografia, os fotégrafos cram, na sua maio- tia, homens comuns ~ desenhistas e gravuristas autodidatas, caricaturistas, pintores tidos como sem expressio artistica. Nao possufam vinculos diretos com as Academias e suas imagens abordavam temas e motivos quase sempre distantes da ago dos homens considerados produtores da Histéria.'* Isso sem dizer que, j4 por volta do ano de 1880, o aperfeigoamento das cAmeras fotograficas colocaria a fotografia ao alcance do homem comum. Essa dilatagdo do uso da fotografia faz com que os novos fotégrafos estabelegam novos e distintos critérios de olhar para fazer suas tomadas dos acontecimentos sociais. Cada individuo define nao apenas o que merece ser registrado, mas também sob que Angulo as agSes sociais de seus cotidianes devem ser imor- talizadas. Os critérios da educacéo do olhar, normatizados nas Academias de Pintura, ndo eram conhecidos pelos fotégrafos amadores. A eles interessava tio somente aprisionar cenas € momentos significativos para suas vidas fntimas. A essa pratica, intitulada pelos setores de elite de banali- zacio do universo imagético, agrega-se o fato de a fotografia ser um testemunho do presente. Em principio, seas imagens registram o aqui é o agora. Mas para a comunidade de prati- cantes da historiografia metédica, 0 conceito de fato histérico estava estritamente atrelado ao estudo dos acontecimentos Passados. Ainda que se aceitasse a natureza precisa, exata € fiel da imagem fotogrfica, sua vinculagéo com o momento ** No caso da caricatura, por exemplo, a diferenga é gritante. Suas imagens tinham como objetivo a critica das agdes do poder. Nessa medida, elas funcionavam como uma espécie de contra-histéria ¢ nfo de ilustragio dos textos oficiais. 30 Historia & Fotogratia presente impedia-Ihe de figurar na galeria, naquele periodo restrita, de documentos hist6ricos. Na realidade, as imagens produzidas pela camera licida —como muitos chamavam a maquina fotografica — foram far- tamente utilizadas por pintores, como Degas, por exemplo, interessados em captar do real as minticias que o olho humano nao era capaz de registrar. Nao raro encontramos livros didati- cos, nacionais e estrangeiros, produzidos em meados da déca- da de 1860, que também lancgaram mio das imagens fotografi- cas para reproduzir as pinturas de histéria alocadas nos museus e cortedores dos palacios. Como ainda nesse periodo nao se conhecia a técnica de reprodugao da fotografia através da im- prensa, as imagens fotogrdficas chegavam até os livros media- das pela (écnica da litografia. Nao por acaso, nesse mesmo periodo, o poeta Baudelaire, antes de se convencer da dimen- sao artistica da fotografia, identificou sua natureza e seu po- tencial com os da imprensa. Quer dizer, conceituou-me como uma espécie de protese, de artefato mecnico preciso, que nada criava, muito embora fosse dotada dos atributos necessdrios para auxiliar no avango tecnoldgico e industrial, Por ser portadora de caracteristicas tao distantes do con- ceito de documento préprio da historiografia metédica, a foto- grafia foi alijada da pesquisa histérica. Sua inclusao nesse uni verso dependia, pois, de uma mudanca do paradigma hist6rico. No final do século XIX, uma série de transformagGes nas relagdes sociais € nos parametros do pensamento filosdfico e cientifico comega a colocar em causa os fundamentos da his- toriografia metédica. Conseqiientemente inicia-se um proces- so que, em médio prazo, contribuiria para criar as condigdes teGricas que levariam a uma mudanga do conceito de docu- mento hist6rico que, por sua vez, acabaria incorporando a fo- tografia no rol de fontes de pesquisa histérica. De um lado, ganhava forga a critica & infalibilidade da ética perspectiva. Crescia o ntimero de pintores ¢ estudiosos da 31 CeaecAo “Ha renia 8... RERLEO8S” arte a sustentar a tese de que “nao ha perspectiva exata ou projecao absoluta do mundo, [pois], hd sempre algo no espago que escapa ao olho, matematizado que seja”.'