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III. SOLIDARIEDADE EM TEMPOS DE CHUMBO. 22 1. Notas histéricas sobre as literaturas dos paises africanos de lingua portuguesa O estudo dos processos de afirmagao das literaturas africanas de lingua portuguesa levam 0 critico a relevar formas em que os escritores, desde a facgdo da obra, Procuram obter sua legitimagdo, num campo intelectual definido por relagdes comunitarias. Autor, texto ¢ leitor situam-se nesse horizonte lingiistico-cultural que se pauta pela tendéncia a supranacionalidade, que se tem mostrado tao importante quanto as adesdes empaticas da nacionalidade. Nessa rede, 0 trabalho literirio Procurard sua legitimagio ndo apenas em termos de criagéo, mas também nas esferas de circulagio, por onde circulam os principais agentes de seu reconhecimento. Estabelecem-se, assim, a partir de cada obra, relagdes de solidariedade entre e esses agentes. Para tanto, a inclinago para a inovagao artistica tomna-se correlata ao desejo de se provocar impacto, encontrar ressoniincia enquanto poder simbélico. Impde-se uma observagio preliminar, nao obstante essa tendéncia a uma normatizagao supranacional: as_literaturas africanas de lingua portuguesa apresentam especificidades nacionais ¢ s6 um othar distraido nivela suas diferencas. 223 Do ponto de vista metodolégico, sua abordagem pode ser feita como em qualquer série cultural: registros em lingua portuguesa, que se articulam supranacionalmente, como foi assinalado, seguindo redes e fluxos da circulagdo da cultura. Do ponto de vista histérico, essas literaturas, cujos repertérios configuraram-se plasticamente na lingua literdria portuguesa, trazem marcas que vém desde a formagao de Portugal como estado nacional, mas articulam-se em redes com outros sistemas, em cada situacdo histérica. Evidentemente, esse reporte as origens das literaturas em portugués pode ser alongado, pois a experiéncia literdria é obviamente mais ampla, acabando por se associar 4 pripria origem da cultura. Um patriménio de todos os povos, que nfo se reduz as apropriagdes € matizagdes politicamente associadas a formagdes nacionais. Liberalismo e projetos na mai Historicamente, as literaturas africanas de lingua portuguesa so recentes e seguem — como aconteceu com 0 romantismo em escala mundial ~ os influxos da tomada de consciéncia nacional por parte da intelectualidade letrada. E por isso que certos vetores encontrveis no romantismo brasileiro pode ser associado as produgdes, africanas, mesmo em produgdes de até meados do século XX. Os paises colonizados por Portugal na Africa deparam-se com a necessidade de estatuir literaturas nacionais, no quadro da modernidade, tal como ocorreu com 0 Brasil no século XIX. Tivemos 0 romantismo propriamente dito e, depois, a Semana de Be Moderna, como divisora de Aguas, que propiciow a literatura, dita “regional” nossa poesia modernist. No romantismo, a literatura brasileira veio a inventar mitos da nacionalidade, buscando a “cor local” para uma sintaxe que vinha da Europa. E tanto Portugal, como o Brasil, estavam sob 0 manto liberal e artistico da Franga. Pensivamos nossas formas de independéncia em francés, mediatizando-o por situages locais, 0 que, por assim dizer, neutralizava 0 que pudesse de ser explosivo na perspectiva hegeménica no campo intelectual liberal. Ha faces diferentes: o liberalismo torna-se dominante, no Brasil, revestindo-se de inclinagdes para a afirmagao nacional; liberalismo em Portugal como estratégia de modemizagio, contra as formas passadigas associadas ao modo de pensar e sentir 0 pais dos setores conservadores. A leitura desse processo histérico nos paises africanos de lingua portuguesa revela que um primeiro momento de fratura do imagindrio do colonizador veio a ocorrer pela presenca politicocultural de uma burguesia crioula africana, nos tltimos vinte anos do século XIX. Foi um periodo liberal, que pode ser associado a Regeneragio portuguesa, e que favoreceu 0 inicio de uma intensa atividade jomalistica nas entiio colénias. A imprensa desponta, dese modo, como a forga responsivel pelo surgimento dos primeiros redutos dos assim chamados “naturais da terra”, capazes de romper o siléncio imposto pela estrutura colonial. Seriam uma versao africana, correlata ao que havia acontecido com a elite dos crioulos brasileiros (mesticos descendentes de portugueses), que haviam conseguido a libertagdo da metrépole colonial 24 Muitos dos nomes mais significativos na historia das idéias em Angola, por ‘exemplo, estio ligados a esse periodo de fundago e consolidagdo da imprensa. No campo da literatura, destaca-se Alfredo Troni, autor da novela Nga Muttiri (1882)186, que se correspondia com escritores portugueses da Geragio de 70, Sua novela foi publicada em folhetins na Gazeta de Portugal, em Lisboa. Nessa narrativa, com ironia que lembra a literatura de Ega de Queirés, Troni jé mostra a incorporagio de costumes locais ¢ dominio do quimbundo. Se o escritor nasceu se formou advogado em Portugal, sua identificagdo maior se fez com a nova terra, ele que era republicano e socialista, Seu idedrio - mais forte do que questdes de origem - inha suas bases na Revolugdo Francesa. Foi um proceso de identificagio, pois, sua adesio as reivindicagdes da burguesia crioulizada de Angola. Aspirou por formas politi s liberais e, mesmo, com a independéncia do pais. Nos horizontes de seu grupo intelectual, estava o Brasil e sua literatura romantica, antiga colonia que havia conseguido se libertar da metrépole. Seu republicanismo © socialismo proudhoniano o levava mais longe. As identificagées politicas das elites angolanas com o Brasil j eram anteriores. E de se recordar que no tratado de reconhecimento da independéncia brasileira por parte de Portugal, feito sob mediagdo inglesa em 1825, 0 Brasil se comprometeu a * nao aceitar “proposigdes” de quaisquer coldnias portuguesas de se reunirem a ele. Havia um movimento desencadeado em Angola, nesse sentido, associado a interes eseravocratas, 9 que contrariava os interesses ingleses, além evidentemente dos portugueses. Nas décadas finais do século XIX, as aspiragdes ram de outra natureza, de outros setores, os anti-escravocratas. Alfredo Troni foi autor de um regulamento que declarou definitivamente extinta a escravidio em Angola. Acabou por ser destituido de seus cargos piiblicos ¢ compulsoriamente exilado para Mogambique. Consciéncia regional e consciéneia nacional 186 Lisboa: Edigdes 70, 1973, 2s Tragos neo-romantieos, centrados na incorporago da atmosfera cultural da terra, ultrapassariam 0 século XIX como linhas de forga que se projetam, no conjunto dos paises africanos de lingua portuguesa, até meados do século XX. Essa observagao é sgeral ¢ deve-se considerar também diferengas que matizam esse romantismo que embalou tanto 0 Brasil como Portugal. Ha, entretanto, uma inelinagio para o mapeamento sociocultural e mesmo da ambiéncia natural que permitem aproximagdes. Aos poucos, nas primeiras décadas do século XX até as vésperas da Segunda Guerra Mundial, afirmaram-se na Africa colonial portuguesa formas de consciéncia regional, que ja embutiam aspiragdes nacionais. Nessa nova matizacdo, as imagens roménticas so comutadas, em especial, por uma apropriagio de repertirios do modemismo brasileiro. Este ¢ 0 dado novo, tendo em vista que o gesto artistico de nossos escritores procurava afastar paradigmas © mesmo uma sintaxe identificada com dicgdes evocativas da situagao colonial. A