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6 CULTURAL VANGELICO Prefacio Houve um tempo em que as pessoas no mundo cristio sabiam que as questdes mais importantes a serem encaradas eram as da eternidade. Elas sabiam que Deus, 0 Criador, era puro e santo, que estayam em suas maos € que um dia deveriam prestar contas a ele. Sabiam que nao éramos natural- mente capacitados para fazer isso e que a busca pela salvagio — nao de no: a dor, miséria, pobreza e exploragio, mas da culpa ¢ poder de nossos pecados era a priotidade principal da vida. Naqueles dias, 0 estudo da redengio era a preocupacio de todos, ¢ plano de salvagio de Deus era uma questio de interesse geral. Hoje, no entanto, ndo acontece © mesmo. Por que isso? Nao porque o problema tenha deixado de existir, Deus ¢ © povo séo os mesmos, ¢ a necessidade de salyagio permanece tio séria quanto sempre foi. Mas tornamo-nos distraidos com 0 ritmo urgente de nossa cultura, preocupados com as coisas materiais que podemos produzir € possuir, obcecados com o mito de que a ciéncia substituiu o Cristianis- mo. Conhecemos tantos fatos sobre nosso mundo, cremos ser a geragio mais sabia da histéria e, conseqiientemente, nao podemos nos dobrar para aceitar a sabedoria de nossos ancestrais. Assim, com toda a nossa pericia tecnolégica € arrogancia intelectual, temos nos tornado os mais habeis to- los da histéria mundial. Mike Horton compreendeu todas essas desculpas e reconhece que a sabedoria yerdadeira e eterna é encontrada nos caminhos do evangelho cristio. As Doutrinas da Maravilhosa Graga expressa a vibragio da sua — e da minha — alma enquanto contemplamos o triunfo da graca gloriosa atra- vés da vida, morte, ressurreigao, reinado presente € retorno futuro do 6 Maravilhosa Graga Mediador, “Deus encarnado, homem divino”, nosso Senhor ¢ Salvador Jesus Cristo. Horton diz isso do modo como os primeiros Reformadores e S30 Agos- tinho disseram: 0 pecado nos fez totalmente impotentes para a santidade real em qualquer aspecto ¢ forma, e é preciso misericérdia onipotente do Pai, Filho e Espirito Santo para que sejamos salvos. Recomendo de coragao © trabalho de Mike Horton para tornar isso claro, para que Deus seja lou- yado na terra nos mesmos termos em que 0s anjos € santos triunfantes j4 0 fazem no céu. Este livro é um exercfcio de tirar 0 félego para os leigos protestantes, com o prospecto de uma nova satide ¢ forca para aqueles que permanece- rem no curso. Embora genial ¢ encorajador (como bons treinadores apren- dem a ser), Horton faz sacudir a nossa ferramenta intelectual enquanto nos forga 4 disciplina dolorosa, porém saudavel, de reaprender a mensa- gem vital da Reforma, a graga salvadora, Assim como nas propagandas atuais, pessoas com bom preparo fisico contam que dietas bem planejadas e exer- Prefacio, g cicios os livraram da obesidade ¢ da flacidez, assim predigo que logo havera muitos testemunhos sobre 0 fortalecimento da compreensao da graga que 0 golpe enérgico de Horton trouxe aos seus leitores. Que Horton Ihe mos- tre como perder a obesidade e flacidez teolégical Vocé nao se arrependers, prometo-lhe, E um prazer recomendar um livro tao pratico sobre coisas que realmente interessam. Aquiesté a quintesséncia do evangelho, 0 novo vinho do Reino de Deus na sua maior pureza para nés hoje! Leia, anote, aprenda, ¢ digira AS Doutri- nas da Marilhosa Graga. Ji 1. Packer Introdugao Bem-vindo a Reforma Se vocé é um cristo pensante que esta cansado do legalismo, da super- ficialidade ¢ do exagero religioso, este € o seu livro, Muitos cristios hoje estao experimentando frustragées similares as que vieram a tona na Refor- ma do século 16, Com um interesse renovado e crescente nas doutrinas da graca entre os leigos, ndo h4 tempo melhor que o atual para fazer esta jornada. E como um avitio com destino a Honolulu, Para alguns, é uma viagem rotineira de negécios (como se qualquer viagem ao Hava pudesse ser roti- neira); para outros, pode ser uma lua-de-mel. Qualquer que seja a expe- riéncia que vocé tenha tido com uma fé robusta, realista, este breve estudo pode servir como um gu Em 1517, um troncudo professor de Biblia e monge fixou uma série de propostas em uma porta da igreja (0 quadro de boletim da comunidade) para debate académico, Ele pouco sabia naquela fria tarde de outono que seria © povo em vez dos académicos que iria espalhar 0 que se tornaria conhecido como a Reforma Protestante. O nome do monge, naturalmen- te, era Martinho Lutero. : O cerne da preocupagio de Lutero era a venda de indulgéncias. Quan- do o papa comegou a ter obrigagées financeiras com a construgio da maior catedral da cristandade, Sao Pedro, em Roma, ofereceu aos cristdos perdio dos pecados cometidos em troca de contribuigao para o fundo de constru- cao. Ninguém no império era tio esperto ou estipido neste empreendi- mento quanto o pregador Dominicano, Joao Tetzel. F dito que seu quarte- to viajante até mesmo cantou, “Quando a moeda cai no cofre, uma alma liberta-se do purgatério”. Outros compuseram sua prépria versio: “Quan- 10 Maravilhosa Graga do a moeda cai no jarro, 0 papa fica ainda mais rico”. Este tipo de humor deveria soar familiar aqueles de nds que tém visto parddias de televangelistas no “Saturday Night Live” e ouvido frases de mtisicos como Huey Lewis, que canta sobre um homem gordo vendendo salvagao em sua mao, ¢ Ray Stevens que ironiza, “Eles Ihe vendem salvagao enquanto cantam A Graga Eterna de Jesus”.XT Aqueles que seguiram a Reforma foram chamados de “evangélicos”, palavra tirada do grego evangel, que significa “evangelho”. Crer que o evan- gelho hayia sido realmente recuperado foi um ponto de vista radical, mas aqueles que usaram o termo criam que este era © caso. Isto nao quer dizer que nio houvesse cristios e igrejas, ou até mesmo bispos e arcebispos, que criam no evangel. Houve muitos que, por toda a Idade Média, fizeram 0 maximo para restaurar o evangelho & sua pureza biblica, Por exemplo, 0 proprio mentor de Lutero, o cabega da sua ordem monistica sobre toda a Alemanha, ensinaya a salvagao pela graga e muitas das outras verdades que vocé lerd neste livro. O mesmo se aplica ao incans4vel defensor da fé evan- gélica, o Arcebispo Thomas Bradwardine, de Canterbury, durante o século 14. Vérios outros estudiosos dominantes clamaram por uma recuperagio do evangelho biblico. ‘Todavia, pregar ¢ ensinar a mensagem radical de um Deus que faz toda a salvagio e nao deixa nada para o homem reivindicar como sua propria contribuigéo, era considerado uma ameaga a vida santa e aos regulamen- tos eclesidsticos. Na verdade, a pregagao e ensino em geral estavam em declinio. Os leigos analfabetos em sua maioria, tinham de deixar seus sacerdotes pensarem por eles. As pessoas realmente importantes na igreja medieval eram os monges e freiras, “os religiosos”, que haviam desistido de suas posigdes mundanas na vida por uma chance melhor de ganhar 0 favor divino. Assim, quais foram as idéias revoluciondrias que romperam a Europa jogaram tanto a igreja quanto a sociedade em uma confusao? Elas foram muitas. Slogans nos ajudam a identificar rapidamente © ponto de vista de uma pessoa, Na verdade, uma pessoa pode formar uma opiniéo de outras pes- Introdugaio n soas lendo seus adesivos de para-choque. A Reforma também tinha slogans que identificavam seus principais interesses. O primeiro foi sola scriptura, que significa “s6 a Escritura!” S6 a Escritura © estudo dos textos originais inspirados pela Renascenga levou os Reformadores de volta aos manuscritos hebraico e grego das Escrituras Eles perceberam quanta traducao errada, mal-entendido ¢ ma interpreta- cao haviam se acumulado pelos séculos, obscurecendo 0 texto biblico. A igreja pode legislar doutrinas ou regulamentos morais que nao sio encon- trados na Bibli: igreja pode manter a infalibilidade na interpretagio da Biblia? Nao, eles ? Os Reformadores responderam, “Nao, s6 a Escritura!” A responderam, absolutamente nao A igreja nao era o papa ou o magisterium (corpo de ensino da igreja), disseram os Reformadores, mas todos os cristaéos reunidos — conduzidos, com certeza, pelos mestres oficiais pastores. Havia a necessidade de dou- tores (teGlogos) mas cada cristo era responsvel por entender as doutrinas da Biblia. Toda a igreja deveria estudar as Escrituras, aprendé-las ¢ chegar as conclusdes sobre o ensino basico da Biblia. O povo, clero ¢ leigos deve- riam fazer essas coisas juntos como corpo de Cristo. Naturalmente, sola scriptura nao queria dizer, como tem sido interpretado em alguns cfrculos nos dias de hoje, que o leigo deveria usar a Biblia como um nariz de cera a ser moldado pela opiniao subjetiva, privada; antes, significava que todos os crentes tinham 0 direito ea responsabilidade de ler, entender e obedecer a Palavra de Deus — com o resto da igreja (certamente nao sem ela). En- quanto esta idéia criava uma liberdade enorme para o individuo abordar diretamente a Palavra de Deus, os Reformadores insistiam que isto nao funcionaria, a nao ser que se ensinasse ao cristio normal o suficiente sobre seus ensinamentos quanto a “manejar corretamente a Palavra da verdade”. Em outras palavras, quanto a fé ¢ pratica, Deus escreveu o Livro. A diferen- ga basica entre os Reformadores e Roma neste ponto era se a Biblia produ- via a igreja ou se a igreja produzia a Biblia. Os Reformadores sustentavam a primeira visio, Eles criam que Deus se revelava a seu povo, o chamaya para 12 Maravilhosa Graga simesmo ¢ lhe dava a sua Palavra. Assim, a igreja é sempre falivel e sujeita 4 correcéo da revelacéo infalivel, transcendente de Deus Parece que a sola scriptura caiu em tempos dificeis novamente. O pro- fessor Randall Balmer da Columbia University observa, “Na yerdade, a despeito de toda a retérica evangélica sobre a sola scriptura no século 20, a maioria dos evangélicos nao confia em si mesmos para interpretar a Biblia e, assim, voltam-se para outros — pastores locais, pregadores mendican- tes ¢ palestrantes, autores de milhares de livros, comentarios, ¢ ferramen- tas de referencia — para métodos de interpretagao”.! 96 a Graga O segundo slogan, coragio ¢ cerne do movimento foi a sola gratia ou “S6 a graga!” Os crentes medievais cram constantemente lembrados do quanto seu relacionamento com Deus dependia deles, Os supersantos perceberam que era impossivel viver sem pecado neste mundo e, assim, foram para os mosteiros. Lutero era um des: 's monges, mas logo entendeu o que Cristo queria dizer aos fariscus quanto ao pecado ser inerente a cada um de nds. Jesus thes disse (parafraseado) “Nao é 0 que entra no homem que 0 torna impuro, mas © que ja est’ li!” O pecado nao esta do lado de fora, no mundo, mas aqui dentro, em mim, Ele me corrompe sem levar em consi- deragio meu lugar ou ambiente. Lutero raciocinou, a partir da Escritura, que Deus nao ¢ fraco. Ele é justo e santo, incapaz de fechar os olhos aos nossos pecados, Assim, 0 monge alemo passou horas em confissio, espe- rando que Deus 0 percebesse por causa das suas muitas lagrimas. Seu medo, naturalmente, era que se deixasse de confessar ou nao se lembrasse de confessar um tinico pecado, isso seria 0 suficiente para Deus o condenar. Lutero sabia que sua yontade estava sujeita ao pecado, assim, como ele poderia quebrar o cfrculo e ser liberto? Serm@es inspirados com 0 objetivo de mover os ouvintes a simplesmente usar o livre arbitrio que Deus lhes havia dado no 0 confortavam. Lutero sabia que deveria haver outra res- posta ou, entao, nenhuma resposta. Enquanto estava ensinando Salmos, Gélatas ¢ Romanos, o evangelho comegou a saltar das paginas. Enquanto estava lendo sobre a justiga de Introdugao 13 Deus, Lutero foi surpreendido pelo que sentiu como um raio. Em toda a sua vida, ele havia odiado a justiga de Deus, embora externamente pare- cesse piedoso, Afinal, fora aqucla justiga suspensa sobre si como a espada de Damocles que o lembrava, dia apés dia, que ele era um pecador e deve- ria ser julgado. Agora, ele entendia pela primeira vez.a justica que Deus nao apenas é, mas dé. O apéstolo Paulo escreveu “visto que a justiga de Deus se revela no evangelho, de fé em 6, como esta escrito: O justo viverd por fe” (Rm 1.17, itélico adicionado). Deus nao apenas nos julga pela sua justiga, mas com sua justiga imputada 8 nossa causa, A doutrina da justificagao 86 pela graca por meio da fé apenas foi recuperada ¢ polida ao seu brilho do Novo Testamento. Lutero sabia que sua vontade estava gujeita ao pecado, assim, como ele poderia quebrar o circulo e ser liberto? Foi neste ponto que Lutero nao ‘apenas entendeu que a salvagao era pela graga apenas, mas que o meio ou método de recebé-la era a f& apenas, portanto, © préximo slogan, sola fide, ou “S6 a fé.” A igreja sempre havia dito que éramos salvos pela graga. Alguns até mesmo argumentavam que éramos salvos pela graca apenas, mas isso ndo era garantia suficiente para 08 Reformadores. Por exemplo, o ensino oficial da igreja na época era que a graga era infundida ou transmitida como um impulso para nos ajudar a viver uma vida santa para que, eventualmente, pudéssemos ir para o céu. Mas teriamos que usé-la de forma adequada; a igreja ensinava que por todo o caminho hayia oportunidades de perder a graca. A graca poderia ser recuperada através de rituais, exercicios espirituais, formulas piedosas € rotinas da igreja. Assim, na pratica, a visio era que somos salves pela graca nos transformando em pessoas santas. A isso, os Reformadores res ponderam que a salvagao deveria ser vista, antes de qualquer outra coisa, como 0 ato de Deus de declarar justos aqueles que eram, naquele mesmo momento, ainda injustos. Assim, a justificagao nao era algo que o crente 14 Maravilhosa Graga devia esperar até o fim da vida, mas era declarada no infcio da vida crista — no momento em que ele ou ela confiasse em Cristo apenas para a salvagio da ira divina Em outras palavras, a salvacéo é s6 pela graga, por meio da fé apenas. Deus no nos dé a graca para nos salvarmos com a sua ajuda. Ele nos decla- ra justos no momento em que desistimos de nossas proprias reivindicagdes de justiga ¢ de nossas préprias lutas pela aprovacio divina, reconhecendo a suficiéncia da justiga de Cristo como nossa prépria. Hoje, novamente, pa- rece que isso tem se tornado uma idéia revolucionéria com tantos cristaos pegos com uma “visdo centrada” introspectiva ¢ ansiosos por causa da cul- pa. De alguma forma, pensamos, algo deve depender de nds. De alguma forma, em algum lugar, temos de pagar alguma coisa, Outros nem parecem estar incomodados com a justiga ¢ ira de Deus, como se ele fosse bondoso demais para julgar ou como se fossem bons demais para merecerem uma sentenga. O préximo slogan foi soli Deo gloria, que significa “A Deus somente seja a gléria!” Na parte antiga de Heidelberg, Alemanha, encontra-se um bar € hotel admiravelmente preservado, um centro de vida noturna daquela época € até hoje. No topo do edificio lé-se esse slogan da Reforma em grandes letras douradas. Similarmente, Johann Sebastian Bach assinava todas as suas composig6es “Soli Deo Gloria” ou simplesmente, S, D. G. J. 1. Packer uma vez me disse que nossa visio de Deus é como uma balanga antiga. Quando Deus sobe em nossa avaliagio, nés descemos. De forma similar, quando subimos em nosso senso de auto-importancia, nossa visio de Deus deve, no mesmo grau, descer. Na Reforma, as doutrinas da eleigio e pre- destinagio foram recuperadas e proclamadas no piilpito, Ferreiros deleita- vam-se em discutir estes assuntos enquanto bebiam com seus amigos de- pois de um dia duro de trabalho. Eles nao tinham mais pastores que Ihes dissessem, “Ah, isto é para os tedlogos discutirem”. Deus era grande e todos, de joelhos, cram iguais diante dele. A Reforma produziu uma era de grandes pensadores, artistas e obrei- ros porque elevou Deus as alturas e baixou a cabega humana diante da sua majestade. Mas, hoje, temos canticos evangélicos em vez das obras primas Introdugo 6 reyerentes e exuberantes de Bach ou Handel. Nossos cultos sio muitas vezes mais celebragées de nés mesmos que de Deus, mais entretenimento que adoragio. J. B. Phillips capturou bem o sentimento moderno com respeito ao Cristianismo no titulo de um de seus livros populares: Your God Is Too Small {“Seu Deus E Pequeno Demais”]. Nunca antes, nem mesmo na igreja medieval, os cristdos foram tio obcecados com si mesmos. