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A /ABORADA PELA HA CATALOGRAFICA EL, Free ILIOTECA CENTRAL DA UNICAMP Praz, Mario PR86e “A carne, a morte € 0 diabo na literatura romantica / Mario Praz; tradugo: Philadelpho Menezes. -- Campinas, SP: Editora da UNICAMR, 1996. (Colegdo Repertérios) ‘Tradugio de: La carne, la morte ¢ il diavolo nella letteratura romantica. 1. Critica. 2. Romantismo. 3. Sadismo na literatura, 4, Ensaios italianos. I. Titulo, 20.CDD - 801.95 = 808.801 45 = 808.803 5 - 854 ISBN 85-268-0376-X indices para catélogo sistematico: 1. Critica 801.95 2, Romantismo 808.801 45 3, Sadismo na literatura 808.803 5 4, Ensaios italianos 854 Colegio Repertérios Copyright © 1986 by RCS Sansoni Editore SpA Firenze Projeto Grafico Camila Cesarino Costa Eliana Kestenbaum Coordenago Editorial Carmen Silvia P, Teixeira Produgao Editorial Sandra Vieira Alves Preparagéo de Originais Lucélia Caravieri Temple Reviséo Lucélia Caravieri Temple Rosa Dalva ¥. do Nascimento Editoragdo Eletrénica Silvia Helena P. C. Goncalves 1996 Editora da Unicam, Caixa Postal 607 Cidade Universitéria - Bardo Geraldo CEP 13083-970 - Campinas - SP - Brasil Tel.: (019) 239.8412 (019) 239.3157 Introdugdo UMA APROXIMACAO: “ROMANTICO” Oepiteto romdntico ¢ a antitese cldssico-roméntico so aproximagées hé muito em uso. O filésofo as pde solenemente a porta exorcizando-as com légica certeira e, novamente, elas entram a pouco e pouco pela janela, e esto sempre ali em volta, insistentes, indispensdveis; 0 retérico procura dar seu estado, grau e inamovibilidade, € eis que, a0 final de trabalhosa construgao, se da conta de ter tratado sombras como coisas s6lidas. Como uma infinidade de outras palavras de uso corrente, aquelas aproximages tém um valor e respondem a uma fungio util, desde que se tratem como aquilo que so, isto é, como aproximagées, e nao se pretenda delas o que no podem dar, isto é, exatid’io de pensamento cerrado. Sao categorias empiricas, cujo carater ficticio pode ser facil- mente demonstrado; mas se a prova de sua relativa arbitrariedade devesse conduzir a uma invalidade dos seus servigos, nfo vejo como a histéria literéria tiraria vantagem disso. Proscrevam-se os géneros literdrios: eles pululariam* novamente sob forma de dis- tingSes e categorias mais elaboradas, mais consoantes com o espirito dos novos tem- pos, mas néo menos aproximativas. A necessidade pratica de distingdes empiricas é, portanto, reconhecida também por Croce, cujo ensaio sobre Ariosto nao teria podido ser escrito sem auxilio de tais expedientes.' O equivoco é daqueles que querem implantar questées estéticas em conceitos de indole pratica e instrutiva, mas nada impede que se possa fazer desses conceitos o mesmo uso que Ampére fazia do nadador imaginario na corrente elétrica. O método, enfim, tem que ser aquele usado por Dante no Paradiso, onde as almas beatas, todas com assento na rosa celeste, que “perto ou longe... nem se pde nem se eleva”, mostram-se ao poeta em grupos nas varias esferas, no para que em falta Esteja a sua esfera, mas pra signo do celestial, jé ndo nos faz tao alta, Critica literdria pressup6e histéria da cultura: histéria da cultura de um ambiente ¢ historia da cultura de um individuo. Se ao se resolver a obra de arte na histéria da iy cultura termina-se por perder de vista a pessoa do artifice, de outra parte esta no pode ser pensada sem que se recorra aquela. Tendéncias, motivos, maneitismos eorrentes oe tempo do autor, formam um subsidio indispensével a interpretacao de sua obra, Ong essa depois, ao fim do gozo estético, constitua um mundo tinico em si fechado, exaurids € perfeito, um individuum ineffabile, é uma verdade que nao deixaria ao critice outs alternativa que a de um mistico siléncio admirativo. Mais ainda, Se é verdade que a vida de uma obra de arte est na razo direta de sua eterna contemporaneidade, ou mesmo na atitude de espelhar em espécies universais afetos de épocas histéricas disformes e distantes entre si, é também verdade que, a0 cindir a obra de arte de seu particular substrato