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eeoee em 34 Aescultura 3.4.1 O naturalismo e os novos temas Na escultura gotica reflecte-se, de forma directa ¢ intensa, a mudanea clara que 0 homem medieval, a partir do século XU, experimentou no seu relacionamento com o mundo ea natureza. Transformagoes de ordem variada processadas a0 lon- go desse século estéo na origem dessa mudanca de atitude: 0 mundo, criagho de Deus, passa a ser olhiado como um lugar de beleza e de harmonia que compete a0 homem fruir e desenvolver, ¢ nfo como o «vale de lagrimas, lugar de expiacéo da culpa e da preparagio do dia tltimo do Juizo Final. Por consequéncia, aos temas apocalipticos, as visées monstruosas ¢ terrificas da arte roménica, sucede-se, pau- latinamente, a serenidade de um naturalismo visivel quer na tematica quer no tratamento das formas. Os motivos vegetalistas estilizados ¢ de feigio geometrizante que a escultura roménica utilizara so substitufdos, na arte gética, por folhagem tratada com um naturalismo fresco € primaveril, reflexo, como se disse, do novo entendimento do mundo € do papel que o homem nele deve desempe- thar. No Mosteiro de Alcobaca ¢ jé sensivel essa mudanga: nos capitéis da igreja e do dormitério, a par dos entrangados ¢ da folhagem hirta, surge uma outra folhagem mais solta de movimentos, se bem que acusando ainda alguma timidez. Nos claus tros da Sé Velha de Coimbra, da Sé de Lisboa e do Mosteiro de Aleobaca, a presenga de temas ainda romanicos (que nao disfarcam, no entanto, um tratamento plistico mais préximo das formas géticas) alterna com a decoragio de elementos vegelalistas assumidamente goticos. Esta hesitagao no abandono da tradi¢&o ro- mainica esta ainda presente em duas obras fundamentais do século XIV: nos capitis do claustro do Mosteiro de Celas ¢ das naves da igreja de Leca do Balio, os respectivos escultores deixaram-nos a obra-prima dos capitéis historiados de toda ‘arte medieval portuguesa. Ocupando por inteito a cesta de cada capitel, desdo- bram-se cenas figurativas do Novo Testamento cujas figuras, porém, t8m mais espago de respiragio de movimento, com uma liberdade ja caracteristica da arte gética De qualquer forma, € a0 longo do século XIV que a escultura atinge a dimensio total da imitagao da natureza: na igreja matriz da Lourinha, no deambulatério da SE de Lisboa, no coro fernandino da Igreja de S. Franeisco de Santarém, as folhas de hera, as parras de videirae outras espécies da flora campestre desdobram-se em dois andares e enchem-se de um vico definitivamente naturalista. Quando mestre Huguet é colocado & frente das obras da Batalha, introduz nessa decoragio vegetalista os enrolamentos nervosos, as folhas espinhosas ¢ carnudas do cardo, que, na expressio poética de Huizinga, anunciam os tons eélidos do Outono. Sera, centio, © momento de, na época manuelina, a decoracio arquitecténica explodir numa multiplicidade temética em que & folhagem até af usada se acrescentam os frutos da azinheira, da romazeira, do cardo, etc., reaparecendo, entre outros temas zoomérficos, as Sereias ¢ os dragdes que 0 roménico jé utilizara, em conjunto com a presenga obsessiva do brasao régio e da esfera armilar. E, de certa forma, acelebra- cio orgiaca de uma arte em momento final, quando novos temas, retiados de uma gramética renascentista, se imiscuem por entre o tumultuar das formas ainda géticas. Figara 103. a 163 chs eseenenrneananventinncennanenensmnnne * pedo Dias, «0 Goticon, in Historia deArteom Portage, vol. 4, Lishoa, Publicaghes Als, 1986, p. 113. Figur 14 Figure 15, 166 ‘As novidades da escultura gotiea nfo se restringem, no entanto, apenas aos moti- ‘vos naturalistas dos capitéis. A escultura de vulto € auténoma adquire maior im- portincia, ganhando as imagens uma serenidade cuja expresso, uma vez mais, traduz o humanismo da visio e do pensamento goticos, Cristo deixa de ser 0 jjuiz implacavel e severo para se tornar misericordioso, aproximando-se, sem que a sua divindade seja posta em causa, da humanidade & qual se havia igualado. Neste aspecto, uma das pecas mais representativas ¢ 0 «Cristo ressuscitado» executado nas oficinas eborenses (séculos