lingua literaria possia um repertério proviente de experiéneias comuns, mas que tinham sua especificidade nas apropriagdes, que eram uma forma de agao comunitéria interna culturalmente também hibrida, A literatura “traduz” em suas formas um conhecimento que vinha de outras dreas: historia, filosofia, politica, sociologia, antropologia, artes etc. No periodo do pés-Segunda Guerra e em tomo da afirmacao dos prineipios de auto- determinagio dos povos, proclamada pela carta das Nagdes Unidas, radicalizaram- se formas de identificagao nacional. Se Portugal era associado & Pétria (colonial) dos discursos oficiais, os afticanos buscavam a afirmagio da Mitria (a “Mamie- Africa”), e, com essa perspectiva, os escritores africanos olharam com énfase para as produgdes literérias do Modemismo brasileiro (a Fratria ~ a antiga colénia que se libertou ¢ construiu um discurso proprio). A fraternidade supranacional se traduz em formas de solidariedade, com simetrias entre gestos: no Brasil, em meados do século, rediscuti se a nossa formagdo histéria, que deram origem a obras cléssicas de nossa cultura, de autoria de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior e Antonio Candido, por exemplo. Na literatura, os ecritores procuravam revelavar 226 facetas psicossociais de nossa gente. Sob 0 jugo colonial portugués, a énfase socioligica e nacional dos escritores afticanos encontrava sua radicalidade em formulagdes discursivas anticoloniais. Eram tempos de literatura engajada © os esses intelectuais mostram-se com facetas especificamente literdrias to radi como as politicas. O escritor e 0 cidadio, para cles, nfo poderiam deixar de caminhar juntos. A grande imagem (neo-roméntica) que se firmou apés a Revolugdo Cubana, foi a Che Guevara: numa mao o livro; noutra, o fuzil. Um bom exemplo dessa problematica é Castro Soromenho. Viveu em periodo anterior, onde jé de desenhava ides que iro embalar as lutas de libertagio nacional na Africa de lingua oficial portuguesa, que eclodiram depois, nos anos 60. Soromenho situa-se no campo intelectual da intelectualidade de esquerda (a grande frente popular amifascista dos anos 30-40), para quem questdes de independéncia nacional se imbricavam com perspectivas sociais. Esse autor, nascido em Mogambique (1910), filho de portugués e cabo-verdiana, foi com um ano de idade ara Angola, onde viveu de 1911 a 1937. Fez estudos primérios e de liceu em Lisboa (1916-1925). Voltou a Portugal em 1937. Em face de perseguigSes politicas, teve de exilar-se, vivendo na Franga (1960-1965) e, depois, no Brasil (1965-1968), onde veio a falecer. Foi um dos fundadores do Centro de Estudos Africanos da Universidade de Sa0 Paulo, dirigido por Fernando Mourio, O romance Terra * mortal87 teve sua primeira edigao publicada no Brasil, em 1949, quando o autor residia em Portugal. Nem poderia ser diferente, pois esse romance denuncia 0 colonialismo portugu Por outro lado, lagos de solidariedade eram compactuados com a intelectualidade metropolitana. Os sonhos libertirios, advindos do término da Segunda Guerra Mundial e que entio embalavam os intelectuais portugueses, eram frustrados pela atmosfera sufocante da guerra fria e pela persisténcia do regime ditatorial. No mesmo campo, as relagdes de solidariedade coexistem contrastivamente com as de desigualdade, Ha hegemonias ¢ as mais significativas so as que se naturalizam: os 187 4, ed. Lisboa: Sé da Costa, 1978, 27 no-hegemOnicos aceitam com naturalidade a dominagao do outro. E, em Portugal, entre afticanos e metropolitanos, havia diferengas, pois os primeiros nao aceitavam a dominancia histérica dos segundos. Sao tensdes que afloraram no campo politico, com ressonancias na literatura, Questdes ideologicas manifestam-se também em nivel inconsciente ¢ hébitos coloniais acabam por se manifestar para além da consciéncia ou intengdes, inclusive dos atores do campo intelectual Mesclagens culturais e olhares em contraste AA literatura cabo-verdiana pode ser dividida em dois periodos: antes ¢ depois da revista Claridade (1936-1960). Os escritores do arquipélago de Cabo Verde, ao procurem voltar as costas para modelos temiticos europeus, fixaram seus olhos no chao crioulo, proprio da mesclagem étnica e cultural de seu pais. A crioulidade deve ser entendida como uma mescla cultural no univoca (mestiga), um conjunto hibrido onde pedagos de culturas interagem entre si, ora se aproximando, ora se distanciando. Essa atitude dos intelectuais cabo-verdianos, de oposigdo aos padres hegeménicos provenientes da metr6pole, era correlata a obsessio de procura de origens - origens étnicas e culturais, que sensibilizavam a intelectualidade africana do continente. Interessante é indicar que essa tomada de consciéneia regional. Um bom exemplo dessa trajetéria é Osvaldo Aleantara (pscudénimo poético de Baltasar Lopes), que, a exemplo de parte da intelectualidade de seu pais, sonha Manuel Bandeira com uma pasdrgada que existiria em outra margem do oceano, Se © poeta brasileiro imagina um reino com um rei bonachio que Ihe permitiria todas as “libertinagens” (titulo da coletinea de Bandeira), Osvaldo Aledntara tem saudade de uma pasargada futura que encontraria no “caminho de Viseu” (..indo eu, indo eu/a caminho de Viseu). Osvaldo Alcantara estava com os pés em Cabo Verde, mas a cabega inclina-se para fora, para sonho da imigragao: 0 “caminho de Viseu” da cantiga de roda portuguesa. Sua perspectiva ¢ aquela que historicamente sempre se colocou para povos de migrantes como os cabo-verdianos, ¢ ele no 228 ‘éneia de que esta saudade fina de Pasdrgada/é um veneno gostoso dentro do meu coracao188. Mais tarde, jd em plena luta de libertag3o nacional, Ovidio Martins - identificado com os pressupostos ideolégicos da Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa - ja se coloca no pélo oposto. Nao aceita o reino de Pasdrgada, para sua geragdo uma forma de fuga. Em oposig2o ao que ocorrera no sonho de Bandeira, ele no s6 no era amigo do rei (Vou-me embora pra Pasérgada/Lé sou amigo do reil89) como foi perseguido por sua policia (a policia politica de Salazar). Nao conseguindo permanecer em Lisboa, foi obrigado a imigrar para a Holanda. Ovidio Martins, ‘como Osvaldo Alcantara, sonha com 0 que nao tinha: justamente sua terra, Cabo Verde. Se Osvaldo Alcantara olha para horizontes indefinidos do mar, Ovidio Martins adota a perspectivainversa: procura arremessar-se a0 cho (Pedirei/Suplicarei/Chorarei/Nao vou para Pasérgada). Discursividades supranacionais Na prosa de ficgdo, a presenga do romance nordestino brasileiro se mostra bastante forte em romances como Os flagelados do vento leste (1960)190, de Manuel Lopes © Chiguinko (1947)191, de Baltasar Lopes, em didlogo, respectivamente, entre outros, com Graciliano Ramos (Vidas secas192) e José Lins do Rego (Menino de engenho193). Importa indicar a tomada de consciéneia dos cabo-verdianos de sua terra teve como um de seus agentes o critico literirio José Osério de Oliveira, que apontou para os cabo-verdianos a necessidade de situarem suas produgdes na ambiéncia fisica e cultural de sua terra (para ele, uma regido de Portugal). Outro desses atores foi 0 poeta-diplomata brasileiro Ribeiro Couto, que fez chegar ao arquipélago os poets modemistas brasileiros. No fundo, considerava-se 188 “Itineririo de Pasingada”. Apud: ANDRADE, M. P. Aniologia temética de poesia africana I: na noite gravida de punhais. Lisboa: Sé da Costa, 1975. p. 32 189 Juinerdrio de Pasirgada. Rio de Janeiro: Record, 1997, 190 Sao Paulo: Atica, 1979. 