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Performances da oralitura: corpo, lugar da memoria Leda Martins Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Entre siléncio e som riem tambores e sombras. Os meninos criaram meméria Antes de criar cabelos. (Edimilson de Almeida Pereira) Partir de uma palavra Partir numa palavra, Texto, lugar do encontro, (Rui Duarte) Observando-se o belo programa deste evento, notase o reiterado uso do significante meméria, orquestrado em um de seus lugares de reconhecimento, a escrita. Este texto lhes é oferecido como um convite para pensarmos a meméria em um de seus outros ambientes, nos quais também se inscreve, se grafa e se postula: a voz e 0 corpo, desenhados nos ambitos das performances da oralidade e das praticas rituais. Na literatura escrita no Brasil predomina a heranga dos arquivos textuais e da tradicao retérica européia. Mesmo os discursos que se alcaram como fundadores da Tetras n° 26 — Lingua ¢ Literatura: Limites ¢ Fronteiras 63 nacionalidade literdria brasileira, no século dezenove, tinham na série e dicgio literdrias ocidentais sua ancora e base de criagao literdria. A textualidade dos povos africanos indigenas, seus repertérios narrativos e poéticos, seus dominios de linguagem e modos de apreender e figurar o real, deixados 4 margem, nao ecoaram em nossas letras escritas. Bastide j isto antes observara. Risério o reitera: Quando os europeus principiaram a produzir textos no territério hoje brasileiro, os indigenas j4 vinham, ha tempos, produzindo os seus. E assim como os europeus transportaram para ci um dilatado e fecundo repertério textual, também os africanos, engajados 4 forga no maior processo migratério de toda a histéria da humanidade, conduziram suas formas verbais criativas ao outro lado do Atlantico. Logo, ao se voltar pioneiramente para a histéria do texto criativo em nossa extensio geogrifica, 0 romantismo deveria se defrontar, em tese, com os conjuntos formados por textos amerindios e textos africanos. Em tese. De fato, nfo foi bem isto 0 que aconteceu.(...) O texto criativo africano foi ladeado ou ignorado, invariavelmente, naquele nosso ambiente. (...) Dito de outro modo, palavras negras passaram em brancas nuvens. (1993, p.69-70). Nessa ordem, o dominio da escrita torna-se metéfora de uma idéia quase exclusiva da natureza do conhecimento, centrada no algamento da visio, impressa no campo ético pela percepsao da letra, A meméria, inscrita como grafia pela letra escrita, articula-se assim ao campo e processo da visio mapeada pelo olhar, apreendido como janela do conhecimento. Tudo que escapa, pois, 4 apreensio do olhar, principio privilegiado de cognicao, ou que nele nio se circunscreve, nos é ex-btico, ou seja, fora de nosso campo de percepsio, distante de nossa dtica de compreensio, exilado e alijado de nossa contemplacao, de nossos saberes. E somos férteis em nossos recursos de resguardo dessa meméria: 0s nossos livros, arquivos, bibliotecas, monumentos, parques tematicos e, mais recentemente, os avancos tecnolégicos, como hardwares e softwares cada vez mais sofisticados. Mnemosyne, a musa das lembrancas, certamente com isso se inquieta, pois na narrativa mitica, todo o saber que se quer reminiscéncia no pode prescindir de Lesmosyne, 0 esquecimento, esquecimento este que se inscreve em toda grafia, em todo trago que, como significante, traz em si mesmo as lacunas e rasuras do prdprio saber. Nessa perspectiva o graphen grego ¢ muito mais expansivo e inclusivo do que as seculares selegdes seminticas, eleitas pelo Ocidente, nos fazem crer, pois os locais de meméria no se restringem, na propria genealogia do termo, & sua face de inscrigo alfabética, & escrita. O termo nos remete a muitas outras formas e procedimentos de inscrigio e grafias, dentre elas & que 0 corpo, como portal de alteridades, dionisicamnte nos remete. Nos voltejos das etimologias, tentemos uma outra aproximagao. Em umas das Iinguas bantu, do Congo, da mesma raiz, ntanga, derivam os verbos escrever e dangar, ‘Programa de Pés-Graduagio em Letras ~ PPGL/UFSM 64 que realgam variantes sentidos moventes, que nos remetem a outras fontes possiveis de inscrigio, resguardo, transmissio e transcriagio de conhecimento, priticas, procedimentos, ancorados no e pelo corpo, em performance. Mas o que é performance? Pelos varios prismas mesmo de seu uso conceitual e metodoldgico, pelo alcance € quicd amplitude desmesurada, 0 termo performance, conforme Richard Schechner (1988:vi), é inclusivo, podendo a performance ser abordada tanto quanto um leque (ou ventilador) quanto como uma rede. Como um leque inclui por aderéncia modal ritos, performances do cotidiano, cenas familiares, atividades lidicas, 0 teatro, a danga, processos do fazer artistico, assim como, dentre outras praticas, performances de grande magnitude, No leque, todas essas priticas, com seus modos préprios e convengdes especificas, estio dispostos como ambientes nio hierarquizados, numa paisagem horizontilinea, processando-se como um continuum. Pensado como rede, em um outro desenho e visada epistemoldgica, esse sistema organiza-se mais dinamicamente, nio mais pelas relagdes de disposi¢fo no continuum, mas sobretudo pelas interagées ali