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© Ismail Xavier Fotos: Acervo Cinemateca Brasileira CIP-Brasil. Catalogagao-na-fonte (Sindicato Nacional dos Edirores de Livros, RJ) Xavier, Ismail, 1947- xsd © discurso cinematogrifico: a opacidade e a transparéncia, 3 edicéo ~ Sao Paulo, Paz e Terra, 2005. ISBN 85-219-0676-5, Inclui bibliografia 1. Cinema — Estética, 2. Cinema — Filosofia I. Titulo IL. Série 03-1822 CDD-791.4301 CDU-791.43.01 EDITORA PAZ E TERRA S/A Rua do Triunfo, 177 Santa Efiggnia, Sé0 Paulo, SP — CEP: 01212-010 Tel: (011) 3337-8399 Esmail: vendas@pazeterra.com.br HomePage: www.pazeterra.com.br 2005 Impresso no Brasil | Pinted in Brazil A. O ANTI-REALISMO E O CINE} SOMBRAS Desde 0 Manifesto das Sete Artes, es- tito por Ricciotto Canudo ¢ publicado em Paris, em 1911, € possfvel encontrar a exal- tagio das ricas possibilidades da nova arte, eny mo algo essencialmente ligado ok alor Daeg? da imagemNo exame das concepsoes que Sustentam tal valor poético é possivel encontrar um caminho para en- ender a relagio entre cinema e realidade na visto de Canudo e de outras figuras da van- guarda dos anos 1920. © trago comum aos diferentes “ismos” daquele periodo ¢ sua oposigao a uma tradi- 4a clissea,reumnidi-ne prepoatio dear are | eee a gomo“imitacao”, € aquilo que era entendi- do como uma nova versio mais moderna — 0 realismo artistico tal como ctistalizado na literatura ¢ na representacao pictérica (ante- tior a0 impressionismo) do século x1x. Visca dentro de uma perspectiva mais ampla, tal oposigéo ao estabelecido, nao im- plica necessariamente que 0 projeto das vi- A VANGUARDA tias vanguardas adquira como definigéo ab- soluta a qualificagao de anti-tealista. Se, em suas varias vers6es, a vanguarda apresenta como caracteristica imediata a ruptura com récnicas e convengdes prdprias a uma forma particular de representacio, esta ruptura esté articulada com um discurso te6rico-critico onde 0 novo estilo encontra suas justifica- Bes em visdes especificas da realidade, dis- tintas daquela que presidiu 0 projeto realista do século xx. O pintor impressionista diré que stia visio e seu modo de pintar sio mais fiis & pura sensagio visual e as propriedades dinamicas da luz do que o realismo que © precedeu, preso a regras responséveis por uma representagio convencional ¢ irreal do mun- do visivel. Cézanne diré que todo o seu pro- jeto liga-se & pintura que provém da nature- za; ¢ muitos criticos favoraveis ao estilo cubista diréo que 0 novo espaco pictético é mais compativel com as condigées da vida moderna ¢ as novas descobertas da ciéncia do que velhas receitas académicas, Fernand Léger ser explicito na proposigao da van- guarda como um mais rico ¢ mais profundo 100 realismo. © cineasta e 0 pintor surrealista dito que o mundo surreal que emana de suas imagens é mais real, como 0 préptio nome o indica, do que o real captado ¢ organizado pelo nosso senso comum. Em suma, falar das propostas da van- guarda, significa falar de uma estética que, a rigor, somente é anti-tealista porque vista por eli gene td inna pene st toaatnae dana Renascenqa ow porque, no plano nar- fata lige merle onnadapaalt read sched jcormurs Anal cedote qual quer realismo ésempre uma questéo de ponto de vista, ¢ envolve a mobilizagao de uma ideo- logia cuja perspectiva diante do real legitima ‘ou condena certo método de construcao ar tistica. Como o olhar renascentista e uma certa concepcao de narrar constituia o estilo dominante, as novas propostas por mais que teoricamente se vinculassem a projetos “rea- listas” dentro de outros referenciais, ficaram associadas a anti-realismo. Isto, em princt- Hogeniae tesa metteatnaye sere Este é um aspecto da questo. Ao lado disto, hd que se considerar a enorme contri- buigdo que o préprio discurso da vanguarda ofereceu i estratificagio da equagio segun- do a qual vanguarda se identifica com anti- realismo. Investindo contra a propria idéia de representacao (mimese) e propondo a ati- Widade artistica como criagao de um objeto (entre outros) auténomo e dotado de leis préprias de organizacio, o pintor modernis- ta tende a destruir a visio do quadro como janela que abre para um duplo do nosso mundo, Num primeiro momento, tal rup- es © DISCURSO CINEMATOGRAFICO tura prevalece sobre qualquer consideraggo mais detida a respeito do tipo de “realidade” depositada na superficie da tela. Uma arte que busca provocar estranheza, que denun- cia sua presenga ostensiva como objeto nao natural e trabalhado, e que nao permite um acesso imediato (sem mediacio de uma teo- ria) As suas convengGes e ctitérios construti- vos, tende a desencorajar as tentativas do lei- tor em relacioné-la com realidades existen- tes fora da obra. O que nao impede que, no seio mesmo deste aparente irrealismo, uma legitimacéo do novo estilo seja proposta a partir de sua compatibilidade com um certo tipo de realidade, de tal modo que as velhas idéias de “captacéo do essencial” ¢ de “reve- lacao das profundezas” sejam reintroduzidas. Posto isto, vejamos como se desenvol- vem as varias propostas “anti-realistas” no Cinema, A construcao do “cinema poético’) compativel com os diver- 365 “Temos” da vanguarda implica em traba- Ihar contra a reprodugao “natural” ¢ COATT a ida de mime no prop ETS ORE ‘naturalidade de tal perfeicao mimética pare- cem estar inscritas no proprio instrumento e nna préptia técnica de base. Diante deste pro- blema, conforme a vanguarda particular que se considere, a resposta seré diferente. Oataque frontal 4 aparéncia realista da imagem cinematogréfica vem, inicialmente, de uma tendéncia especifica marcada por uma ostensiva prézestilizagio do material o frente & cimera: a tendéncia expressionista, A mesma qué, ao longo da histéria do cinema, receberia um duplo ata- que, sendo alvo dos defensores dos varios realismos e alvo dos te6ricos da vanguarda. A-VANGUARDA 101 Os primeiros nunca estiveram dispostos a aceitar a “artificialidade” dos