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ANTIMANUAL DE GESTAO DESCONSTRUINDO OS DISCURSOS DO MANAGEMENT Er le EDITORA IDEIAS LETRAS . CAPITULO 4> Capitalismo, modelos de gestio e assédio moral no trabalho Vatauikia PADILHA tese que pretendo defender aqui é a de que o sofrimento psicossocial dos trabalhadores, que vem ganhando con- tornos de uma violéncia simbdélica no limite do invisivel no cotidiano das organizagées atuais, é causado por certas estratégias de gestao que brotam do interesse descontrolado dos empresdrios acionistas de obterem ganhos financeiros maiores ¢ mais rapidos. _ Esse fendémeno contemporaneo que vem ocorrendo nas empresas do mundo todo, o que se convencionou chamar de “assédio moral no tra- balho”, é consequéncia direta, dentre outros fatores, de um conjunto de valores e ideias difundidos no mundo organizacional a partir dos anos 1980 ¢ que configura uma cultura organizacional tfpica do mo- delo de gestdio que nasce na Toyota: 0 chamado “toyotismo” ou “mo- delo japonés”. Como os outros modelos de produgio (0 taylorismo € 0 fordismo), 0 toyotismo é um modelo de acumulagao do capital. O que isso quer dizer? trabalho nao somente reproduz o capital, mas também pro- duz mais-valia, 0 que muitos chamam de renda do capital. Quando Vai CapiruLo 4 > Varouiria Papiaa © capitalista, anualmente, acrescenta ao seu capital uma parte ou toda a sua renda, temos uma acumulagao de capital, que crescera progressivamente. Com a reprodugao simples (vender uma merca- doria por um prego maior do que o que foi gasto para a sna pro- dugao), 0 trabalho conserva 0 capital, com a acumulagio da mais- -valia, 0 trabalhador faz 0 capital crescer. A mais-valia é um conceito bastante complexo e central na cri- tica ao capitalismo desenvolvida por Karl Marx, no século XIX. De forma sintética, podemos compreender a mais-valia como uma parte do saldrio no pago ao trabalhador ¢ apropriado pelo dono da empresa. Isso ocorre porque o capitalista paga menos do que as horas efetivamente trabalhadas (mais-valia absoluta) ou por- que obtém maior rendimento com as maquinas em menos tempo (mais-valia relativa). Assim, 0 operdrio produz mais mercadorias gerando um valor maior do que lhe foi pago na forma de salario. Isso 6 mais-valia: um valor excedente produzido pelos operirios nao pago pelos capitalists. Como exemplo da mais-valia absoluta, que se obtém com a extensao da jornada de trabalho, tem-si um, operario trabalha 8 horas por dia produzindo sapatos. Ele conse- gue produzir 1 par de sapatos por hora, 8 pares por dia. Mas, ao final do dia, ele receber4, em forma de saldrio, como se tivesse trabalhado 6 horas, ou seja, recebera pela producao de 6 pares de sapatos. Os 2 pares de sapato restantes sao a produgao excedente que ele entrega de graca ao dono da empresa a titulo de remune- ragiio do empresario. Assim, 0 que Marx desvendou quando estudou profundamente o sistema capitalista, foi a forma como 0 dono da em- presa ganha duplamente: primeiro, quando na etapa da produgio, expropria a mais-valia do trabalhador e, segundo, quando realiza a venda de sua mercadoria e obtém lucro.” 0 trabalho 6, entao, a 21 Para melhor conhecer o conceito de mais-valia, recomendo que o leitor confira em Karl Marx, 0 capital, Livro I, Volume 1, Parte Terceira (sobre mais-valia absoluta) e Parte Quarta (sobre mais-valia relativa). Ver também de Paulo Sandroni, O que é mais-valia, Coleco Primeiros passos, n. 65, 1985. »128 ANTIMANUAL DE GestAo fonte da riqueza do capitalista.” Como ironicamente nos lembrou Marx, capitalista seja um decidido progressista, nao fabrica sapatos por paixao aos sapatos” (MARX, 1989, p. 210). Ele sabe que quando aluga a forga de trabalho alheia, paga apenas uma parte do equiva- “embora caleados sejam titeis & marcha da sociedade e nosso lente produzido. Um trabalho excedente nao é pago pelo capitalista porque o assalariamento — uma das caracteristicas das relagdes de trabalho capitalista — supde a exploracao do trabalhador. O traba- Ihador trabalha nao apenas para suprir as suas necessidades didrias de sobrevivéncia, mas também para sustentar os capitalistas. Como