processadas. ‘A teoria de Schechner, que abraca e tem por objeto tanto as performances teatrais experimentais (no sentido estrito da agio teatral), quanto as ceriménias litdrgicas de culturas predominantemente ritualisticas, desenvolve-se na liminaridade mesma das relagSes entre a pratica teatral e a Antropologia. Dai o seu alcance e as possibilidades {mpares que nos oferece em termos macroscépicos para pensarmos os Ambitos das teorias da performance ¢ as adjungdes temiticas, conceituais e metodoldgicas que dai derivam. Nesse viés, 0 termo performance se acomoda quer no ambito, por exemplo, do teatro ou das narrativas orais, quanto escapa a uma colagem sinonimica com os termos representacio encenagio jé também inflacionados e saturados semanticamente. Todas essas priticas, no entanto, ostensivamente revelam o que Schechner denomina de tstruturas profundas que os conectam performaticamente, por modulagées ou qualidades (repetitividade, provisoriedade, incompletude, transitoriedade, modos de duracio e de consignagio do espaco, etc), pelas técnicas e procedimentos; pelas relagées entre os performers e sua audiéncia, real ou virtual; pela incluso ou exclusto de atividades pré e pés performance que, em muitas praticas, constituem a propria performance; pelos seus efeitos imediatos e/ou extensivos, em termos histéricos, culturais e sociais. Cada uma dessas priticas (0 teatro, a danga, o ritual, o esporte, as atividades Kidicas, os jogos, encenagdes coletivas, atos artisticos e mesmo expresses pulsionais emotivas) sio modos subjuntivos, liminares, géneros performaticos cujas convengées, procedimentos e processos nfo so apenas meios de expressio simbélica, mas constituem em si o que institui a propria performance. Ou seja, numa performance da oralidade, por exemplo, o gesto nao é apenas uma representag4o mimética de um sentido possivel, veiculado pela performance, mas também institui e instaura a prépria performance. Ou ainda, o gesto néo é simplesmente narrativo ou descritivo mas performativo. As praticas performéticas no se confundem com a experiéncia ordinaria, sdo sempre provisérias e inaugurais, mesmo quando se sustentam em modos e métodos de transmissio profundamente enraizados e tradicionais; sempre se apdiam em letras n° 26 — Lingua e Literatura: Limites Fronteiras 65 convengées, estilos ¢ molduras espaciais e temporais, ainda que escorregadias (por exemplo, a constituigio e designacao do espaco, seja ele o edificio-teatro, a rua, um beco, a praca publica, a igreja, um auditério; ou ainda a modulagio da duragio temporal em horas, dias, anos). Pensar, pois, uma poética da performance exigiria de nés considerar nio apenas 0 modo, o escopo, o tamanho e a duragio da performance, como também seu deslocamento e “extensio através das fronteiras culturais e sua penetracio nos mais profundos estratos da experiéncia histérica, pessoal e neuroldgica” humana (Idem, p.283). Esse modo inclusivo de se pensar a performance, tanto como uma qualidade contingente e um atributo de algumas praticas artisticas e culturais, assim como um possivel sistema de universais que encontra seus modos ¢ convengées particulares culturalmente, nfo encontra uma facil definigio, sendo o termo utilizado por Schechner (1988, p.95) na acepgio de restored behavior conditioned/ permeated by play ou twice-bebaved behavior, ou seja, como dupla repeticdo de uma agio j4 repetida, repetigio proviséria, sempre sujeita & revisio, sempre passivel de reinvengio; repetigio que nunca se oferece da mesma maneira, mesmo quando sustentada pela constancia da transmissio. Explorando a rica arqueologia do termo e as relagées entre performance meméria, corpo e conhecimento, Joseph Roach propée-se pensar as genealogias da performance através de trés principios basicos: imaginagio cinética, vortices de ago (habitos) e transmissio deslocada: ‘As genealogias da performance apéiam-se na concepgio dos movimentos expressivos como reservas mneménicas, incluindo movimentos padronizados, rememorados pelo corpo, movimentos residuais retidos implicitamente em imagens ou palavras (ou no siléncio entre elas), movimentos imagindrios fabulados pela mente, nio anteriores & linguagem, mas constitutivos da linguagem, um ensaio psiquico para ages fisicas retiradas do repertério que a cultura prové. (1996, p.26) E dentre desse amplo espectro epistemoldgico que venho atualmente desenvolvendo minhas pesquisas, que tm por objeto a performance e as cenas rituais, por meio das quais penso o corpo e a voz como portais de inscri¢ao de saberes de varia ordem. Minha hipétese é a de que 0 corpo em performance é, no apenas, expressio ou representagio de uma agio, que nos remete simbolicamente a um sentido, mas principalmente local de inscrigSo de conhecimento, conhecimento este que se grafa no gesto, no movimento, na coreografia; nos solfejos da vocalidade, assim como nos aderecos que performativamente o recobrem. Nesse sentido, o que no corpo se repete nfo se repete apenas como hébito, mas como técnica e procedimento de inscricio, recriagio, transmissio e revisio da meméria do conhecimento, seja este estético, filosdfico, metafisico, cientifico, tecnolégico, etc. No Ambito dos rituais afro-brasileiros (¢ também nos de