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A Construcio do eu na Modernidade OS PROCEDIMENTOS DE CONTENCAO DO EU Acompanhamos, nesta parte, algumas das ‘medidas tomadas para o restabelecimento de referéneias para a colocagdo do homem no mundo. Elas estario voltadas ao préprio eu, nna figura do auto-controte. A nova valorizagao do ser humano e a imposigdo de que ele construa sua existéncia e descubra valores segundo os quaais viver, aliada a toda a dispersio e fragmentago do mundo, que apontamos acima, levario & tentativa de eriagao de mecanismos para o dominio ¢ formagio do eu. E na formagao destes procedimentos —“modos de ser” que poderemos comegar a reconhecer os rumos que levario Psicologia. Citando uma vez mais Figueiredo: “(..) tio importantes ou até mais importantes do que @ abertura de espagos de liberdade individual, com se vé acontecendo 20 longo do proceso de desintegragio das ‘civilizagdes fecha- das’, sio as tentativas de circunscrever estes espagos, Assim ssendo, as experiéneias subjetivas no sentido modemo do termo € que vieram a se converter em objeto de um saber e de uma intervengio psicoldgicos devem a sua emergéncia tanto as vivéneias de diversidade e ruptura como ds tentativas de orde- hago e costura, ou seja, a todas as praticas reformistas que implicavam uma subjetividade individualizadae uma tens sus- tentada entre dreas ou dimensdes de liberdade edreas ou dimen- ies de submissdo.(..) Como se vé, 0 ‘individuo’, a0 contrério do que o termo sugere, nasce da dispersio e traz uma cisiio interior inscrita em sua natureza." Pedro Luis Ribeiro de Santi Impde-se ao homem, a partir de agora, escolher 0 seu caminho, Essa escolha implica em uma construgao da identidade, e todos os exemplos mostram-nos como isso exige um esforgo brutal, {quase sobrehumano; o homem deve dominar a dispersio que o mundo 6.0 camaval de Rabelais seri contido, 0 corpo e suas fungdes serdo calados em favor da coesdo e da ordem do sujeito. Durante a Idade Média, era relativamente dificil explicar como era possivel ser responsabilizado pot pecar: se a pessoa niio era livre e apenas cumpria os planos de Deus, como responsabiliza- la? No Renascimento, a questo pode ser equacionada de outra forma: Deus fez 0 homem livre para que ele possa ser julgado; ele pode escolher um bom caminho ¢ ser recompensado por isso, mas pode set desviado dele por tentagdes ¢ disperses ~e o mundo renascentista as oferece em quantidade- e, ent, ser responsabilizado e punido por isso, A questo passa a ser: 0 que eu devo ser? Como devo me formar? Em termos mais psicolégicos, como construir uma identidade? Ha varios exemplos de modos de constituigdo de identidade no Renascimento, Talvez 0 mais conhecido seja 0 de Dom Quixote de La Mancha, personagem de Cervantes, que se identifica com 0 ideal do cavaleiro andante medieval e procura afirmar-se. A evocagaio deste exemplo ja sugere que a afirmagao de uma identidade coesa pode assemethar-se a alucinag0, na medida em que ela deve impor- se sobre o mundo, ele proprio em frangalhos. Passemos agora a um exemplo concreto de procedimento vislumbrado no século XVI para a constituigdo de uma identidade corsa, que consiga nao se deixar levar pela dispersio. O pensamento religioso, adaptando-se aos tempos como sempre, produziré, sobretudo através de Santo Inicio de Loyola, procedimentos para a afirmago daidentidade sobre a dispersio do sujeito, guiando-o de volta a Deus. Santo Inacio converteu-se &religiao ja adulto. Ele havia sido militar, ¢ uma das caracteristicas mais marcantes que impOs a seu sistema foi a disciplina, Tendo fundado a Companhia de