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CONFLITOS AMBIENTAIS NO BRASIL natureza para todos ou somente para alguns? Lidia 4ae2 © Ibase - Instituto Brasileiro de Anélises Sociais e Econémicas Rua Visconde de Ouro Preto, 5 + 72 andar 22250-180 + Botafogo * Rio de Janeiro - RU © Fundacéo Heinrich Boll Briickenstrae 5-11 D-50667 + Kéln + Alemanha ‘Superviséo geral: Gabriela Scotto (Coordenadora do Projeto Meio Ambiente e Democracia) Redacéo: Angela Ramalho Vianna ‘\yapad-apn-ttin—Assessoria Gréfia ¢ Artes em Pape (021) 285-5265, Projeto gréfico: Lourdes Greybowele Ealtoragéo eletrénica: Marcello Borges Hustragées: Wally ars Capa: Palsagem de La Clotat, Braque ‘CIP-Brasil. Catalogacio-ns-fonte Siadicato Naclonal dos Bdltores de Livros, RJ. e759 Confitos embientats no Brasil: natureza para todos ou somente para alguns? /superviséo geral, Gabriela Scotto: redagéo, Angela Ramalho Vienna, — Fuo de Janeiro: IBASE, 97-0491 cpp 203.6 Du 301.17 ical aca CONFLITOS AMBIENTAIS NO BRASIL natureza para todos ou somente para alguns? Projeto Meio Ambiente ¢ Democracia Apoio Fundagdo Heinrich Boll Rio de Janeiro 1997 apresentacado Neste livro queremos mostrar a estreita relac4o que existe entre os problemas ambientais ¢ 0 cotidiano de todos nés. O fato de pensarmos na natureza como sendo a morada da espécie hu- mana nos ajuda a entender o meio ambiente como um espago comum, habitado por diferentes individuos, diferentes grupos sociais ¢ diferentes culturas. Como todos nés compartilhamos 0 ar e as Aguas, esses elementos da natureza sao coletivos e per- tencem a todos. Desse modo, as agressdes ao melo ambiente afetam as pessoas que dele dependem para viver e trabalhar. B por esse motivo que todos os seres humanos devem gozar de igualdade no uso dos recursos naturais; deve haver, também, uma distribuigao Justa dos custos em termos de meio ambiente, causados pelo desenvolvimento econémico. Assim, para pensar solugées para os problemas e os conflitos ambientais é importante discutir o proprio modo como nossa sociedade se organiza; para que a “crise” do meio ambiente seja superada, é preciso que haja a restauracao ¢ consolidacao dos direitos a um meio ambiente saudavel e equilibrado. Dentro do campo das lutas sociais, encontramos confli- tos entre pessoas ¢ grupos com interesses divergentes que dispu- tam pelo acesso aos recursos naturais e pela gestao do meio ambiente. Nos encontramos com numerosos atores que lutam por introduzir regras democraticas nas relacées entre os seres humanos e a natureza. Porém é importante que cada vez mais pessoas, mais entidades, mais movimentos sociais, particlpem no controle demoerético das relagdes dos seres humanos com a natureza. Participar, se envolver, se sentir responsavel pela defesa dos direitos ao meio ambiente, é contribuir para a cons- trucdo da cidadania em nosso pais. Neste Jogo devemos estar todos envolvidos. Este livro foi pensado e produzido no contexto da pesqui- sa Mapeamento de Conflitos Ambientals no Brasil, como parte das atividades do Projeto Meio Ambiente e Democracia do IBASE. Queremos agradecer 0 apoio da Fundagdo Heinrich Ball ao longo de todos estes anos. Cabe, também, um destaque especial para Henri Acselrad e para Isabel Carvalho. Eles foram os mentores do Projeto Meio Ambiente e Democracia, ¢ sem sua valiosa dedi- cacao, este livro nao seria possivel. Gabricla Scotto Coordenadora do Projeto Meio Ambiente e Democracia Rio de Janeiro, abril de 1997 sumario . meio ambiente .aterro sanitério de Itatinga (SP) - © caso Vera Cruz (BA) . use as leis recursos naturais, bem de todos seres humanos e meio ambiente quem degrada o meio ambiente .. uso privado versus uso coletivo .. conflitos sécio-ambientais conflitos ambientais na imprensa © caso da Reserva Indigena de Iraf (RS © caso dos atingidos por barragens (RS/SC). anexo . bibliografia consultada . 