matrizes indigenas), por exemplo, essa concepgio de performance nos Programa de Pés-Graduagio em Letras ~ PPGL/UFSM 66 permite apreender a complexa pletora de conhecimentos e de saberes africanos que se restituem e se reinscrevem nas Américas, recriando-se toda uma gnosis e uma episteme diversas. Nessa perspectiva e sentido, como afirma ainda Roach, “as performances revelam 0 que os textos escondem”. Afinal, como tambem nos alerta Pierre Nora (1994), a meméria do conhecimento no se resguarda apenas nos lugares de meméria (lieux de mémoire), bibliotecas, museus, arquivos, monumentos oficiais, parques tematicos, etc., mas constantemente se recria e se transmite pelos ambientes de meméria (milieux de mémoire), ou seja, pelos repertérios orais e corporais, gestos, habitos, cujas técnicas e procedimentos de transmissio sio meios de criagio, passagem, reprodugio e de preservacio dos saberes. As performances rituais, ceriménias e festejos, por exemplo, sio férteis ambientes de meméria dos vastos repertérios de reservas mneménicas, agSes cinéticas, padrées, técnicas e procedimentos culturais residuais recriados, restituidos e expressos no e pelo corpo. Os ritos transmitem e instituem saberes estéticos, filosdéficos e metafisicos, dentre outros, além de procedimentos, récnicas, quer em sua moldura simbélica, quer nos modos de enunciagao, nos aparatos e convengées que esculpem sua performance. No Ambito dos rituais afro-brasileiros, a palavra poética, cantada e vocalizada, ressoa como efeito de uma linguagem pulsional e mimética do corpo, inscrevendo o sujeito emissor, que a porta, e 0 receptor, a quem também circunscreve, em um determinado circuito de expressio, poténcia e poder. Como sopro, hilito, dicgio e acontecimento performitico, a palavra proferida e cantada grafa-se na performance do corpo, portal da sabedoria. Como indice de conhecimento, a palavra nao se petrifica em um depésito ou arquivo estatico, mas é, essencialmente, kinesis, movimento dinamico, e carece de uma escuta atenciosa, pois nos remete a toda uma poieses da meméria performatica dos cAnticos sagrados e das falas cantadas no contexto dos rituais. O estudo dessa textualidade realca a inscrigio da meméria africana no Brasil em varios dominios: nos feixes de formas poéticas, ritmicas e de procedimentos estéticos e cognitivos fundados em outras modulagées da experiéncia criativa; nas técnicas e géneros de composi¢zo textual; nos métodos e processos de resguardo e de transmissio do conhecimento; nos atributos e propriedades instrumentais das performances, nas quais 0 corpo que danga, vocaliza, performa, grafa, escreve. Dentre esse repertério formal e processual, Antnio Risério destaca os orikis, forma poética nag6-iorub4, como uma das muitas artes da palavra transplantadas de Africa: © oriki nasce no interior da rica malha de jogos verbais, de /adi lingua, que se enrama no cotidiano ioruba. (...) A expansio de uma célula verbal é fendmeno comum no mundo dos textos. Jolles fala de provérbios que se expandem até se converterem em longos poemas proverbiais. Coisa semelhante se passaria entre o oriki-nome e 0 oriki-poema, com o nome atributivo se expandindo verbalmente em diregdo ideal & constituiso de um corpo signico claramente percebido e definido como ‘poético’(...) Na verdade, a expressio letras n° 26 — Lingua e Literatura: Limites e Fronteiras 67 ‘oriki’ designa nomes, epitetos, poemas. Cobre portanto de uma ponta a outra o espectro da criagio oral em plano poético. (1996, p.35) No oriki-poema, por exemplo, Risério observa a expansio de uma célula temitica minima que se desdobra e se expande, “agregando outras unidades que a ela se vinculam por lagos de parentesco lingiifstico, ou por afinidades sintiticas”; “o giro hiperbélico da palavra”; as imagens “amplas, coruscantes e contundentes”; o insélito das metiforas, a nominago encadeada “de uma série de sintagmas que, dispostos em seqiiéncia ou justapostos, atualizam um paradigma do excesso”, configurando a fisionomia do objeto recriado; a técnica de encaixes e 0 jogo de intertextualidades descentradas, aspectos que, em sintese, fazem do oriki uma “fanomelopéia intertextual”. Na paisagem textual de reminiscéncia banto, outras formas poéticas nio apenas recriam, na ordem dos enunciados, a meméria das diésporas africanas no Brasil, como também a inscrevem, como responsos, nas técnicas e performances de muitos géneros narrativos, nas treligas da enunciagio criativa da palavra e dos jogos potticos de linguagem, transcriando a memoria de muitos saberes, de outras dicgdes e fraseados, de outras nervuras poéticas, assim manifestos e vibrantes nesse belissimo cintico, performado em variados timbres vocais e ritmicos, nos rituais dos Congados: Zum, zum zum L4 no meio do mar Zum, zum, zum L4 no meio do mar E o canto da sereia Que me faz entristecer Parece que ela adivinha O que vai acontecer. Ajudai-me, rainha do mar Ajudai-me, rainha do mar Que manda na terra Que manda no ar Ajudai-me, rainha do mar Zum, zum zum LA no meio do mar Zum, zum, zum Lino meio do mar ‘Programa de Pés-Graduagao em Letras — PPGL/UFSM 68 E o canto da sereia E seus prantos muito mais Naquele mar profundo Adeus, minas gerais. Ajudai-me, rainha do mar... (CAntico