métodos de representacao expressionistas ou a metafisi- ca proposta através destes métodos; os segun- dos nunca perdoaram ao expressionismo a sua “sacrilega” violagdo dos principios da especificidade cinematogréfica ao apelar para ‘0s recursos estilisticos que se tornaram céle- bres a partir de O gabinete do doutor caligari (1919). Na diregao da vanguarda ou na di- regio do realismo, pode-se dizer que sempre predominou uma frente tinica em defesa dos sco eerge Le nee Sea eee ae momentos de introdugio do estilo ha arte Moussinac e Epstein na proposta de que ndo é legitimo basear uma estética do cinema na elaboragio artistica do material a ser filma- do, reduzindo-se a cimera ao simples papel de registro, « a montagem a praticamente nada. Nao foi exatamente isto que 0 expres- sionismo fez, mas esta ficou sendo sua eti- queta. O que nao surpreende, uma vez. que seu procedimento mais caracteristico ¢ evi- dente foi justamente a pré-cuilizacdo como forma de “trait” © realismo da imagem foto- grdfica. Sem duivida, sua marca é a elaboragio de um espaco dramitico sintético artificial- mente construfdo por um trabalho cenogré- fico que procura os mais diversos efeitos, exceto a ctiagao da ilusto de profundidade segundo leis da perspectiva. E Caligarié evi- dentemente o extremo exemplo de tal méto- do. Utilizando superficies, paredes e solos pintados num estilo marcado por distorgbes, linhas curvas ¢ formas distantes daquelas encontradas no espago natural, este filme transporta para 0 ambito cinematogréfico estruturas espaciais ¢ formas préprias 20 mundo do teatro néo naturalista e ao espago pictérico da arte moderna. Neste sentido, cria uma linha de associagdes que ainda hoje in- duz as pessoas a qualificar de expressionista qualquer distorcao, exagero ou despropor- (G40 manifestas na tela do cinema, Igualmen- te, outros filmes expressionistas, com seu caracterfstico jogo de sombras, criam uma tradigao que associa a0 expressionismo o es- tilo fotografico marcado pela nao definigo da toralidade do quadro, num forte contras- te entre zonas visiveis e zonas de trevas. O que o expressionismo nao associou a si —e isto sem divida esté manifesto em alguns fil- mes desta tendéncia ~ é a néo obediéncia &s regras de continuidade e aos padroes de coe- réncia espacial proprios & decupagem cléssi- ca, j4 amadurecida 0 suficiente naquele mo- mento para que a decupagem de Caligari seja encarada como ruptura. ‘Trabalhando contra a superficie clara, a decupagem clara, contra o gesto natural ¢ 6 drama inteligivel segundo leis naturais, a mento obscuro, de seres humanos que sé deslocam estranhamente num espago cheio~ de dobras e, desta forma, instaura u = co dramético regulado por forgas distintas~ Contra a textura de um mundo continuo ¢ claro, o olhar expressionista quer libertar-se da piso dos estimulos imediatos, abrindo brechas nesta textura do mundo e procuran- do recuperar uma nogio de experiéncia onde os sentidos voltam a ser a “ponte entre o in- compreensivel eo compreensivel”, tal como odizo pintor August Macke, O jogo desom- 102 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO bras © as distorgbes sistemiticas, tendentes a agugar as caracteristicas basicas da forma, procuram constituir uma experiéncia sensi- vel modelada segundo estruturas primordiais da “alma humana” ~ 0 projeto é reintrodu- zit no nosso cotidiano a “sensagao do cos- mos”, Um objeto néo é apenas um objeto, hd sempre um além por trés da sua presenga imediata: “mesmo a matéria morta € espiti- to vivo” (Kandinski). Ao quebrar a continuidade do espaco, ao instituir suas dobras e suas sombras, 0 drama expressionista quer reintroduzir as marcas do invisivel, desmascarat 0 mundo vistvel. A sombra provoca o desnudamento © € poderosa justamente porque constitui a presenga mais nitida da forma pura sem as diluigdes que a textura material impée. Nela, temos a esséncia sem os acidentes da super- ficie, “A forma é a expresso exterior de um contetido interior” (Kandinski, Der blawe reiter almanac, 1912). Na perspectiva expres- sionista, tal contetido ganha definigao atra- vés da nogio de incompreensivel ¢ através da idéia de percepgao direta do segredo das coisas: “idéias incompreensiveis se expressam em formas compreensiveis” ¢ a “forma é um mistério para nés porque é a expresso de misteriosos poderes. Somente através dela nés percebemos os poderes secretos, 0 Deus invisivel (August Macke, “Masks”, Der blaue reiter almanac, 1912). A idéia de uma esséncia encarnada ea pritica de um idealismo platénico surgem como resposta 4 mentalidade positivista sin- tonizada com o progresso tecnolégico e ma- terial. Encontramos no contexto expressio- nista uma postura dramética de revolta, de chamado & recuperacao de uma esséncia hu- mana supostamente perdida, numa atitude que se julga anunciadora de uma nova era de espiritualidade: “uma grande era se inicia, 0 acordar espiritual, a tendéncia crescente de recuperagio do ‘equilibrio perdido’, a neces- sidade inevitével do cultivo espiritual, 0 de- sabrochar do primeiro Iirio. Estamos no li miar de uma das maiores épocas que a hu- manidade jamais experimentou, a época de uma grande espiritualidade. No século x1x, apenas acabado, quando parecia haver 0 com- pleto florescimento — a grande vitéria ~ do material, os primeiros elementos ‘novos’ de uma atmosfera espiritual formaram-se pra~ ticamente despercebidos. Eles forneceram e yao fornecer o alimento necessdrio para ao florescimento do espirito” (Editorial escrito por Kandinski e Franz Marc para o Der blane reiter almanac). Em tal apostolado, o essencial é a rela- go “alma a alma”, a possibilidade de atra- vessar a superficie material ¢ atingir a comu- nicagio direta das forcas espirituais dentro de cada um de nés. A arte, como ugar privi- legiado da construgao de formas e da intui- Glo reveladora, afirma-se como a experién- cia fundamental: o lugar da expresso nua da intetioridade