disse Marx sobre a mais-valia: “consumon-se finalmente 0 truque; 0 dinheiro se transformou em capital” (MARX, 1989, p. 219). E por meio dessas duas fontes de riqueza, 0 trabalho excedente ea comercializagao dos bens produzidos em forma de mercadorias. que tradicionalmente o capitalista acumula capital. Portanto, o interesse dele 6 de acelerar 0 maximo possfvel o ciclo de producao- -consumo para que ele possa realizar a acumulacéo do capital num curto periodo de tempo. Toda a equipe de diretores, gerentes, gestores ¢ supervisores moveriio sua forga de trabalho para que 0 capitalista realize seu desejo de acelerar 0 ciclo de produgao-consumo- -mais, produgao-mais-consumo e, assim, acumular capital. Durante todo o século XX os empresdrios se beneficiaram dos modelos de acumulagao de capital que comecou com o taylorismo, passou pelo fordismo ¢ culminou no modelo japonés. Todos esses mo- delos de acumulacao so modelos de gestao da forca de trabalho, ja que, como vimos, é a fora de trabalho quem gera a riqueza do capi- talista. Portanto, quanto mais essa forga de trabalho for disciplinada e controlada, mais ela servird aos interesses da empresa. Taylor Ford conseguiram aumentar a produtividade e 0 consumo, sub- metendo os corpos dos trabalhadores a um rigido controle por parte dos administradores ¢ engenheiros. Taylor, obcecado pelo 22 Marx (1989, p. 243) afirmou: “a taxa de mais-valia é, por isso, a expresso precisa do grau de exploracao da forga de trabalho pelo capital ou do trabalhador pelo eapitalista”. 129 Capiruto 4 > Vatguiria PADILAA controle dos gestos, dos movimentos e pela economia de tempo, foi responsével pela separagdo entre o trabalho de pensar e pla- nejar (cabe aos gerentes ¢ engenheiros) e o trabalho operacional (cabe aos operarios). Ford, a partir da implantagio da esteira e da linha de montagem, aperfeigoou o taylorismo e conseguiu fixar 0 trabalhador no seu posto, assim, fazendo 0 trabalho chegar até ele, ganhou ainda mais produtiyidade. Controlou o trabalhador nao s6 no espaco da fabrica, mas nos seus lares, no seu tempo de lazer.”* Com a reestrutura¢ao produtiva, ocorrida nos anos 1970-1980, na esteira da crise do fordismo e do Welfare State (Estado de Bem- -Estar Social), 0 modelo japonés implantado na Toyota do Japio ganha destaque num cendrio mundial de hegemonia da légica da rentabilidade financeira™ e de ascensio do neoliberalismo. Isso significa: politicas de privatizagdes, demissées (chamadas de downsizing), terceirizagdes (externalizagées), desregulamenta- cao dos direitos trabalhistas, reformas fiscais com redugao de impostos sobre fortunas e a lei do Estado minimo para a popu- lagdo e Estado maximo para o capital. Nesse cendrio, 0 Japaio ex- porta novas formas de gestao: o fim do emprego vitalicio, a admi- nistragao pelo medo, o Just in Time (JIT) ¢ 0 Kanban — inspirados no sistema de reposigao de mercadorias nas prateleiras de super- mereados — , robotizagao, microeletrénica (a chamada Terceira Re- volugao Industrial), os CCQ (Circulos de Controle de Qualidade), o saldrio em duas partes (fixo + flutuante, conforme produgao), a polivaléncia dos trabalhadores (1 trabalhador do modelo japonés 23. Sobre o taylorismo, vale ler TAYLOR, EW. Princfpios de administragio cientifica, SP: Atlas, 1980. Ver ainda: RAGO, L.M.; MOREIRA, E.EP, O que é taylorismo, SP: Brasiliense, 1986. Ver também: BRAVERMAN, H. Trabalho ¢ capital monopolista, RE: LTC, 1987. Sobre 0 fordismo, vale ler: FORD, H. Minha vida ¢ minka obra, RJ/SP: Companhia Editora Nacional, 1926. Ver também: GRAMSCI, A. Americanismo e for- dismo, SP: Hedra, 2008, 24 Nesse sentido, ha nas empresas a politica de maximizagtio do valor das ages (repor- ting), em que se deve prestar contas aos acionistas. Como sugere Braga (2007), 08 gestores estiio cada vez mais sendo formados e instados a aumentar rentabilidade de acionistas ¢ prestar contas somente a eles, numa Idgica de favorecimento de acionistas em detrimento dos trabalhadores cada vez mais precarizados. 