1. meio ambiente magine uma paisagem natural sem a presenga dos seres humanos. Vocé acha que seria um parafso perfeito, com bichos e plantas vivendo em com- pleto equilibrio? Quando pensamos assim esquecemos que h& transformagées que ocorrem independentemente da aco humana e que podem determinar a extin- gAo total de espécies vegetais e animais, como aconteceu com os dinossauros. Esquecemos tam- bém que aquela paisagem paradisiaca é impossivel fora da fiegao clentifica. A humanidade habita a Terra hé milhares de anos, € sua sobrevivéncla se faz em interacéo com tudo que a rodeia. Em outras palavras, as pessoas fazem parte do meio ambiente, sofrendo também as transformagées ambientais. Habituamo-nos a pensar que existe, de um lado, a natureza, vivendo em completa harmonia, e, de outro, os seres humanos, agressores impiedo- sos dos recursos naturais, os dois lados vivendo uma guerra surda e cotidiana que s6 terminaria com a exclusao do adversario. pets 9 Confiites ambientais no Brasil Mas ndo € bem assim. Desde os primérdios das sociedades humanas, os grupos socials organi- zaram-se e estruturaram-se para sobreviver, tendo como base suas relagées com a natureza. Um exemplo? Os povos coletores eram também néma- des, porque Se deslocavam segundo suas necessi- dades de alimentagao e segundo as caracteristicas naturais das coisas que comiam. Assim, se os ali- mentos tornavam-se escassos aqui, em determina- das épocas do ano, os grupos deslocavam-se para acolé, 86 voltando ao lugar inicial — quando volta- vam — no ano seguinte, quando o ciclo animal e ve- getal restaurava a fartura. Os povos agricolas teriam sido também os pri- meiros a fixar-se em déterminados pontos geografi- cos, pois conheciam as técnicas de plantio, ndo es- tando portanto sujeitos aos ciclos e acidentes natu- rais. Essas técnicas criavam condigées de suficién- cla para o grupo, ao reproduzir, facilitar ou propiciar as condigdes naturals de desenvolvimento dos vege- tais para consumo. Esse € 0 caso tipico de irrigacéo de reas agricolas durante os perfodos de seca. Vamos supor que havia alguns membros do grupo que pescassem e outros que plantassem. Is- so quer dizer que as divisdes internas dos grupos sociais também podem ter sido definidas de acordo com as relagdes que mantinham com a natureza, Mas as soctedades, ao longo do tempo, pas- saram a se organizar de formas diferentes. Essas formas também significam modos diferenciados de se relacionar com a natureza. © meio ambiente, portanto, é a base natural sobre a qual se estruturam as sociedades humanas para sobreviver. O ar, a agua, 0 solo, a flora e a fauna sao a sustentacao fisica, quimica e biolégica de todas as civilizagdes humanas. 10 2. recursos naturais, bem de todos | biosfera é formada pelas camadas da Terra e do ar atmosférico em que € | possivel haver vida vegetal e animal. O equilibrio das condigées dentro desse espaco é necessdrio para a exis- téncia biolégica em nosso planeta, em toda a sua diversidade. Os recursos da natureza, dos quais depende direta ou indiretamente a vida das populagées, sao bens coletivos, isto é, pelo menos em tese nao po- dem ser apropriados por um individuo ou um gru- po de pessoas. O bem coletivo é algo que todo mundo ~ mas todo mundo mesmo - pode usar. Assim, como nin- guém pode viver sem esse bem, ele também nado deve ser destruido. ieee Qualquer bem coletivo éGndivisivel. Isso sig- nifica que seu uso n4o pode ser limitado, que seu consumo por parte de alguns nao pode reduzir ou impedir que os outros usem esse mesmo bem. Ele tem que ser dispontvel para todos. Quando as madeireiras cortam os castanhais que naturalmente cresceram na Floresta Amazénica para vender madeira-de-lei, elas estéo destruindo as condigées de sobrevivéncia de varios seres vivos Confites ambientais no Brasil da fauna e da flora local. Mas elas esto limitando também as condigées de sobrevivéncia das pessoas que tiram seu sustento da coleta de castanhas. Nao pode haverrivalidadé no consumo de um’ bem coletivo. Ou seja, Seaumentar o