cultural, cai-se facilmente em inter- Pretagées arbitrarias e fantasticas, que desnaturam a obra até torna-la irreconhecivel, Quantas variagSes sobre Dante e Shakespeare nao tém interessado criticos muito artisticos e muito pouco historiadores? Basta citar 0 caso de Hamlet, um drama cuja cor original foi inteiramente alterada pela patina corrosiva despejada pelos criticos desde © dia em que o goethiano Wilhelm Meister? interpretou o Personagem a imagem de si mesmo, transmutando em um Gefiihismensch um carater elisabetano cujaestranheza Parece devida sobretudo a imperfeigao estrutural da tragédia.? Hoje, a grande maioria dos criticos concorda em descrever Hamlet como 0 tipo do académico, do especulativo, transportado improvisadamente ao mundo da agio violenta, e ali destinado a fazer Parte do vaso de argila, ea tragédia como a tragédia da impoténcia do intelecto diante das exigéncias da vida pratica.* Erradicar essa inveterada concepgao parece hoje uma empresa nao menos sacrilega e ingrata do que querer demonstrar como 0 sorriso de Monalisa é muito menos complicado do que Walter Pater queria crer. Como quer que seja, € certo que a interpretagao corrente de Hamlet é um arbitrio— ainda que um arbitrio circunspecto —e que é fatal que se chegue a casos extremos desse género toda vez que se examina a obra de arte abstraida das circunstancias de onde surge. O uso de formulas como roméntico, barroco etc. é dar o tom certo a interpretagaio de uma obra de arte ou, em outras palavras, de assinalar os limites dentro do que o problema critico est4 colocado e além do qual esta 0 arbitrio, 0 anacronismo. Aquelas formulas querem somente ter presente o cardter da época na qual a obra foi produzida, a fim de evitar que um acordo de palavras, sons, cores ou formas venha sub-repticiamente preenchido com intengées que so suscitadas na mente do intérprete, mas que certamente no existiam na mente do artista. Andlogos resultados podem provir de intengdes bem distintas. Assim, se em um artista do século XVII como Alessandro Adimari acharmos um soneto de amor para uma bela sepulta, evitaremos de ver isso como uma manifestagaio de necrofilia romantica; se depois extasiar-se por uma bela mulher ferida, nos absteremos de dar a semelhante componente um senso de uma esquisitice mérbida baudelairiana do tipo de Une martyre; mas tendo presente o panconceptismo barroco, atribuiremos a escolha daqueles temas repelentes antes de tudo ao desejo de provocar maravilha através do uso conceptista que se podia fazer deles, Assim, se lermos em Alcm&: 26 errno Nao mais, 6 rapaz do canto doce e voz vibrante, os membros consigo carregar. Ah, fosse eu um martim-pescador, que sobre a flor da onda voa junto ao ‘Acido, impavido coragdo, pdssaro de primavera, purptireo como 0 mar — nfo discerniremos no poeta uma inspirago simile Aquela que invocava em Shelley 0 selvagem espirito do Vento Ocidental: Se eu fosse nuvem doce a voar com ti, onda ofegante em teu poder, e ter 0 impulso de tua forga, menos li- vre s6 que tu, 6 incontroldvel ser. ou fazia exclamar Monti, no rasto de Goethe: Por que nao posso eu a dignidade de um homem depor, e andar confundido com 0 turbilhdo que passa, e co'as penas correr ao vento e lacerar as nuvens, ou nos campos acordar do amplo mar adormecidas dguas e procelas! ou Hélderlin: pra Id me levem Puirpuras nuvens! E que elas possam, @ luz e ao ar, tratar minha tristeza! ou Lamartine: Quando a folha das drvores ao prado desce, ‘Alga-se 0 vento noturno que ao vale a leva; Eamim, que sou igual 4 folha que fenece, 6 vento norte, tal qual ela, me soleva! Pois aspiracao simile é propria dos romAnticos, e Alema nao é um romantico, Na verdade, a intengfio de Alma é revelada pela passagem de Antigone de Caristo que acompanha a citagéio destes versos: “Ele disse que a velhice o havia tornado fraco e incapaz de bailar com os coros e dangar com as meninas.” Alcma evocava o martim- pescador como exemplo das qualidades que ele nao mais possufa: desenvoltura de 27

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