dos Congados Mineiros) ‘A cultura negra nas Américas é de dupla face, de dupla voz, expressa, nos seus modos constitutivos fundacionais, a disjungio entre o que o sistema social pressupunha que os sujeitos deviam dizer e fazer e 0 que, por imimeras priticas, realmente diziam e faziam. Nessa operagio de equilibrio assimétrico, o deslocamento, a metamorfose e o recobrimento sio alguns dos princ{pios e téticas bisicos operadores da formagio cultural afro-americana, que o estudo das priticas performéticas reiteram e revelam. Nas Américas, as artes, oficios e saberes africanos revestem-se de novos e engenhosos formatos. Como afirma Soyinka (1996, p. 342), sob condigdes adversas as formas culturais se transformam para garantir a sua sobrevivéncia. Ou como argumenta Roach (1996, p. 2): “Na vida de uma comunidade, 0 proceso de substituigio nfo comeca ou termina, mas, sim, continua quando lacunas reais ou pressentidas ocorrem na rede de relagdes que constitui 0 tecido social. Nas cavidades criadas pelas perdas, seja pela morte, seja por outras formas de vacincia, penso que os sobreviventes tentam criar alternativas satisfatérias”. A cultura negra também é, epistemologicamente, o lugar das encruzilhadas. O tecido cultural brasileiro, por exemplo, deriva-se dos cruzamentos de diferentes culturas e sistemas simbélicos, africanos, europeus, indigenas e, mais recentemente, orientais. Desses processos de cruzamentos transnacionais, multiétnicos e multilingiiisticos, variadas formagées vernaculares emergem, algumas vestindo novas faces, outras mimetizando, com sutis diferengas, antigos estilos. Na tentativa de melhor aprender a variedade din&mica desses processos de transito signico, interagdes e intersegdes, utilizo- me do termo encruzilhada como uma clave tedrica que nos permite clivar algumas das formas e constructos que dai emergem (cf. MARTINS, 1995). A nogio de encruzilhada, utilizada como operador conceitual, oferece-nos a possibilidade de interpretacio do trinsito sistémico e epistémico que emergem dos processos inter transculturais, nos quais se confrontam e se entrecruzam, nem sempre amistosamente, priticas performéticas, concepgdes e cosmovisdes, principios filosdficos e metafisicos, saberes diversos,enfim. ; Na concepsio filoséfica nag6/iorub4, assim como na cosmovisio de mundo das culturas banto, a encruzilhada é 0 lugar sagrado das intermediagdes entre sistemas ¢ instancias de conhecimento diversos, sendo freqiientemente traduzida por um cosmograma que aponta para o movimento circular do cosmos ¢ do espirito humano Jetras n° 26 — Lingua e Literatura: Limites ¢ Fronteiras 0 que gravitam na circunferéncia de suas linhas de intersegio (cf. THOMPSON, 1984; MARTINS, 1997). Da esfera do rito e, portanto, da performance, a encruzilhada é lugar radial de centramento e descentramento, intersegées e desvios, texto e tradugées, confluéncias ¢ alteracées, influéncias e divergéncias, fusdes e rupturas, multiplicidade e convergéncia, unidade e pluralidade, origem e disseminacio. Operadora de linguagens de discursos, a encruzilhada, como um lugar terceiro, é geratriz de produgio signica diversificada e, portanto, de sentidos plurais. Nessa concepgio de encruzilhada discursiva destaca-se, ainda, a natureza cinética e deslizante dessa instAncia enunciativa e dos saberes ali instituidos (cf. MARTINS, 1997, p. 25-26). No Ambito da encruzilhada, a propria nogio de centro se dissemina, na medida em que se desloca, ou melhor, é deslocada pela improvisacio. Assim como o jazista retece os ritmos seculares, transcriando-os dialeticamente numa relagio dindmica, retrospectiva e prospectiva, as culturas negras, em seus variados modos de assergio, fundam-se dialogicamente, em relagio aos arquivos e repertérios das tradigdes africanas, européias e indigenas, nos voltejos das linguagens, nos ritos e em muitas outras praticas performéticas que instauram. Nesse ambiente de reminiscéncias, os Congados e Reinados negros, por exemplo, merecem uma especial atencio. Para além de todo um aparato representacional do sagrado que as ceriménias litdrgicas dos Congados restauram (por mim jé revisitados no livro Afrografias da meméria, 1997), hd que se enfatizar nas performances dos Congados toda uma pléiade de procedimentos mneménicos e de técnicas estilisticas por meio das quais alguns dos mais caros principios filosdficos africanos so reprocessados e inscritos na formacio etno-cultural brasileira, como veiculos de civilizacio, verdadeiros, dentre eles os principios da ancestralidade, ou seja, de celebracio dos antepassados e o de uma concepsio alterna e alternativa do tempo. Os Congados, ou Reinados, sto um sistema religioso alterno que se institui no Ambito mesmo da encruzilhada entre os sistemas religiosos cristdo e os africanos, de origem banto, através do qual a devogio a certos santos catdlicos, Nossa Senhora do Rosario, Sdo Benedito, Santa Ifigénia e Nossa Senhora das Mercés, processa-se por meio de performances rituais de estilo africano, em sua simbologia metafisica, convengdes, coreografias, estrutura, valores, concepgdes estéticas e na prépria cosmovisio que os instauram. Performados por meio de uma estrutura simbélica e litirgica complexa, os ritos incluem