130 ANTIMANUAL DE GEstao faz o que faziam 5 trabalhadores fordistas), 0 fim dos sindicatos combativos ¢ o sindicalismo por empresa. A reestruturagao produtiva neoliberal é um novo modelo de administracao flexivel reforcada pelo discurso de que a economia precisava de um “choque de mercado” e, por isso, milhdes de déla- res foram transferidos dos Estados para o setor privado (privatiza- goes). As empresas privadas, buscando somente o lucro como finali- dade maxima de sua existéncia, flexibilizam o trabalho e realizam mais uma vez a utopia do capital, pois criam formas de controle da forga de trabalho mobilizando-a pela cooperagao constrangida e pela administragdo por metas. Conforme sugere Heloani (2003), modelo japonés implanta modelos mais sutis de captagao da subje- tividade dos trabalhadores, conseguindo adesio com menos repres- sao explicita e mais controle psiquic A flexibilidade, propagada como forma de aumentar autonomia e controle dos trabalhadores, nada mais é que a soma da degradagao do trabalho, a intensificagao do ritmo do trabalho, a precarizacao do estatuto reprodutivo do trabalhador por meio das miltiplas formas contratuais (BRAGA, 2007). Estabeleceu-se, ent&o, uma nova forma de acumulacio do capital a partir desse modelo atual de empresa neoliberal reestrutu- rada, flexfvel com dominancia do capital financeiro.° Nas palavras de Braga (2007, pp. 46-47): 0 objetivo do administrador 6 criar valor excedente, ou seja, conquistar ga- nhos sobre as acoes dav empresa. [...] A ambigio atual dos administradores de empresas parece ser a de transformar o trabalho em uma mercadoria 0 fluida e refratéria a regulagées sociais quanto o préprio capital financeiro. 25 Sobre 0 toyotismo, vale ler HELOANI, R. Gestdo e organizacio no capitalismo glo- balizado, SP: Atlas, 2003 ¢ também HIRATA, HL; ZARTETAN, P. Forca e fragilidade do modelo japonés. Estudos avancados, 12 (5), 1991. 26 Fi nos anos 2000 que se ouve falar pela primeira vez em “governanca corporativa™ como um novo estilo de administrar empresas a partir da pressio que os investidores financeiros dos acionistas fazem sobre os gestores para maximizar o valor acionarial. A governanca corporativa tem 0 objetivo de reeuperar e garantir a confiabilidade em uma determinada empresa para os seus acionistas. 131< Capiruto 4 > Varouiria PApTLnA E, entao, nesse universo que se pode observar 0 quanto os gestores da forga de trabalho acabam recorrendo as mais perversas estratégias para adquiriro maximo de suas potencialidades de geracdo de riqueza/ capital. O discurso da gestao incita 0 sucesso facil, a necessidade de pro-atividade, do ganho imediato e do individualismo em nome da competitividade ¢ da gestdo de si mesmo (self-made man) — 0 que atribui o sucesso ¢ o fracasso, das carreiras apenas a essa capacidade (ou nfo) de gerir sua prépria vida (HRENBERG, 2010). Assim, a competi¢ao generalizada que se naturaliza no universo organizacio- nal dos dias atuais reforga sentimentos de hostilidade, inveja e indi- ferenga ao outro, gestando uma nova forma de violéncia psicossocial. As empresas, mais do que mea, transformaram-se em campos de guerra; ¢ na guerra vale tudo: sacrificios e perdas humanas so ne- cessarios, jd que nao ha escolha possivel que nao seja vencer ou mor- rer. Essa naturalizagao do princfpio de que “na guerra nao se pode ter alma” aliada ao incentivo as batalhas por produtividade e ganhos fi- nanceiros transformaram as organizagées — ptiblicas e privadas — em fabricas de trabalhadores doentes, sofrendo, humilhados, assediados © que, muitas vezes, acabam com suas préprias vidas. Os gestores, comandantes das batalhas e dos batalhdes, se veem no interior da secular contradigo entre capital e trabalho: de um lado, devem ge- rar luero aos acionistas em curto prazo, tém que atender bem aos clientes e melhorar as condigées de trabalho. Missao impossivel que os forcam a optar sempre pelo lado dos acionistas, seus verdadeiros empregadores — muitas vezes nao sem sofrimento para eles préprios. Os gestores — recursos humanos & frente — tém a missdo contraditéria de conseguir uma submissio livremente consentida dos trabalhadores que devem mobilizar corpo ¢ mente a servico da produtividade ¢ dos ganhos financeiros. Ainda