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CORPO FECHADO/CORPO CURADO por: José Flavio Pessoa de Barros * & Maria Lina Leao Teixeira ** ot oD ( unt™ (*) Professor Adjunto Filosofia e Ciénci de Janeiro, Dept? de Cigncias Sociais, Instituto de Sociais, Universidade Federal do Rio (#8) professor Assistente, Dept? de Ciéncias Socials, Institute de Filosofia e Cigncies Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. A questa central deste trabalho diz respeito as re presentacdes que incidem sobre o corpo dos participantes de Terreiros de Candomblé da cidade do Rio de Janeiro e areas circunvizinhas, sob forma de cicatrizes ou marcas que sido ritualmente impressas. A an@lise procedida tem como base o ritual denomina do de "cura"“!), realizado anualmente durante a Semana Santa, assim como no processo iniciatico - "feitura do santo” - da~ queles que se integram na hictrarquia sdcio-religiosa, Consi- dera-se 0 corpo humano como uma construgdo social, cuja com- preensao @ importante para o desvendamento da estrutura que o molda. Portanto, as marcas que sobre ele incidem fornecem um universo simbélico essencialmente relacionado a expressao da religiosidade, ao mesmo tempo que estao estreitamente as ssociadas com aspectos econdmicos e politicos. A metodologia empregada para o desenvolvimento da andlise simbdlica segue 0 proposto por Turner (1971) e com preende: 1 - 0 nivel exegético que corresponde ao corpo de explicagSes fornecide pelos adeptos sobre o ritual em quesé do; 2 - 0 nivel operatério, a descrigio pormenorizada do ritual; e, 3 - 0 nivel posicional ou andlise, no qual sao er ticulados o falar sobre e o fazer do ritual da "cura" com outros simbolos dessa perspective religiosa. (1) A fala dos participantes dos Terreiros se encontra entre aspas e esta grafada de acordo com a maneira de falar e/ou escrever dos adeptos. L 0 Candonbié & encarado como un complexo cuttural, vis Q to ser o resultado da reelaboragio de visdes de mundo e de ethos provenientes das miltiplas.etnias africanas que, a par- tir do século XVI, foram introduzidas pelo trafico de escravos no Brasil. Termos como "Terreiro”, "Roga", "Casa de Santo” , “T18" ou “Abassd" so utilizados usualmente para nomear tanto os espagos geograficos ocupades pelas comunidades como os gru_ pos religiosos que cultuam as divindades - forgas da natureza ~ originalmente africanas: "Orixas", "Voduns" € "tnquices"(?), Tais comunidades religiosas reunem negros, mestisos © brancos (nacionais e estrangeiros) © possuem caracteristicas que as diferenciam entre si, assim como constituem referencia importantes para a identificagdo dos participantes (iniciados) e adeptos. Estes referenciais se apresentam manifestos nas diferengas litGrgicas, na organizagao social e nos processos de aquisig’o e transmissdo de conhecimentos. No entanto, @ tradigao oral, a reclusao durante a iniciagdo e a possessao pelas divindades formam um conjunto de praticas que torna evi dente um patriménio cultural comum. pesta forma, independentemente da configuragéo espa- cial e das auto-denominagdes que se atribuem, essas comuniday ee erie eeee eonerenoniadicicuor Guctcac, ocets aloe. ue hierarquia sdcio-religiosa ¢ que ficam ligados por Lasos de parentesco mitico através do cumprimento, parcial ow integral, lades cultuadas em Terreiros (2) 0 primeire termo refere-se a divin 8 e der tradigae ioruba, enguanto que o segundo associorse 3 6ra digdo j@je e 0 terceiro & congo-angola. de um processo iniciatico. 0 principio de senioridade governa as relagdes interpessoais e da ensejo 4 formagao de uma exten sa rede de relacionamento que, por sua vez, subentende uma interdepend@ncia intra e extramuros a cada comunidade. 0 constante intercambio sdcio-religioso promove,por conseguinte, uma comunidade mais ampla e de maior complexida- de que pode ser genericamente denominada de "povo-de-santo" A rede de relacionamentos que entrelaga "Terreiros", "Rogas", "I1Ge" e “Abassas" entre si, torna-se uma instancia essencial para a demarcagao e manutengao de identidades especificas re lacionadas 3s tradigées diversas apregoadas por cada grupo @), religioso No entanto, por mais importantes que sejam essas dentidades ou a alusdo a uma "africanidade", elas subenten- dem o processo dinamico de intercambio e de trocas de influ- @ncias com a sociedade brasileira mais ampla. Isto quer di- zer que apesar de caracterizerem maneira de ser diferencia~ das e diferenciaveis, as identidades assumidas estao marca~ das também pelos padrdes hegemdnicos da sociedade na qual se encontram inseridas os grupos religiosos sob estudo. As diferengas encontradas cm mitos, linguajares a_ fricanizados e ceriménias de cada espago religioso nao a- fetam a unidade simbdlica que une as varias comunidades que, a partir de um contrato minimo, estabelecem vinculos com nuns de sobrevivéncia, organizagao estrutural, trocas e equi = as "nagoes" - aludem as possiveis (3)Essas autodenominagdes i onginente africano, Comunigades “kety" Ligagdes com.partes do angola’, “jeje”, Nefam", "ijexa” etc, ow ainda, "ketu-efan" "angola-congo", "jéje~ ago" etc., constituem identidades cul-’ turais e ndo identidades étnicas. valéncia de divindades. - UMA LEITURA DO coRPO