némero de pessoas no mundo, isso néo quer dizer que vai haver menos ar, por exemplo. Outra caracterfstica do bem coletivo € que ninguém pode ser impedido de ter acesso a ele. Quando um fazendeiro nordestino proibe que as populagées vizinhas A sua terra passem pela pro- priedade para chegar até um rio, ele esta impedin- do que essas populacées tenham acesso a um re- curso natural que é um bem coletivo, a agua. E verdade que o acesso aos bens coletivos pode estar sujeito A cobranga de taxas, como é 0 caso da Agua nas cidades. Mas a taxa paga pelo uso-da agua destina-se & manutengdo e ampliacao dos servicos de captacao, tratamento e fornecimen- to de Agua para todos que precisam usufruir des- ses servicos. Todo bem coletivo, portanto, é por principio indivisivel, nao exclusivo e nao sujeito & rivalidade. Mas nao € bem isso que acontece, porque embora ar, Agua e todos os recursos naturais sejam de con- sumo coletivo, os usos que sao feitos desses ele- mentos dependem das relacdes entre as pessoas | | dentro de uma determinada sociedade. A terra talvez tenha sido um dos primeiros recursos naturais cujo acesso foi limitado. Depois que passou a ser objeto de uso privado, ou seja, depois que a terra passou a ser objeto de apropria- do individual, seu uso tornou-se exclusivo do pro- prietario, Mas outros recursos, embora ndo sejam privadamente apropriados, podem ter seu consumo regulado por interesses que muitas vezes vao con- tra a idéla de bem coletivo. 12 3. seres humanos e meio ambiente ala-se muito, hoje em dia, de proble- @ mas ambientais. Os mais conhecidos por nés sao a derrubada das matas € florestas, que vem afetando ecossiste- mas inteiros, 0 buraco na camada de ‘ozbnio, 0 efeito estufa, a extingdio de espécies ani- mais e vegetais no mundo todo. Ecossistema é o sistema resultante da inte- gragdo de todos os fatores vivos € nao vivos do am- » biente. Assim, um tronco apodrecido de arvore ¢ os seres vivos que nele habitam ¢ a Amazénia sdo, ambos, ecossistemas. Nao costumamos ver como problema ambi- ental as opgdes de moradia oferecidas a certos gru- pos sociais ¢ que envolvem riscos de_desabamen~ tos, ou, senao, ameaca para a satide. Também nao qualificamos como ambiental o alagamento de dades inteiras para a construgéo de hidrelétricas, que alteram o modo de vida das pessoas afetadas pela transferéncia ou expulsao do local onde mora- vam e trabalhavam. Mas, na realidade, quando se afeta um ecossistema do qual as pessoas fazem parte, usando-o como simples habitantes ou como fonte para suprir suas necessidades, esse ser vivo chamado homem também teré sua sobrevivéncia afetada ou ameagada. Os seres humanos, portanto, devem estar in- cluidos no meio ambiente e nas estratégias de pre- servagao ambiental. & preciso relacionar a ecologia com as questées sociais, com o modo de vida das Pessoas, ¢ ndo somente com a flora e a fauna que, de resto, também sao atingidas pela dinamica pro. pria das atividades econdmicas. Quando uma comunidade que se dedica a agricultura planta determinadas espécies de que precisa para viver, ela também o faz alterando os Titmos e as condicées da natureza, porque o sim- ples ato de plantar jé € uma alteracéo das condi- es naturais. Isso pode significar que algumas es- pécles proprias de certas estacdes se reproduzirao independentemente do tempo, da umidade, da temperatura. Sé que essas comunidades podem desenvolver préticas, como corte seletivo, repouso € replantio, que mantém permanentemente em produgao uma determinada area, mas que também asseguram a integridade daquele ecossistema. 