191 4. ed. Lishoa: Prelo Faitora, 1974 192.27. ed. Sao Paulo: Livraria Martins Editor, 1970, 193 38. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, 229 idealmente, em Cabo Verde, uma espécie de literatura em lingua portuguesa, como um todo, com matizagdes onde o regional e 0 nacional pouco diferiam. Logo, uma aspiragiio comunitiria para além de diferenciagdes, que, nao obstante, seriam necessérias por darem veracidade as produgdes culturais, que deveriam estar fincadas na terra. A perspectiva critica de José Osério de Oliveira, que caminhava nessa diregdo, tinha seus limites. Embalado pelos estudos de Gilberto Freyre tendia a exaltar a convivéncia harménica, do ponto de vista étnico, social e nacional, no “mundo que 0 portugués criou” — perspectiva que foi criticada nas décadas seguintes pela intelectualidade africana, do arquipélago e do continente. s fios supranacionais da Claridade tiveram origem no movimento socialista francés da ““Clarté”, inaugurado por Henri Barbeuf, nos primeiros anos da década de 1920. Articula-se o grupo da revista em Portugal, em especial, ao movimento da Presenca. Mais tarde, os fluxos da revista ~ que se afasta da Presenca ~ projetam- se, por exemplo, em Manuel Ferreira, neo-realista portugués identificado com a abo-verdianidade, cuja obra ensafstica consolidou 0 estudo das literaturas africanas de lingua portuguesa, apropriou-se dessa temitica da evasio/anti-evasio. O titulo de seu romance Hora di bai (1962)194 é referencia a uma conhecida moma de Eugénio Tavares. Escritas em crioulo, a cadéncia dessas composigdes vai dar __ fitmo e repertério para os poemas em portugués ¢ também seri referéncia para os ficcionistas origindrios da Claridade. Vor de prisdo (1971)195, o principal romance de Manuel Ferreira, situa-se em Lisboa, e problematiza a questio da oralidade (0 entio denominado dialeto crioulo, hoje lingua cabo-verdiana) e 0 portugués-padrio. Orlanda Amarilis, cabo-verdiana vivendo na diéspora lisboeta, problematizara essa condigao de migrante, revestindo-se suas produgdes literdrias de grande sentido de atualidade, nestes tempos de deslocamentos da globalizagio (Cais-do-Sodré te Salamansa, 1974)196. O sentimento de nagao, para além dos espartilhos de estado. 194 Sao Paulo: Atica, 1980 195 Porto: Inova, 1971 196 Coimbra: Centelha, 1974. 230 No periodo do apés-guerra, ao mesmo tempo em que se desenvolviam formas de organizagao politico-culturais em cada um dos paises africanos, como o movimento dos “Novos Intelectuais de Angola”, constituiu-se em Portugal um importante nicleo organizativo: a Casa dos Estudantes do Império. O momento exigia novas estratégias: confluem para a literatura formas discursivas da antropologia, da Sociologia, da politica, do jornalismo, etc. Espago de convergéncia, a literatura (re)descobre cada pais africano para (re)imagindlo em suas especificidades. Espago Politico de notivel importincia, passaram pela casa dos estudantes Iideres como como Amilear Cabral, Alda do Espirito Santo, Marcelino dos Santos, além de Agostinho Neto, todos protagonistas das histirias das independéncias dos paises africanos colonizados por Portugal. No plano cultural, cabe destacar, entre os feitos dessa casa, a antologia Poesia negra de expresso portuguesa (1953)197, ‘organizada por Mario Pinto de Andrade ¢ por Francisco Tenreiro, ¢ a publicagao da colecgdio "Autores Ultramarinos", sob a direcedo de Costa Andrade ¢ Carlos Ervedosa ‘Tudo mesclado A afirmago nacional ndo deixa de imbricar com a supranacionalidade do campo intelectual desses escritores. Essa coletinea poética reiine autores negros, brancos € “ mestigos. Tratava-se de se publicar uma antologia de poemas de “expressio Portuguesa", mas o escritor, cujo texto serve de uma espécie de pértico poético & 0 cubano Nicolas Guillén, Seu poema "Son niimero 6" nfo foi traduzido, mas ‘ranscrito no original, em lingua espanhola, Mais interessante ainda é constatar que esse poeta - a “mais alta voz da negritude hispano-americana”, segundo os organizadores da antologia - releva no a diferenga étnica, mas a mestigagem: (...) Estamos juntos desde muy lejos,iJévenes, viejos,/Negros y Blancos, todo ‘mezclado;/Uno mandando y outro mandado,/Todos mezclados(...). 197 Linds-a-Velha: Literatura, Arte ¢ Cultura, 1982. 21 Essa inclinagao para uma afirmacao politico-cultural mais ampla vai persistit em autores dessa geracZo, com produgao posterior. E 0 caso de José Craveirinha, personalidade emblemética para a poética mogambicana, com uma trajet6ria que vai de Chigubo (1964)198 a Maria (1988)199, com destaque para a coletinea Karingana ua Karingana (1974)200, Craveirinha, como os poetas de Angola, Cabo Verde € de Sao Tomé, busca formas hibridas, com incorporagao de elementos lingiisticos das linguas nacionais. Deve-se considerar 0 fato de que esses estados nacionais retinem miiltiplas culturas, que afinal confluem para um caldo hibrido das grandes cidades. Nessas circunstincias, 0 idioma do colonizador, apropriado nacionalmente, situa-se também como primeira lingua de criagdo literdria, O sistema da lingua portuguesa, convém recordar, & abstrato. Nesse sentido, ele so existe concretamente sob formas variantes: ha variantes africanas, como brasileiras ¢ portuguesas, Em Angola, a literatura empenhada tem em Costa Andrade um autor programtis Terras das acécias rubras201; Poesias com armas202; Estérias de contratados (1980)203. Manuel Rui, poeta e prosador, é autor de cangdes em parceria com varios conhecidos compositores, inclusive o brasileiro Martinho da Vila: Cinco vezes onze poemas em novembro (1985)204, Quem me dera ser onda (1982)205, O ‘manequim e 0 piano (2005)206. Novos tempos Os caminhos da poética se diversificaram gradativamente, sobretudo aps a consolidagio dos estados nacionais africanos, com produgées expressivas. Em 198 2. ed. Maputo: INLD, 1980. 199 Lisboa: ALAC, 1988, 200 2. ed. Maputo: INLD, 1982, 201, Lisboa: Casa dos Estudantes do Império, 1960. 202 Lisboa: Si da Costa, 1975 203 Lisboa: Edigses 70, 1980. 208 Luanda: UEA, 1985. 205 Rio de Janeiro: Gryphus, 2005. 206. Lisboa: Cotovia, 2005, 232 Cabo Verde, desde as buscas de raizes como em Eugenio Tavares (Mornas- cantigas crioulas207, de 1932) até um Corsino Fortes (Pao & fonema208, 1974), com uma poética afim do concretismo. A preocupagdo com a materialidade dos signos lingtiisticos soma-se a questi multifacética das identidades, presente na ‘obra do angolano Ruy Duarte de Carvalho, que mistura géneros e mostra visio bastante licida de seu trabalho literario (Habito da terra, de 1988209; Observacdo direta, 2000210). Ampliam-se supranacionalmente os horizontes em Arlindo Barbeitos, a partir da tradigdo oral de seu pais, que se associa inclusive a téenicas da poesia chinesa e japonesa (Angola Angolé Angolema, de 1975211; Na leveza do Iuar crescente, 1998212). O trabalho artistico desses escritores pode ser relacionado com as tendéncias experimentais da poesia brasileira e portuguesa, sobretudo a partir da década de 1960. Entre as vozes poéticas femininas mais recentes, figuram a sfio-tomense Maria da Conceigio Lima (4 dolorosa raiz do micondé, de 2006213), a cabo-verdiana Vera Duarte (Amanha amadrugada, de 1993214), a guineense Odete Semedo (No fundo do canto, 2003215). Particular relevo nessa ascensao do comunitarismo de género, merece a obra da angolana Paula Tavares (Ritos de passagem, 1985216; Dizes-me coisas amargas como os frutos, 2001217). Suas obras associam-se a série literiria nacional e & afirmagao supranacional do feminismo. Elas também se colocam como “contadoras de estérias”, no que seus trabalhos literirios também se articulam com 207 208 209 210 211 212 213 214 215 216 217 218 antropologia, No romance, singulariza-se, com densidade artistica, a primeira romancista de Mogambique, Paulina Chiziane (Ventos do apocalipse, de 1995218; fiketche, de 2002219). 