As marcas e inscricgdes produzidas no corpo humano com poem um sistema de comunicagdo - uma grafia - que objetiva a identificagao através de miltiplos signos. De acordo com Ro- drigues (1975:62) "se considerarmos todas as modelagées que so fre, constataremos que o corpo pouco mais que uma massa de modelagem 4 qual a sociedade imprime formas segundo suas pré - prias disposigdes: formas nas quais a sociedade projeta a fisio nomia do seu préprio espirito". Segundo Chevalier & Gheerbrandt (1988:871) a identifi casio sempre adquire um sentido duplo: 0 de adaptar os indivi- duos is virtudes ¢ Eorgas do ser-objcto impresso no corpo e 0 de imunizar o primeiro contra as possibilidades maléficas do segundo. Dembo & Imbelloni (1933:45) afirmam que as escarifi cagdes e as tatuagens constituem-se numa verdadeira linguagem €, por conseguinte, expressam um céddigo e um meio de identifi cago de grupos e individuos. No continente africano, as sociedades tribais impri_ miam e continuam a imprimir em seus individuos sinais diacri- ticos em diferentes partes do corpo, tanto como adornos,quan- to para marcagao Stnica e para a estipulagao dos vinculos so- ciais e religiosos. Rugendas (1979) e Debret ( 1972) mos- tram a incid@ncia de marcas étnicas diversificadas no contin- gente escravo espalhado pelas diversas regides do Brasil co~ lonial. Durante a escravidao, os negros africanos e seus des cendentes recebiam a marca da posse ~ 0 selo ~ de seus donos. Estes selos simbolizavam a sujeicfo imanente & condigdo de es- cravo ao mesmo tempo em que serviam de indicadores para identi ficagdo dos foragidos nos casos de captura apés a fuga. No final do século XIX, por ocasiao da Aboligao e da Proclamagao da Republica, tais marcas (étnicas e/ou de posse ) adquirem uma outra conotacao: a de serem sinais de pertenca a uma determinada camada social considerada inferior, paralela- mente a constituirem um indicio de vinculagéo a um determinado grupo religioso das entdo aicunhadas’ ‘praticas fetichistas ou animistas (Nina Rodrigues, 1935). Por outro lado, as marcas Ztnicas valorizavam,no interior das associagées religiosas ne_ gras os individuos que as portavam, conferindo-lhes um status especial na hierarquia religiosa: eram africanos. Estes eram con "conhece- derados potencialmente"mais fortes e poderosos dores dos segredos dodfeitigo", de acordo com o discurso de nossos enerpyincaacas7 apse do Rio (1951:17) menciona que, na capital da Republica, essas pessoas cram as mais procuradas para a resolugao de problemas, tanto pelas camadas pobres da populagae, como pela elit} carioca. Simbolo étnico e marca de sujcigéo no passado colo~ nial, as escarificagdes e tatuagens >) no século XX, assumem 1 ov contrato conscien~ © significado de um compromisso soci te, isto é, exteriorizam a adesao, em vez de sujeigao, @ uma determinada visdo de mundo e a submissao voluntaria as divin dades: "Orixas", "Voduns" ou "Inquices". (4) A Parte I - A Vida Sob a Escravidao - do livro “Escravi- *) go & Invencio da Liberdade, organizedo por J.J.Reis,evi dencia varios aspectos que remetem as origens étnicas do negro escravo e Liberte. (5)Tento uma como a outra imprimes cicatrizes ou desenhos ave isti Ses,ou por irritagae da ‘podem existir como pequenas depressoes,ou por ir Pode ering proeminencias em alto relevo" (Joyce & Dalton, erseeis cas cicatrizes quando colorigas sao denominadas de | 13 tFigenss sua cor advem da introdugao de pigmentos : ou escaras. Atualmente, no Gmbito das comunidades relipiosas de Candomblé, a marcagao corporal ~ 2 "cura" ~ de iniciados de adeptos produz um referencial interno ao "povo de santo", pois manifesta variagées que remetem a uma determinada tradi "Ketu", ete.), € um referen gio religiosa ("Jéje", “Angola” eis Angola cial externo, uma vez que expressa a ligagao a um credo reli gioso distinto das religides cristas hegemdnicas. Na lingua portuguesa, a palavra cura possui signifi cados abrangentes e diferenciados: tanto pode ser o ato ou ¢ feito de propiciar sadde ou de prevenir a doenga, quanto po- de referir-se a um processo de maturagao de alimentos. Além disso, designa o vigario catélico de uma pardquia ou povo go, encarregado de salvar as almas do rebanho cristac...No imaginario dos "Terreiros", no entanto, o seu sentido ime - diato € o de nomear o ato cerimonial da produgao de cicatri zes-signos ou tatuagens, carregadas primordialment> de sig- nificado magico e mistico. As "curas" - escarificagdes ou tatuagens - podem ser percebidas, entéo, como inscrigdes que indicam ou deli- mitam relagdes sociais e religiosas. Podem, ainda, ser con- sideradas estratégia eficaz para a protegao daqucles que as possuem alertando quanto & ocorréncia de distirbios fi- sicos e de problemas espirituais. A importancia conferida a tais inscrigdes esta diretamente relacionada @ relevancia que o corpo possui na visao de mundo daqueles que partilham a crenca nos "Orixas", "Voduns" ¢ "Inquices". Como mostrado anteriormente (Zarros & Teixeira, 1989: 36-62), para o "povo de santo" o corpo se ercontra estreitan mente relacionados uma divindade principal ¢ a alqumas oun rdo com teas consideradas de influéncia secundaria, de as caracteristicas individuais e como veredicto do "jogo de bazios". Esta revelagao geralmente @ fcita ao novigo pelo di rigente miximo do grupo, no momento da iniciagao (parcial ov total). Os adeptos ou "clientes" recebem também informagoes a este respeito, porém mais vagas,, quando"consultam" "Pais e Mies de Santo " para @ resolugao de suaa:afligdes momenta neas. A adivinhagdo oracular reafirma a valorizagao implici- ta do corpo, relacionando-o a uma manifestagao da agao divi- na. 0 veredicto do especialista nao sd revela e confirma os relacionamentos existentes entre seres humanos e divindades, como produz diagndsticos referentes @ doengas e outras afli- goes (econdmicas, sentimentais e espirituais). 