e da comunhao através do extase. Quanto ao cinema, como sucessor ime- diato do teatro de sombras, ele € 0 vefculo por exceléncia. E.o expressionismo vai abor- délo como o lugar do nao-discurso, como um além da linguagem. O olhar expres nista aponta a cimera para as formas essen- ciais capazes de revelar a “alma humana”, as forcas do coragao (como no filme Metrépolis, A VANGUARDA 103 realizado por Fritz Lang em 1926) € 0 Deus invisivel. Ancorado na idéia de expresso como encarnagao direta do espitito na ma- téria, cal cinema nao discursa, nem sequer fotografa 0 real; ele tem “VisGes”. B. O CINEMA POETICO E O CINEMA PURO Ao lidar one aee sualidade em Seu poder revelatério ¢ em sua capaci ei guagem verbal, a yanguarda francesa cami- nha numa diregio bastante distinta do cine- ma de sombras. Na sua perspectiva, a expres- so do essencial e a emergéncia do poético ocorrem num espago de clareza, no préprio seio da “objetividade” da reproducao foto- grafica. Tal “objetividade”, ser celebrada, sendo assumida como a alavanca fundamen- tal para 0 cinema no seu caminho rumo & superagao da narrativa realista ¢ rumo 4 su- premacia de sua dimensio pottica. Na sua luta contra o discurso, contra 0 que € assumido como linguagem convencio- nal, a vanguarda privilegia a imagem cine- matogrifica naquilo que ela tem de “visio direta’, sem mediag6es, ¢ naquilo que ela tem de especial frente & visto natural. Para Ca- nudo € Delluc, além de ser a exptessio nao discursiva de algo — a idéia é de que o cine- ma nfo fala das coisas, mas as mostra (como em Bazin e Mitry) —a imagem do cinema é dotada de um poder de transformagao que desnuda 0 objeto ou 0 rosto focalizado (no claro, & diferenga da postura expressionista). Aqui, configura-se uma antecipagio de Ba- zin, mas a crenga no poder revelatério nao se combina com a defesa de um cinema nar- rativo centrado em torno da figura humana, O cinema da vanguarda purista (no inchio aqui o surrealismo e 0 dadaismo) quer justa- mente quebrar as hierarquias de tal realig- mo, ¢ sua maior aspiragio € dissolver 0 ho- mem ¢ 0 social dentro de um universo ho- mogénco, onde a tinica ordem e tinica inte- ligencia possivel se define no nivel da naty- reza, Néo aquela do naturalismo burgués ou aguela que a taro explica, mas aquela natu reza “sabia” dotada de subjetividade © de finalismo, cuja apreensio s6 pode ocorrer como um ato de intuigéo para o qual con- corre fandamentalmente a sensibilidade, Nesta petspectiva, o cinema é também pon- to culminante de uma liturgia — a verdade gue ele revela € “indizivel” € origina-se nas virtudes da propria imagem luminosa. Nao éfruto de um trabalho discursivo, da articu- Jaco de elementos ou da construggo de um espago que ctia um lugar para as coisas, & resid apenas da pes brs laments respeitado em scu desenvolvimen- garacteristico, O importante € cada imagem Singular e seu poder gerador de uma ova experiéncia do mundo visivel. O cinema ¢ instrumento de um novo lirismo ¢ sua linguagem é poética justamen- te porque ele faz parce da natureza. O pro- cesso de obtencao da imagem corresponde a tum processo natural — ¢ 0 olho e 0 “cérebro” da chimera que nos fornecem a nova € mais perfeica imagem das coisas. O nosso papel, como espectadores, é clevar nossa sensibil- dade de modo a superar a “lcitura conven. cional” da imagem e conseguir ver, para além do evento imediato focalizado, a imensa ener ni 104 0 DISCURSO CINEMATOGRAFICO orquestragio do organismo natural ¢ a ex- pressdo do “estado de alma” que se afirmam ina prodigiosa relagéo cimera-objeto. Tal leitura convencional estaria intima- mente ligada aos condicionamentos que nos- sa “razo estreita” impée, na medida em que promove uma relacéo com o visivel marcada por objetivos de ordem pritica e nao respei- ta aquilo que de mais profundo existe nas coisas, Uma relagéo sensorial mais integral com o mundo ¢ a apreensfio de sua “poesia” tornar-se-ia posstvel gragas & nova arte ¢ seu poder de putificagao do olhar. Ao celebrar fundamentalmente a rela- gio cmera/objeto, tal liturgia do “olhar pu- rificado” deve instalar-se na brecha criada pela desintegtagio do espago dramitico e narrati- vo. Para que a verdade da Natureza e do “ser natural” que existe dentro de nds se revele, € preciso dissolver as concatenac&es narrativas eas tenses elaboradas dentro de convengées proprias a0 teatro, Ou seja, para que a “obje- tividade” da imagem seja compativel com 0 “cinema poético” ¢ preciso que ela se organi- ze de modo a explorat as “revelac&es” vindas de cada relacéo camera/objeto. E preciso abrir guerra contra o encadeamento dos eventos a partir de seus efeitos priticos, pois a narragao 0s explora em sua “exterioridade” e nao em sua “interioridade”. O que de mimético existe na reprodu- Gio cinematogrifica fica accito e redimido na medida em que a mimese proposta néo se esgote na “exterioridade dos fatos” ¢ seja ca- paz de atingir a “profundidade” do enfoque pottico (expresso de um estado de alma), contra “superficialidade” das concatenagées logicas. Deritrojtetal peripectivajga disci sobre os critérios de decupagem/montagem tende a se concentrar no problema do rit- Taps rquestbesrrplacionsdualconilatcarteg trugio de um espaco coerente perdem rele- vancia ¢ as reflexdes dos teédricos se dirigem para 0 clogio as virtudes plésticas de cada To plano atral para Sas maiores especula- des, dada a sua associagao com tragos como detalhe revelador, intimidade, movimento seareto, visualizago do invis{vel. A monta- gem sé recebe especial atengao no pensamen- to dg Moussinac, cujo cinema postico estaré iaseaipmiociollescinwaldmseismdela musical, um ritmo formalizado e produzido enuifunide deelaroeaqusntiiceycied Dire ferencial musical ser assumido de maneira mais radical por cineastas ¢ esteras como Germaine Dulac, Viking Eggeling ou Hans Richter. Nao surpreende que sua estética te- nha como ponto de chegada a realizagao do “cinema puro”, Bste, correlato