Jesus imprimiu um traco distintivo dos jesuitas até hoje, sua iniciativa prética pregacdo militante, Santo Inacio parte do mundo renascentista, reconhecendo a literdade humana, mas constata a perdigao do homem © buscar 37 38 A Construgo do eu na Modemidade ‘mostrar-Ihe 0 caminho do reencontro com a ordem, Seu procedimento, propriamente humanista, faz escola até hoje: o homem é livre para ser 0 que é ¢ parece estar perdido; ele precisa e pode, portanto, dirigir sua livre vontade ao caminho correto para se encontrar. O que cle precisa é de um manual de instrugdes, uma técnica para dirigir sua agio. Em Os Exercicios Espirituais, so propostos uma série de procedimentos, com a duragio de 28 dias, cujo cumprimento rigoroso deveri levar o praticante a iluminago, Uma vez mais, vale 4 pena reproduzir alguns trechos da obra: TEXTO ANEXO — Santo Igndcio de Loyola EXERCICIOS ESPIRITUAIS “It Anotagao. Por esta expresso, Exercicios Espirituais, entende-se qualquer modo de examinar a consciéncia, meditar, contemplar, orar Vocal ou mentalmente, ¢ outras atividades espirituais, de que adiante falaremos. Porque; assim como ppassear, caminhar e correr Sto exercicios corporais, também se chamam exercicios espirituais os diferentes modos de a pessoa se preparar e dispor para tirar de si todas as afeigées desordenadas, e, tendo-as afastado, procurar e encontrar a vontade de Deus, na disposicao da sua vida para o bem da ‘mesma pessoa.” (p. 11-2). “5* Anotagdo. Muito aproveita ao exercitante entrar neles ‘com grande dnimo ¢ liberalidade para com seu Crindor ¢ ‘Senhor, oferecendo-the todo 0 seu querer e liberdade, para que sua divina majestade se sirva de sua pessoa e de tudo quanto possui, conforme a sua santissima Vontade.” (p. 15), “EXERCICIOS ESPIRITUAIS PARA O HOMEM SE VENCER A SIMESMOE ORDENAR A PROPRIA VIDA, ‘SEM SE DETERMINAR POR NENHUMA AFEICAO DESORDENADA"(p.27) PRINCIPIOE FUNDAMENTO. O homem ¢ criado para louvar, reverenciar ¢ servir a Deus Nosso Senhor, ¢ assim salvar a sua alma, E as outras ccoisas sobre a face da terra so criadas para o homem, para que 0 ajudem a aleangar o fim para que & eriado, Donde se Pedro Luis Ribeiro de Santi segue que hii de usar delas tanto quanto o ajudem a atingir 0 seu fim, ¢ ha de privar-se delas tanto quanto dele o afastem. Pelo que € necessirio tornar-nos indiferentes a respeito de todas as coisas criadas em tudo aquilo que depende da ‘escolha do nosso livre-arbitrio, e no Ihe é proibido. De tal ‘maneira que, de nossa parte, nfo queiramos mais satide que doenca, riqueza que pobreza, honra que desonra, vida longa, {que breve, ¢ assim por diante em tudo 0 mais, desejando & ‘escolhendo apenas o que mais nos conduz ao fim para que somos eriados.” (p. 28). ‘~REGRAS PARA SENTIR VERDADEIRAMENTE COMOSE DEVE NA IGREJA MILITANTE IF regra, Renunciando a todo juizo préprio, devemos ‘estar dispostos e prontos a obedecer em tudo & verdadeira esposa de Cristo Nosso Senhor, isto é, 4 santa Igreja hicrirquica, nossa mae.” (p. 188) “0 regra, Louvar finalmente todos os preceitos da santa Igreja, e estar disposto para procurar razSes em sua defesa, e nunca para os eriticar.” 3" regra, Para em tudo acertar, devemos estar sempre dispostos a crer que © que nos parece branco & negro, se assim 0 determina a Igreja hierirquica; persuadidos de que entre Cristo Nosso Senhor -o esposo- e a Igreja ~sua Esposa-nio ha sendio um mesmo Espirito, que nos governa c dirige para a salvago das nossas almas. Porque é pelo ‘mesmo Espirito e mesmo Senhor, autor dos dez mandamentos, ‘que se dirige e governa a santa Igreja, nossa Mie.” “15*regra. Habitualmente nio devemos falar muito de predestinagio. Mas se em alguma ocasiio se falar disso fag se de maneira que os simples fis ndo caiam em algum erro, Algumas yezes isso acontece, quando concluem: “Se jé esté determinado que me vou condenar ou salvar, no So as, minhas agdes boas ou mis que hao de mudar esta determinagao”. E com este raciocinio tornam-se negligentes € descuidam as obras que conduzem a salvagdo e a proveito espiritual das suas almas.”