0 fato de o corpo constituir um santuario - de ser a morada dos deuses durante a possessdo - faz com que @ sade seja imprescindivel. Pode-se compreender, entao, que seja fundamental o exercicio de uma constante vigilancia so bre sintomas de desordem que possam afetar o equilibrio (sa~ Gide), visto como bem estar fisico e social. As “curas"possuem também um carater instrumental, o de sinalisar a desordem proveniente de relagdes interpes~ soais conflituosas, traduzidas pela crenga no feitigo ov “eoisa feita". Indicam, ainda, “perda de axé" (energia vi- tel), condigio em que a doenga pode se instalar no corpo. Av “curas”, por conseguinte, emitem sinais que so decodifi_ cados, de naneira geral, como ameagas ao'bem estar do indi~ duo. observa-se também uma mudanga anatomica na Locali- tage das “curas". Se, ao periodo escravagista, as cecariti— cagoes e Catuagens eram preferencialmente desenhadas na fa ce, como marcas Stnicas ou de posse, atualmente elas incidem, preferencial mas nao exclusivamente,, nos bragos, maos, per- nas, pés, colo ecostas. Excepcionalmente sao ainda feitas na lingua. A distribuigao das marcas efetivada pelo cumprim to do ritual da "cura" obedece a critérios diretamente ligados & concepgao do corpo nesta perspectiva religiosa. Os desenhos elaborados a partir das escarificagées possuem uma simbolo ~ gia que esta remetida a uma Africa mitica. A quantidade das das "curas" feitas num individuo, assim como o formato que possuem remetem também a situagado de cumprimento total ou par cial do processo iniciatico. Sao, desta forma, percebidas co- mo sinais demarcadores de um contrato em relagao a uma detor- minada visao de mundo. Pode~se afirmar até que o "povo de san to" constitui o somatério daqueles que sao "cvrados". Durante a pesquisa de campo foi notado que aqueles que se denominam "jéje" dizem que a "cura" @ uma pratica de origem angola", enquanto que para estes & um procedinento ritual "ketu". Os participantes destes iltimos “Terreiros" a firmam que se trata de um ritual "jéje". Reconhecer o deslocamento do sagrado e a sua valida de nao impede que caracteristicas valorativas de carater acu satério sejam imputadas as técnicas que as outras "nagoes" empregam no processo de escarificagao. As cicatrizes atribul das a um-outro grupo religioso sao definidas como sendo mais evidentes, maiores, descuidadas e feias. De acordo com al- eles (os j@jes) foram os primei guns informantes "ketu" ros a fazer, mas nds da nagao "ketu” fazemos melhor ! " - FAZENDO AS "CURAS" Nos "Terreiros" de Candomblé sao reconhecidos dois tipos de "curas": 1 - as que sao feitas no desenvolvimento do processo iniciadtico propriamente dito - na "feitura do santo" e, 2 - as que se fazem no ritual cumprido anualmente nas sex- tas-feiras da Semana Santa - 0 "dia da béngao" - em comunida des “ketu", "angola" e jéje". A descrigdo que se segue @ 0 resultado das observa- goes desenolvidas em uma comunidade "ketu". 0 "I1@ Nossa Se~ como outros grupos de culto as divinda~ nhora das Candeias” des afro-brasileiras,ja mencionadas,situadas na Baixada Tlumi nense , apresentd um movimento inusitado pata um dia de sema~ na, mesmo este que é feriado nacional. £ que nesta sexta-fei- ra especifica, data de carater religioso catélico, procede-se nas diferentes “Casas de Santo” ao ritual das "curas", parale lamente ao de "pedir a béngao". Alga disso, fala-se que @ 0 “dia do perdao", isto é, que @ a oportunidade para que todos aqueles em falta com seus deveres religiosos e sociais possam retornar aos seus respecé tivos grupos, redimirem-se de suas faltas, omissdes e, até mesmo, do fato de terem abandonado 0 credo. Pode-se ver que Z uma ocasido relevante para a criagéo, renovagéo e reafirma- Gao de lagos socio-religiosos. Inicia-se o dia com preces que sao pronunciadas ao louvadas as divindades alvorecer; além da luz do dia, “oxum" @ "Oxala", respectivamente consideradas na "nagao ketu" como "os donos das curas”. Antes da primeira refeigao matinal ~ que so ira se realizar por volta das 12 horas ~ € cuidadosamente limpa a Grea pertencente @ comunidade, Varias pessoas, mulheres de -19- preferéncia, empunham vassouras e, de maneira vigorosa e rapida, vasculhaw o territério do "11é". Maior atengao ainda @ conferi- da ao"Barracdo", cujo chao &, apés a limpeza, coberto por gran de quantidade de folhas de Sao Gongalinho (Cassaina sylvestre, SW., FLACOURTIACEAE), espécie vegetal consagrada ao deus caga~ dor "Oxossi", patrono da "nagao ketu". 0 "Barracdo" - construgdo retangular e espago destina do &s festas pGblicas c a outros rituais privados - & enfeita- do com grandes lagos brancos - “ojis" - atadoy/nas pilastras (central e lateral) que sustentam o telhado e suas meias-pare des. De branco também estao todos vestidos esde o despertar, por volta das 5 horas, apés terem se banhado com ervas macera~ das para "limparem o corpo". A mesma pteocupagao purificadora teve a "Naé de Santo” em relagao 4 navalha que, desde a véspe- ra, for imersa em uma infusao de ervas, preparada numa bacia de gata branca, depositada em local preservado, “longe dos olhos dos curiosos"... A “Ialorixa" determina a uma de suas "filhas" mais antiga que traga para o “Barracéo" o recipiente que contem o “atim" sagrado. Uma pequena vasilha branca € depositada = @ seus pés; dentro dela, até a metade, encontra-se um pd de cor cinza escuro, quase preto. Alguns dos presentes no "Ter- reiro” sao chamados a este local, aqueles que ainda nao tive ram o corpo marcado. Nessa categoria incluem-se os aspirantes " (frequentadores infor & iniciagdo - "abias" - e os "cliente mais do grupo) convidados especialmente para a ocasifo. A "Mae de Santo” aguarda a aproximagéo do primeiro. Com suavidade e firmeza, diz-lhe que @ necessario arregagar " (ves as mangas da camisa (caso seja um homem) ou do “camisu" te ritual das mulheres) para que ela possa iniciar a cerimo- sy AL nia, 0 mesmo farao todos aqueles que forem “curados" neste dia. Pegando 2 navalha ~ agora chamada de “oberin" - de t neira firme , suavemente traga 7 (sete) pequenas incisdes ver— ticais; acima destas linhas, faz uma cruz que complementa a escarificagdo da parte superior do brago direito. Imediatamente apds, faz estancar o sangramento dos cortes com a aplicagio de uma pequena quantidade de “atim" nos locais atingidos, Idéntico procedimento sera repetido no brago esquerdo. Para finalizar, ela concede a béngao no seguinte teor: "Que seus inimigos nado tenham olhos para lhe ver; boca para lhe naldizer; pés para Lhe seguir ! Que nehhum feitigo Ihe atin - 1B, que minha mae Oxum Ihe abengde + Que ela traga saiide © prosperidade |" Ao término da frmula litirgica auspicioca ¢ recem"curado" se afasta, portande no seu corpo marca indelé vel, para dar lugar ao préximo candidato a ter 0 “corpo fecha- do". Uma das ajudantes recomenda que as "curas" nao devem ser tocadas, nem cobertas durante 4: proximas horas. Os sinais re- cem-abertos mostran-se bastante evidentes devide & coloragae cinza-escura que lhes fornece o “atim". Este pd foi colocado no 86 como instrumento contra as "coisas feitas™, o "mau olha do", 0 “feitico", mas também com o propasito de estancar 0 sangramento produzido e @ cicatrizagao rapide. Segundo as in- apesar de 86 formagoes recebidas as “curas" nao infeccionan, poderem ser lavadas ou manuseadas no dia seguinte ao ritual. Conven ressaltar que of outros participantes da com nidade - 0s ja “feitos” (iniciados) € os que fizeram suas ncuras" em anos anteriores - se bem que obrigados @ comparecer ao “Terreiro” neste dia para a béngdy - nde terdo novanente os seus corpos escarificados. Os iniciados J cumpriran es- -1b ta ceriménia, e de forma ritual bem mais complexa na"feitura do santo". Durante este processo, nao somente os bracos foram marcados; tiveram lancetados os lados esquerdo e direito do Peito e das costas; ambas as mios (entre o polegar ¢ o indica dor), e os peitos dos pés. Além disso, foi-lhes aberta uma incisdo na parte central do craneo, destinada & colocacio do “oxu", destinado a facilitar a comunicagio com os deuses . Este procedimento demarca aqeles que sio "adoxu" ou "cavalo dos deuses” (Sastide, 1973:184), ou ainda, “aqueles que podem receber os Orixas, Voduns e Inquices". 0 desenrolar da ceriménia anual das "curas" ocupa a maior parte da manha. Nesse interim, a cozinha do "Terrei- ro" agita-se. Sdo as "Labassés" (titulo honorifico concedido @s mulheres responsaveis pelo preparo das comidas sagradas) que ultimam os preparativos para a primeira refeicao comunal, “curado" o iltimo nedfito. que sera servida ao ter sido © cardapio usualmente compoe-se de comidas prepara- das & base de milho branco: canjica doce, temperada com lei- te de coco; manjar (pudim de maizena,leite e bagaco de coco), "acagas", bolinhos cozidos, embrulhados em folhas de bananei ra. E ainda, sao servidos como bebida leite e "dengué" (min gau liquido de farinha de milho). Pedacos de pao fresco aca bam de compor a mesa. Tudo & branco como convem a "Oxala” , divindade "funfun", principio criador masculino, considerado "pai de todos”. Durante o restante do dia, a maioria das pessoas con vidadas permanece no "Terreiro", privando da companhia dos que 18 habitam e dos demais que fazem parte da "familia de santo". Pode-se dizer que este dia @ 0 que congrega maior niimero de 12 3 AD individuos, a0 mesmo tempo, na comunidade. A "Mae de Santo", feliz por demonstrar sua fecundidade pelo nimero de "filhos" de todas as idades, géneros, cores e niveis sociais, reafir- ma seu prestigio e poder, agradece a casa cheia, distribuin- do votos de carinho e atengdes. Muitos, apds o almogo e/ou a ceia realizada no anoitecer, decidem ficar e pernoitam, sd se despedindo apés as 12 horas de sabado - a aleluia - de acordo com a etiqueta