ao abstracio- nismo pictérico (também referenciado ao modelo musical em sua teoria) vai mais lon- ge na desintegracéo do referencial realista. Nao sé proclama a dissolugéo da nacrativa ow eliminagio do espago dramético; exige a supressio de qualquer vestigio mimético, desqualqyerireitncta a, unit crpatostemago natural exterior ao filme, e toma como tini- ca realidade a dinamica da luz ¢ os seus efei- tos geométricos € ritmicos na superficie da tela. Dentro destes, princtpios, Richter, Eggeling ¢ Dulac realizam, nos anos 1920, alguns de seus filmes, buscando procedimen- tos destinados a reduzir a experiéncia cine- matogréfica a seus elementos mais puros. A VANGUARDA 105 Neste caso, perde © sentido 0 uso de expresses como decupagem, uma vez que a montagem de linhas, figutas geométricas ou 0 jogos de luz e sombras, no se produz atra- vés da filmagem de “cenas” divididas em pla- nos, mas através da filmagem “quadro a qua- dro”, onde cada fotografia corresponde 20 registro de uma imagem pictérica e abstrata. A técnica utilizada nas experiéncias do cine- ma puro é a mesma que encontramos na rea- lizacao dos desenhos animados, com a dife- renga de que o cartoon de maior divulgagio comercial corresponde A constituig’o de um espago narrativo ¢ antropomérfico (lembre- mos Walt Disney). No cinema puro, temos uma seqiiéncia de imagens nao figurativas, No caso do cinema de Richter, calcula~ das variagdes em torno da figura retangular (retingulos brancos em tela preta ou vice- versa) constituem a matéria para um estudo da relagio superficie/profundidade: a redu- 40 do cinema e seus elementos mais puros 0 branco ¢ 0 preto ~ é vista como 0 cami- nnho certo para a andlise do filme como obje- tgem si mesmo, como algo dotado de quali dades préprias, como luz projetada numa superficie e nada mais. Dentro desta estéti- ca, trata-se de investigar o funcionamento da percepgio, as modalidades de tesposta do espectador diante de um estimulo que esta aquém da “representaco”, aquém da presen- ga de objetos reconheciveis mergulhados num espago tridimensional — 0 espaco so- cial de seres humanos e objetos. Se este espa- ¢0 pode ser projetado na tela gragas & ilusao ctiada pelas leis da perspectiva inscritas no proprio aparelho (lentes fotogrificas), 0 ci- neasta abstrato busca a recusa deste ilusio- nismo e, 20 mesmo tempo, encaminha sua pesquisa para o nivel sensorial. Ele quer for- necer um estimulo que produza no especta- dor uma teagao capaz de ensinar a este como cle percebe ¢ capaz de o fazer entender 0 que €0 “cinema em esséncia”, como objeto, an- tes que as luzes projetadas na supetficie da tela scjam organizadas pelo projeto ilusionista do cinema de ficcio. Tais luzes serio organizadas segundo projetos pictéricos marcados por diferentes orientagbes, conforme o cineasta em ques- tao, tendo as varias perspectivas, como ttago comum, a valorizagao das caracteristicas plis- ticas da imagem e as proptiedades fisicas do objeto-cinema. Varias formas de cinema de animagio, caracterizadas pela filmagem “qua- dro a quadro” de imagens e desenhos pinta- dos pelo cineasta-artista plistico, articulam- se com diferentes propostas j& presentes no nivel da pintura (desde o abstracionismo geo- métrico até um simbolismo recuperador das mais diferentes mitologias acidentais ¢ orien- tais), Um cinema muito especifico emerge. Como diz Robert Breer, figura bsica no atual cittema gréfico americano, aquele cinema que se define por uma “evolugao das formas de- rivadas da pintura do autor”. Como outros praticantes do cinema gréfico (Harry Smith, Len Lye, Jordan Belson), Robert Breer é um homem que vem de um trabalho original em pincura, prolongando suas pesquisas dentro de um contexto filmico, © que implica em lidar com a movimentasio das configucagoes visiveis e com o estabelecimento de uma duracéo definida para cada imagem em par- ticular, propondo um tipo de leitura ao es- pectador. 106 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO A tendéncia a considerar o filme-obje- to chega a uma formulagao mais radical no momento em que, nos anos 1950 ¢ 1960, Peter Kubelka, Gregory Markopoulos © 0 prdprio Breer passam a trabalhar com o fo- tograma (cada uma das forografias que com- poem a pelicula cinematogrifica) como uni- dade basica da experiéncia visual da platéia. Dar privilégio a cada fotograma como fonte de uma configuragao diferente das outras, é atacar 0 principio, num determinado mo- mento considerado cientifico, de que 0 ¢s- pectador ¢ incapaz de perceber, como uni dades separadas, cada um dos fotogramas. Pois bem, € justamente este princfpio que vai constituir um dos alves da vanguarda americana, de Markopoulos a Brakhage, pas- sando por Breer, Kubelka e outros, Contra a tradigao, eles yao defender a tese de que ¢ possivel enxergar cada fotograma e, portan- to, o cineasta deve concentrar sua mensagem, carregando cada 1/24 de segundo com uma nova configuragio, como se a seqiiéncia de forogramas fosse uma série de hieroglifos a serem decifrados. Markopoulos vai inserir esta idéia do cinema de single-fiame (foto- grama individualizado) dentro de um proje- to de cinema narrativo: 0 género mito-poé- tico, Brakhage vai inserir tal ataque (ao que ele considera um “preconceito” do mundo cientifico) dentro do seu projeto global de ataque as limitagées que a cultura — como conjunto de convengées que condiciona a percepgdo — impée ao nosso olhars ¢ vai montar seus filmes sem preocupar-se com 0 velho problema do “limiar da percepcao” Breer vai trabalhar mais sistematicamente com os efeitos da ripida sucesso de cores com a introdugio da série descontinua de fotogramas como estratégia de ataque ao ilu- sionismo ou, mais precisamente, como ten- tativa de revelagao, para o espectador, daquilo que est por trés do ilusionismo do cinema- janela. O modelo musical reaparece, reviven- do os ideais de Dulac, mas agora dentro de uma nogao mais matematica. Os forogramas