XIV-XV): a beleza do marmore de Estremoz acen- tua a serena elegincia e humanismo da figura, com um tratamento muito cuidado e exemplar, sobretudo ao nivel do manto e do rosto. Ao longo dos séculos XIV ¢ XV, 60 dramatismo da morte de Cristo que, entre os temas escolhidos, adquire nova coloragio: 0 «Cristo Negro», de Coimbra, resume exemplarmente o sentido do softimento e do patético de um Deus que, em definitivo, 6 abandonado & sua con- digo de mortal. A novidade maior, no entanto, dos temas da escultura gética é 0 destaque dado & representagio da figura da Virgem como mae de Cristo. Devocio espalhada sobretudo por $. Bernardo, reflecte, uma vez mais, o sentido humanista da época gética e, inclusive, 0 novo papel desempenhado pela mulher na sociedade, como, 2 outro nivel, as trovadorescas cantigas de amigo e de amor confirmam. Sentada ‘num trono, com o filho no regago ~ como as duas esculturas guardadas no Museu do Caramulo, dos séculos XH e XIY, das quais uma se destaca «pela beleza, pelo ar amoroso ¢ juvenil»! ~ ou de pé, expectante, com a mio direita sobre o ventre que esconde 0 filho naseituro — as populares «Senhoras do O», de que as mais notveis sio as que sairam das maos do mestre coimbrao Pero, no século XIV ~, as representagoes da Mae de Deus so um dos exemplos mais impressivos das novi- ‘dades que a época gética apadrinhou e que na arte se coneretizaram de forma exem- plat. Entretanto, no portal da Sé de Evora e por intervengéo do bispo D. Pedro, na sequéncia da construgéo do claustro, a escultura gética conhece, pela primeira vez, um programa iconografico desenvolvido, que aproxima este templo dos progra- ‘mas ambiciosos dos portais cas catedrais géticas. Substituindo em parte os colunelos das arquivoltas, dispoem-se 10 Apéstolos, envoltos em mantos de pregas largas © sustentando um livro. Apesar da aparente monotonia desses dez rostos bem mode- lados, cada estétua possui uma vida prépria, obtida sobretudo pelo movimento diferenciado que ostenta. A completar 0 grupo, S. Pedro ¢ S. Paulo, isolados na om- breira do portal, destacam-se também pela méo diferente que os modelou ¢ que, apesar de revelar algum arcaismo, soube imprimir um ricto de patética angustia que contrasta com a serenidade de todos 0s outros Apéstolos, A qualidade ¢ a inovacéo pléstica deste conjunto iconogréfico completa-se com a colocagio, em cada Angulo interior do claustro, das estétuas dos quatro Evangelistas e, na capela funerdria do prelado, de outras estétuas de vulto que confirmam néo s6 0 momento artistico de excepgio atingido em Evora como também a envergadura do proprio encomendante. E no Mosteiro da Batalha, no entanto, que pela primeira vez se encontra desen- volvido, em toda a plenitude, o programa iconogriico caracteristico das grandes _aaranmanamconmenntonen obras da arquitectura gotica. Aos Apéstolos, colocados sobre os umbrais como colunas simbéticas da Igreja, sobrepde-se, nas arquivoltas, a figuracéo da corte celestial (profetas, anjos misicos, reis de Israel, mértires, querubins), disposta do exterior para o interior, de acordo com a sua hierarquia, até se atingir, no timpano, © climax da representagdo: Deus, sentaclo em majestade e figurado como um an- io, rodeado pelos quatro Evangelistas. Toda esta composicao finaliza com o tema, disposto sobre as arquivoltas, da Coroacdo da Virgem, remate feliz da importancia, {jé aqui analisada, da representacio da Mae de Deus assumida pela escultura gética. , alids, a Virgem que, no mais desenvolvido portal da época manuelina (0 da fachada sul do Mosteiro dos Jernimos, de Lisboa), ocupa destacadamente 0 centro de toda a composigio, sob a invocagao de Nossa Senhora de Belém. Nao é esta a tnica novidade desta obra exemplar: juntamente com a presenca inédita da representagio do Infante D. Henrique, no maine! da porta, toda a restante compo- sigio (que respeita os programas tradicionais) se desenvolve, até & cornija, como um grandioso retébulo exposto & praia que a maritima gente demandava. O esplen- dor de toda a campanha de Belém alcanga um remate condigno na propria porta principal, que, apesar de mais humilde, recebeu, em representacio tirada do natu- ral, rei