que haja politicas de participagao nos lucros em algumas empresas, grande parte dos trabalhadores sabe que nao ha vantagens em sacrificar-se demais para dar mais ganhos ao outro do que a si mesmo e A sua classe. Também mergulhados no paradoxo do cotidiano laboral que fornece prazer ¢ +132 ANTIMANUAL DE GESTAO sofrimento, realizagdes e perdas, dinheiro e caréneia, os trabalhadores menos “empoderados” das organizagées, digamos assim, querem sempre — com mais ou menos consciéncia e organizagao politica — descobrir modos de resistir A exploragdo de sua mais-valia, A luta de classes entre capitalistas e trabalhadores assalariados (compradores evendedores da forca de trabalho respectivamente) ganha novos con- tornos e novas intensidades no final do século XX, mas permanece por toda a historia do capitalismo até hoje. Como bem salientou Aravijo (2008), é um engodo discursivo das empresas qualquer referéncia a relagdes harmoniosas entre capital e trabalho. A cooperacao harmoniosa entre capital e trabalho é uma faldcia ¢ s6 existe na utopia do capital, que deseja trabalhado- res to perfeitos, dedicados, déceis ¢ produtivos quanto robés. As empresas afastam-se da realidade percebida e vivida quando falam em “comunidade” ou “familia”: “ai esté 0 escondimento dos anta- gonismos entre chefes e subordinados, o escondimento das lutas de poder, dos conflitos” (ARAUJO, 2008, p. 65). Estamos descrevendo 0 universo da gest&o que encerrou o sé- culo XX e entrou no século X XT. Vale lembrar, como bem salien- tou Braverman (1987), que management deriva da palavra francesa manége, que significa a arte de domar os cavalos. Gestao é contro- le: de recursos materiais, financeiros e humanos. A gestao da forca de trabalho é 0 eixo sobre 0 qual se ergueram todos os modelos de gestio e de produgdo desde o nascimento das fabricas até hoje (DECCA, 1988). Nesses modelos, trabalhadores parcelizados torna- ram-se agentes de desempenho para a rentabilidade do capital, uns como gestores, outros como subordinados. Humanos tornaram-se recursos administrados pelos que gostam de mandar, de ter empre- gados sob seus cuidados, sob seu controle. Gestores, muito comu- mente, ocupam esses cargos porque, com mais ou menos intensi- dade e envolvimento, aderiram aos projetos narefsicos refor¢ados pela cultura organizacional sedutora das organizacées modernas (FREITAS, 2000). Mas, diferentemente da gestao pela disciplina 133 Capiruvo 4 > VA LQUIRIA PADILHA (tipica do padrao taylorista-fordista), agora os trabalhadores sao chamados a “agir sobre si mesmo nfo tendo outro representante a nao ser si mesmo” (EHRENBER' ). Seduzidos pelo culto da performance, culto do herofsmo (0 “atleta corporativo”) e pela cultura do management, gestores & aspirantes a gestores sao levados defesa do empreendedorismo. Ser bem-sucedido, para os que nasceram depois dos anos 1990, principalmente, é fazer-se a si mesmo, “sua prépria histéria 6 a finica que importa” (EHRENBERG, 2010, p. 53). Nesse sentido, a identidade social/profissional esta cada vez mais ancorada na adesio a esses valores empresariais do que na sua origem social € nos grupos dos quais fez/faz parte (esfera publica). Como analisa Ehrenberg (2010, p. 74): [-.-] 0 outro 56 funciona como ponto de comparacizo e de diferenciagao, no qual ele é apenas 0 padrio de medida, @ semelhanca dos mecanismos em acéio na competicao esportiva. O ser ensimesmado é cultuado nesse universo contemporaneo do management. © nessa onda que muitos gestores sio conduzidos pelas organizagdes a abrirem suas préprias empresas (tornam- -se PJs, Pessoas Juridicas), rompendo os contratos de trabalho formais para explorar ao maximo seus potenciais individuais (principio do outplacement). A pressiio aumenta para todos esses atores envolvidos nessa nova configuragao das organizagdes. O sofrimento psicossocial expande seus tentaculos e chega tanto aos subalternos quanto aos gestores. Nas palavras de Ehrenberg (2010, p. 139): -] 0 individuo sob perfusdio ¢ um aspecto da emprezarizagao da vida. A obsessio de ganhar, de vencer, de ser alguém e 0 consumo em massa de medicamentos psicotrépicos estiia estreitamente ligados, pois uma nova cultura da conquista é, necessariamente, uma cultura da ansiedade [...]