° De outro, uma corrente de fildsofos e tedricos das Ciéncias Sociai gava a colocar em divida tanto a tdo propalada existéncia de uma verdade Unica dos fendmenos sociais, quanto a corres- pondéncia direta entre conhecimento e verdade. Esses sinto- mas de mudanga das bases tedricas do conhecimento cientifi- co eram fortemente influenciados pelos desdobramentos do processo de globalizacdo, em curso desde a era das grandes navegagées. Além disso, o final do século XIX assiste a um prodigioso processo de transformagao trazido pelas guerras; movimentos nacionalistas; investidas imperialistas, desenvol- vimento acelerado da tecnologia e da ciéncia; migragdes em massa dos campos para as reas urbanas, de paises para pai- ses; surgimento de novas Classes sociais, novos oficios ¢ no- vas profissdes, Tudo que o mundo sempre conhecera em pro- porgées localizadas adquiria, a partir de entdo, uma dimensio planetdria. Essa reviravolta nas ¢ das relagdes humanas gera novas incertezas, pde em xeque os valores que até entiio calga- ram as tradigdes e os modos de ver das diferentes sociedades dentro e fora da Europa. Os desafios do que mais tarde viria a ser denominado de sociedade de massa, j4 detectados por Tocqueville, Marx, Nietzsche, dentre outros, redirecionavam o olhar dos tedricos das ciéncias sociais. As tensées, os conflitos e os antagonismos emcurso con- tribufam para dilapidar os cdnones politicos, cientificos ¢ socioculturais que a Revolugio Inglesa arranhara, a Revolu- cio Francesa golpeara e os diferentes desdobramentos sociais ¢ politicos da Revolugao Industrial iam minando mais e mais No bojo dessas transformagées alguns se apegavam uo passa- " BRUZZI, Hygina M. “Bastées cruzados”. tn: Du vistvel ao tangivel — em busca de unt fugar pés-utdpico, Belo Horizonte: C/Arte, 2001, p.1 08. 32 Historia & Fotografia do, & tradigao, na v4 esperanca de poder preservar o que ja se desfazia. Outros alimentavam a crenga iluminista num futuro promissor. Outros, ainda, apostavam na grande crise do capi- talismo como condig&o para a revolugao socialista € o inicio de uma nova era. No campo da reflexdo histérica, o historiador francés Jules Michelet inclui, no rol de suas buscas intelectuais, au- tores até entdo relegados ao esquecimento, como Herédoto ¢ Giambattista Vico, por exemplo. Das leituras dos textos do primeiro, Michelet inicia um proceso de reabilitagao do de- poimento oral, além de subverter 0 principio de que a ciéncia histérica se dedicava exclusivamente & andlise do passado. Das teses de Giambattista Vico, autor de Scienza Nuova, Michelet extrai outros ensinamentos que iriam marcar sua distancia em relagiio aos historiadores da Escola Metédica, dita positivista. Chama a atengdo para a especificidade das ciéncias do homem em relagao as da natureza; propde a com- binagio de diferentes metodologias para a andlise de evidén- cias histéricas também diferentes, e defende a tese de que o conhecimento hist6rico se faz com a andlise de dados anéni- mos € nao, como queria a historiografia metédica, apenas com a anélise dos dados sados exclusivamente das agdes de atores socialmente privilegiados. Nos anos que se seguiram, os escritos de Vico também inspiraram autores come Dil- they, Weber, Benedetto Croce e Collingwood," os quais, di- reta on indiretamente, teriam um papel preponderante na der- rubada do paradigma metédico. Em meio a esse processo de mudangas, ganha forga a tese weberiana da natureza compreensiva é interpretativa das cléncias da cultura. Weber 7 Sobre o pensamento de Vico e suas influéncias na filosofia ¢ nas ciéncias socials, Yer: WILSON, Eiinund. Rumo d Estagao Finldndia, 2d, Si Paulo: Companhia das Letras, 1986 {parte 1); BURKE, Peter. View, So Paulo. UNESP. 1997. THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou uni planetiria de erros — eritica de pensamentn de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar. 1981 33 CLEA “HISTORIA &... REFLEXES” combate resolutamente a idéia de que a Ciéncia possa engendrar “concepgées do mundo” de validade uni- versal, fundadas no sentido objetivo do decurso histé- rico, [Para ele], esse sentido objetivo nao exisie ¢ por isso mesmo ndo existe uma cigncia social livre de pres- supostos valorativos.'