(p. 192) “17% regra. Igualmente no devemos ins raga a ponto de se produzir 0 veneno que nega a liberdade. Pode-se com certeza falar da f&e da graca, mediante 0 auxilio ir tanto na 39 A Construgo do eu na Modernidade divino, para maior louvor de sua divina Majestade, mas no de tal forma nem por tais modos, mormente em nossos tempos 40 perigosos, que as obras e 0 livre-arbitrio sejam prejudicados ou mesmo negados.” (p. 193), Assim, a liberdade humana é reconhecida apenas para se the atribuir a causa da perdigao humana. Curiosamente, a salvagio implica justamente em abrir mao de forma absoluta dessa liberdade, transferindo-a & autoridade religiosa com toda a boa-vontade e determinagao, A submissio do sujeito deve ser absoluta, esse ¢ 0 rego @ pagar pelo repouso numa certeza sem conflitos. Exige-se disciplina, dedicacao e, sobretudo, que se abra mao da propria experiéncia imediata em favor da palavra da Tgreja. Se, ao fim dos 28 dias, a iluminag4o no chegou, isso nao se deve a uma falha do método, mas certamente 4 pouca fé e a fraqueza da vontade do exercitante"*, E bastante visivel o quanto parte daqui a inspiragao de um género literario de bastante sucesso no final do século XX, chamado “Psicologia de auto-ajuda”. A crenga na liberdade humana absoluta, que diz que podemos atingir quaisquer que sejam nossos objetivos, envolve um forte sentimento de culpa: se somos o que fazemos de nds, esta infelicidade na qual nos encontramos foi produzida por nos, ‘nds amerecemos. A premissa do titulo de um livro como “S6 é gordo quem quer”, poderia ser derivada em “s6 € pobre quem quer”, ou “SO é brasileiro quem quer”. etc. A tinica determinago reconhecida Para nosso ser é a prépria vontade; todas as determinacdes histéricas, sociais, genéticas, etc, so simplesmente negadas. A cada época, a falta de sentido de nossa existéncia mostra- Se preza fécil das “autoridades de plantéo” a nos oferecer generosamente seu manual de como viver. Mais importante do que esta produgdo, é a percepgaio de como a Modernidade parece implicar * Santo Inécio antecipa de forma espantosa alguns dos mais importantes pensadores do século XVII: Descartes e Hobbes. Mais perto de nds, antecipa também as Psicologias humanistas ou de auto-ajuda e ainda alguns cultos religiosos ¢ procedimentos de Marketing. 40 Pedro Luis Ribeiro de Santi neste sentimento de vazio ¢ cria a demanda por nos formarmos continuamente, MUSICA ~ UMA POLIFONIA MAIS COMPORTADA ‘Uma vez mais, a méisica nos auxiliaré na exemplificagio de um conceito, No final do século XVI, a polifonia parece ¢gradativamente tomar-se mais bem comportada, As vozes miltiplas vio sendo harmonizadas ¢ nao se tem mais a impressio de ruido: clas simplesmente sio disciplinadas, dispostas de tal forma que componham um todo equilibrado. Estamos a um passo da “fuga” (estilo proprio ao século XVII). Mesmo as letras parecem mais comportadas, evocando a contra-reforma. Nio seré possivel retomnar 0 universo do canto gregoriano, mas serd possivel buscar ordem deatro da diversidade, como vimos através de Santo Indicio. Eis uma curiosa letra, composta por Mateo Flecha, El Viejo, ‘num género que tem 0 evocative nome de Las Ensaladas: EL