. 134 ANTIMANUAL DE GEsTao ‘ida- de do mercado, se assenta na ética dos resultados rapidos, aca- Esse modelo de organizacgaéo que, em nome da competit ba por legitimar uma sociedade em que todos vivem sob pressao, com medo de fracassar, de no estar & altura, de perder seu ugar (FREITAS et al., 2011). Por isso, 6 mais do que necessario en- tender a empresa como um “sistema sociopsiquico de dominacio fundado sobre um objetivo de transformagao da energia psfquica m forga de trabalho” (GAULEJAC, 2007, p. 108). Ali, o desejo é solicitado o tempo todo: desejo de sucesso, de dinheiro e de poder, © gosto pelo desafio, a exaltagao do ego e da personalidade narci- sica, a qual “[...] nao cessa de procurar uma imagem valorizada no olhar do outro: ela quer ser invejada ao invés de ser respeita- da [...]” (ANSART-DOURLEN, 2005, p. 87). Nesse universo da gestdo, a personalidade nareisica dos gestores é supervalorizada, possibilitando um ambiente moralmente doente, pois quando a pes- soa tem essa patologia, tende a fazer da sua vida um espetaculo que deve ser constantemente admirado pelos outros (os quais ocupam meramente lugares na plateia). Mas, “quando 0 outro nfo reenvia ao sujeito a imagem de um duplo admirado, [...] (suscita) uma rai- ya narcisista que se torna a origem de um ressentimento durdvel” (ANSART-DOURLEN, 2005, p. 87). Ressentimentos durdveis em pessoas que estdio no comando acabam se deslocando para uma von- tade de controle exercido nas relagées intersubjetivas. Quando uma organizagao confere poder aos que assumem essas condigses, praticas perversas reinam soberanas e favorecem o que a psiquiatra francesa Marie-France Hirigoyen denominou de “assédio moral no trabalho”. O que 6, afinal, assédio moral no trabalho? Soares (2012, p. 284) conta que j4 em 1989, o sueco Heinz Ley- mann escreveu seu primeiro livro tratando do assunto. A tradugao em francés desse livro saiu somente em 1996, com o titulo Mob- bing: a perseguicdo no trabalho. Nessa época, palavras em inglés 135 CariruLo 4 > Varouirta Papitna como harassment ¢ psychologocal terror eram usadas para designar o assédio moral. Leymann preferia usar 0 termo mobbing para a violéncia psicolégica entre adultos ¢ bullying quando se tratava de criangas e adolescentes, apesar de que hoje se usa frequentemente o termo bullying, na lingua inglesa, para se referir ao que conhece- mos como assédio moral (SOARES, 2012). Na Franga, a psiquiatra Marie-France Hirigoyen publica, em 1998, 0 livro Assédio moral: a violéncia perversa no cotidiano. Segundo Soares (2012, p. 285), 0 livro se torna um sucesso e é traduzido em 27 idiomas. Soares (2012, p. 285) ainda ressalta que: [-..] O assédio moral é um processo multicausal com diferentes aborda- gens andlises que ora estizo focalizadas no individuo, ora no contexto ou ainda em ambos, individuos e contexto. mas de métodos ¢ abordagens diferentes. Assim. a abordagem psicolé- fica seré mais centrada sobre 0 individuo, enquanto uma abordagem sociolégica seré mais voltada para as relacées sociais ¢ 0 seu contexto. Neste capitulo, optamos claramente pelo olhar sociolégico que se volta para a organizagio do trabalho vista de forma mais ampla, assumindo que a personalidade perversa 86 pode agir contra outras pessoas se a organizacao for permissiva. Assim, nos interessa nao culpar chefias, mas desnudar a pretensa neutralidade das organiza- des e de seus modelos de gestao adotados. Concordamos que se faz necessario olhar para pessoas, grupos e instituigdes como agentes entrelagados no cotidiano de trabalho. O assédio moral no trabalho € apenas um dos intimeros fendmenos que brotam dessa trama. Hirigoyen (2003) faz uma relagiio direta entre a personalidade perversa e 0 gosto pela humilhagao e desestabilizagio emocional dos outros. Essa perversio moral tem origem em um proceso in- consciente de destruigao psicoldgics Constituido de manipulacdes hostis. evidentes ou ocultas, de um ou de varios individuos, sobre um individuo determinado, que se torna um verdadeiro saco de pancadas. Por meio de palavras, aparentemente +136 AntimanuaL DE GEsTAo inofensivas, alusdes, sugestdes ou nao ditos, é efetivamente possivel desequilibrar uma pessoa, ow até destrui-la, sem que os que a rodeiam intervenham. 0 agressor — ou os agressores — pode assim enaltecer-se rebaixando os demais, ¢ ainda livrar-se de qualquer conflito interior ou de qualquer sentimento, fazendo recair sobre 0 outro a responsabili- dade do que se sucede de errado: “Nao sou eu, é ele 0 responsdvel pelo q p P problema!”. Sem culpa, sem sofrimento. Trata-se de perversidade no sentido de perversdo moral. (HIRIGOYEN, 2003, p. 11) O agressor psicolégico ou o perverso moral s6 pode existir di- minuindo alguém e consegue sua autoestima e poder rebaixando os outros. Os perversos, diz Hirigoyen (2003), manipulam os outros com naturalidade ¢ acabam até sendo invejados pelos que veem nele uma figura de sucesso. Para ela, a perversidade no é uma psi- copatia simplesmente, mas é “uma fria racionalidade, combinada a uma incapacidade de considera 0s outros como seres humanos” (HIRIGOYEN, 2003, p. 13). O perverso moral tem um forte desejo de poder, A psiquiatra diz que 0 assédio moral uma violéncia de- clarada que ataca a identidade da vitima. “E um proceso real de destruigio moral, que pode levar & doenga mental ou ao suicidio” (Idem, p. 16). Hirigoyen (2003, p. 65) define 0 assédio moral nas empresas como: [...] toda ¢ qualquer conduta abusiva manifestando-se, sobretudo, por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer dano @ personalidade, a dignidade ou a integridade fisica ou psiquica de uma ‘pessoa, por em periga seu emprego ou degradar 0 ambiente de trabalho. E diz mais: “E a repetigio dos vexames, das humilhagées, sem qualquer esforco no sentido de abranda-las que torna o fendmeno des- truidor” (p. 66). Ela ainda lembra que o assédio moral no trabalho é to antigo quanto o préprio trabalho, mas apenas no final da década de 1980 é que esse fendmeno comega a ganhar definic&o ¢ estudos. Depois de certo tempo, 0 ciclo do terror psicolégico se instala no ambiente de trabalho, sendo que agressor ¢ vitima se relacionam. 137 CapiruLo 4 > Varouiria Paprina pelo sentimento de raiva do primeiro ¢ 0 sentimento de medo do se- gundo (trata-se de um reflexo condicionado agressivo/defensivo). O medo da vitima gera comportamentos confusos que podem for- talecer ainda mais 0 agressor que faz manobras para transtornar, confundir e levar a vitima ao erro. Conforme salienta Hirigoyen (2003, p. 67), “o conflito, na verdade, degenera porque a empresa se recusa a interferir” ¢ a vitima ndo se sente protegida pela organi- zaco. O agressor encontra espago frutffero nessas empresas para de- senyolverem seu carater perverso e sua incapacidade de sentir culpa. Hirigoyen (2003) descreve dois tipos de assédio: um horizontal (entre colegas de trabalho, como casos de sexismo, racismo ¢ com- petitividade) e outro vertical (entre chefes e subordinados: sendo muito raro, mas nao impossivel, 0 chefe ser assediado pelo subor- dinado). Os casos mais comuns, dos anos 1980 até hoje, sio de su- pervisores e chefes que agridem subordinados, quando “se busca fazer crer aos assalariados que eles tém que estar dispostos a aceitar tudo se quiserem manter o emprego” (HIRIGOYEN, 2003, p. 75). Trata-se de empresas que adotam modelos totalitarios de gestao, permitindo que superiores fagam armadilhas para os subordina- dos. Nessas empresas ha uma recusa & comunicacio e a escuta dos trabalhadores. “No mecanismo da comunicagiio perversa, 0 que se busca fazer é impedir 0 outro de pensar, de compreender, de reagir” (Idem, p. 76). Suprimir o diélogo é uma maneira de dizer que 0 ou- ‘tro € seus problemas nao interessam. Outra manobra comum de assédio moral no trabalho é a desqua- lificagao, como quando se faz brincadeiras perversas ¢ depois se tenta desqualificar 0 sofrimento gerado com afirmagées do tipo: “Ah, que exagero, ninguém morre por causa de uma brincadeirinha!”. “A lin- guagem é pervertida: cada palavra esconde um mal-entendido que se volta contra a vitima escolhida” (Idem, p. 78). Isolar.a vitima também. 