2.ed. Luanda: Liga dos Amigos de Cabo Verde, 1969, 2. ed, Lisboa: Si da Costa, 1980. Luanda: UBA, 1988, Lisboa: Cotovia, 2000. Lisboa: Sé da Costa, 1975, Lisboa: Caminho, 1998, Lisboa: Caminho, 2006, Lisboa: Vega-ICL, 1993, Belo Horizonte: Nandyala, 2007. Luanda: UEA, 1985, Lisboa: Caminho, 2001, Lisboa: Caminho, 1999, 233 Novos registros, novas plasticidades ‘As literaturas africanas de lingua portuguesa apresentam, na atualidade, prosadores vigorosos. José Luandino Vieira ocupa uma posigdo central. A maior parte de suas “estérias” foram produzidas no campo de concentragio do Tarrafal, em Cabo Verde, onde ficou preso juntamente com outros intelectuais dos paises africanos engajados na luta anticolonial. Procurava pensar a lingua portuguesa em quimbundo, em suas narrativas, incorporando a oralidade. Um gesto indicativo de estratégia literdria que teve em Alfredo Troni um seu precursor, Tal estratégia & andloga A do grupo da Claridade em Cabo Verde, com 0 crioulo matizando os textos em portugues ¢ ainda com as estratégias poéticas de José Craveirinha, em Mogambique. Pensar a lingua portuguesa com estruturas da oralidade, dos crioulos lingilisticos e das Iinguas nacionais de origem africana. Nao s6: Luandino Vieira, ao se deparar com a obra de Guimaraes Rosa, identificou- se com ela, Encontrou no escritor brasileiro um respaldo artistico para que avangasse nesses processos de hibridizagdes, dando asas a criagdo literdria. Sua obra, traduzida em varios paises, tendo sido seguidamente reeditada. E de se mencionar, entre outros titulos, Luwanda,1964220; A vida verdadeira de Domingos Xavier, 1974221; Velhas estérias, 1974222; No antigamente, na vida, 1974223; Nés, os do Makulusu, 1975224, Jodo Véncio: os seus amores, de 1987225. Essa inclinago de seu trabalho artistico foi importantissima para os escritores angolanos, como Boaventura Cardoso (Dizanga dia muenhu, 1977226; Maio, més de Maria, 1997227), Jofre Rocha (Estérias do musseque, 1977228) e Uanhenga 219 2. ed. Lisboa: Caminho, 2002 220 Sto Paulo: Atica, 1982. 221 2. ed. Lisboa: EdigBes 70, 1975, 222 2. ed. Lisboa: Edigdes 70, 1976, 223 2. ed. Lisboa: Edigdes 70, 1975, 224 2. ed.Lisboa: $4 da Costa, 1976. 225 Lisboa: Edigies 70, 1987, 226 Sio Paulo: Ati, 1982. 227 Porto: Campo das Letras, 1997 228 Sio Paulo: Atica, 1980, Xitu (“Mestre” Tamoda e Kahitu, de 1976229). Luandino Vieira e Guimarées Rosa, veiculados no campo das literaturas em Portugués, mostram efeitos comunitérios, em especial na obra ja abrangente do mogambicano Mia Couto. Ao procurar novas margens para a criago literdria, ele tensiona discursos antropolégicos, sociais, histéricos e politicos. Associa-os a formas de um realismo magico, que tem a ver com a fiegao latino-americana, e com a maneira de ver e sentir a realidade dos povos de Mogambique. Em relagio a essa literatura, suas produgdes imprimem novas dimensdes a prosa de fic io de seu pais, em especial & obra de Luis Bernardo Honwana (Nés matamos 0 cdo-tinhoso, 1964230). A obra de Mia Couto, como de Luandino e Guimaraes, vem encontrando legitimizagio internacional, e premiagdes. Ela atende as condigdes atuais da circulagdo literéria supranacional, por onde o discurso histérico se entremeia com 0 antropolégico. Entre as muitas “estérias” que publicou, podem ser indicadas, em especial: Vozes anoitecidas, 1986231; Terra sondmbula, 1992232; Estérias abensonhadas, 1994233; Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, 2002234; O outro pé da sereia, 2006235). Estorias e historias Nesse contexto dos contadores de “estérias”, situa-se igualmente a obra do cabo- verdiano Germano Almeida, cujo primeiro romance obteve grande impacto eritico (0 testamento do sr. Napomuceno da Silva Aratijo, 1991236). Suas “estérias” sio sobretudo crénicas da vida cabo-verdiana, algumas inclinadas para comentdirios em tomo da comunidade dos paises de lingua portuguesa (Estérias contadas, 1998237 229 Sdo Paulo: Atica, 1984, 230. Sio Paulo: Atia, 1980. 231.6. ed. Lisboa: Caminho, 2001 232 Rio de Janeiro: Nova Frontera, 1995 233. Rio de Janeiro: Nova Frontera, 1996, 234 So Paulo: Companhia das Letras, 2003, 235 So Paulo: Companhia das Letras, 2006, 236 Lisboa: Caminho, 1991, 237 Lisboa: Caminho, 1998. 235 ). Circulando entre Angola, Portugal ¢ Brasil, situa-se 0 angolano José Eduardo Agualusa, atestando a forga de nosso comunitarismo cultural, onde encontra seu repert6rio literdrio (4 conjura, 1989238; Nagao crioula, 1997239; O ano em que Zumbi tomou 0 Rio, 2003240; Manual prético de levitagdo, 2005241). M € com obra jé traduzida para varios idiomas € seu compatriota Ondjaki, com produgdes, onde associa técnicas que vem de sua profissdo de roteirista e formagaio em sociologia, com a linguagem do cinema e das artes plisticas (Bom dia camaradas, 2000242; O assobiador, 2002243). Para fecho desta breve exposigio sobre notas hist6rico-literarias, que tém em vista destacar articulagdes entre as literaturas afticanas com Brasil ¢ Portugal, convém remeter & obra do angolano Pepetela. Seu romance A geragdo da utopia (1992)244 apresenta uma auto-critica, que pode ser de sua geracdo de intelectuais que se embalaram na utopia libertéria. Focaliza a trajetéria dos estudantes, que se reuniam na Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, ¢ liam literatura brasileira. Vé criticamente as orientagdes desses atores, como jé o fizera em Mayombe (1980).245 Sua obra recebeu varios prémios, com edigdes sucessivas e tradugdes para varios idiomas. Em boa parte dela, o escritor procura recontar ficcionalmente a histéria de seu pais ~ um projeto literirio que lembra o do brasileiro José de Alencar. Seu __ horizonte € critico, desenvolvendo estratégias discursas que questionam situagdes politico-sociais da atualidade, seja em relagdo a fatos com referenciais historicos mais antigos ou do cotidiano mais préximo (0 cdo e os ealuandas, 1985246; Yaka, 1985247; Lueji, 0 nascimento de um império, 1990248; A gloriosa familia, 2000249; Jaime Bunda, agente secreto, 2001250). 238 2, ed. Lisboa: Dom Quixote, 1998. 239 Lisboa: TV Guia Editora, 1997, 240. Rio de Janeiro: Gryphus, 2002, 241. Rio de Janeiro: Gryphus, 2005, 242 Rio de Janeiro: Agir, 2006. 243 2. ed. Lisboa: Caminho, 2002, 244 Lisboa: Dom Quixote, 1992 245 ‘Sio Paulo: Atica, 1982. 246 2. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1993, 247 ‘Sio Paulo: Atica, 1984. 248 Lisboa: Dom Quixote, 1990. 236 Referéncias Bibliograficas AGUALUSA, J. E. A conjura. 2. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1998. = Nagao crioula. Lisboa: TV Guia Editora, 1997. = O.ano em que Zumbi tomow 0 Rio. Rio de Janeiro: Gryphus, 2002. - Manual pritico de levitagdo, Rio de Janeiro: Gryphus, 2005. ALMEIDA, G. O testamento do sr. Nepomuceno da Silva Araiijo. Lisboa: Caminho, 1991. ~ Estérias contadas.Lisboa: Caminho, 1998. AMARILIS, O. Cais-do-Sodré te Salamansa, Coimbra: Centelha, 1974. ANDRADE, C. Terras das aciicias rubras. Lisboa: Casa dos Estudantes do Impétio, 1960. ~ Poesias com armas. Lisboa: Si da Costa, 1975. - Estorias de contratados. Lisboa: Edigdes 70, 1980. ANDRADE, M. P. 