a participagio de grupos distintos, denominados guardas, e a instalagio de um Império negro, no contexto do qual autos e dancas dramiticas, coroagio de reis € rainhas, embaixadas, atos livirgicos, cerimoniais e cénicos, criam uma performance mitopoética que reinterpreta as travessias dos negros da Africa as Américas. Relatos de viajantes e outros registros orais e escritos mapeiam sua existéncia desde o século XVII, em Recife, e sua disseminagdo por outras regiées do territério brasileiro, em muitos casos vinculados as Irmandades dos Pretos. Em sua estrutura, os festejos dos Congados sio ritos de afligio e religagio fundados por um enredo cosmogénico que se desenvolve através de elaborada estrutura simbélica; um teatro do sagrado, cuja performance festiva nos remete ao cenério do Programa de Pés-Gradwasii em Letras — PPGL/UFSM 70 ritual, concebido por Turner (1982, p. 109) como uma orquestragio de ages, objetos simbélicos e cédigos sensoriais, visuais, auditivos, cinéticos, olfativos, gustativos, repletos de musica e de danga. Como tal, portam valores estéticos e cognitivos, transcriados por meio de estratégias de ocultamento e visibilidade, procedimentos e técnicas de expresso que, cinética e dinamicamente, modificam, ampliam e recriam os cédigos culturais entrecruzados na performance e Ambito do rito, em cujo contexto a realidade cotidiana, por mais opressiva que seja, é substituida e alterada , na ordem simbélica e mesmo na série histérico-social. Todos os atos rituais emergem de uma narrativa de origem, que narra a retirada da imagem de N. S. do Rosério das 4guas. O resumo de uma das versdes conta- nos que: Na época da escravidéo uma imagem de Nossa Senhora do Rosario apareceu no mar. Os escravos viram a santa nas 4guas, com uma coroa cujo brilho ofuscava o sol. Eles chamaram o senhor da fazenda e Ihe pediram que os deixasse retirar a senhora das Aguas. O fazendeiro nfo permitiu, mas lhes ordenou que construissem uma capela para ela e a enfeitassem muito. Depois de construida a capela, 0 sinhé reuniu seus pares brancos, retiraram a imagem do mar e a colocaram em um altar. No dia seguinte, a capela estava vazia e a santa boiava de novo nas éguas. Apés varias tentativas frustradas de manter a divindade na capela, 0 branco permitiu que os escravos tentassem resgaté-la, Os primeiros escravos que se dirigiram a0 mar eram um grupo de Congo. Eles se enfeitaram de cores vistosas e, com suas dangas ligeiras, tentaram cativar a santa. Ela achou seus cinticos e dangas muito bonitos, ergueu-se das aguas, mas nfo os acompanhou. Os escravos mais velhos, entéo, muito pobres, foram 3s matas, cortaram madeira, fizeram trés tambores com os troncos das drvores, os candombes sagrados, ¢ os recobriram com folhas de inhame. Reuniram o grupo e, cantando e dangando, entraram nas 4guas. Com seu ritmo sincopado, surdo, com sua danga telirica e cinticos de fortes timbres africanos, cativaram a santa que se sentou em um de seus tambores e os acompanhou até & capela, onde todos, negros brancos, cantaram e dangaram para celebré-la. Durante as celebragdes, esse mito fundador é recriado ¢ aludido nos cortejos, falas, cantos, dangas e fabulagdes, em um enredo multifacetado, em cujo desenvolvimento 0 mistico e 0 mitico interagem com outros temas ¢ narrativas que recriam a histéria de travessias do negro africano e de seus descendentes brasileiros. Os protagonistas do evento sio muitos, dependendo da regio e das comunidades. As festividades rituais apresentam uma complexa estrutura, incluindo: novenas, levantamento de mastros, cortejos, dangas dramiticas, banquetes, embaixadas, cumprimento de promessas, sob a batuta dos reis Congos. Tetras n° 26 — Lingua ¢ Literatura: Limites ¢ Fronteiras 7 Em Minas Gerais, a diversidade de guardas' engloba, dentre outros, Congos, Mogambiques, Marujos, Catopés, Vilées e Caboclos. Dentre esses, dois grupos, no entanto, destacam-se: 0 Congo e o Mocambique, os que agenciaram a retirada da santa das Aguas. Ambos vestem-se de calgas e camisas brancas. Os Congos, entretanto, além dos saiotes, geralmente de cor rosa ou azul, usam vistosos capacetes ornamentados por flores, espelhos e fitas coloridas, Movimentam-se em duas alas, no meio das quais postam-se os mestres, os solistas, e performam coreografias de movimentos rapidos e saltitantes, as vezes de encenagio bélica e de ritmo acelerado. O grupo de Congos representa a vanguarda, os que iniciam os cortejos e abrem os caminhos, rompendo, com suas espadas e/ou longos bastées coloridos, os obstaculos. O terno de Mocambique, que mais se aproxima do som original dos candombes, recobre-se, geralmente, de saiotes azuis, brancos ou rosa por sobre a roupa toda branca, turbantes nas cabecas, gungat (guizos) nos tornozelos, portando tambores maiores, de sons mais surdos e graves. Dangam agrupados, sem nenhuma coreografia de passo marcado, Seu movimento ¢ lento e de seus tambores ecoa um ritmo vibrante e sincopado. Os pés dos mogambiqueiros nunca se afastam muito da terra e sua danga, que vibra por todo o corpo, exprime-se, acentuadamente, nos ombros meio curvados, no torso e nos pés. O terno de Mocambique é 0 guardiao das majestades, o que representa o poder espiritual maior e a forga telirica