6 uma das manobras. De acordo com Hirigoyen (2003, p. 79): “Por em quarentena é algo muito mais gerador de estresse do que sobrecarregar de trabalho, e torna-se rapidamente um processo destruidor™. »138 ANTIMANUAL DE GesTAo A mesma autora, em obra mais recente (2011), explica que 0 as- sédio moral nasce da discriminag&io com o diferente. Nas empresas, ha muita dificuldade de suportar funcionarios atipicos ou diferentes. As atitudes de assédio visam antes de tudo a “queimar™ ou se livrar de in- dividuos que nito estito em sintonia com o sistema. [...] O assédio moral €um dos meios de impor a ligica do grupo. (HIRIGOYEN, 2011, p. 39) Além disso, a autora considera que o clima competitivo e de ri- validade que reina nas empresas favorece o sentimento de citimes, inveja co medo de ser demitido. Sobre 0 medo, ela afirma: Com o fantasma do desemprego, que persiste apesar da retomada do cres- cimento econdmico, ¢ 0 aumento das pressdes psicolégicas relacionadas aos novos métodos de gestdo, 0 medo se tornow um componente deter- minante no trabalho. Fica escondido no fundo da mente de um sem- -nuimero de empregados, mesmo que néo ousem tocar nesse assunto. Eo medo de néo estar @ altura, desagradar ao chefe, nao ser apreciado pelos colegas, da mudanca, medo também da critica ou de cometer um erro profissional que possa causar demissio. (HIRIGOYEN, 2011, p. 43) O medo aumenta ainda mais em certas empresas que adotam estratégias de gest&o de pessoas que repousam no terrorismo. Nessas empresas: E preciso esconder as préprias fraquezas por temer que 0 outro as utili- ze como municao. E necessario atacar antes de ser atacado e, em qual- quer caso, considerar 9 outro como um rival perigoso ou um inimigo em potencial. (Idem, p. 45) No Brasil, o site www.assediomoral.org apresenta as seguintes definigdes ¢ caracterizagées do assédio moral no trabalho: E a exposigéo dos trabalhadores ¢ trabalhadoras a situacées humi- thantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jor- nada de trabalho e no exercicio de suas funcées, sendo mais comuns em relacdes hierdrquicas autoritdrias assimétricas, em que predominam 1394 CapiruLo 4 > Vaxouirta Papitna condutas negativas, relacdes desumanas e aéticas de longa duragéo, de um ou mais chefes dirigida a um ou mais subordinado(s), desestabi- lizando a relagéo da vitima com o ambiente de trabalho e a organizagao, forcando-o a desistir do emprego. Caracteriza-se pela degradagao deliberada das condicées de trabalho em que prevalecem atitudes ¢ condutas negativas dos chefes em relaciio a seus subordinados, constituindo uma experiéncia subje- tiva que acarreta prejuizos priticos e emocionais para o trabalhador ¢ a organizacao. A vitima escolhida ¢ isolada do grupo sem explicacées, passando a ser hostilizada, ridicularizada, inferiorizada, culpabilizada ¢ desacreditada diante dos pares. Estes, por medo do desemprego e a vergonha de serem também humithados, associado ao estimulo constante 4 competitividade, rompem os lacos afetivos com a vitima e, frequente- mente, reproduzem e reatualizam acdes ¢ atos do agressor no ambiente de trabalho, instaurando 0 “pacto da toleréncia e do siléncio” no coletivo, enquanto a vitima vai gradativamente se desestabilizando ¢ ‘fragilizando, “perdendo” sua autoestima. A humilhacéo repetitiva e de longa duracao interfere na vida do trabatha- dor e trabathadora de modo direto, comprometendo sua identidade, digni- dade e relacoes afetivas e sociais, ocasionando graves danos @ sauide fisica ¢ mental, que podem evoluir para a incapacidade laborativa, desemprego ‘ou mesmo a morte, constituindo um risco invistvel, porém concreto, nas relagées ¢ condicées de trabalho. O assédio moral é um conjunto de condutas abusivas e fre- quentes que ferem a dignidade da pessoa que sofre com humi- Ihacdo. Também chamado de “terror psicolégico” no trabalho, © assédio moral transformou-se num instrumento das empresas visando aumentar a produtividade, o que se acentuou depois da crise mundial do capitalismo em 2008. Numa matéria da Folha de S. Paulo de 2009, 0 entrevistado Roberto Heloani explicou que as consultas ao site www.assediomoral.org.br, do qual é um dos coordenadores, aumentaram mais de 20% desde a crise. 