religiosa. Alguns ficam no "terreiro acé a noite do domingo de Piscoa, consolidando ¢ comemorando © 1ngos de parentesco: bem como o infcio de main wm ano litir gico. - PENSANDO AS "CURAS" 0 ritual descrito conduz @ reflexao sobre varios as pectos implicitos tanto no discurso do "povo de santo" sobre esta ceriménia, como os de sua fase operacional percebidos du rante a observacao participante. A simbologia presente no ritual forma uma constela- gio de cuja complexidade destaca-se aqueles aspectos conside rados de maior relevancia para o objetivo deste trabalho: a percepgao das "curas" como uma estratégia de identificagio sécio-religiosa, além de indicadores para a possibilidade de ocorréncia de distirbios ameacgadores do equilibrio indivi dual e coletivo. Os "Terreiros ketu", de maneirs geral, atribuem es e "Oxum", 0 te procedimento religioso aos “Orixas Oxala’ primeiro € lembrado, sobretudo, pelas alusées que remetem a mitos e pela cor branca predominante nas vestes, utensi- nos alimentos lios (bacia do “oberin" e tijela do "atim") -16 M4 votiv 8, nas alegorias que adornam as dependéncias de comuni_ dade, especialmente o 'barracdo". Esta cor ~ relacionada 2 primordialidede das divindades da criagao ("Orixas funfun") significa pureza e vida. & a adotada para todos os ele- mentos e animais que entram nos rituais celebrados em honra a esses deuses, as im como & aquela que predomina nas ofe- rendas. 0 branco @ associado, por esta razdo , ao equili - brio, identiticado & vida e A saide, em concordancia com o mito da génese de uma espécie animal - a galinha d'angola ou conquém - como mostrado anteriormente (Barros & Teixei- ra, 1989). Conta-se que uma aldeia africana encontrava-se asso. lada pela morte ("Iku") e que seu chefe acorreu a "Oxala” para que o "Orixa" fizesse alguma coisa para deter a:catas trofe, 0 “pai de todos" atendeu ao pedido e dirigiu-se para 0 povoado. Ao deparar-se com uma galinha preta, salpicou-a de pintas brancas de "efun" (pd de atgila branca). Nao sa~ tisfeito, modificou-lhe a voz, dotando-a com um rite estri, dente. Assim, uma nova espécie animal ganhou vida; sua ap réncia estranha e a sonoridade exdraxula de seu grito (seme lnante a de um ser humano dizendo"estou fraco, estou fraco"), aterrorizou o fantasma da morte, afastando-o da vila. £ importante ressaltar que este animal, além de ser considerado poderoso farmaco, @ simbolo dominante e ins trumental em varios dos rituais iniciaticos de/todas as “na~ mitica goes" de Candombié, constituindo-se em representas do processo cumprido pelo primeiro "iad" que foi “raspado” (iniciado) por "Oxum", Esta divindade feminina possui ow tras estreitas ligagses miticas com “Oxali” (Santos, 1966 )+ a ela sao atribuidas, da mesma forma, a fecundidade, além @a maternidade e a prosperidade, caracteristicas igualmente atribuidas @ potencialidade criadora de "Oxala". £ “Oxum", portanto, na visao dos participantes dos "Terreiros ketu", quem pode gerar ¢ criar o primeiro individuo iniciado , Proporcionando-ihe, assim, uma identidade diferenciada dos demais membros da socicdade brasileira.por sua capacidade de "receber" em seu corpo a presenca dus devses africanos. £ chamada carinhosamente pelos figis de "mamae Oxum"; as criangas Lhes sao consagradas; & considerada “aquela que pode dar a graga de ter filhos" as mulheres. Por outro la_ do, 0 "povo de santo", de maneira geral, a reconhece como "dona do feitigo", isto &, como divindade possuidora do poder magico de inflingir e de tirar as "coisas feitas". Um mito por nds recolhido reafirma este aspecto a meagador: "Oxum", mulher de If4, senhor da adivinhagao , pediu a Ogum ( Orixd do ferro e das estradas) que he forjasse uma panela. Imediatamente foi atendida. Guardou cuidadosa e separadamente o caldeirao e, toda vez que dese java alguma coisa, colocava a panela no fogo, sussurando seus anseios enquanto ia mexendo, com uma colher de pau, certo ingredientes. Procedia desta maneira na certeza de ser sempre atendida. Apds ter solicitado inimerasvezes ao marido 0 segredo do "jogo de biizios", justificando-lhe que isso era para substitui-lo,quando cle estivesse ausente , no atendimento 3 enorme clientela que diariamente procu- rava por "Ifa". Este, porém, demorou a entregar-lhe o jo_ go. Ento, um dia, “Oxum" decidiu colocar sobre o fogo a sua panela e resolver a seu modo a questao."If4" deu-lhe, entdo, o "Bara" (pequeno pote de barro contendo bizios), de "Exu" ( "Orixa" mensa~ forma divinatéria de competénci 1G- 46 neiro doe deusen), "aquele que trax a Iff ow recadoa don Ori xis", BE claro que "Exu nao gostou e logo langou uma maldigau: - Nunca pensei que um dia fosse manobrado por uma mulher ! Vou perseguir voc® e todas as suas filhas ‘ Oxum respondeu imediatamente: - Perseguir vocé pode, vencer nao ! Lembre~ se Exu que sou a done da panela, senhora do feitigo ! "A voz da "Mae de Santo" que nos relatou a histéria, sua pos~ tura corporal ¢ gestual, realgou nao sé 0 seu orgulho 2m ser uma "filha de Oxum", como também a potencialidade das artes magicas de que era detentora por "pertencer" a essa divindade. Nor "Terreiros ketu", o “atim" - 0 pd magico que recobre as escarificasses - & preparado numa panela de ferro; esta & levada ao fogo, contendo 16 (dezesseis) espécies ve- getais, pequenas porges de "Osun"( pS de Biza orellana. L. Mefun' BIXACEAE), de “udji" (pS de Indigofera sp ou anil) e (pd de argila branca). Estes materiais sio mexidos lentamen- te até torrarem e constituirem uma Gnics mistura de cor pre- ta acinzentada. Durante o preparo, sao cantadas louvages a0 “Orixa Ossaim", “senhor de todas as folhas e remédios" (Bar~ ros & Teixeira, 1988; Barros, 1983; Teixeira, 1986). Notanse ai a presenga das trés cores, de acordo com Elbein dos Santos (1977), representam o "anc", energia ¢ poder que se traduzem om vida. Tanto no preparo do “atim",como durante a realizagao do ritual das "curas", eseas cores estao associa- das para reforgo da energia “que faz as coisas acontecerem" (Lawal,1988)- Ao branco das comidas votivas e do “efum", das ves~ tes © dos ornamentos, esto associados o prato, resultance da fusdo e combustao de espécies vegetais e o vermelho, pro yeniente do sangue das escarificagdes. No sreparo do “atin “edt © mesmo acontece através da jungio do vermelho do "osum", vo branco do "efum" e do preto em que se tornam as espécies vege tais eo anil torrados, Em ambos os casos, se acresce o poder da patavea ©), expresso nov votos da "Mad de Santo” © nas low vagdes que ela faz enquanto prepara o pé magico, detonador do axé" e dinamizador das forgas que, acredicam, promoven a "corpo fechado", Observou-se que, nas comunidades "jeje", o prepare do “atim" contem ainda outro elementos: pequenas partes das vis- ceras dos animais sacrificados durante o ano, que foram reti- Tadas, secas € guardadas cuidadosamente para csta finalidade; €, pequenas porgds de "pedra d'ara"(?) triturada, que vados ao fogo e torrados até tornarem-se pd. Nao obstante es- ta diferenciagao, notou-se semelhanga no procedimento ritual, na cor predominante ~ 0 branco -.e na data escolhida para a realizagao da ceriménia (6a.feira-santa). Outras diferengas foram percebidas: os iniciados "jeje" refazem e ampliam grada tivamente suas “curas" periodicamente (de 3 em 3 anos). Da mes ma forma, procedem "abias" e "clientes" cujas "curas" nos bra ges sao reabertas. Também em relacao aos interditos, ficou evidente uma maior restrigio para aqueles que se submetem ao ritwal; devem os "curados” se abster durante 7 (sete) dias de relagacs se ~ xuais, de "pular cercas de arame farpado e de comer bolos bran cos de tapioca e coco”. (6) Um dos mitos de criagdo conta que "Oxala” insufla a vida a- través de seu halito divino ("emi"). (7) Pedea de altar das Igrejas Cathicas; 0 Direito Candnico re- gula a sua utilizagao e prescreve os procedimentos para a sua consagragao. “1 48 H&, no entanto, uma recorréncia na vinculagao do ri- tual a "Oxala": no branco predominance; na utilizagéo das vis- ceras dos animais que foram sacrificados em homenagem a esta divindade ¢ na proibig&o de ingeatao de alimento branco. Além disso, em todas as "nagdes" de Candomblé, as aextas-feiras sio consagradas a "Oxala" - @ "o dia do branco", que no imaginario do "povo de santo” encontra-se associado tamhén a Cristo (espe cialmente ao Senhor do Bonfim), Este relacionamento pode indi- car o porqué da utilizagao da "“pedra d'ara" na composicao do “atim", j@ que este ritual @ celebrado justamento no dia iden tificado & crucificagao de Jesus, filho de Deus e segunda pes soa da Santisssima Trindade, segundo 0 idcdrio do Catolicismo hegemSnico no Brasil. Ainda deve ser salientado que @ sobre esta pedra que, nas Igrejas Cetélicas, durante o ritual da Missa, @ consagra- doo "corpo de Deus"; compreende-se, portanto, que sejam utili zados fragmentos desta pedra quando da consagragao do corpo dos figis do Candomblé. Consta do conhecimento popular que o padre catdlico pode rezar a Missa em qualquer local, desde que tenha consigo a pedra d'ara. 0 entrelagamento de credos, no Brasil, & fendmeno comum, especialmente no que se refere 4s relagdes existentes entre as comunidades de Candomblé e a I - greja Catélica, £ sabido que todos os iniciados dos cultos aos “orixas", "Voduns" e “Inquices" ao terminar o processo - as “obrigagées" - assistem a uma Missa (a "romaria") e de que é usual a colocagao de oferendas e de pedidos aos pés de imagens nas Igrejas catélicas, o que reafirma os vinculos existentes entre esses dois credos. “4 49 Nos “Terreiros angola" @ obedecida a mesma data para @ realizagdo das "curas"; o branco é a cor adotada por todos; © Procedimento ritual reeai sobre todos (iniciados, adeptos, abias" e “clientes") que, anualmente, renovam as incisdes,rea brindo-as nos mesmos locais. No entanto, o “atim utilizado @ composto basicamente de "efum", ao qual & adicionaslo uma yota de “azogue!-(merciirio liquide), nio sendo utilizada a pancta de ferro, nem o fogo. Observou-se, ainda, que antes de serem feitas as incisces, o (a) oficiante unge as partes do corpo tra-se preservada uma cobra. 