6 0 | que se chama de manejo. Jé quando os grandes agricultores usam agrotéxicos em suas plantagées, eles controlam ar- tificlalmente as pragas, para gerantir uma produ- $40 que se destina ao mercado. O uso de agrotéxi- Cos causa danos & satide de quem planta, de quem consome os produtos plantados e ainda pode con- taminar os lengéis subterrdneos de agua que ali- mentam cidades vizinhas ete. Nesse segundo caso, a diferenga esta no fato de que a producao destina-se & venda em grande escala dos produtos plantados. Isso quer dizer que houve um grande Investimento por parte dos pro- 3. seres humanos e meio ambiente prietérios daquela empresa agricola em sementes, adubos, salérios, maquinas etc. Esse investimento sera pago com a venda da produgao. O grande produtor nao quer correr risco de perdas. Por isso opta pelos agrotéxicos, embora eles provoquem tantos danos ao meio ambiente ¢ & satide dos tra- balhadores ¢ daqueles que consomem os produtos. Mas as pessoas precisam comer. E quem nao tem condigées de plantar, compra. Do outro lado, Portanto, estéio aqueles que vao pagar, sem saber, Por um produto que contém agrotéxico. O que acontece, entéo, é que a deciséo de um agricultor de_usar agrotéxicos na sua produgéo afeta muito “mais gente do que se poderia supor. Ou seja, o uso ‘de um produto téxico nao prejudica apenas aque- las pessoas localmente afetadas por esse uso, mas espalha-se socialmente num Ambito que nem con- seguimos controlar. | uando se constroem hidrelétricas, quando se criam depésitos de 1ixo, quando se abrem estradas, nem sem- pre as empresas piiblicas responsa- # vels pelos projetos agem em defesa do bem comum ou preservando os recursos naturais coletivos. Em 1992, os trés mil pescadores da Bafa de Todos os Santos tiveram suas atividades suspen- sas nos 3 km de manguezais que foram atingidos pelo derramamento de 48 mil litros de dleo langa- dos por uma usina de asfalto da Petrobras. Quando foi construida a hidrelétrica de Tu- ‘as populagées das ilhas do Baixo Tocantins assistiram ao desaparecimento das espécies de pei- xes das quais dependiam para sobreviver. Esses so casos tipicos em que a atuacao di- reta das empresas estatais sobre 0 meio ambiente feriu o dircito que a coletividade tem de usufruir dos recursos naturais. - Em outros casos, o Poder Puiblico atua prote- _gendo os interesses de determinados grupos em detrimento dos interesses de outros. Por exemplo, quando se desenvolvem os projetos de grandes bar- 7 Confiitos ambientais no Brasil Tagens para a construgdo das hidrelétricas, 0 Estax do esta favorecendo os interesses das indiistrias consumidoras de energia e desfavorecendo todos os grupos de pessoas afetadas pelas barragens, como os habitantes das cidades inundadas, os proprieta. tlos, 0s Posseiros, os pescadores etc. das areas ala. gadas ou nas quais se instalam os canteiros de obras. Como os interesses econémicos das ativida- des favorecidas pela atuacéo do Estado prevalecem Sobre os interesses das populagées locais, outra forma que 0 Poder Pablico tem de atendé-los é néo_ interferindo em suas atividades, omitindo-se, ou seja, furtando-se de fazer valer as Teis. No estado do Para, por exemplo, as ativida- des de corte da floresta, muitas vezes clandestina, Taramente é reprimida. E, no entanto, além de afe. tar as condigées fisicas ¢ quimicas de reproducao da fauna e da flora, a ag4o das madeireiras deixa sem muitas opgdes econémicas diversos grupos que sobrevivem na floresta, como os seringuelros, Desse modo, os interesses econémicos parti- culares podem estar diretamente ou indiretamente Tepresentados. Uma empresa que lanca num rio os dejetos que ela ndo consegue vender é diretamente Fesponsdvel pelo dano ambiental. Mas uma empre. ‘sa pitblica, como as de coleta de lixo nas grandes cidades, embora preste um servico coletivo lo de coleta), pode também estar prestando um desservi. $0 para as comunidades onde ela despeja o lixo. Is- So Parece paradoxal, mas as empresas ptiblicas, | que, pelo menos em tese, deveriam zelar pelos bens coletivos, também podem estar favorecendo os in- | teresses privados ou de apenas alguns setores da Populacao. 