27 Disponivel em: . Acesso em: 17/4/2014. Grifos no original. 28 Idem. 140 ANTIMANUAL DE GESTAO. Segundo Heloani, apés a crise cresceram as pressdes por produ- tividade nas empresas: Quem estd fora do mercado quer entrar ¢ quem estd dentro nao quer sair. Os gestores do mais pressionados, pressionam os empregados da produ- ¢ao e as situagdes de assédio véto se alastrando.” Essa violéncia psiquica, que tem como base a humilhagao, nao é simples de ser detectada e combatida num ambiente de traba- Iho. O assédio moral no trabalho se configura como sendo uma perseguicdo que repete, por um perfodo prolongads, situagées de humilhacao, de medo e vergonha, muitas vezes confundindo a(s) vitima(s) sobre quem é culpado por tudo isso. Nao se trata de fenémeno visivel, mensurével com exatidao, nao é como um ope- rario que se acidenta e tem uma mao decepada por uma maquina ~ lesio e sofrimento que sao visiveis. O sofrimento provocado pelo assédio moral é psicol6gico, subjetivo e vai fragilizando a vitima aos poucos, podendo levar ao pedido de demissao, ao adoecimento fisico, 4 depressiio e até ao suicidio. E dificil para médicos e psi- quiatras estabelecerem o nexo causal da doenga e do sofrimento com um ambiente organizacional doente moralmente. O assédio moral no trabalho é causado em empresas que ado- tam politicas de trabalho abusivas, as quais ignoram que traba- lhadores sao sujeitos de emogao. Nas tiltimas décadas, 0 absurdo das metas impossfveis tem sido uma das principais eausas da pratica de assédio moral no trabalho, muitas vezes confundido com técnicas motivacionais. Isso nao pode mais acontecer! Os diretores da area de recursos humanos devem estar bastante preparados para entender 0 que é assédio moral e nao permitir que prati- cas relacionadas ocorram em nome da motivagao ou de qualquer meta que a empresa vise alcangar. A satide psiquica ¢ moral dos 29 Matéria de Claudia Rollie Fatima Fernandes intitulada “Casos de assédio moral cres- com na crise”. Disponfvel em: Vanouirta PapiLia trabalhadores devem ser garantidas sempre. Em nome do humor e da brincadeira, no se pode naturalizar praticas de humilhagio € opressao nas empresas. Numa matéria da revista Exame, de 2011, intitulada “6 casos de motivagio que viraram assédio moral”, alerta-se para a im- portancia de pensar com muita seriedade as estratégias motiva- cionais nas empresas. Um ex-diretor do Walmart de Barueri (SP) ganhou na justiga uma indenizagéo de R$ 140 mil por ter sido obrigado a rebolar na abertura e no encerramento de reunides. ‘A Gity Lar, no Aere, ultrapassou o limite da punic&o para quem nado cumpre metas. A loja pregava cartazes nas paredes da sala de reunides com frases como “sou um rasgador de dinheiro”, “sou bola murcha” e “nao tenho amor aos meus filhos”. Na AmBev (a empresa brasileira que mais contabiliza processos por assédio moral no trabalho), sio comuns priticas abusivas como obrigar um vendedor que nao bateu metas a deitar num caixéo durante uma reunido (representando o profissional morto), colocar gali- nhas e ratos enforeados na sala de reunides ou deixar vendedores que nao batem metas em pé durante as reunides, dangar na frente dos outros e até usar camisetas com apelidos. No Unibanco, em Porto Alegre, além de chamar trabalhadores que nao batem me- tas de incompetentes e tartarugas, 0 gerente de uma agéncia fez um painel pregado na parede onde constava fotos de funciondrios que batiam metas na cor verde e os que nao batiam metas na cor vermelha. Junto aos seus rostos eram colocadas ofensas. O gerente cobrava resultado da funciondria diante de colegas com expressdes como: “Vou comer o teu rabo se nao bater a meta”, “vou colocar o pau na mesa”, “tu é pior do que uma tartaruga, a tartaruga é mais rapida que tu”. Uma empresa engarrafadora da Coca-Cola, no Mato Grosso, fazia a distribuicdo do “troféu tartaruga” para “homenagear” os trabalhadores com piores rendimentos na semana. Diretores da Samsung, em Piracicaba (SP), foram condenados por levarem a 142

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