* Segundo ele, do passado s6 se pode conhecer as inten- ges que motivaram as agdes sociais dos diferentes atores histéricos. Sob essa perspectiva, a finalidade do processo cog- nitivo deixa de ser a expresso da verdade dos fatos “tal como teriam acontécido” para se transformar em um processo de compreensao e interpretaciio das significados que os homens atribufram as suas condutas sociais, sempre motivadas e/ou orientadas por expectativas em relagdo A aciio dos outros. De acordo com essa ldgica de raciocinio, a dimensiio objetiva e racional do processo de conhecimento também implicaré a aceitagdo de uma certa dose de subjetividade. O mundo a ser dessacralizado pelo homem de ciéncia nio é feito de coisas, mas de relagées sociais plenas de significados porque per- passadas pela forca de valores, crengas, mitos, rituais e sim- bolismos. Mcdiante o uso de uma metodologia capaz de de- tectar as estratégias racionais das acdes sociais, motivadas por interesses nem sempre racionais, tais como a fé, o dogma e os desejos, o homem calcula, racionaliza e cria meios para atingir seus fins. Cabe ao cientista compreender e interpretar €SSES processos. Sob essa Gtica, nega-se a antiga tese da coincidéncia en- tre a histéria-fazer e a histéria-conhecimento. E assim que a ciéncia histérica, como qualquer outra ciéncia da cultura, se desnaturaliza. Torna-se uma construgiio que sé funciona se operada a partir de um conjunto de hipéteses. “* COHN, Gabriel (org.). Weber. 2.¢d., So Paulo: Atica, 1982, p. 21 (Colecao Gran- des Cientistas). Histiria & Fotografia Com essas alteragGes no e do pensamento, estavam aber- tas algumas portas para o estabelecimento de um novo concei- to de realidade, de ciéncia histérica, de método de pesquisa e, sobretudo, de documento histérico. As imagens visuais deixa- riam de ser consideradas um retrato fiel dos fatos para se trans- formarem em linguagens dotadas de sintaxe prépria. Parafra- seando Italo Calvino, as imagens fotograficas deixariam de ser as coisas para se tornarem “figuras de coisas que signifi- cam outra coisa”. Sem embargo, esse clima de mudangas e inovagées nfo traria, de imediato, a derrubada do paradigma que norteata a historiografia metédica. O apego A tradigdo, a auséncia de clareza sobre os rumos das transformagées em curso e a pré- pria vinculagao do ensino de Histéria, e até mesmo da pesquisa, aos interesses do poder funcionariam como enlraves para a in- corporago e a difusdo de uma outra pratica de pesquisa e de ensino da ciéncia histérica. Enquanto isso, a fotografia ia sendo utilizada, cada vez mais, por todos os segmentos das sociedades modernas. Inde- pendentemente da resist€ncia dos membros da comunidade de praticantes da historiografia metédica, suas imagens divulga- vam os feitos dos homens ptblicos e 0 cotidiano dos homens & mulheres de diferentes classes sociais E para essa diregdo que deslocaremos nosso olhar no ca- pitulo seguinte. '° CALVINO. ftalo. “As cidades ¢ 0s simbolos”. In: As cidades invisiveis. 3.ed. $0 Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 17. 35 eee eee CAPITULO IT Tradigo e modernidade na mira dos fotografos A Ansia de apreender 0 mundo a partir de suas manifes- tagdes essencialmente objetivas e precisas, caracteristica da heranga do pensamento cartesiano, nao foi suficiente para eliminar a magia e a comogio que as imagens visuais desper- taram e despertam no homem. Ao longo dos séculos, as dife- rentes sociedades t8m criado distintas formas de produzir, olhar, conceber, dialogar e utilizar suas produgdes imagéti- cas. Ao possibilitar 0 constante desejo de eternizar a condi- ¢o humana, por certo transitéria, a imagem fotografica se aproxima de outras iconografias produzidas no passado, Como essas, a fotografia também desperta sentimentos de medo, an- giistia, paixio e encanto. Retine e separa homens e mulheres, informa e celebra, reedita e produz comportamentos ¢ valo- res. Comunica e simboliza. Representa. Sua génese fisico-quimica e sua capacidade reprodutiva criam um novo profissional da imagem ¢ inauguram ndo ape- nas uma estética propria, como também um novo tipo de olhar. Toda essa novidade diz respeito a uma sociedade cada vez mais laica, globalizada, veloz¢ tecnolégica, em que as pessoas con- vivern a um sé tempo com o medo do anonimato, a necessida- de de preservar o presente, a incerteza sobre o futuro e a espe- ranga de construgao de um mundo bem sucedido. Foto é um termo que vem do grego, phds. Significa luz. Fotografia quer dizer “aarte de fixar a luz de objetos mediante 37 cE Courcao “Histor &... REFLEXOES” a agdo de certas substincias”.’ Em 1826, o francés Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833) desenvolveu a heliografia? um processo quimico para fixar, em uma cdmera escura, a luz emanada de objetos. Pouco tempo depois, Niépce se as- sociou a Louis Jacques Mande Daguerre (1787-1851) que, apés 1839, veio a ser conhecido como o inventor da daguer- reotipia. Desse processo que consistia em usar uma fina ca- mada de prata polida, aplicada sobre uma placa de cobre e sensibilizada em vapor de iodo, resulta uma imagem de alta ptecisio, embora em apenas uma cépia. Poucos anos antes, em 1835, 0 eclético Willam Henry Fox Tathot (1800-1877) produzia 0 primeiro calétipe ou talbdtipo, uma técnica que permitia a reproducio da imagem em papel albuminado. En- quanto isso, em 1832, na recém-criada nagao brasileira, um francés radicado na Vila de Sdo Carlos (atual Campinas), Antoine Hercule Romuald Florence (1804-1879), desenvol- via suas pesquisas sobre a reprodugao de imagens mediante processos quimicos que ele préprio chamou de photographie, termo que 86 se tornaria usual apdés 1839.? Na realidade, entre fins da década de 1820 e meados dos anos de 1860, individuos de diferentes lugares da Europa e das Américas debrugaram-se, isoladamente ou nao, na pesquisa de diversos processos fisico-quimicos com o objetivo de captar e fixar imagens na camera escura. A identificagao dos nomes de Niépce e de Daguerre como inventores da fotografia deveu-se em grande medida a publicidade dada 4 reuniao, promovida ' BELLONE, Roger. La phetographie. 2.ed., Paris: PUF, 1997, p. 5 (Colegio Que sais-je?). = No final do livre o leitor encoatraré uma segio intitulada Cronvlogia, onde poderé sor identificada a seqiiGncia histérica dos principais experimentos que deram ori- gem a fotografia, dos faios mais relevantes sobre sua his\éria © dos termos tecnicos aqui empregados. * Recentemente Boris Kossoy trouxe a luz documentos que comprovam a descoberta isolada da fotografia por Hercule Florence. Sobre esta questio, ver: KOSSOY, Boris. Origem ¢ expunsdo da fotografia — séeula XIX. 38 Historia & Fotografia em 1839, por Frangois Arago, membro do Parlamento Fran- cés, na Academia de Ciéncias e de Belas Artes da Franca para divulgar as experiéncias desses dois franceses. Como toda novidade, os primeiros anos da fotografia foram marcados por uma intensa polémica acerca de sua natureza. En- quanto uns concebiam-na como uma técnica precisa e exata que permitiria ao homem modemo realizar seu sonho de conquista e domesticacao da natureza; outros encaravam-na como uma esté- tica inteiramente nova que viria revolucionar o mundo das artes. Houve, também, aqueles que, movidos por um misto de encanta- mento e pragmatismo, nio se preocuparam com os debates teéri- cos que a circundavam. Langaram mio da camera escura, profis- sional ou amadoristicamente, para celebrar as conquistas da modernidade e embalsamar fragdes de tempos que rapidamente iam se perdendo no turbilhaio das mudangas em curso. Embora a andlise da questo conceitual da fotografia es- cape aos objetivos deste livro, é importante lembrar que, entre os anos 20e 40 do século XX, momento da chamada Revolu- go Surrealista, muitos j4 conceituavam a fotografia como imagem hibrida. Juntamente com as obras de pintores como Miré, Picasso, Salvador Dali, Max Ernest, as colagens do fo- tégrafo Man Ray (1890-1976) subverteram as tentativas ante- riores de reduzi-la ora a um mecanismo técnico altamente so- fisticado, ora ao campo do realismo estético. Desde entao a fotografia “encarna a forma hibrida de uma ‘arte inexata’ ¢, a0 mesmo tempo, de uma ‘ciéncia artistica’, o que nao tem equi- valentes na historia do pensamento ocidental”.* Nomes como 0 de Roland Barthes (1915-1980) ¢ deCartier- Bresson (1908) esto associados a um conjunto de questées acer- ca da especificidade da linguagem fotografica ¢ de sua possivel similitude com outros tipos iconograficos. A partir dos anos 80 de Bello * COSTA, Rodrigues. Apud. ARRUDA, Rogério Pereira. (org.) Album autenti. Horizonte, Edigio Fac-similar com Estudos Criticos. Belo Horizonte ca, 2003

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