isolados, como notas, constituiriam as uni- dades bésicas de uma construgéo ritmica apta a produzir experiéncias sensoriais de mesmo nivel que a experiéncia auditiva fornecida pela musica. O modelo chega a sua formula- cio mais radical em Kubelka, que propoe e executa filmes curtos extremamente elabo- rados no nivel da relacio matematica entre focogramas ¢ extremamente voltadas para a nao figuragio, para a apresentagio de um objeto dado a percepcao como algo indepen- dente e fechado em si mesmo, Com Kubelka, © cinema puro afirma-se como sucessio ma- tematica de luz (tela branca) ¢ obscuridade (cela totalmente preta), numa produgio que realiza o velho sonho do cinema com “parti- tura”. Se as cépias de Arnulf Rainer (1960) de Kubelka se perderem, qualquer pessoa poderd refazer o filme, uma vez que ele apre- senta apenas luz pura ¢ auséncia de luz, al- ternadas segundo certas relagées numéricas. © flickering cinema (cela piscando segundo certas leis matemiticas) inicia sua carreira e vai constituir tema de especulagao de Conrad € outros, preocupados com as modalidades da experiéncia sensorial. A matematizagio e 0 modelo musical ligam-se a critica & continuidade e Kubelka chega a inverter as tradicionais definigoes do cinema: “O cinema nao ¢ movimento. O ci- wlll dA) ‘A VANGUARDA 107 nema ¢ a projegao de fotos (cts) — ou seja, imagens que nao se movem — num ritmo dccleradot (iGabellzajenitrevina'alforasiMe- kas, in New forms in films, p.80). Dentro desta deficdo;d -artculacia, bésita deum filme se dé no invervalo entre dois fotogra- mas: “Onde esté entdo a articulacao do cine- ma? Eisenstein, por exemplo, disse: é a coli- séo entre dois planos, Mas é estranho. que ninguém nunca tenha dito que nao é entre dois planos mas entre dois fotogramas. F entre os fotogramas que o cinema fala” (idem, p.80). Na afirmacso/de filme; como iabjero dovado de uma temusl paige Ss tecnica le base ¢ so os cuidados essenciais aos olhos dos inventores do cinema, que recebem o ataque do’cineasta, Dentro do projem hists- rico que gera 0 mecanismo reprodutor do movimento (0 cinematégrafo de Edison ¢ Lumiére), a ilusio de continuidade é um horizonte essencial — condigo para a simi- laridade entre a tela de cinema ¢ 0 mundo. Neste caso, a recuperacao da descontinuida- de, daquela descontinuidade que realmente acontece na projecéo do filme, significa tra- zet parao nivel da percepgéo a presenca ime- diata da pelicula cinematogréfica como ob- {eto,, com suas proptiedades Gsicas (série de fotografias dispostas de um certo modo). O pedaco de celuldide prevalece sobre a idéia de imagem representativa ~ no hd aqui ne- huma auséncia (objetos, mundo) que este- jasendo visada pela presenca da imagem for- necida. Nao somos remetidos a nada que ndo seja 0 objeto (filme) que se mostra. Ele é 0 discurso que fala apenas de si mesmo. Cada filme é uma auto-definicao. Para Jonas Mekas, este cinema, como arte, atinge seus niveis mais altos “em dire- ao a uma iluminagao estética mais sutil ¢ menos racional”, E, neste movimento, equi- para-ses outras artes em suas tendéncias mais modernas. Se lhe dissermos que hd muita abs- tragao no encaminhamento desta forma par- ticular de negar o projeto ilusionista, Mekas nos responde negativamente. Num desvio empitista para um homem devotado ao ci- nema visionario ¢ poético—ou melhor, numa demonstragao do quanto hé de comum en= tre empitismo e poesia visiondria — ele assu- me que nada é mais concreto do que a pre- senga imediata do objeto ¢ as sensacdes dele derivadas: “O cinema, mesmo aquele mais ideal ¢ mais abstrato, permanece em sua es- séneia concreto; permanece a arte do movi mento, luz. ¢ cor. Quando deixamos os pre- conceitos eos pré-condicionamentos delado, nos abrimos para a concretude da experién- cia puramente visual ecinestética, para o“rea- lismo” da luz ¢ do movimento, para a pura experiéncia do olho, para a matéria do cine- ma. “Assim como o pintor teve que se tornar consciente da matétia da pincura — a tinta; ouo escultor, igualmente, da pedra, madeira ou mérmore; assim também, para chegar a sua maturidade, a arte do cinema teve que assumir a consciéncia de sua matéria — luz, movimento, celuléide, tela” (Mekas, Movie journal, p.219). C. O ADVENTO DO OBJETO EA INTELIGEN- CIA DA MAQUINA Hans Richter, nos anos 1920, fora pega fundamental na inauguragao do cinema puro ‘i (© DISCURSO GINEMATOGRAFICO wabstraco. Depois da Segunda Guerra, undo © palco principal do “cinema poéti- a! transfere-se para os Estados Unidos, cle tikintroduzir no seu cinema a presenga dos ‘bjetos externos”. Nesta sua nova fase, tes- frinda a figuragdo das coisas ¢ aceita a pre- sig dos objetos na tela, a ruptura com 0 ‘undo natural faz-se através do deslocamen- veda imtegragio destes objetos numa nova «idem constitufda de valores plasticos-rftmi- i, O objeto cotidiano, 0 fragmento da niquina, a imagem familiat, sé destacados chs eis contextos ¢ convidados a participar ma Combinagdo de outra natureza, néo peasua Funcionalidade, mas pelas suas qua~ liades plisticas. Ou seja, sua presenga na tt € organizada de modo a tornar sua for- me cextura um puro espetéculo. Ballet neenique (1924), de Fernand Léger, cons- tui o modelo de tal “orquestragao de ritmo tforma” onde o brilho de determinadas su- Peficies, iluminadas de diferentes formas ¢ cmbinadas em diferentes séries, fornece naterial para um “novo realismo” (na expres- So de Léger). O artista francés fala nas no- ns condigdes de percepgao que caracterizam ayida urbana na sociedade industrial e quer produzir um cinema apto a fornecer uma aperiéncia compativel com a nossa nova ttkcdo Com as objetos ¢ com as maquinas Auayés de suas imagens, trata-se de explorar + possibilidades plisticas do objeto cotidia- 10, liberto de nossa visio utilicaria, que 0 iprisiona ao lhe definir certas fung6es. Em. liger, trata-se basicamente de operar com a inaginag&o, romper com a narrago eo dra- mma teatral — celebrar 0 “advento do objeto” ‘fazer do cinema uma arte exclusivamente plastica, de montagem, propria a fornecer em sua mais sofisticada versio aquilo que, em certa medida, jd é fornecido pelo espetéculo das ruas, pelas técnicas de decoracao de vi trines e por toda esta transformacio ambien- tal que, sem duivida, tem suas influéncias decisivas na sensibilidade do homem. Em relagéo 4 interagio homem/ambiente, Eps- tein tera uma formulagao mais incisiva ¢ mais aristocratica, falando da “nova inteligéncia” que seria prépria aos cultores da vida mo- derna. No esquema de Epstein, 0 cinema ocuparia um lugar privilegiado na modela- gem desta nova inteligéncia: “E impensavel que um tal instrumento nao venha a ter in- fluéncia sobre o pensamento. As méquinas que o homem inventa tém sua inteligéncia a qual recorre a inteligéncia humana” (Eerits de Jean Epstein, p.244). Um misto de temas futuristas ¢ técni- cas cubistas inspira as formulagies de Léger ¢ Epstein, com diferencas. Do manifesto pela cinematografia futurista de 1916, reaparece a idéia de celebragao da maquina ¢ do objeto manufaturado, ¢ a dissolucio do homem numa ordem mecanica, com a transforma- Go da arte num discurso das coisas. A mo- dernidade ensinaria a retirar 0 homem do centro do mundo ¢ a deslocar 0 palco dos grandes dramas. Ao celebrar o advento da maquina e do objeto industrial, Léger no assume as im- plicagées ideolégicas contidas no programa futurista. A nogao de que fazer cinema e manipular imagens ¢ explorar possibilidades contidas num certo material € assumida den- tro de uma racionalidade diferente. A seu modo, ele dissolve a hierarquia humanista ¢ A VANGUARDA, 109 © primado da consciéncia, transformando o objeto no centro do discurso. Em tal des- centramento, © passo decisivo é a desinte- graco do espaco social, refletida no estilo da decupagem. O primeiro plano, maior in- vengao do cinema segundo toda a vanguar- da francesa, assume literalmente a fungao de produzir uma nova percepgio e a idéia de enquadramentro como um “retirar do con- texto” é levada as suas tiltimas conseqiién- cias. A nogdo de “novo realismo”, de con- cretude, liga-se & proposta de celebrar, pela listica, a presenga de cada objeto, de cada culo para os olhos. Indo além das preocupagées mais eco- légicas de Léger, Jean Epstein penetra num terreno ontolégico ¢ fala de “personalidade”, de “vida propria” contida em cada fragmen- to isolado pelo quadro cinematogrifico. Ao lado do poder de revelacao psicolégica fren- te a um rosto, o cinema para Epstein tem um poder anfmico frente aos objetos e aos elementos naturais. A diferenga da nogao de concteto que preside 0 espeticulo naturalis- ta~preso & nocao de fato e& cadeia de acon- tecimentos vinculados por uma relagéo de causalidade — a concretude de Léger Eps- tein pressupde a descontinuidade, o nao en- cadeamento de fatos, a ordenagéo em série segundo critérios fora do espago e do tempo do senso comum. “O primeiro plano fere também de outro modo a ordem familiar das aparéncias. A imagem de um olho, de uma mio, de uma boca, que ocupa toda a tela — no sé porque aumentada em trezentas ve- zes, mas também porque vista fora da co- munidade organica — assume um carter de autonomia animal. Este olho, estes dedos, estes libios, j4 so seres que possuem, cada um, suas préprias fronteiras, seus movimen- tos, sua vida, sua finalidade prdprias, Hles existem em si” (Eorits, de Jean Epstein, p.256, texto escrito em 1946), ‘Abrindo guerra contra a percepgao que prevalece na vida cotidiana dos homens, Epstein vai construir o referencial mais sis- temético na tentativa de justificar a imagi- nacdo poética em sua oposigao ao cinema dominante ¢ na tentativa de demonstrar a profunda afinidade entre as estruturas do fil- ‘me como objeto e as novas revelacdes da fisi- ca moderna. Como Kracauer, ele parte de uma inverpretacao particular dos dados da ciéncia e, como Kracauer, formula uma pro- posta que atribui & nova arte uma funcéo decisiva na cultura moderna. No entanto, sua interpretagao, desde os anos 1920, sempre caminhou em direc oposta & do tedrico alemao. Para o poeta, cineasta ¢ tedrico fran- cés, 0 cinema é o lugar de um aprendizado especifico; ele é a via de acesso para uma nova mais verdadeira percepcio do espaco-tem- poem que estamos inseridos. “Se, hoje, qual- quer homem medianamente culto consegue representar © universo como uma continui- dade com quatro dimensdes, em que todos os acidentes materiais resultam da articula~ ‘do de quatro varidveis espaco-temporais; se esta figura mais rica, mais dinamica, mais yerdadeira talvez, substituiu pouco a pouco a imagem tridimensional do mundo, assim como esta substituiu primitivas esquemati- zagées planas da terra e do céu; se a unidade indivisivel dos quatro fatores do espago-tem- po esté paulatinamente se tornando tao evi- 110 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO dente como a inseparabilidade das trés di- menses do espago puro, isto se deve muito ao cinematégrafo, a cle se deve esta ampla penetracao da teoria 4 qual Einstein e Minko- wski, principalmente, ligaram seu nome” (idem, p.284, 1944). De que modo pode 0 cinema desem- penhar tal fungao? Primeiro, porque na sala de espetéculos estamos em todo lugar e em parte nenhuma; somos dotados de uma ubi- qiiidade que transforma nossa visio do mun- do. Ao set-no-mundo de Merleau Ponty ¢ ao homem “em situacao” do existenclalism, Epstein opdc o ser-em-toda-parte ¢o homem Edgar Morin vai discutir nos anos 1950, Em segundo lugar, porque, acima de tudo, o ci- nema € 0 reinado da descontinuidade. No proprio processo de registro, tal descontinui- dade esté impressa e, por sua vez, a monta- gem cria um uniyerso fragmentado, cuja con- tinuidade, mesmo no mais simples filme narrativo, € produto de uma sintese da nossa consciéncia. Portanto, nos dois niveis, o que 0 cinema demonstra ¢ a convencionalidade deste mundo integrado ¢ “sem vazios” que