dos antepassados, que emanam dos tambores sagrados e guiam 0 rito comunitério. Seus cantares acentuam, na enunciagio lirica e ritmica, a pulsagio Ienta de seus movimentos e os mistérios do sagrado. Todas as variantes da lenda, nas mais diversas regides brasileiras, permitem sublinhar 0 nucleo comum narrado, através do qual se processa essa reengenharia de saberes e poderes na estrutura dos Reinados negros, Hi, basicamente, nas dramatizagSes ¢ performances, trés elementos que insistem na rede de enunciagio e na construgo do seu enunciado: 1°) a descrigio de uma situagio de repressio vivenciada pelo negro escravo; 2°) a reversio simbélica dessa situago com a retirada da santa das 4guas, sendo © canto e danga regidos pelos tambores; 3°) a instituigdo de uma hierarquia e de um outro poder, o africano, fundados pelo arcabouso mitico e mistico. Ao retirar a santa das aguas, imprimindo-lhe movimento, o negro escravo performa um ato de apropriagio e reconfiguragio, invertendo, na dicgio do sagrado, as posigdes de poder entre brancos e negros. A linguagem dos tambores, investida de um thos divino, agencia os cantares e a danga e, de forma oracular, prenuncia uma subversio da ordem social, das hierarquias escravistas e dos saberes hegeménicos. Esse deslocamento interfere na sintaxe do texto catélico, inseminado agora por uma linguagem alterna que, como um estilo e um estilete, grafa-se e pulsa na conjugagio do som dos tambores, do canto e da danga, entrelacados na articulagdo da fala e da voz de timbres africanos. O proprio fundamento do texto mitico catdlico é rasurado, nele se introduzindo, como um palimpsesto, as divindades africanas. Assim, a santa do Rosario evoca também, por deslocamento, as grandes mies ctdnicas africanas, senhoras das Aguas, da terrae do ar. Numa perspectiva que transcende 0 contexto simbélico-religioso, esse ato de deslocamento e repossessio induz 4 possibilidade de reversibilidade e transformagio das Programa de Pis-Graduagao em Letras ~ PPGL/UFSM 72 relagdes de poder do contexto histérico-social adverso. Cresce, portanto, em significlncia o fato de as narrativas e as performances realgarem o agrupamento de diferentes nagdes ¢ etnias africanas, sobrepondo-se as histdricas divergéncias e rivalidades étnicas € lingiisticas. O coletivo superpde-se, pois, a0 particular, como operador de formas de resisténcia social e cultural que reativam, restauram e reterritorializam, por metamorfoses emblematicas, um saber alterno, encarnado na meméria do corpo e da voz, Tanto no enunciado da narra¢do mitica, quanto na performance dramitica que cenicamente a representam, a superacio parcial das diversidades étnicas recria 0 ethos comum e 0 ato coletivo negro como estratégias de substituigdo e reorganizacio das fraturas do conhecimento. Torna-se possivel, assim, ler nas entrelinhas da enunciagio fabular o gesto pendular: canta-se a favor da divindade e celebram-se as majestades negras e, simultaneamente, canta-se e danga-se contra o arresto da liberdade e contra a opressio, seja a escravidao, no passado, seja a do presente. Desse gesto emerge o segundo movimento dramatizado nas narrativas: 0 estabelecimento de uma estrutura alterna de poder que reorganiza as relagées étnicas negras e as posig6es estratégicas af imbricadas. As guardas de Congo abrem os cortejos € limpam os caminhos, como uma forca guerreira de vanguarda. O Mocambique, algado como lider dos ritos sagrados e guardido das coroas que representam as nagées africanas ea Senhora do Rosario, conduz reis ¢ rainhas. O timbre de seus tambores representaria, numa relagio especular engendrada pela fabula, a voz mais genuinamente africana, a reminiscéncia da origem que, iconicamente, traduziria a meméria de Africa. Senhor das coroas e guardido dos mistérios, o Mogambique é a forga telirica e também guerreira que gerencia © continuum africano, reorganizando as relagées de poder, nem sempre amistosas, entre os povos negros dispersos pela Diéspora. Estabelecem-se, portanto, na estrutura paralela de relagdes espaciais dos Reinados negros, novas hierarquias fundadoras do microsistema social, que operacionalizam as redes de comunicagao e as relagdes de poder entre os préprios negros, e entre negros e brancos. A fabula nos revela ainda um processo de substituicio na produgio de objetos aderecos litargicos ¢ a ressignificagio do ambiente geogrifico e simbélico. Assim os escravos produzem seus tambores sagrados com troncos, folhas e cipés, e utilizam as contas-de-légrimas e os materiais disponiveis na geografia americana, no lugar dos opelés e de outros aderecos. Importa-nos assinalar que, em Africa, assim como nas culturas afro-americanas, um dos modos de escrita do corpo esté na utilizagio de conchas, sementes outros objetos céncavos, em tamanhos e cores diferentes, para a feitura de colares, pulseiras e outros adornos que revestem 0 sujeito, além de outros arabescos que ornamentam sua pele e cabelo. Alinhadas numa certa posi¢io e ordem contiguas, as contas, sementes e conchas, assim como certos desenhos, funcionam como morfemas formando palavras, palavras formando frases ¢ frases compondo textos, o que faz da superficie corporal, literalmente, texto, e do sujeito, signo, intérprete ¢ interpretante, simultaneamente. Escrita nos e pelos adornos, "a pessoa emerge dessas escrituras, tecida de meméria e fazendo meméria", (ROBERTS, 1996, p. 86). Toda a histéria de constituigio dos Congados (violentamente reprimidos e perseguidos da segunda metade do séc. XIX até meados do séc.XX), e das culturas negras Tetras n° 26— Lingua e Literatura: Limites ¢ Fronteras 73 em geral, parece-nos revelar a primazia desses processos de deslocamento, substituigo e ressemantizagio, suturando os vazios e as cavidades originadas pelas perdas. A instituiggo desse poder alterno, que ainda hoje fermenta varias comunidades negras, prefigura as estratégias de resisténcia cultural e social que pulsionaram as revoltas dos escravos, a atuagio efetiva dos quilombolas e de varias outras organizages negras contra © sistema escravocrata. Como nos revela 0 aforismo popular, as contas do meu rosario sao balas de artilbaria. Ou como afirma Roach (1995, p. 61), “os textos podem obscurecer 0 que a performance tende a revelar: a meméria desafia a histéria na construgio das culturas circum-atlinticas, e revisa a épica ainda nfo escrita de sua fabulosa co-criagao”. Na narrativa mitopoética, nos cantares, gestos, dangas e em todas as derivagSes litdrgicas do cerimonial do Reinado, o congadeiro canta e danga a divindade catélica e, com ela, as nanas das 4guas africanas, Zimbi, o supremo Deus banto, os antepassados e toda a sofisticada gnosis africana, resultado de uma filosofia tebirica que reconhece na natureza uma certa medida do humano, nfo de forma animistica, mas como expresso "de uma complementaridade césmica necessaria, que nfo elide o sopro divino e a matéria, em todas as formas e elementos da physis césmica. A fabula, portanto, configura o rito de passagem de uma situagdo de aflicao, fragmentaco e desordem para uma nova ordem social, politica, artistica e filoséfica que reconfigura 0 copu: cultural, subverte a relagio dominador/dominado e insemina o tecido religioso catélico com a teliirica teologia africana. Toda a meméria desse conhecimento é institufda na e pela performance ritual dos Congados, por meio de técnicas e procedimentos performiticos veiculados pelo corpo, em varios de seus atributos, dentre eles a voz, numa refinada estilizagio estética e artesanal. O universo de cogni¢io expresso nos rituais dos Congados transcria, nas Américas, estilos artisticos africanos, modos de vivéncia e de pertencimento, uma percep¢io e compreensio do cosmos diferenciadas, assim como uma singular reflexio sobre o sagrado que transcende os idiomas metafisicos ocidentais. Um conhecimento, enfim, veiculado pela palavra proferida e cantada, e pela misica, coreografada na danga. Segundo o filésofo Fu-Kiau Bunseki, a Africa é 0 continente dangante, na medida em que a miisica e a danga permeiam toda e qualquer atividade, sendo uma forma de inscrigio e transmissio de conhecimentos e valores. Todo som, todo gesto, em Africa, significam, 0 que faz Robert Farris Thompson afirmar que a “Africa introduz uma diferente historia da arte - a histéria de uma arte dancante” (1979, xii). No Ambito da performance dos Congados, por exemplo, em seu aparato - cantos, dancas, figurinos, aderegos, objetos cerimoniais, cendrios, cortejos e festejos -, € em sua cosmovisio filosdfica e religiosa, reorganizam-se os repertérios textuais, histéricos, sensoriais, organicos e conceituais da longinqua Africa, as partituras dos seus saberes e conhecimentos, 0 corpo alterno das identidades recriadas, as lembrangas ¢ as reminiscéncias, 0 corpus, enfim, da meméria que cliva e atravessa os vazios e hiatos resultantes das didsporas. Os ritos cumprem, assim, uma fungio pedagégica paradigmatica exemplar, como modelo e indice de mudanca e deslocamento, pois, segundo Turner (1982, p. 82), “...como um ‘modelo para’ o ritual pode antecipar, e até Programa de Pés-Graduagao em Letras ~ PPGL/UFSM 74 mesmo gerar mudanga; como um ‘modelo de’ pode inscrever ordem nas mentes, corages e vontade dos participantes.” Esse processo de intervengao no meio e essa potencialidade de reconfiguragio formal e conceitual fazem dos rituais um modo eficaz de transmissio e de reterritorializagio de uma complexa pletora de conhecimentos, dentre eles uma instigante concepgao de cronos, o tempo. No caso brasileiro, os ritos de ascendéncia africana, religiosos e seculares, reterritorializam uma das mais importantes concepgdes filosdfica e metafisica africanas, a da ancestralidade que “constitui a esséncia de uma visio que os tedricos das culturas africanas chamam de visio negra-africana do mundo. Tal forga faz com que os vivos, os mortos, o natural e o sobrenatural, os elementos césmicos e os sociais interajam, formando os elos de uma mesma e indissohivel cadeia significativa...” (PADILHA, 1995, p. 10). A concepgio ancestral africana inclui, no mesmo circuito fenomenoldgico, as divindades, a natureza césmica, a fauna, a flora, os elementos fisicos, 0s mortos, 0s vives e os que ainda vio nascer, concebidos como anelos de uma complementariedade necessdria, em continuo processo de transformagio e de devir. Segundo Ngugi wa Thiong’o (1997, p. 139), na cosmovisio africana, nés que estamos no presente somos todos, em potencial, mies e pais daqueles que virio depois. Reverenciar os ancestrais significa, realmente, reverenciar a vida, sua continuidade e mudanga. Somos os filhos daqueles que aqui estiveram antes de nds, mas nfo somos seus gémeos idénticos, assim como nfo engendraremos seres idénticos a nds mesmos.