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A desregulamentagdo tem sido objeto de critica de seus proprios atores, que procuram definir novos padrdes de legitimidade para continuarem a impor a assimetria dos fluxos financeiros, e, com eles, dos culturais. Paralelamente, a ascensio econémica de paises periféricos como o Brasil, tem solicitado uma nova repactualizagao politica, ‘Nessa situagdo de crise das hegemonias estabelecidas, gestos do pasado voltam a ser estudados, como a politica de regulamentagdo empreendida pelo governo Roosevelt e seus vieses socialdemocriticos. Uma reagdo aos “Anos Loucos” do capitalismo financeiro dos Anos de 1920, que redundou no crack financeiro de 1929, que guarda relagdes de analogia, em outro contexto situacional, com 0 crack de 2008, cujos efeitos vém até agora. No plano da economia, as. teorias regulamentadoras keynesianas reconfiguram-se _nesse _horizonte _reformista, voltando a nece: idade de um planejamento de longo prazo, por sob a competitividade desvairada, Gestos similares ~ a par desses que se configuram nas esferas politico-sociais dominantes ~ podem ser lembrados para além dessas 240 circunscrigées, com desenhos do sentido de suas praxis que buscam atualizagao numa nova situagao. E diante dessa situagao de repactualizagdes em dimensdo global que adquire forte significado politico relevarmos nosso comunitarismo linguistico-cultural. Em especial, destacando produgdes literdrias colocadas margem como aquelas que se originaram na atmosfera da frente popular antifascista, cujos efeitos repercutiram nas tendéncias literdrias dos paises africanos de lingua portuguesa, associadas a0 proceso de libertagio naci nal de cada um desses paises. Ao mesmo tempo, impée-se A critica voltarse para aquilo que nos falta, enlagando horizontes prospectivos. Uma inclinago para uma énfase numa espécie de otimismo et otimismo em relagdo as nossas potencialidades subjetivas sem descartar o necessério distanciamento e visdo critica nessas contextualizagdes situacionais. Competitividade, solidariedade e o principio de juventude Tais horizontes contrapdem-se, evidentemente, 4 atmosfera da critica literdria que nos envolve ¢ que oscila entre 0 tédio e a melancolia, Persistem ainda dominantes ‘as marcas de um hiperindividualismo avesso a procura da sociabilidade © que colocavam como condigdo da vida democratica. A competitividade e seu principio “de desregulamentagio extensivel, com toda sua simbolizagao de cficécia, das relagdes socioecondmicas as culturais, E justamente na contracorrente dessa tendéncia avessa a énfase na cooperacao e solidariedade, que voltamos a retomar os sentidos dos gestos que embalaram a poética popular dos Anos de 1950, em torno da Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, ¢ procuramos relaciond-la com poetas do Angola, Brasil e Mogambique. Nada mais contratio a esse discurso ideolégico da competitividade, do que a poética de José Craveirinha, No desenho de seus gestos, hé um principio de juventude, uma potencialidade subjetiva de quem acredita que a solidariedade é possivel e pode se configurar em projetos politico-sociais. Procuraremos analisar as ral figuragdes da perspectiva no como utopia abstrata, mas concreta, fundamentada em projetos. Ou, se quisermos, como “sonho diumo”, como a situa Emst Bloch: um ipio esperanga” que motivaria as ages humanas. Sem esse principio, como fundamenta esse pensador em sua obra maior ~ O Principio Esperanca (BLOCH: 1976 © 1982), 0 mundo tornar-se-ia absurdo, vazio, sem sentido. Mais, como um. principio de juventude, tal como 0 que embalou os jovens dos anos 1950/1960 que se projetaram pelos anos de 1970 nos paises africanos de lingua portuguesa. A escolha de José Craveirinha, situado aqui numa perspectiva comparada com outros poetas de seu campo intelectual na margem atlantica (Anténio Jacinto Solano Trindade) € a articulago de nosso discurso critico, envolve também, & maneira de nossa “aclimatagaio” brasileira, sem melancolias, um outro integrante da Escola de Frankfurt, Walter Benjamin, E — 4 maneira deste ltimo -, “contra a corrente”, isto é, contra a corrente da pragmética atual da critica, procuraremos analisar como as imagens do desejo, enquanto possibilidades objetivas, configuram formas da imaginagdo literdria, de maneita a estabelecer e legitimar uma poética popular, Em meio & atual ressaca conservadora, procuraremos recuperar em suas vozes uma espécie de romantismo revolucionério (no sentido amplo desse conceito) que motivou a construgdo de poemas que continuam a ecoar até nossos dias. Contra a pretensa objetividade de curto félego, procuraremos opor a perspectiva de renovagao dos fios da esperanca partida. Contracorrente, sonhos diurnos E assim ~ tendo em vista essa rearticulagdo — podemos colocar como motivo recorrente deste discurso 0 poema que empresta 0 nome e serve de portico poético & coletinea Karingana wa Karingana, de José Craveirinha: Este jeito de contar as nossas coisas 4 maneira simples das profecias 242 ~Karingana ua Karingana! — € que faz o poeta sentir-se gente Enem de outra forma se inventa ‘© que & propriedade dos poetas nem em plena vida se transforma a vistio do que parece impossivel em sonho do que vai ser, Karingana!” (1982, p. 13) “Karingana ua Karingana” é atualizagao mogambicana do paradigma universal de introdugo dos contos orais. Corresponde ao “Era uma vez...", que nos situa no faz~ de-conta da imaginagao ficcional. “A maneira simples das profecias”, 0 poeta efetiva sua potencialidade criadora “inventando” seu texto enquanto manifestacdo discursiva orientada para o devir, tal como este se afigurava na imagem-agao dos escritores militantes do periodo préinsurreicional dos anos 50, época que precede as revolugdes nacionais e sociais que marcariam a década seguinte. Respirava-se ainda a atmosfera politica da “Frente Popular”, que as vezes enfatizava equivocadamente © carter cumulative da cultura: uma poética popular teria suas bases na apropriagdo da literatura burguesa, Relevava-se, assim, uma pretensa continuidade vista afim da cultura de massa e ndo de uma cultura popular, sem ‘a0 gosto neoposi folclorizagio. “Contra a corrente” da continuidade ritualizada, José Craveirinha procura uma ruptura de outra ordem. Nao aceita continuar do ponto em que a literatura colonial parou € nem o pensamento eurocéntrico. Sua estratégia & de confronto ¢ procura ‘sua legitimagao num novo campo comunicativo de carter nacional ¢ popular. E desse lécus enunciativo que ele acessa 0 mundo. 