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R. Fac. Educ, Sao Paulo 14(2) :193-209, jul. /dez. 1988 DURVAL MARCONDES - 0 PRIMEIRO CAPITULO DA PSICANALISE E DA PSICOPEDAGOGIA EM SAO PAULO Elisabete MOKREJS * RESUMO: Durval Marcondes foi pioneiro da psicandlise no Estado de Paulo, Deve-se a ele a primeira divuigacao cientifica da psicandlise no Br de modo a caracterizé-la como instituigao de reconhecimento internacional, por meio da fundaco da Sociedade Brasileira de Psicandlise. Foi notério seu desempenho frente ao ajustamento do escolar, com a fundag4o das Clinicas de Orientacao Infa PALAVRAS-CHAVE: Psicandlise. Medicina, Educacdo. Ajustamento. Infancia. © nome de Durval Bellegarde Marcondes (1899-1981) ocupa_um lugar de destaque no estudo das origens da Psicandlise no Brasil. Par- ticularmente em Sao Paulo, j4 que no Rio de Janeiro a histéria da psicandlise se desenvolveu de modo bem diferente, 0 médico Durval Marcondes imprimiu & difuséo das idéias de Freud um tom arrojado e firme, denotando a certeza de que os fatores psicolégicos mais pro- fundos nao podem permanecer & margem das questées da medicina. Tendo sido despertado para a tematica psicanalitica nas aulas de Franco da Rocha, j4 em 1919, nao hesitou, logo apés a formatura, em Medicina, em acolher no seu diva de psicanalista, os casos dos pacien- tes mais renitentes que lhe eram enviados por Franco da Rocha. De reconhecida inteligéncia, Durva] Marcondes impressionou, viva- mente, pela facilidade com que se afirmou nos varios dominios do saber. Expressava-se artisticamente como poeta, cultivava a boa musica e a literatura, ao mesmo tempo que se correspondia com figuras expres- sivas da psicandlise como o proprio Freud e Franz Alexander nos Esta- dos Unides. Por meio de Raul Briquet, professor de obstetricia e simpatizante da psicanélise, Durval Marcondes conheceu o “International Journal * Profeszora Doutora do Departamento de Filosofia da EducagSo e Ciéneias da Educacto ‘da Faculdade de Educagko da USP - Universidade de Sic Paulo. 194 ELISABETE MOKREJS of Psicho Analysis” periddico que apresentava artigos de Freud, per- mitindo assim, ao médico paulista a atualizagao de idéias nesse campo. Analisando, em certo momento, a entrada da psicanalise no Brasil, Marcondes percebeu que as mudancas ocorridas no perfodo que se seguiu ao término da 1* guerra mundial, constituiram um fator importante para a “compreenséo do papel das pessoas na vida social”. Referiu-se aos diferentes aspectos da participagdéo da mulher no ambito da moda, do trabalho e dos costumes. No teatro e na literatura, as expressdes j4 apresentavam maior liberdade moral. A arte modernista desen- cadeou uma revolugdo estética significativa. Esses fatores, a seu ver, propiciaram um clima favordvel para o inicio da psicandlise no Brasil. Um marco importante no inicio da trajetéria psicanalitica de Dur- val Marcondes foi a redagao do livro O Simbolismo Estético na Litera- tura — Ensaio de wma Orientacéo pata a Critica Literdria, baseado nos conhecimentos fornecidos pela psicandlise ). Q) Mareondes Durval. © Simbolismo Estético a Literatura, Scorko de Obras de , de JENSEN, W., Tome III. La Interpretaciin Je los sueiios, Tomos VI @ VIL Un recurso infantil de Leonardo da Vinci. Tomo VIII, RALPH, J. Connais toiméme par Ia Paychanalyse, Paris, 1994, LAFORGUU, R. et ALLENDY, R. Pay- chanalyso ot los Névroses, Paris, 19M. JONES, Ernest. ‘Traité théorique et pratique de Weychanalyee. Paris, 1925. CHARLES-RAUDOIN, L. Le Symbole Chez Verhseren, Genéve, 194. ROGUES DE FURSAC, J. Les éerits et Iee dessins dans lea maladies nerveuses et mentales, Paris, 1905. RIBOT, Essai sur Vimagination eréatico, PEUL- LANDRES, E. Les Images, Paris, 1910. BLEULER, &. ‘Tratado de Psiquiatria, Madrid, 1924, CARVALHO, Vicente de Poemas e Cangied, % cd., Sio Paulo, 1917. FARE, O.L, La Psychologie des Névroses, 4s od., Genéve, 1905. RANK, Otto, Tl mito della uaseita degli erol, trad. italiana, 19%1. AZEVEDO, Aluisio de. Casa de Pensie, Rio de Janeiro, Paris. R, Fac. Educ,, 14(2)193-209, 1988 DURVAL MARCONDES - O PRIMEIRO CAPITULO DA... 195 Nessa obra, impregnado por conceitos da primeira tépica freudia- na, Durval Marcondes situa o papel do inconsciente como a “fonte dina- mica do nosso psiquismo” e como receptaculo dos instintos, os quais “fatores basicos da conservacéo do individuo e da espécie séo as molas da personalidade, as forcas motrizes da atividade psiquica”. Prossegue afirmando que “‘os instintos ligados 4 funcdo reprodutora que, pela sua mesma finalidade, tem a maxima importancia bioldgica, sAo os que mais influem sobre a orientacdo dos fendmenos mentais” ®. Depre- ende-se dessas afirmagdes uma_concepcéo e: ica do inconsciente, abrigando os instintos, sem dar lugar a contetdos representativos das pulsoes. Referindo-se ainda, 4 adaptagdo dos modos de satisfacéo dos ins- tintos “2s condigdes atuais do meio”, afirma Durval Marcondes que “passam os instintos por uma evolugdo no decorrer do desenvolvimento individual, evolucg&o essa que, como a ontogénese repete abreviada- mente a filogénese, 6 um resumo da que se verifica no desenvolvimento da espécie” ®, Observa-se nessa afirmagdo a aplicacao literal da “teo- ria da Recapitulacéo” as idéias freudianas. Na caracterizagio da “censura”, ressalta o tom imediatista dos “preceitos, de ordem moral, que determinam a inibicdo de certos im- pulsos”, nao deixando lugar para a conotacdo de consciéncia moral, que prefigura o conceito de superego. O papel da censura destaca-se pelo fato de que “verdadeira sentinela na porta da consciéncia, antepde-se aos desejos incompativeis com a vida social, recalcando-os para as vegides profundas do inconsciente”. Prossegue explicando que a ten- déncia afetiva “chamada em psicologia complexo” ‘ deve submeter-se aos ditames da censura para “atualizar-se, isto 6, tornar-se objeto do interesse consciente”. Vinculados a essa evolugdo ontogenética, encontram-se os fend- menos da fixacdo e da regressio, explicados, especialmente, pela pre- senga de fatores traumaticos na historia do individuo. Os fatores cons- titucionais sic mencionados apenas de passagem: “Adicionando-se as condicées hereditarias, as forcas inibidoras do ambiente modelam, pois, © carater individual, determinando desde a época infantil a formacao dos complexos que hao de reger as predilecdes afetivas” ©. Entretanto, os fatores filogenéticos sio, novamente, evocados nas consideragées sobre a fantasia, processo em que “‘a realidade externa, (2) Idem, ibidem, p. 1. @) Idem, tbidem, p. 3 (4) A despelto das reservas de Freud no emprego do termo e no ¢Rel Loary de Shakespeare. Hncontra a meama analogla na historica da Gata Borralhetra, Para evocar o motivo do ineesto na litera- ‘ura, mencionou Otto Rank ¢ Freud na sua Interpretacio dos Sonhos. ato auspicioso no melo psicanglitico fol a traducto do primeiro trabalho de Freud em portugués: Cineo Ligdes de Psleandlise, por Durval Mareondes ¢ J, Barbosa Cor rela, om 1991, @ R. Pac. Educ. 14(2)193-209, 1988 DURVAL MARCONDES - O PRIMEIRO CAPITULO DA. 197 que Durval Marcondes foi pioneiro da terapia psicanalitica em Sao Paulo ®, Observa-se que a tematica dos primeiros casos enfatizava, sobretu- do, aspectos genéricos da psicandlise, que demandavam esclarecimen- tos sobre a conceituagdo e aplicacdo desse novo campo de estudos. Situa-se nesse caso o assunto: “Sobre a autenticidade dos aconte- cimentos da infancia evocados durante a psicandlise”. O autor ai, evo- cou aquilo que caracterizou como “verdadeiro fenémeno experimental” Referiu-se 4s dificuldades do paciente para vencer a resisténcia e reme- morar um acontecimento da infancia que “devia ter representado papel saliente na psicogénese da neurose”. A exposicdo foi encerrada com algumas consideragdes sobre os mecanismos psiquicos de defesas, salientando “a pouca probabilidade que ha na influéncia pessoal do ana- lista na rememoragao do passado afetivo dos doentes” ©, No relato sobre o “Valor dos Sonhos na Pratica Psicanalitica”, Durval Marcondes alerta o médico para o cuidado de nao interferir no conteado dos sonhos, pois, caso isso ocorra, poder4 falsed-los. O material onirico emerge espontaneamente e é confirmado por novos dados pelo prdprio paciente 4), Com 0 objetivo especial de dirimir controvérsias sobre o emprego da psicanalise, 0 autor paulista apresentou o trabalho: “Os resultados (8) Durval Marcondes apresentow os relatos clinicos nas reuniées da Assoclactio Paulista de Medicina, A publicaqio dos relatos deu-se na Revista da Assoclacio Paulista de Medicine, Afora as reuntées, por vezes, o autor redigia artigos sobre temas psicana~ litfeos que vinham acampanhados de estudos de casos da sua clinica. Devido as reservas dos médicos em relario A paieanflise, diversas vezes o médico paulista teve sua palavra cassada nas reunldes, porque entendiam que afirmava tolices. (10) MARCONDES, Durval. Sobre sutenticidade dos sconteeimentos durante a psicandlise, Rovista da Assoclacho Brasileira de Medicina, 198:242, marco, 1982. Nesse mesmo ano, ‘Mareondes comentan o artigo de Carneiro Ayrosa — ¢Vendéncia a beber em face da psicanélises,o, Imprensa Médies, &(112)-42, feverelro, 1932, O psiquiatra paulista reafirmou que, segundo Freud, «a tendéncla a beber & uma das expresses do erotis- mo oral» ¢ radiea muma fixaclo da fase oral. A profilaxia do alcoolismo deve ser evitada a partir das seguintes modidas: 1) evitar fixacses orais da Mbido, impedindo ‘© uso desmedide da atividade oral: 2) sublimar ou condicionar derivatives titels ov indeuos, quando esta fixagéo surja reslstente, isto 6 educar aperfetcoando 0s im- pulsos, Revista da Asseciacto Erasileira de Medicina, $:386-367, novembro, 1982. (1D) Idem, «© valor dos sonhos na prética psleanaliticay, Revista da Assoclogo Paulista de Medicina, 1(2):244, margo, 1982, Resenhas de artigos ¢ livros também foram alvo Ge atencio de Durval Marcondes. Bo caso do artigo «Psicologia em Pediatriax, de Josef K. Friedjung, publicado na Revista Médies Germano-Amoricana, ano 5, n° 5, p. 235, maio, 1992, in R.A.P.M., S80 Paulo, maio, 1912. Trata-so de um sso de pediatria em que a paciente, com 8 anos, opresentou um quadro de escarlating scompanhada de uma neurose com ataques de medo, tendo sido tratads «pela psica- ndlise segundo os regrad de Anna Froud, e por mudanga de ambiente. O artigo visou chamar a atencéo da classe médica para as vantagens do uso da peicantilise pars intervir nos conflitos educativos, em casos de perturbactes do cardter das coriancas. R. Fac. Educ, 14(2)193-209, 1988 198 ELISABETE MOKREJS do tratamento psicanalitico”. Pondera que os resultados dessa terapia s&o definitivos e confiaveis, mesmo se, eventualmente, a andlise for diri- gida por pessoa incompetente. Essa questéo era muito atual na época, porque nao havia analistas didatas no Brasil para credenciamento de no- vos psicanalistas. Discorreu, também sobre os inconvenientes do preco e da longa duragao do tratamento, mencionando os argumentos de Ernest Jones no sentido de minimizar esses aspectos que, a seu ver, nada re- presentam face aos dispéndios de outros tratamentos, A alocugéo do autor paulista completou-se com a apresentacaéo de cinco resumos de observagées psicanaliticas do seu arquivo pessoal, atendendo a titulo de exemplo, modalidades clinicas diferentes “), Persistindo na sua tarefa de assentar as bases da psicandlise na medicina em S&o Paulo, Durval Marcondes apresentou o trabalho — “Aspectos do aproveitamento pratico da Psicandlise” no 1° Congresso Paulista de Psicologia, Neurologia, Psiquiatria, Endocrinologia, Iden- tificagéo, Medicina Legal e Criminologia — em julho de 1938. Essa apresentacdo vem revestida de um tom mais formal, néo obstante terem sido discutidos os conceitos de psicandlise acompanhados de esclareci- mentos sobre o “id”, “ego” e “superego”. O autor, em seguida, se dete- ve nas consideragées sobre o critério da formacdo de psicanalistas, Posto que, nessa época, Adelheid Kock ja se encontrava em Sao Paulo e iniciara seu trabalho de “analista didata”. Durval Marcondes adverte sobre as conveniéncias pessoais e profissionais da andlise didatica para 0s médicos voltados para a técnica freudiana. Finaliza a exposicéo, enfatizando que “a obra que se impée a psicandlise no Brasil nao é mais a de propaganda teérica, que, boa ou ma, ja estd feita de sobejo, mas a formacao de técnicos competentes” 0), Escudado no prestigio de sua clinica particular, a despeito da reserva que lhe era imposta pela classe médica, decidiu fundar j4 em 1927, em Sao Paulo, a primeira Sociedade de Psicanalise da América Latina, que chegou a ser, oficialmente, reconhecida pela Associag’io Psicanalitica Internacional. Seus componentes eram, em geral, médi- cos e outros profissionais interessados nas leituras de Freud. O obje- tivo dessa Sociedade foi, precipuamente, a difusdo das idéias freudia- (42) Idem,

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