4. quem degrada o meio ambiente E freqiiente que, nesses casos, 08 conflitos fi- quem ainda mais( complexes; porque as grandes empresas pitblicas ou privadas alegam que os Pro: Jetos irao trazer desenvolvimento para as regie afetadas, criando inclusive novos empregos para os habitantes locais. Isso passa a dividir a populacdo entre quem ird de imediato se beneficiar com a im- plantacéo ¢ quem sair prejudicado. No caso das grandes hidrelétricas, por exemplo, nao se trata, no entanto, de impedir a ampliagao do fornecimento de energia elétrica para as grandes cidades e para a indiistria, mas de equacionar todos os problemas criados pelas Pa ragens e propor solucées que satisfagam a todos os atingidos. Isso tudo mostra como a degradacao do meio ambiente é 0 resultado de um tipo de modelo econémico no qual as politicas ambientals estao subordinadas a determinados interesses que na maior parte das vezes contrariam os interesses das populagées cfetivamente atingidas pelo pro- blema ambiental. 5. uso privado versus uso coletivo odos os problemas ambientais sao for- | mas de conflito entre interesses priva- dos ¢ interesses coletivos. Se 0 ar, a gua, o solo, a vegetagdo e a fauna so pessoas, por vezes um tinico individuo ou empresa tem o poder de modificar as condicées de uso des- | ses bens. A crise ambiental que vivemos é resultante da invaso do espago coletivo pelos interesses pri- vados. As lutas contra as agressées ao meio ambi- ente sao lutas pela garantia do carter coletivo do meio ambiente. Essas agressdes expressam a impo- -40 dos interesses de poucos sobre o mundo, que € de todos. Embora, na lei, todos tenham direito de acesso aos recursos naturals, na prdtica, esse acesso é diferenciado. © ar, por exemplo, € 0 simbolo maximo de recurso natural indivisivel (ndo se pode medir oa regular o ar que cada pessoa respira), ndo-exclusi- vo (ninguém pode proibir o outro de respirar) e no sujelto a rivalidades (por mais pessoas que haja no mundo, ninguém vai deixar de respirar). Mas no ar que respiramos podemos ser obrigados 2 ‘Snflitos ambientais no Brasil & consumir ~ mesmo sem querer — produtos téxi- Cos resultantes do uso que certas pessoas ou em- Presas fazem do meio ambiente comum. Existem dois tipos de uso privado do meio ambiente: no primeiro, os recursos sdo » transform: dos em mercadorias e comercializados em beneficio de individuos ou empresas particulares. Esse é 0 caso da extrac&o de mogno pelas madeireiras, da extragdo de areia dos rios para a comercializacao, a Venda de espécies animais, por exemplo. Ontsg Upo € indireto, quando, por exemplo, uma indtis- tra libera residuos téxicos no ar, afetando um es- Pago que é comum. Nesse caso, como podemos falar de igualda- de de condigdes de uso? O que existe é uma rela- $40 de troca forgada, pela qual um certo niimero de empresas ~ privadas ou estatais — obriga os indivi- duos a consumirem as substancias toxioas que despejam no ar, porque nao tém utilidade econémi- && OU seja, porque nao podem ser transformadis em lucro. Os moradores de Vila Socé viviam entre os oleodutos de Cubatao, em Sao Paulo, Porque nao Unham outro lugar para morar. Em 1984, peorren Vac dente em Cubatao que produziu devenas de vitimas entre os moradores de Vila Socs. Explosées © Incéndios nas tubulacées do oleoduto despejaram de suas casas centenas de pessoas pobres que nao tnham outro local para morar. Esse acidente evidenciou que Cubatao é uma hermanente zona de risco para a satide, por conta da emissao de poluigao no ar em niveis suporta- vels. & continuamente despejada no ar ume quan- Udade de gases téxicos muito acima do tolerisiel. A Populagao de Vila Socé nunea fol consultada a res. 2 5. uso privade versus uso coletive peito da qualidade do ar que respira. Podemos nos Perguntar ento por que havia gente moreno na- quele lugar. As pessoas moram em areas de risco exatamente porque af as moradias s4o mais bara- tas. Além disso, quem comprou, ocupou ou alugou uma moradia precéria nos arredores de Cubatao néo tinha a menor idéia das condigdes do ar no lo- cal. Muito menos sabia que havia perigo de explo- sao ou incéndio. Os