D. Manuel e sua terceira esposa, ajoelhados e protegidos pelos respecti- vvos santos protectores. A exceléncia de tratamento que os portais da época manuelina receberam teve, no portal das Capelas Imperfeitas da Batalha, realizado por Mateus Fernandes em 1509, e no Convento de Cristo em Tomar, concebido por Joao de Castilho em 1515 (antes de se ocupar do de Belém), nao 86 0s primeiros ensaios como também um dos momentos mais conseguidos dessa época. E se, &s influéncias de um plateresco detectivel no trabalho daquele sltimo artista, € possivel também descortinar a assuncio gradual de uma estética italianizante, acaba por ser uma sensibilidade caracteristicamente portuguesa a definir, de forma globalizante, uma {das obras mais embleméticas da arte de todo este perfodo: a janela do Convento de Cristo de Tomar. Devida a Diogo de Arruda (entre 1510-1512), constitui-se em compéndio feliz, nos motivos utilizados e na densidade de tratamento, de todas as virtualidades de uma época que a glorificagao heréldica do rei D. Manuel, pro- posta como tema definitivo em toda a fachada onde aquela janela se expe, remata de forma eloquente. 3.4.2 A escultura funerdria A escultura funeriria, pela importincia de que se revestiu ao longo da vigéncia da arte a6tica, bem justifica um tratamento auténomo. A preocupagao com a preparacao da, ‘morte, a necessidade de perpetuar a meméria junto dos vivos, a demonstragio da importdncia social de quem se faz representar nos jacentes sobre as arcas funer'é- rias conhece, a partir do sculo XIII, uma importincia cada vez mais acentuada, que a multiplicidade de obras executadas ¢ conservadas demonstra, Para tal ero concorrido diversos factores, entre os quais uma nova atitude perante a morte, a solicitude Figuras 116.117 er ceases RE RNUSSENS os _ SSS ae Figur 19, demonstrada pelos Mendicantes na instituigio de capelas funerérias que provessem & salvagio eterna dos defuntos, a crise profunda que, ao longo do século XIV, se instala sna Europa (Peste Negra, Guerra dos Cem Anos, etc.).A partir, sobretudo, do reinado de D. Afonso IIL, a escultura funeréria impée-se de modo firme nos rituais ligados & Morte, acompanhando, deste modo, habitos europeus adquiridos com a estada daquele rei, enquanto conde, em cortes transpirenaicas, © nicleo talvez mais antigo situa-se em Coimbra; 0 timulo de D. Rodrigo Sanches (m. 1245), em Grij6, ¢ os da Sé Velha de Coimbra (D. Tibuircio, m. 1246; D. Egas Fafes, c. 1260; D. Pedro Martins, m, 1301), modelados no brando calcério de Angi, se tém em comum uma certa rigidez no tratamento dos rostos ¢ das ves- tes, denunciam ja uma vontade de naturalismo, na tentativa de retrato que neles se pressente. Nos anos trinta do século XIV sobressai, em Coimbra, a actividade de mestre Pero, esculior talvez aragonés, a quem se deve nio s6 0 timulo de D. Vataca (1337) como também o da rainha Santa Isabel (1330), 0 mais monu- mental de toda esta fase e com influéncia na produgéo subsequente. O jacente da tumulada, vestido com o hébito franciscano, ¢tratado com grande monumentalidade: dois anjos seguram com delicadeza a almofada em que a rainha recosta a cabeca, protegida por um dossel, enquanto os brasdes de Portugal ¢ Aragio sublinham, sobre a tampa, a sua ascendéncia ilustre. A arca, de grandes dimens de modo extraordinério com a sucesso de graciosas ¢ movimentadas figuras de santos dispostas em nichos individualizados. -s, anima-se {A repercussio imediata desta obra faz-se sentir no témulo do arcebispo de Braga D. Gongalo Pereira, que o encomendou, em 1334, ao mestre Telo Garcia, de Lisboa, ¢ 20 mestre Pero, de Coimbra. Enquanto as figuras da arca denotam claramente a influéncia do trabalho de mestre Pero, o jacente liberta- -se da rigidez até af vigente para ganhar um tratamento de retrato naturalista que coloca este trabalho num lugar de destaque na evolucao desta érea escultGrica. Atribuivel ao mestre lisboeta, chama a atencdo para 0 nicleo de escul- tuca funeréria da capital (tdimulos da $6 de Lisboa), do reinado de D. Afonso LV, com esculturas de grande qualidade e com uma expresso comum na decora- Gio heréldica das respectivas arcas. Além destes dois nécleos ~ Coimbra e Lisboa - ter-se-é de considerar ainda um terceiro centro de produgio, localiza- do em Evora e usando como material de elei¢éo o marmore branco de Estremoz. ‘A obra mais notével € 0 timulo do bispo D. Pedro, ja aqui varias vezes referenciado. As obras-primas do século XIV (e de toda a arte gética, alids), que culminam, de forma magnifica, a evolugao notével da escultura funeréria, séo os téimulos de D. Inés de Castro e de D. Pedro, em Alcobaca. Executados entre 1354.