(...) Desse modo, o passado torna-se nossa fonte de inspiragio; © presente, uma arena de respiracio; e o futuro, nossa aspiragio coletiva. Essa percepgio césmica e filosdfica entrelaca, no mesmo circuito de signific&ncia, o tempo, a ancestralidade e a morte. A primazia do movimento ancestral, fonte de inspiragéo, matiza as curvas de uma temporalidade espiralada, na qual os eventos, desvestidos de uma cronologia linear, estio em processo de uma perene transformagio. Nascimento, maturagdo e morte tornam-se, pois, contingéncias naturais, necessdrios na dinamica mutacional e regenerativa de todos os ciclos vitais e existenciais. Nas espirais do tempo, tudo vai e tudo volta. Para Fu-Kiau Bunseki (1994, p. 33), nas sociedades nicongo, vivenciar o tempo significa habitar uma temporalidade curvilinea, concebida como um rolo de pergaminho que vela e revela, enrola e desenrola, simultaneamente, as instdncias temporais que constituem o sujeito. O aforisma kicongo, Ma’kwenda! Ma’kwisa!, 0 que se passa agora, retornard depois traduz com sabor a idéia de que o que flui no movimento ciclico permanecerd no movimento, Essa mesma idéia grafa-se em uma das mais importantes inscrigdes africanas, transcriada de varios modos nas religides afro- brasileiras, os cosmogramas, signos do cosmos e da continuidade da existéncia, também presentes nas coreografias dos Congos. Nessa sincronia, o passado pode ser definido letras n° 26— Lingua ¢ Literatura: Limites ¢ Fronteiras 75 como o lugar de um saber e de uma experiéncia acumulativos, que habitam o presente € 0 futuro, sendo também por eles habitado. A mediagio dos ancestrais, manifesta nos Congados pela forca (axé) dos candombes (os tambores sagrados), a clave-mestra dos ritos e é dela que advém a poténcia da palavra vocalizada e do gestus corporal, instrumentos de inscriglo e de retransmissio do legado ancestral. Na performance ritual, o congadeiro, simultaneamente, espelha-se nos rastros vincados pelos antepassados, reificando-os, mas deles também se distancia, imprimindo, como na improvisagio melédica, seus préprios tons e pegadas. Nos rituais, “cada repeticao é em certa medida original, assim como, a0 mesmo tempo, nunca é totalmente nova” (DREWAL, 1992, p. 1). Esse processo pendular entre a tradi¢fo e a sua transmissdo institui um movimento curvilineo, reativador e prospectivo que integra sincronicamente, na atualidade do ato performado, © presente do pretérito e do futuro. Como um logos em movimento do ancestral a0 performer e deste ao ancestre e ao infans, cada performance ritual recria, restitui e revisa um cfrculo fenomenolégico no qual pulsa, na mesma contemporaneidade, a acZo de um pretérito continuo, sincronizada em uma temporalidade presente que atrai para si o passado e o futuro e neles também se esparge, abolindo nfo o tempo, mas a sua concepsio linear e consecutiva. Assim, a idéia de sucessividade temporal é obliterada pela reativacio e atualizagio da ago, similar e diversa, j4 realizada tanto no antes quanto no depois do instante que a restitui, em evento. Na genealogia performética dos Congados, a palavra vocalizada ressoa como efeito de uma linguagem pulsional do corpo, inscrevendo 0 sujeito emissor num determinado circuito de expressio, poténcia e poder. Como sopro, hilito, diego e acontecimento, a palavra proferida grafase na performance do corpo, lugar da sabedoria. Por isso, a palavra, indice do saber, nao se petrifica num depésito ou arquivo imével, mas é concebida cineticamente. Como tal, a palavra ecoa na reminiscéncia performatica do corpo, ressoando como voz cantante e dangante, numa sintaxe expressiva contigua que fertiliza o parentesco entre os vivos, os ancestres e os que ainda vio nascer. Forga e principio dindmicos, a palavra faz-se linguagem “porque expressa € exterioriza um processo de sintese no qual intervém todos os elementos que constituem 0 sujeito”(SANTOS, 1988, p. 49). Por isso necessita da musica, da danga, do ritmo, das cores, do gestus performético e da adequagio para a sua realizagio, Dai a natureza numinosa da voz e 0 poder aurdtico do corpo nas religiées afro-brasileiras, ressondncias da sua africanidade. Segundo Sodré (1998, p. 67), junto “com as palavras, junto com o som, deve dar-se a presenga concreta de um corpo humano, capaz de falar e ouvir, dar e receber, num movimento sempre reversivel”. Assim, “cantar/dancar, entrar no ritmo, é como ouvir os batimentos do préprio coragio - é sentir a vida sem deixar de nela inscrever a morte” (p.23); sendo o préprio ritmo o movimento “do impulso que leva o corpo a garimpar a falta” (p.68). Para o congadeiro, esse saber institui-se também espacialmente. Espaco visitado é sitio consagrado, reterritorializado. Os cortejos e caminhadas revisitam lugares reconhecidos, refazem os circulos em torno de mastros, cruzeiros e igrejas, percorrem ‘Programa de Pés-Graduayao em Letras — PPGL/UFSM 76

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