julgamos habitar. O espaco-tempo de Eps- tein é cheio de curvas ¢ a temporalidade se descnvolve segundo diferentes trajetos locais; o presente, cada instante, nao é senao o lu- gar de uma concorréncia (celebrada no cine- ma pela montagem ou pela superposicio de imagens). A identidade do objeto ou da pes- soa que vemos na tela € relativas vemos sem- pre particularidades. A experiéncia cinema- togréfica mostra que a unidade do espago ¢ uma ficco em nossa cabeca, E 0 principio de causalidade deixa de nos aparecer como algo inerente & natureza. © cinema é uma reeducacao pelo absurdo. Principalmente quando 0 cineasta sabe organizar o material de modo a produzir uma ficgdo magica ca- paz de deflagrar a experiéncia reveladora. Para tal, cle deve seguir a “inteligéncia do préprio cinema”, desta miquina de sonhos, que nos demonstra a relatividade de tudo e a equiva- Iéncia das varias formas possiveis. O procedimento fundamental capaz de coroar 0 proceso de revelacéo, promovido pela inteligéncia da cimera, é a alteracéo de velocidades permitida pela projecéo cinema- togréfica. E af que se cristaliza a relatividade da nogio de tempo. Em cimera lenta, so- mos capazes de acompanhar os minimos movimentos que compéem uma expressio facial que cartega uma emogio, ou somos capazes de estudar os movimentos de ani- mais ea evolugio de processos naturais, Atra- vés do registro descontinuo ¢ lento do cres- cimento de uma planta ou do deslocamento de um acidente natural, obtemos uma série de Fotografias que, projetadas em 24 quadros por segundo, nos revelam a vida ali concen- trada em seus ritmos caracteristicos fora do nosso alcance na percepgio comum. Na con- cepgio de Epstein, no cinema, manipulamos © tempo, invertemos a diregao dos processos ¢ violamos a segunda lei da termodinamica. Tudo isto demonstraria como a oposi cio animadofinanimado € arbitrdtia ¢ pro- duto dos limites do nosso senso comum, € como a fixidez da qualidade das coisas € re- lativa, ao mesmo tempo, deixaria claro todo © aprendizado que nos espera na necessiria revisio de nossos referenciais. Se 0 universo se mostra em sua descontinuidade ese o tem- lL ‘A VANGUARDA ul multiplica e se inverte, para Epstein, € apidpria nogao de eal que se efantag pelo menos aguela nagto que t2 acravés de longa trajetdria da cultura ociden- tal. O que nao o impede de se apoiar em elementos particulares desta tradigao para coroar sua visio de mundo ¢ seu discurso sobre o olho “surreal” do cinema, Em seu inceresse pela teoria da relatividade ¢ em sua dissolugao das especificidades do mundo social e humano, Epstein apéia-se numa in- terpretagio muito particular dos novos te- sultados da ciéncia, basicamente encami- nhando-se para a fundamentagdo de uma nova religidio a partir dos elementos aqui enumerados. O discurso cincmatografico — pottico, livre, ancorado numa nova inteli- géncia inscrita na prépria maquina que ele utiliza — €0 ponto culminante de uma liturgia: aquela que define um certo panteis- mo moderno. Epstein nao apenas nos diz: “Nao sobra senao um reino: a vida’, Mas procura nos especificar os fundamentos des- te mundo desdiferenciado: “Nao sé a vida esta em toda parte, mas também o instinto € a inteligéncia e a alma’ (idem, p. 389). E conclui: ‘A vida & uma esséncia universal, manifestagéo primordial da existéncia divi- na. Jé que a mesma vida move todas as apa~ réncias, o mesmo Deus, tinico € uno, consti- tui o principio imanente de todas as coisas” (idem, p.390). Eeeste pantefsmo, associado ao culto da inteligencia ¢ 4 extrema atengio pelos aspec- tos quantitatives dos dados sensiveis, cami- nha em direcio a definigéo de uma certa or dem oculta dirigida pelos nimeros — a filo- sofia de Epstein afirma-se como um neopi- tagorismo. Anticartesiano, ele defende o pri- mado da imaginacfo, basicamente como for- ma de experimentar, pela montagem ¢ pelos enquadramentos cinematogréficos, as varias ficgGes possiveis, as varias ordens que defini- iam realidades imagindrias, entre as quais a do “senso comum”, O “cinema do diabo” de Epstein ¢ he- rético e alquimista. Na sua batalha contra 0 naturalismo e o cinema narrativo, a sua ima- gem ¢ uma transubstanciagio do real e seu discurso poético € uma reivindicagio pelos direitos ¢ pela legitimidade de uma visto magica do mundo, D. O MODELO ONIRICO No inicio da década de 1950, Bufiuel escreve: “O mistétio, o elemento essencial de qualquer obra de arte, esta em geral ausente dos filmes. Autores, diretores € produtores, com sacrificio, conservam nossa paz, deixan- do hermeticamente fechada a janela que leva ao mundo liberador da poesia. Preferem fa- zee a tela refletir temas que poderiam inte- grar a continuiidade normal de nossa vida cotidiana, repetir mil vezes o mesmo drama ou fazet-nos esquecer as duras horas do tra- balho diario, E tudo isso é naturalmente san- cionado pela moralidade habitual, governo, censura internacional ¢ religido, dominados pelo bom-gosto e enlevados pelo humor in- sipido e outros imperativos prosaicos da rea- lidade” (Conferéncia “Cinema: instrumen- to de poesia’, 1953, publicada no livro Laie Buftuel de Francisco Aranda). No mesmo texto, ele cita suas conver- sas com Zavattini, figura basica do “cinema 112 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO prosaico” que cle mais respeita — 0 cinema neo-realista. Nesta conversa, Bufiuel explica a diferenga basica entre o cinema que ele quer, um cinema poético e aberto para o fantisti- co, ¢ 0 olhar neo-realista: “Como jantiva- ‘mos juntos, 0 primeiro exemplo que se ofe- rece a mim foi © do copo de vinho. Para um neo-tealista, eu disse a cle, um copo é um copo e nada mais; vocé o ve retirado da prateleira, cheio com liquido, levado & cozi- nha onde a empregada o lava ¢ as veres 0 quebra, 0 que resulta no seu retorno ou néo etc. Mas, este mesmo copo, observado por seres diferentes, pode ser mil coisas diferen- tes, porque cada um carrega de afézo 0 que vé; ninguém