¢ 1361, conseguiu o de D. Inés arrancar uma rarfssima apreciaglo estética a Fernfio Lopes: «cum monumento de alva pedra, todo mui sotilmente obrado, pondo enlevada sobre a campa de cima a imagem dela com coroa na cabeca, como se fora rainha». (0s jacentes, de grande dignidade, apresentam roupagem tratada com uma liberdade e delicadeza superior a qualquer dos outros tiimulos da mesma época; no entanto, 6a incrivel riqueza decorativa das arcas € 0 movimento prenhe de vida das cenas representadas (passos da Paixdo de Cristo, na de D. Inés, cenas da vida de _ one eee eee aasmsacnsaamnNes seems emer S. Bartolomen, na do rei), agora mais soltas, que confere a estas obras um carcter de magica poesia. Sublinhe-se, ainda, na arca régia, 0 aparecimento de um tema rarissimo na escultura portuguesa: a Roda da Fortuna/Roda da Vida, «preciosa fonte monumental para a hist6ria e cultura do seu tempo e, no seu género, uma realizagdo sem par em toda a Europa’ Ao longo do século XV a escultura funerdria, aprofundando sempre mais a sua vvertente naturalista no retrato dos tumulados € nas vestes que os cobrem, apresenta ainda algumas novidades. Na Batalha, D. Jodo I e D. Filipa de Lencastre fazem-se no s6 encerrar em caix6es separados (embora numa tinica e grande arca de calcério) como também representar-se em conjunto, sobre a arca, em gesto terno de maos enlagadas, situagdo inovadora em relagio aos procedimentos anteriormente adoptados. Por outro lado, ¢ para além da riqueza decorativa (obtida sobretudo através da representago de uma folhagem viva a enquadrar os brasoes heral os motes ou a descrigio das virtudes e faganhas de cada personagem), assiste-se a0 progressivo enquadramento arquitect6nico do monumento fiinebre, Sdo compo- sigdes de grande aparato ¢ riqueza cenogréfica, demonstrativas de uma sociedade apreciadora do espectaculo que, de forma excitante, colore os momentos finais da dade Média. Particularmente exemplificativos desta iltima vertente soos pantedes familiares, que, a exemplo de D. Joao I, as familias mais importantes agora criam, destacando-se os de Abrantes, de S. Marcos (Coimbra) ¢ de Santarém. 208 35 Apintura 3.5.1 A pintura mural ‘A pintura mural desempenhou um papel de grande relevo ao lo g6tica, Apesar das muitas destruigOes ou apagamentos de que fojAfvo, pela colo- cago sucessiva de pinturas posteriores ou intervengdes de geffro tipo, logrou-se recuperar um conjunto aprecidvel, permitindo entender gAfnportincia de que se revestiv. As igrejas romanicas, pela maior disponibijiade da superficie mural dos seus interiores, foram as que mais facilment no entanto, os textos das Visitagées realizadasfo inicio do século XVI mostram com clareza a existéncia de pintura mural dé norte a sul do Pais. A maior predo- mindincia situa-se em zonas rurais a6 interior, 0 que, conjugado com o nivel modesto da grande maioria dessa piffura, permite confirmar tratar-se de uma op- do sobretudo econémica, vistyfossibilitar a ornamentagao de largas areas com reduzida despese*. Um dos exemplos majyfot6rios desta pratica artistica esté representado na igroja com a representagio do Martirio de S, Sebastido e de uma nt. Nesta Gitima, atribuida por Adriano de Gusmao ao séeulo XIV, Cristo de pé, com a mao direita abengoando e a esquerda segurando bolo do poder universal de Cristo. A pobreza Carlos Alberto F. Almeida, A Roda da Fortuna/Roda 6 ‘Vida do Tilo de D. Ped emAleobsc, in Separate da Revista da Faculdade de Le tras, vol. Villy Porta, 1991, pp. 255-268, Figura 120. * Pedeo Dies, «0 Gotta», in Histiria dadrte em Portugal, vol. 4, Lishos, Publieages Alfa, 1986, p16. 161

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