0 processo se inicia com o ofe recimento de um gole deste liquido sagrado ao postulante, a quem € recomendado engolir de uma sd vez, Também @ prescrita @ abstinéncia sexual durante uma semana como nos "Terreiros jeje" e recomendada uma atengdo especial aos sonhos, pois es tes podem ser reveladores do estado fisico e espiritual dos "curados". A referéncia a "Oxala" esta expressa na brancura da argila ("efum", também denominada de "pemba de Oxala"), ampla mente utilizada para a sacralizagao dos espagos rituais. Da mesma forma que no "jeje" © no "ketu", os nio-iniciados cebem as "curas" cm seus bracos; a sacralizagao mais ampla do corpo reserva-se aos que ja cumpriram integralmente © proces~ 80 iniciatico. Quanto as escarificagses, cabe dizer que o desenho especifico das "curas" de cada "nagao" compe um conjunto sim bélico delimitador de identidades ligadas a uma determinada tradigdo religiosa, Cabe ainda afirmar que as inscricocs 30 bora possam ser compostas de elementos graficos diferenciados, expressam a mesma intengao delimitadora de identidades, ao mes tempo em que estabelecem aliangas entre os participantes de ca da grupo, possibilitando, assim, a formagao de um conjunto maior no seio da populagdo brasileira: o "povo de santo”. Por um lado, os tracos verticais, horizonteis 2 diago nais presentes nos modelos observados remetem @ idéia de afri- canidade tao valorizada no imaginario desses grupos religiosos. Trata-se, € claro, de uma Africa mitica, produto da reconstru~ gG0 levada a efeito no ambiente religioso das "Casas de Santo". Africa presente na cultura material dos "Terreiros conforme o levantamento efetuado por Lody (1990). Dembo & Imbelloni (1933:113) ao desenvolverem andlise dos desenhos de cicatrizes afirmam que & recorrente a presenga de tragos lineares no continente africano, sobretudo no Congo. Também relatam que, no Suriname, algumas tribos fazem usu da marcagio corporal com tragos, mencionando que estes grupos sio formados de mestigos e descendentes de africanos, escravos fu_ gidos das Antilhas (os cimarrones). Além da recorréncia dos trasos verticais, horizontais e diagonais, os desenhos mostram uma variacao de inscrigoes no que se refere aos elementos inscritos acima do tragado linear. As cruzes 8) aparecem com maior frequéncia nas “curas” de di- ferentes "nagdes" (3/4 do universo pesquisado portava este (8) Para uma visdo sumarizada da amplitude geografica e simboli ca deste signo em diferentes socicdades, ver Dicionario de 09-317). Simbolos, Jean Chevalier & Alain Gheerbrant (198 a OL simbolo, embora a quantidade de tragos lineares fosse variavel). Ede se notar que, de acordo com Mveng (1964), na arte africana, este notivo,feito com limbos de folhas de mandioca 80 numero~ sos ¢ ricos de significado, pois,em primeiro lugar, possui sen tide de cotalidade restrita (indicagao dos quatro pontos car - deais), e em segundo lugar, exprime os caminhos d no a vida e a morte. Outros motivos como a estrela de Davi’) © a de Sato- 9 (10 : mio), assin como teques !!) oy evidences !?) sio encontra - dos apenas nas “curas de angola", (9) Segundo Chevalier & Gheerbrant(1988:404)0 hex agonoestrela (10) do ou “escudo de Davi" procede do pentagrama pitagdrico e simboliza o centro mistico e 0 foco ativo de um universo em expansao; A “estrela de cinco pontas" ou de Salomao re Presenta o set humano regenerado, na tradigao religiosa judaico-crista, (11) 08 leques e abanos, aderegos essencialmente femininos,dis. tinguem as divindades "Iemanja" e "Oxum" das demais "ia - bas", sendo relacionados & fertilidade e maternidade, as- sim como atributos da dignidade real desses "Orixas". (12) Trata-se de um simbolo relacionado ao “Orixa Exu". No pro cesso de reinterpretacao da religiosidade africana no Bra sil, o tridente associado na tradigao crista ao diabo, & deslocado e redimensionado simbolicamente a essa divinda~ de de carater anbiguo e poderosa por ser o intermediario das relagées entre os humanos e os "Orixa aa Ao ser solicitada @ explicagio das ‘euras" aos entre- vistados, sempre eles se referiam a tracos ¢ a cruzes; entre = fante, no souberam explicar o motive da escolha por trasos , cruzes ¢ estrelas, nem o porqué da Sexta-Feira. Santa como data Para a reelizagao do ritual. Apenas um dos "Pais de Santo” pon Gerou que estas figuras representam as "chagas de Cristo”, sen do unanine a resposta de que "é a tradigio" e/ou "sempre foi assim", Recente estudo sobre as relagdes estabelecidas entre os "Terreiros" e a Igreja evidencia que as Irmandades Catélicas “serviram discretamente para preservar certas tradigdes, dissi- mular a otganizagao de Candomblés e mesmo para acobertar conspi ragdes contra a ordem estabelecida. Substitufam o insubstituf- vel" (Silveira, 1988:73) / ~ Outro dado etmografico alude as ligagdes entre a igre ja eos “Terreiros": a utilizagao de pd de pedra d'ara na com posigdo do "atin". Nos "Terreiros j@je", esse item reforca a iddia desta articulagao e, ainda, revela um aspecto importante: 4 pedra d'ara - local onde se processa a transmutagao do pio e do vinho em "corpo e sangue de Cristo" - tornada pé,sacraliza © corpo do postulante. Isto é, no ritual da "cura" os corpos marcados transformam-se em altar dos "Voduns", na propria per das divindades através da possessao ritual, Obser sonificag va-se, ainda, que nas Igrejas, no topo do sacrario colocado so bre o altar, encontra~se uma cruz que alude ao martirio de Cristo e & redengao dos homens. Ainda nesta linha de pensamen- to, menciona-se a exigéncia que "Rais" c"Maes de