interesses, no caso de Vila Socé, colocam, de um lado, a usina, que lanca no ar gases que dei- xaram de ter valor econémico depois de usados no processo de reflnamento do petréleo; e, de outro, os trabalhadores ¢ moradores vizinhos da empresa, que sofrem com as doengas respiratérias, como a bronquite asmética, e vivem em condigées Pace rias deficientes. Se nao tivesse havido o acidente nos oleodutos, tudo ficaria como antes, ott seja, 0 conilito nao iria aparecer, nem a conseqiiente bus- ca de solugées. As indtistrias que langam seus residuos nos Hos também afetam a vida das populacées das ci- dades cujo abastecimento de agua é feito através desse rio ¢ das comunidades que vivem da pesca. Alguns grupos sociais dependem da existén- cia equilibrada de espacos de dimensées variadas e um conjunto de elementos fisicos ¢ quimicos, assim como de animais e vegetais. No caso de grupos que vivem do extrativismo vegetal, como os seringueiros € apanhadores de castanha, por exemplo, podem surgir conflitos de interesse quando ha especulagao com a terra. Seringais ¢ castanhais séo derrubados € queimados para que os grandes proprietarios e especuladores possam obter bons precos pela terra “nua’, para fazer pastagens, por exemplo. No caso 23 Confit: ambientais no Brasil de comunidades pescadoras, o langamento de deje- tos nos rios provoca a morte dos peixes, colocando Para a populacéo a impossibilidade de sobreviver de suas atividades tradicionals, Os efeitos dos problemas ambientai: portanto, atingir das maneiras mais dees versos conjuntos de pessoas: os trabalhadores en. SAlados diretamente no processo de transformagao Ou de fabricacéo de determinado produto que gera Poluicéo; os moradores das imediagées, afetedlos pelo langamento de dejetos, pelas emissdes gaso- sas, Ifquidas ou sélidas; as comunidades vizinhas consumidoras de recursos naturais afetados pela mudanga ambiental, seja em suas atividades coo. nomicas, seja em sua satide; outras pessoas que moram distante daquele lugar em que existe proble. ma ambiental, mas que consomem produtos conta minados, como o peixe, os produtos agricolas etc. ____Uma agressao ao meio ambiente produz, as- sim, uma reaeao em cadeia, chegando a ponto de Poder afetar a vida em todo 0 planeta, como é 0 caso dos aerosséis, cujos gases afetam a camada de ozénio que protege a Terr a ra da s ultravioleta. fe eeeee 24 6. conflitos sécio-ambientais | s conflitos entre interesses privados e 4) interesses coletivos ou pitblicos relaci- ) ‘onados aos problemas ambientais s40_ 4 conflitos sociais porque envolvem a 4 natureza e a sociedade, mas aconte- cem a partir de um tipo determinado de organiza- (ga da sociedade. No exemplo dos agrotéxicos, o conflito se da entre os interesses do empresério em obter o maior ganho possivel com a sua produgo € os interesses das pessoas que trabalham na em- presa - € cuja satide se encontra ameagada pela manipulacdo dos agrotéxicos -, das que que vivem nas imediagées e das que, vivendo nas cidades, compram o que foi produzido para comer. No caso de Cubatdo, esto em jogo os interesses da indiis- tria de transformacao do petréleo contra os interes- ses da populacdo pobre que mora nas imediagées € os dos préprios trabalhadores da refinaria. O conflito surge mais claramente quando a comunidade de trabalhadores ¢/ou moradores per- cebe que a empresa, a fabrica ete. esta ganhando, enquanto a qualidade de suas vidas esta se deteri- orando. Mas essa percep¢ao pode nao ser direta (0 caso do comprador de legumes e verduras nas ci- 25 Contlites ambientais no Bras dades) nem imediata (0 caso dos moradores de Vila. Sood). Existem conflitos de interesses que nao so evidentes, ou explicitos. Nesse caso, as comunida. Ges sao agredidas por um processo de degradacao ambiental do qual elas nao tomam consciéncia, ou do qual tém consciéncia, mas nao conseguem rela- clonar de manera direta com as praticas de certos agentes socials. Isso porque algumas