43 Aproxima-se, nesse sentido, do trabalho literdrio de Anténio Jacinto e de Solano Trindade. Como em Anténio Jacinto sua voz prospectiva é de quem “nao é fatalista”, pois "jé quer e jd sabe” (“Poema da alienag3o”, apud ANDRADE, 1975, p. 177). “Karingana” € procura de sonho libertério rompido no passado, e, como ocore com a “musa” de Solano Trindade, “esclarece as consciéncias” (TRINDADE, 1980, p.28). E assim que “em plena vida se transforma/a visio do que parece impossivel/em sonho do que vai ser”. Nesses sonhos diumos de uma poética que incorpora um amplo repertério formal posto em circulagio pela lingua portuguesa procura recuperar, com empatia, formas de pré-consciéncia — formas embriondrias, em gestagdo, de consciéncias que se ‘opdem as apropriagdes degradadas € massificadas da industria cultural. Pelo jogo simbélico entre © repertério da experiéncia poética anterior ¢ a vontade de concretizago daquilo que & caréncia, 0 ainda nio-consciente em termos das expectativas do destinatirio torna-se, pela atitude prospectiva do poeta, uma forma de consciéncia antecipante, consciéneia capaz de engendrar e de dar expressio formal 4s imagens do desejo de uma geracdo que procurava materializar, nas redes de articulagao do texto poético como na praxis politica, uma nova configuragtio sociopolitica. ‘Campo intelectual supranacional E sob esse horizonte estético-ideolégico que José Craveirinha dialoga implicitamente com os poetas de seu pais e do exterior, tendo em conta 0 campo intelectual supranacional e comunitério dos quais so atores. Esse horizonte de expectativas enlaga igualmente os poetas da geragdo de 50 em Angola e os poetas brasileiros articulados politicamente e que viriam a promover os Centros Populares de Cultura, Nesse contexto socialmente reivindicativo, ¢ ainda anticolonial antifascista das literaturas africanas de lingua portuguesa, tal horizonte estético- ideolégico promovia um olhar para outros poetas, de outros sistemas linguisticos. Nicolés Guillén, por exemplo, era colocado como poeta simbolo na antologia de 24 Mario de Andrade ¢ Francisco José Tenreiro, onde a condigdo negra associava-se & proletéria ~ um humanismo em que as diferengas étnicas abriam-se A solidariedade social. A reivindicagao de igualdade étnica vinha ndo por mera adig&io, mas pela metamorfose das tenses raciais/sociais numa nova diferenga menos epidérmica e ‘mais essencial: 0 assumir-se enquanto cidadio de seu pais, ao ritmo do son cubano, com “negros y blancos, todo mezelado” (“Son numero 6”, apud TENREIRO ¢ ANDRADE, 1982, p. 55-57), Nicolés Guillén tinha no son cubano a referéncia (ritmo ¢ letra) para a sua forma poética de identificagio nacional e social. Na miisica expressava-se a maneira de ser da cultura popular que o seu poema homologicamente procurava recuperar. José Craveirinha, nessa perspectiva, deseja transformar-se no proprio instrumento sonoro: “Quero ser tambor”, diz 0 poeta, para ecoar “a cangdo da forga ¢ da vida” (’Quero ser tambor”, ANDRADE, 1975, p. 123-124). Essa empatia vitalista, em Ant6nio Jacinto, € diurna: “O ritmo do tant nio tenho no sangue/nem na pele/nem na pele/tenho 0 ritmo do tanta no coragao/no coragao” (“O ritmo do tanta", 1982, p. 71). E, como em Solano Trindade, nao deixa de enredar novos atores sociais: “Eu ainda sou poeta”, aponta, “e canto nas matas/a grandeza da fé — a Liberdade ... (Minhas amadas cantam comigo, meus irm&os) batem com as mios, /acompanhando o ritmo/da minha voz...” (“Canto dos Palmares”, 1980, p.27). E de se destacar nesses fragmentos como a afirmagiio do desejo desses poetas (potencialidades subjetivas) tm em vista descortinar valores de identificagdo popular inerentes ao repertério poético-cultural que eles trabalham. A atividade poética € seu produto figuram, pois, como manifestagdes / objetivagdes de fulguragdes da consciéncia antecipante, que configuram em seus poemas. O sonho diumno se faz presente no poema e volta-se para seu campo de comunicagao. Suas aspiragdes inclinam-se para impactos de desalienagdo © conscientizagao do destinatério do poema. Procuram, assim, levé-lo compreenstio de mensagens ciffadas e de simbolos do mundo real. 24s O som e a danga nao se restringem a momentos de excepeionalidade. Na verdade, a impregnagiio musical dos trés poetas acaba por marcar 0 cotidiano ritualizado dos movimentos dos trabalhadores, como pode ser observado no poema “Monangamba”, de Ant6nio Jacinto: Quem Levanta cedo? Quem vai a tonga? (Quem traz pela estrada longa a tipdia ou 0 cabo de déndém? ‘Quem capina e em paga recebe desdém Ll Eas aves que cantam, 0s regatos de alegre serpentear € 0 vento forte do sertio responderio: “Monangambééé...” (Apud TENREIRO e ANDRADE, 1982, p. 55) Monangamba é proletério para todos os servigos, compelido muitas vezes ao trabalho forgado. © poeta decitra os signos da paisagem que se projetariam na realidade social. Tudo ao som ¢ ritmo populares. E assim 0 poema, além de espago de figuragio de processos da imaginagdo, mostra-se capaz, pelos scus cddigos ¢ simbolos, de ativar a ago de atores sociais sobre a adversidade da situagio colonial. Nao se limita a um protesto silencioso contra o sistema de desumanizagio, mas exprime uma “mensagem” que transcende a cadeia estética ao potencializd-la numa inclinagio ma s ampla, na medida em que sugere a negagdo da realidade social existente — um transbordamento, enfim, para uma prixis transformadora na esfera do politico e do social ‘A “mensagem” faz parte das expectativas do campo comunicativo da literatura participante, cujos lagos no se limitam apenas a ibero-afro-américa. E implicava no apenas um contetido, mas também uma forma revolucionéria no sentido de sensibilizar/aproximar os atores sociais do campo e contribuir para o alargamento 246, deste, a partir das associagdes, dos jomais e revistas. Supranacionalmente, as recorréncias que sedimentam 0 campo abarcam além dos atores da pritica politica, artistas em geral, comprometidos com essa pritica: um Pomar e um Portinari figuram ao lado de um Guillén, Maiakéys desse ‘campo que © poema pode ser produtivo, tendo em conta os impactos de sua leitura, A produtividade & aqui entendida como simultaneamente atividade criadora (no sentido artistico) e como atividade pritica inovadora (no sentido politico). Os repertérios culturais ¢ a consciéneia antecipante Faz parte do repertério ¢ das estratégias dessa literatura popular a adesao empatica 4 natureza, ao espontineo, por oposigdo ao reificante da “civilizagao” (degradada) A adesio empitica natureza, no contexto dessa literatura popular, pode ser correlata a adesdo ao estado de pré-consciéncia das profecias ¢ mitos populares. E a consciéncia criadora (antecipante) dos poetas, ao embeber-se dessas fontes de dominio do campo sémico da “natureza”, identifica-a socialmente numa simbolizacdo que no se restringe & marcago eurocéntrica (0 mundo da natureza, ‘posto ao da cultura). Opde-se, em suas estratégias discursivas, as assimetrias de uma izagio" (centro alienador de cariter nacional ¢ social), hegemonia voltada para seu umbigo, ao no considerar a cultura do outro. O efeito literdrio que hos traz imagens de préconsciéncia da catalisagao musical — simbolo de identificagao nacional e social — pode ecoar mimeticamente por sobre os objetos construidos por essa “civilizagio”, Sio esses objetos ~ degradados quanto a0 uso — que transportam, em José Craveirinha, um “magaiza” (contratado) para as minas de ouro da Africa do Sul. A consciéncia critica do poeta sobrepde-se, entio, ao objeto, incorporando mimeticamente o ritmo do comboio: E quando ‘comboio de magaiza deitou fumo e arrancou nos émbolos a voz do Mpano rezou: Jodio-Tavasse-foi-nas-minas 246 deste, a partir das associagdes, dos jomais e revistas. Supranacionalmente, as recorréncias que sedimentam 0 campo abarcam além dos atores da pritica politica, artistas em geral, comprometides com essa pritica: um Pomar ¢ um Portinari figuram ao lado de um Guillén, Maiakévski, Eluard etc. E sob a mediagdo desse campo que o poema pode ser produtivo, tendo em conta os impactos de sua leitura, A produtividade € aqui entendida como simultaneamente atividade criadora (no sentido artistico) ¢ como atividade pratica inovadora (no sentido politico) Os repertsrios culturais e a consciéneia antecipante Faz parte do repertério ¢ das estratégias dessa