vé as coisas como elas sdo, mas como seus desejos e seu estado de expitito 0 fazem ver. Eu luto por um cinema que me mostre este tipo de copo, porque este cine- ma vai me dar uma visio integral da realida- de, vai alargar meu conhecimento das coisas € das pessoas, vai me abrir 0 maravilhoso mundo do desconhecido, de tudo aquilo que eu néo encontro nos jornais nem na rua” (mesma conferéncia) Quando ele nos fala de uma viséo inte- gral da realidade, Busiuel esté levando em conta 0 principio bésico formulado por Breton desde o primeiro manifesto surrealis- ta:a transmutagao dos dois estados aparente- mente contraditérios, sonho ¢ realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade. E é0 préprio Bufuel quem cita Breton, na sua sintética formula, propondo a dissolugdo da diferenga entre o real ¢ 0 fantés- tico prépria ao senso comum: “O que é mais admirdvel no fantastico é que ele nao existe, tudo é real” (Breton citado por Bufiucl). Em 1924, no mesmo ano em que Fran- cis Picabia e René Clair realizavam Entr‘acte, filme que introduz no cinema os dispositivos de choque ¢ os ataques ds convencoes da boa arte prdprios a0 comportamento dadaista, Breton langava o primeiro manifesto surrea- lista. Se quisermos nele encontrar alguma referéncia explicita ao cinema, encontramos apenas uma tinica frase: “O cinema? Viva as salas escuras!”. E, evidentemente, uma série de propostas cuja formulacao ditigida ao tra- balho poético em literatura praticamente solicita um transplante para o terreno cine- matogréfico. Isto, em termos de critica, sera feito por Robert Desnos, o poeta surrealista que durante toda a década de 1920 batalhou por um cinema apto a projetar na tela 0 “maravilhoso surrealista”. Como Bufiuel trin- taanos depois, Denos, em sua coluna critica, constata uma auséncia: a do cinema livre, postico ¢ maravilhoso. E 0 filme dadaista de René Clair € 0 tinico que satisfaz a sensibili- dade surrealista. O que muito se deve acertas afinidades de espitito ¢ de atitude entre esses dois movimentos: a agressdo ao senso comum, © cultivo do humor aliado & ironia frente as conyenges burguesas ¢ as regras estéticas vigentes; em alguns aspectos, o surrealismo, que “oficialmente” inaugura-se em 1924, é um desdobramento, numa diregao especifi- ca do Dadaismo de 1916-1920 — mais cen- walizado e mais canalizado para o cultivo de um método do que o anticonformismo anar- quista ¢ a autofagia dos movimentos Dada. Posto de lado Enér‘acte, Desnos 96 vé no cinema a distancia entre as possibilidades potticas e a pobreza da pritica dominante, a mesma pobreza que revolta Bufuc! nos anos lal, ‘A VANGUARDA 113 1950. Desnos nao se envolve nas contendas que partem da dicotomia entre cinema nar- rativo-comercial e cinema poético de van- guarda. Diante da tendéncia naturalista do Cinema griffithiano, a vanguarda de Dulac e Epstein esté longe de constituir uma alter- nativa. Contra o esteticismo da vanguarda, Desnos propée o cinema autenticamente liberador, segundo os princfpios sucrealistas: um cinema de sonho, de aventura, de misté- rio e de milagres; um cinema que, como Bufuel exige, incorpore 4 sua imagem a dimensio do desejo, sem represses. © fundamental para o surrealismo é 0 rompimento de um circulo: 0 do desejo su- blimado e inscrito nas convengées culturais e estéticas de um cinema que cultua a suges- Go, que usa a montagem como construgao de um espaco verossimil € 0 corte como re- pressio da imagem proibida. O cincasta sur- realista quer atingir 0 maravilhoso, e, pata tal, precisa lutar contra o cinema que cele- bra a estabilidade do mundo de frustracoes cotidianas ou fornece uma experiéncia esca- pista bem comportada que nada mais fiz se- nfo aprisionaro espectador no circulo de suas fantasias. O cineasta surrealista quer denun- iar a rede de censuras articuladas com a es- tética do cinema dominante, O filme sur- realista deve ser um ato liberador ¢ a produ- do de suas imagens deve obedecer a outros imperativos que nao os da verossimilhanga e os do respeito ds regras da percep¢to comum. Nao bastam as transformages no contetido das cenas filmadas e a liberacao do gesto humano que compéem sua narrativa, E pre- ciso introduzir a ruptura no préprio nivel da estruturacio das imagens, no nivel da construcdo do espago, quebrando a tranqiii- lidade do olhar submisso as regras. Em sua defesa da montagem que obe- dece aos imperativos tinicos da imaginacao, a proposta surrealista implica numa agres- sao direta as convengées da decupagem clis- sica, Em vez de caminhar em diregéo a uma iluséo de continuidade, a montagem cria uma cadeia associativa de imagens que frustra as expectativas de quem espera uma narracio trivial com referéncias de espago ¢ tempo cla- tas. Os letreitos de Un chien andalow (1929) sugerem uma cronologia; as imagens negam tal informagao, cuja presenga torna-se iréni- ca, A descontinuidade e 0 non-sense instau- ram-se na sucessio de gestos ¢ cenas articu- lados em diferentes espagos. Cada plano é lugar de uma nova definigao dos clementos em jogo: um objeto que nao estava ali no plano anterior, tranqiiilamente aparece no plano seguince; um gesto que se inicia num quarto de apartamento em Paris completa- se rigorosamente num jardim distantes 0 es- aco ¢o tempo transformam-se em “ocasiio” de eventos controlados por uma insténcia que se recusa a obedecer as limiagdes impostas pelo “princtpio de realidade” (Freud). Tal como na “escrita automatica” pro- posta por Breton no manifesto de 1924, 0 princfpio da “associagao livre” instala-se na confeccio da montagem cinematogréfica. E, tal como na experiéncia de Breton e Philippe Soupault no plano literério, Buftuel e Salva- dor Dali compéem conjuntamente o tecido de ocorréncias de Un chien andalou, fazendo questo de explicitar o critétio de combina- io das imagens: “O produtor-diretor do fil- me, Bufiuel, escreveu o (roteiro) em colabo-

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