alteragées do meio ambiente nao aparecem imediatamente, ou no sao percebidas A primeira vista, Na Grande Sao Paulo, 83 mil toneladas de Xo perigoso sao depositadas irregularmente, por ano, nos solos ou nas 4guas. A populacao que con- some essas aguas ou que vive préximo aos depés tos sofre as conseqiiéncias sem saber. As vezes, ela 86 passa a saber quando aparecem os primeiros sintomas de contaminagéo, sem que as verdadeiras causas sejam identificadas. Para que as coisas nao cheguem a esse ponto, € preciso que os érgaos pli- blicos de fiscalizaedo sejam eficientes, ou que a Propria populacdo atingida exerca vigilancia direta ¢ reclame. Durante 45 anos, uma empresa do ramo qui- mico, no Rio de Janeiro, usou merctirio em seu Processo produtivo, depositando os residuos no subsolo da fabrica. Até que aparecessem varias ve- Zes os mesmos sintomas de doenca na populacéo que habitava os arredores da fabrica, ninguém per- cebeu que havia riscos para a satide naquele local. A derrubada das matas nas bacias de rios, tlachos ¢ cérregos ¢ a implantacao de grandes pro. Jetos de irrigacdo estao esgotando as nascentes © diminuindo © nivel de gua dos rios do norte de Mi. nas Gerais. A morte dos rios esté obrigando as po- 26 6. contflitos sécio-ambientair pulagées ribeirinhas a alterar suas atividades eco- némicas, quando nao a se mudarem. Calcula-se que sejam despejados por dia, no Ho Paraiba do Sul, 47 mil toneladas de esgoto e de residuos Iiquidos das indiistrias. Cerca de 20 mi- Ihées de pessoas consomem a Agua que vem desse rio. A maioria delas desconhece as condicées da Agua que bebe. A derrubada de arvores de floresta provocou, nos tiltimos 25 anos, uma queda no volume anual das chuvas no Para, aumentando o intervalo entre as chuvas. Os agricultores daquele estado, que plantavam espécies de ciclo curto, foram obrigadas a mudar suas rotinas de cultivo, j4 que nao dis- poem de Agua de chuva em volume.suficiente. Mas esses agricultores nao sabem por que isso esta acontecendo. Nesses exemplos todos, comunidades urba. nas ¢ rurais foram vitimas de mudangas no meio ambiente que alteraramn suas condigdes de vida e de trabalho. Mas em geral essas mudangas nao s20 Identificadas como problemas ambientais. AS pes- soas por vezes nao percebem as ligagdes entre a degradagéo ambiental os efeitos que ela tem so- bre suas atividades ou sua satide. ago de certas empresas. Os pescadores da baia de Sepe » Rio de Janeiro, atribuiram a mortandade dos peixes aos despejos de minerais como silica, ferro, zinco, céa~ mio € sulfato de cdlelo por uma induistria local e edidas que protegessem seu direito de a. no Rio de 7 Contlites ambientals no Brasil Nesse caso, os responsveis procuraram mostrar que a contaminaco era ocasional, que fo- ra resultado de um acidente. Mas, como no caso de Vila Socé, um acidente ambiental sempre.é uma demonstragéo dé que ha um, risco permanen: “fe. Em Igarassu, Pernambuco, a m4 vedacdo de um veiculo de carga intoxicou 108 pessoas. A em- presa responsdvel alegou um acidente. Na verda- de, ela J4 havia sido multada por langar residuos téxicos nos rios e por enterrar lixo quimico de ma- neira inadequada. Poderfamos entao chamar os conflitos que tém elementos da natureza como objeto ¢ que ex- pressam relagées de tensdo entre interesses coleti- vos ¢ interesses privadas de conflitos sécio-ambien- tais. Em geral, eles se dao pelo(usd ou apropriagao, de espagos e recursos coletivos por agentés econi6- micos particulares, pondo em jogo interesses que disputam 0 controle dos recursos naturals € © uso do meio ambiente comum, sejam esses conflitos implicitos ou explicitos. 