literatura popular a adesio empitica 4 natureza, ao espontiineo, por oposigdo ao reificante da “civilizagao” (degradada), A adesilo empitica & natureza, no contexto dessa literatura popular, pode ser correlata & adesdo ao estado de pré-consciéncia das profecias ¢ mitos populares. E a consciéncia criadora (antecipante) dos poctas, ao embeber-se dessas fontes de dominio do campo sémico da “natureza”, identifica-a socialmente numa simbolizagao que nao se restringe & marcago eurocéntrica (o mundo da natureza, posto ao da cultura). Opde-se, em suas estratégias discursivas, as assimetrias de uma “civilizagdo” (centro alienador de cariter nacional ¢ social), hegemonia voltada para seu umbigo, a0 no considerar a cultura do outro. O efeito literdrio que nos traz imagens de préconsciéncia da catalisagio musical — simbolo de identificagao nacional e social ~ pode ecoar mimeticamente por sobre os objetos construidos por essa “civilizagdo”. Sio esses objetos ~ degradados quanto ao uso — que transportam, em José Craveirinha, um “magaiza” (contratado) para as minas de ouro da Africa do Sul. A consciéncia critica do poeta sobrepie-se, entio, a0 objeto, incorporando mimeticamente o ritmo do comboio: E quando comboio de magaiza deitou fumo e arrancou nos mbolos a voz do Mpano rezou: Joao-Tavasse-foi-nas-minas 247 Joao-Tavasse-foi-nas-minas Joio-Tavasse-foi-nas-minas” (“Mamana Saquina”, 1982, p. 90) E 0 lidico popular que assim se expressa. Ecoam na consciéncia os sons da miséria ¢ da alienagdo, da mesma forma que no trem suburbano brasileiro, assim registrado por Solano Trindade, num de seus poemas mais conhecidos: Trem sujo da Leopoldina correndo correndo parece dizer tem gente com fome tem gente com fome tem gente com fome Piiiiii® (“Tem gente com fome”, 1980, p. 34) ‘A par da imaginagao sociopolitica, & evidente o sentido lidico popular desses poemas. Aparecem nessa poética popular formas aparentemente ingénuas de consciéncia, associadas a uma visto mais espontinea e quase infantil do referente opressivo. O pretensamente pontineo” nada mais é do que efeito poético de um texto trabalhado na perspectiva da arte popular. E 0 “espontinco” (efeito de construgio) realca a agressividade dos agentes alienadotes. Esse lidico popular esté presente em boa parte da obra de Solano Trindade, com imagens da inffincia que se projetam para o presente em termos de exemplaridade ou de suave realismo. Jé em Anténio Jacinto, em “O Grande Desafio” (Apud: ANDRADE, 1975, p. 81-84), a inffincia é espago de encontro € de solidariedade que © poeta projeta no devir — um tempo de sonho para “quando as buganvilias alegremente ‘lorirem!” Tempo de “primaveras” como se nomeia no Brasil (“buganvilias”), capaz de reatar fios solidérios perdidos, aproximando novamente os antigos companheiros de infancia — “unidos nas ansias, nas aventuras, nas esperangas” (Idem, ibidem, p.84). Em José Craveirinha, mais contraido, a infincia do circo, do cinema, das brincadeiras de moleques, é vista criticamente, em especial os simbolos da indistria 248 cultural, com os seus Tarzans, Texas Jacks, Shirleys Temples etc (“Ao meu belo pai, ex-emigrante”, 1982, p. 107-110). Esperanga, novas configuragdes A “civilizagiio” degradada & mostrada assim através de seus instrumentos de dominagao (coloniais, neocoloniais, sociais), dentro de estratégias de confronto. Imbuido de potencialidade subjetiva e um certo neo-romantismo revolucionirio, 0 poeta faz-se centro de convergéncia, um ator que ata “i maneira simples das profecias”. Citemos, nesse sentido, Solano Trindade: Minhas amadas me ceream sinto 0 cheiro de seus corpos € cantos misticos sublimizam meu espirito! Minhas amadas dangam despertando o desejo em meus irmios, somos todos libertos, podemos amar! Entre as palmeiras nascem * 095 frutos do amor ddos meus irmios, nos alimentamos do fruto da terra, nenhum homem explora outro homem ...” (“Canto dos Palmares”, 1980, p. 28) A aspiragdo de plenitude libertéria materializa-se nos “frutos do amor” para os que se alimentam dos “fiutos da terra” — uma alquimia possivel que vem dos imemoridveis “cantos misticos”. Uma forma prelégica de plenitude capaz de permitir a inferéncia politico-social, que rompe com o contexto da naturalidade, redundantemente, “natural” / “de natureza”, comutada pela “naturalidade” social. A 249 “profecia” nesses contextos misticos procura nao se fixar apenas como um depois. £ também um agora, “no canto simples, /como a propria vida", como o quer Solano Trindade (Idem, ibidem, p. 26). E permite que 0 poeta possa “sentir-se/gente” Mesmo em poemas que se voltam retrospectivamente para a historia, como o ‘anto dos Palmares” de Solano Trindade ou a “Cangio Negreira” de José Craveirinha, ha sempre um sentido de presentificagao, Como diria Anténio Jacinto, “Quando alguém nos morre [...] Choramos autenticamente por n6s_proprios” (Cangao negreira”, 1982, p. 73). A esperanga exige a felicidade aqui e agora como posse do instante. O presente nio figura como lugar de contemplagiio, mas de luta ~ uma conquista que exige agdo imediata, inclusive nos poemas lirico-amorosos, transpassados por imagens politicas: “Amo-te/eom as raizes de uma cangio negreira”, diz José Craveirinha (“Cango negreira”, 1982, p. 73). passado reprimido € recuperado como esperanca possivel, conforme a estratégia discursiva do confronto € nao do entendimento miituo, Citemos José Craveirinha, no poema “Esperanga”: No canhoeiro ‘um galagala hesita a cabega azul Nos roxos, sétdios do crepiisculo aaranha vai fiando sua capulana de teia E nés? Ah, ns esperamos na euforia das costas suadas que o sal do vexame acumulado deflagre” (1982, p. 31) Ha uma espera ativa, um matutar que tem recorréncias naturais no “galagala” (lagarto mogambicano) e na aranha que fia a “capulana”. Séo imagens ameagadoras 250 de quem espera que 0 “sal do vexame acumulado/ deflagre”. Deflagra no poema 0 sistema lingiistico do colonizador, para tanto nao ha espera. “Tchaiam estes versos tchaiam” (1982, p. 49-50) € um dos titulos de seus poemas, que nos traz dois aspectos dos sons percutidos — bater ¢ fazer soar -, procedimento de legitimagao da nova lingua literéria nacional, oposta Aquela do colonizador que Ihe serve de contexto (e, como contexto, deve ser rompida). E assim, ao som do batuque, José Craveirinha e Anténio Jacinto alargaram 0 campo comunicativo da literatura popular. Siio paradigmas poéticos na situago pés-independéncia, A imaginagdo prospectiva € processual, renova-se a cada momento como virtualidade radical. E por isso, como aponta Anténio Jacinto, que essa possibilidade objetiva implica que Sonhemos s6is e sonos Sonhemos estrelas no céu ‘no gume duma navalha ‘no gomo duma laranja nos olhos duma erianga e na lua Lentos labios ” entreabertos a sonhos-polen Sonhemos vivido sol ~ A Vidal” (JACINTO, 1982. p.62) Referéncias bibliograficas ANDRADE, Mario de. Antologia temédtica de poesia africana ~ Na noite gravida de punhais. Lisboa: Sa da Costa, 1975. BLOCH, Emst. Le principe espérance. Tome I, II. Paris: Gallimard, 1976, 1982. CRAVEIRINHA, José. Karingana ua Karingana. Lisboa: Edigdes 70, 1982. JACINTO, Antonio. Sobreviver em Tarrafal de Santiago. Luanda: INALD, 1982. TENREIRO, Francisco José e ANDRADE, Mario de. Poesia negra de expressio portuguesa (1953), Ed. fac-similada. Linda-a-Velha, Africa Ed., 1982. TRINDADE, Solano. Cantares do meu povo. Sao Paulo: Brasiliense, 1980. 