Santo" usual- mente fazem para o cumprimento da "feitura do Orixa": a de que © postulante & iniciagao "seja batizado na Igreja", antes de receber o "batismo das aguas da cachoeira e do mar", ritos preliminares ao processo iniciatico desenvolvido em todas as "nagdes". Estes procedimentos vém confirmar a pluralidade do sagrado no imaginario religioso dos Candomblés, produto da fuso de naltiplas visGes de mundo provenientes do rontinenre africano com as _ ideologias religiosas presentes no novo mundo, A "Lalorixa" Aninha, fundadora de ua dos mais conreitua dos "Terreiros” de Salvador - 0 "118 Axé 0pS Afonja" - dizia- se "ketu puro". No entanto, também afirmava ser descendente de negros "guruncis", possuindo em sua "Roca" um local destinado ao culto de "Ia" (Freitas & Lima,1987:38), divindade de seus pais africanos de Cana. Da mesma forma, pode-se observar a pre senca de divindades ligadas a outras “nagdes", como também a de santos catélicos em espasos préprios 4 essa forma devocio- nal, na maioria dos "Terreiros” pesquisados na Grea do Rio de Janeiro{!?) A méngio is “chagas de Cristo" e a escolha da Sextam Feira Santa podem sugerir, ainda, que a anatomia simbdlica ex- pressa pela distribuigao das “curas" no corpo esta relacion _do Sao to Elesbao e Santa Ifigénia, a de N a de N.S. du Lampadosa e a de do Rio de Janciro, assim come @ a de N.S. do Outeiro da denere as muitas que contan [niciados e fiéis dos “Terrei jais para a "Romaria™, o final da “feitura (13) As Igrejas de San do Rosario dos Pretos, Jorge no centro da cidade de N.S. da Penha (zona Norte) Gidria (zona Sul), sa0_algumas em seus quadros de Irmaos com fos", sendo inclusive pontos preferenc peregrinacao ritual usualmente feita a do Orixa". oT Qh da ao flagelo e @ crucificagao. Romain (1988:85) ao se repor- tar as flagelagoes ocorridas nas peregrinagoes a locais santos na Europa, diz que: "o espetaculo de Jesus submetido ao casti- go reservado aos escravos, atado ao poste de tortura, tendo o corpo exposto A flagelagao, atingido no rosto, nas costas e¢ no peito..." traduz um tratamento selvagem e humilhante. Esta dramatizagao pode ter sido sugestiva e exemplar para aqueles que, na condigdo de escravos, foram obrigados & conversao ao credo dominante. A pratica de marcar o corpo pode ser assim interpretada e associada as nogdes de vida. morte e ressurei- gio na memdria da escravidao e, por extensao, aqueles que vi vem, geralmente, em condigoes precarias e humilhantes nas grandes cidades brasileiras e areas periféricas. Observe-se que a distribuigao das "curas" pode possuir uma analogia as chagas do Cristo representadas em imagens e crucifixos, ja que como neles as incisdes rituais sao feitas preferencial- mente no peito, bragos, costas, pés ¢ maos. Desta forma, as “curas" encerram um duplo aspecto simbSlico: 1 - 0 de ser uma alegoria, por expressar a figura gio de uma determinada situagao social; e, 2 - 0 de ser uma met&fora, pois desenvolve uma comparagdo simbSlica entre a vida eo matirio (de Cristo e de escravos), qualificando, delevelmente, os seres humanos que as portam, Observa-se que, se de um lado, a marca das “curas" distribui-se em partes do corpo similares as feridas do Cris crista, por outro lado, ela pode ser tam- to da iconografi bém um outro referencial para a valorizagao dada a estas par tes do corpo, como ja mostrado em trabalho anterior (Barros & Teixeira, 1989:36-63). Os autores ao abordarem 0 codigo do corpo em "Terreiros" de Candomblé mostram que: ~ 08 membros 4 -2f- inferiores e superiores estao associalos aos ancestrais(femini nos e masculinos), assim como sao também considerados entradas e saidas das forcas provenientes dos "Orixas" incorporados ; - os lados direito e esquerdo relacionam~se, respectivamente, a divindades masculinas e femininas; - a frente do corpo - espe eialmente a fronte e o peito - sao ligadas ao futuro, enquan- to que = parte posterior (nuca e costas) ao passado. Uma valo rizagao maxima, entretanto, @ concedida a cabega por ser ela @ principal responsavel pela transformagio do corpo em recep~ t ulo das divindades - dat a colocagio ritual do “oxu" ji mon cionada - sendo, inclusive, concebida como uma criagao separa- da , de acordo com a mitica Por conseguinte, no Candomblé, 0 corpo represents uma instancia de harmonizagéo do sobrenatural e do natural; @ de- tentor de um principio vital de origem divina - 0 "axé"- ine- rente a todos os elementos vivos. Tal poder, portanto, csten- de-se dos deuses aos animais, plantas, elementos naturais e seres humanos, necessita,porém esta forga invisivel, Sagrada (Maupoil,1943:334), ser agilizada através do cumpri- mento de certos rituais e da palavra falada. Cabe,ainda, mencionar que ser detentor de "axé" sie~ nifica estar equilibrado, isto &, ter esta forga constantemen te renovada social e individualmente. Uma constaute vigilan - cia sobre 0 corpo @, portanto, requisito indispensdvel para a percepgdo da ordem ov desordem, para a manutengao do “axe”. Da mesma forma, a observancia dos preceitos religiosos ¢ das prescrigdes dadas pela organizacao social das comunidades (Bar ros & Teixeira, 1989:36-63) sao indispensdveis & posse dinami 25

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