2% 7. conflitos ambientais na imprensa m 1995, o Instituto Brasileiro de Ana lises Socials e Econémicas (Ibase} rea- lizou uma pesquisa sobre as lutas am- bientais no Brasil. Para isso, foi feito 0 levantamento dos conflitos sdéclo-am- bientais noticiados pela imprensa no ano de 1993. Registraram-se 247 casos de conflito em torno de diferentes recursos naturais. ES nae a WDererssanwso (Ell worosao BB seca oe Wace Percentual de conflitos sécio-ambientais segundo © fipo de recurso natural envolvido 29 Conflitos ambientais no Brasil Pode-se observar, com esse grafico, que 37% dos conflitos se dao em torno da apropriacéo priva- da de espécies animais, vegetais ¢ minerais para a comercializacéo por parte de agentes privados, co- mo a industrializaco do pescado, que inviabiliza a atividade dos pescadores artesanais, a extrac&o do mogno para venda ¢ a extragao de minérios. Os ou- tros 67% referem-se @ conflitos em torno da polui- co da Agua, do ar e da degradago do solo, ou se- ja, da utilizacdo de bens de uso comum, para servir indiretamente a um interesse privado. EB) contra prado 50% EBB GARimpEIRO 6% ESTADO 27% TRABALHADOR FURAL 4% OUTROS 3% ERI pescapor 2% B21 cacapor 2% Ey 95: 3: Es 5: $5) $$: > $9) so} 3 33} $9] 55 yy 1o $3] S33 1,3] eS: eS ee 50% ate o% on 4% 2% 2h Agentes responsabilizados pelas agressées 30 7. confiitos ambientais na imprensa ‘A pesquisa levantou a mencéo a 273 agres- sores ao meio ambiente. Dentre eles, 50% corres- pondiam ao capital privado e 27% ao Estado. Sestap0 BEA capiat PETROLEOICARGAS TOXICAS Pada cS fed MINERAGAO crwenres nousrnins couvicko o anvconoea 5cor0 saNirano roour0s roHcos bEoMaraMenro caracko 9¢ ane svomcko werear Formas de agresso levadas a cabo pelo capital privado e pelo Estado © capital privado esta mais freqiientemente associado com as dentincias de desmatamento, extragao de areia, mine- ragdo, despejo de efluentes e poluicdo (do ar, sonora ¢ hospi- talar). O Estado 6 mencionado como agressor por obras pu- blicas (construgées irregulares ou prejudiciais ao meio ambi- ente), tratamento Inadequado ou auséncia de rede de esgo- tos, construgao de barragens para hidrelétricas ¢ radiagao nuclear. 31 Confltos ambientals no Brasil A pesquisa levou em conta apenas os casos em que os conflitos sécio-ambientais transforma- ram-se em algum tipo de luta, ou seja, os casos em que houve dentincia que justificasse uma noticia ou nota na imprensa, tornando o caso “visivel” pa- ra a opinido piiblica, que passa a funcionar como instrumento de presséo. Mas nem sempre isso acontece, porque as lutas ambientais, na maior parte das vezes, restringem-se ao ambito local. As lutas ambientals se processam quando os grupos atingidos por uma agressao ambiental loca- lizam 0 problema, dele fazem um diagnéstico e identificam interesses comuns pelos quais lutar. Nem sempre a identificacdo desses Interesses an- terior ao processo de luta. Muitas vezes € no pré- prio processo de confronto e de antagonismo que 9s grupos envolvidos identificam interesses co- muns capazes de orientar acées coletivas. © surgimento dos conflitos responde a pro- cessos que nao sao fixos, predeterminados ou que ndo seguem uma tinica direcao. Bles devem ser analisados ¢ entendidos caso a caso, de acordo com a regio, as atividades econdmicas nela desen- volvidas etc. Também nao € necessério haver uma “consciéncla” prévia ou grupos com algum nivel de organizagao precedendo 0 conflito. As vezes essa “consciéncia” ~ que comeca sendo uma percepcao difusa do problema — forma-se ao longo da luta € como parte dela. Outras vezes, o conflito acaba por colocar em relacéo grupos que nao tém necessaria- mente 0 mesmo tipo de interesse, como é 0 caso dos trabalhadores de uma fabrica de transforma- g80 de couro, no Ceara, que se envolveram numa luta iniclada por uma associagéo de moradores 32 7. conflitos ambientais na imprensa contra os despejos de cargas téxicas dessa indtis- tria, inclusive de metais pesados, na gua. Os ope- rérios, embora moradores dos mesmos bairros que utilizavam a 4gua polufda, aliaram-se aos patrées, porque temiam perder os empregos. Iremos examinar a seguir alguns conflitos s6cio-ambientais que se desenvolveram de modos bem diferenciados. 33

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