3. Doze dias de abril, sob teto de zinco Sio dominantes, nas perspectivas tedricas atuais, inclinagdes que levam o pensamento critico a ressaltar coexisténcias contraditrias de varias temporalidades num mesmo objeto. Isto é a tendéncia a consideré-lo como intersecgao de linguagens de um campo discursive complexo, heterogéneo. Observar, com olhar perscrutador, pessoas, fatos € a natureza implica situd-los diante dessa malha complexa de relagdes, que se inicia a partir do sentido hibrido e contraditério inerente & constituigao das coisas e do conhecimento. Assim é o registro literario do 25 de Abril, na perspectiva de Mia Couto, metamorfoseado no préprio titulo de seu romance Vinte e zinco251. Se 0 chamado locus de enunciagdo do narrador do 251 Maputo, Editorial Najira, 1999, romance jé € outro, acrescente-se a esse fato a distincia temporal que permite a0 escritor uma visdo mais ampla da Revolugdo dos Cravos, tal como se manifestou foi sentida pelos mogambicanos. Tudo se mostra em proceso numa aspiragdo de uma espécie de totalidade hibrida, pautada por fronteiras discursivas onde nada estanque. E, assim, a data simbélica do 25 de Abril veio a ser problematizada nessa efabulagdo fiecional de 12 dias, onde os fatos cotidianos de uma regido interior de Mogambique se véem envolvidos numa rede que questiona o sentido histérico do evento ¢ suas reais decorréncias para o pais. Melhor, pelas ambigiiidades de miltiplos olhares, seja do autor do romance ou dos atores sociais que ele criou em sua ficgdo, 0 sentido libertario do acontecimento & situado como um processo. E 0 futuro ndo & certo, ao contririo da crenga de muitos, mas possibilidades que demandam insergdes ativas do sujeito. Se os registros da experiéncia histética, diriamos nés, nos levam a sancionar formas ou campos de conhecimentos como “verdadeiros”, essas verdades, sob 0 crivo do olhar eritico & em face das condigdes € situagdes hibridas, se mostram sempre relativas, Enwretanto, € de acrescentar, parafraseando Vinicius de Morais, que elas sejam infinitas enquanto durarem. Ainda bem, pois fatos histéricos como o 25 de Abril Permitem a abertura de espagos (entre 0 “falso” neles embutido e o “verdadeiro”, ‘no qual se acredita) para que processos subjacentes constitutivos dessas formas de conhecimento manifestem-se enquanto tendéncias. Sao processos mais amplos que dependem nao apenas do olho individualizado (e distanciamento) de quem observa, ‘mas também da agio das diferentes préxis da vida social. Cravos e 0s cravos de abril Vinte e zinco abre esses espagos para a discussio da dindmica histérica aberta pelos cravos do Abril portugués. E de observar que a antiga Metropole ¢ as ex-coldnias se __ entremesclaram nas redes que vieram a dar forma a esse acontecimento historico. Mogambique e a Africa colonizada nao deixaram de estar em Portugal, constituindo combustivel para 0 movimento dos capitées, como este pais também niio deixou de estar nas nagdes africanas. As agdes dos movimentos libertirios das colénias abriram espago, repercutiram nas estruturas portuguesas, abrindo caminho para a desnaturalizagaio das formas dis fas que procuravam dar sustentagdo a0 salazarismo, Uma brecha que veio a instaurar um proceso democritico, contribuindo para que os portugueses mirassem para horizontes mais amplos. 0 foco de visio de quem observa, no romance de Mia Couto, evidentemente nao é dos portugueses que se sensibilizaram com esas mudangas, mas de um mogambicano, Melhor, de um intelectual citadino de Maputo, marcado pelo distanciamento entre 0 tempo do enunciado (o da referéncia histérica aos episédios 253 do 25 de Abril) e 0 tempo da enunciagdo (as caréncias acumuladas por esse processo e que demandaram novas fissuras). Dessa forma, ao aderir com empatia aos anseios sociais de uma distante regio do pais, cle o faz mostrando brechas. E 0 Vinte ¢ Cinco dos cravos portugueses, dos momentos em que continuavam a ecoar comemoragées celebratérias das mudangas devidas ao impulso revolucionario, € colocado em situagao de diélogo com este Vinte e zinco. As paredes ¢ tetos de zinco da realidade colonial tém muito pouco para celebrar e por isso a historia de ficgdo em tomo do que foi 0 25 de abril ‘mogambicano ainda nao se configurou no calendario como data comemorativa. Ou, ‘como disse a adivinhadora Jessumina, personagem do romance de Mia Couto: “Vinte e cinco é para voces que vivem nos bairros de cimento, Para nés, negros pobres que vivemos na madeira e zinco, o nosso dia ainda esté por vir” (p. 11). Perduram as limitagdes do zinco dos tempos coloniais - uma marcagio simbélica, que aponta para as caréncias do referente econémico-social. A diferenciagio espacial cidadelcampo, capital/regiio, metrépole/colonia, sobrepem-se, assim, na narrativa de Mia Couto, diferenciagdes temporais que envolveram a luta anticolonial em Mogambique ¢ vicissitudes do processo libertério, O “nosso dia” da populagao pobre ainda ndo eclodiu. E, nessa dindmiea, as inevitiveis oscilagdes do impulso libertirio, representadas em momentos de ascensdes ut6picas ¢ quedas distopicas de duas décadas € meia de revolugdo, acabaram por dar sentido a esses doze dias do relato, logrando trazer densidade critica & narrativa. AA fabricagao do medo ‘A procura de identificagao dos intelectuais com personagens imbricadas em situagdes que remetem a guerra colonial, traduzida na linguagem mais universal que vem da arte, como sempre acontece, no deixa de dialogar com seus desejos mais amplos. Na escrita literdria, essa subjetividade manifesta-se enquanto sombras 254 do escritor. Ao falar de situagdes marginais da populagio que the serve de referéncia, Mia Couto aponta para caréncias mais amplas que as dessa regio, no deixando também de manifestar caréncias que so suas, procurando dar forma ao que falta para quem se situa no campo intelectual mogambicano. Como se vé, no relato de Mia Couto, encontramos muitas margens, tempos ¢ espagos sobrepostos, Nada € univoco, como pode ser observado num dos temas centrais do romance é a “fabricagio do medo”, Vejamos como a enunci Jo caracteriza este sentimento inerente ao processo repressor imposto pelo colonialismo. Numa das anotagdes de Irene, uma Personagem de origem colonial identificada com 0 sentido libertério da tuta anticolonial, hé © registro de que “O torturador necesita da vitima para criar verdade nesse jogo a duas ios que é a fabricagio do medo"(p. 15). As chamadas Condigdes objetivas da opressio que provocam o medo nao elidem reagdes de rejeigdo a esse estatuto imposto. Para ser eficaz, 0 medo precisa set aceito por parte do sujeito oprimido. Contra a aceitagdo da politica de atemorizagio, ha a Possibilidade de manifestagio da potencialidade subjetiva de quem nao ace articipar dessa fabricagio, que s6 interessa a quem tem poder. Ha sempre nessas situagdes um verso e um reverso. E, entre as duas faces, todo o mundo. “A idgia de “fabricag2o” relaciona-se, na escrita do romance de Mia Couto, com um conceito mais amplo da enunciagio: os fatos da realidade, como também os fatos discursivos que sobre eles se debrugam, so construidos. Ha sempre um sentido Politico-social motivando essas formas de praxis. E de ilustrar 0 conceito de construgdo com outra anotagao dos cadernos da personagem do. romance anteriormente citada; “Ninguém nasce desta ou daquela raga. $6 depois nos Extracto do diario de Irene, tomamos pretos, brancos ou de outra qualquer ra parafraseando Simone de Beauvoir” (p. 23). Habitus que aprisionam

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