FUEGO - Mateo Flecha, El Viejo Corred, corred, pecadores! No os tardéis a traer luego ‘agua al fuego, agua al fuego! Fuego, fuego, fuego! Este fuego que se enciende eel maldito peccado, que al que no halla ocupado siempre para silo prende. Qualquier que de Dios pretende salvacion, procure luego agua al fego, agua al fuego. EL fuego” © La Nogrina®,exiaidas de “Las Ensaladas, Sony Musi 1951". Ambas s80 ainda polifonis, compostas de varios fragmentos fnitosc meno dvr iin, pe snr es rm composi rigorous, Oug amb inicio da" tne Pape farce de Palestina, extrada de "Baroque. Palestrina e Momteverd EMI Classics, 198 4l A Construgao do eu na Modemidade Fuego, fuego, fuego! Venid presto, peccadores, matar aqueste fuego; Haced penitencia luego de todos vuestros errores. Reclamen essas campanas dentro en. vuestros coragones, Dandén, dandén, dandén, Poné en Dios las aficiones, todas las gentes humanas, Dandén, dancin, dandén, Llamad essos aguadores, Iuego, luego, sin tandar! Y aytidennos a matar este fuego. No os tardéis en traer luego dentro de yuestra conciencia mil cargos de penitencia de buen’ agua, ¥y ansi mataréis la fragua de vuestros malas deseos, y los enemigos feos huyran. A expressio ‘salada’ é especialmente propria para definir a Polifonia, neste caso. Mesmo ja se tratando de uma misica mais contida, nao faltam misturas de temas musicais, idiomas — aparentemente, trata-se de uma colegao de trechos de canges unidos ao gosto do compositor. Ja mais ao final do séeulo, encontramos uma musica propriamente equilibrada e muito bonita, um dos methores frutos da religido, a misica sacra. Tomemos agora outro exemplo bem mais cruel ¢ naturalista de procedimento de afirmagao do sujeito: O Principe, obra de Maquiavel do comego do século XVI. Trata-se de uma série de prescrigdes sobre como bem governar. Em nosso contexto —isto Poderia se traduzir assim: que tipo de sujeito um principe deve ser? Como deverd ser seu “eu”?, Seu principio é 0 de que o mundo (figurado pela figura do Pedro Luis Ribeiro de Santi Povo) € voliivel -voltando-se para aquilo que representa seu interesse mais imediate-, sem memiéria, egoista e, enfim, mau. A grande preocupacio de Maquiavel éa fragmentagao da Ttdlia ea sua invastio por barbaros. E necesséria a imposigao de um sujeito forte. O governante nijo tem outra opgo que se afirmar a forea, criar aliangas mais pelo temor do que pelo amor, como iinica forma de estabelecer uma unidade a dispersio. O valor primeiro de tudo seri a obtengio & manutengio do poder centralizado, Para tanto, no ha que se ter vergonha por fazer qualquer coisa neste sentido, mesmo matar a ‘quem quer que represente uma ameaga ao poder. O principio ético & © da afirmagao do poder. Maguiavel foi tomado como imoral e desumano (de seu nome deriva o adjetivo ‘maquiavélico’, que atualmente significa ardiloso, maldoso). No entanto, se inserimos 0 discurso de Machiavel nesse contexto de crise da fé em um poder transcendente ¢ entendemos 0 ‘medo da dissolugao, talvez tome-se mais compreensivel a radicalidade © a urgéncia de seus preceitos. Abaixo, seguem-se trechos de O principe. TEXTO ANEXO ~ Nicolé Machiavelli O PRINCIPE “(..) € que 0 homens, com satisfaglo, mudam de senor Pensando melhorare esta crenga faz.com que lancem mao de ‘armas contra o senhoratual, no que se enganam porque, pela propria experiéncia, percebem mais tarde ter piorado a sitwagio.”(p. 11) “E quem conquista, querendo conservé-los {0 poder co dominio] deve adotar das medidas: a primeira, fazer com que linhagem do antigo principe seja extinta; a outra, aquela

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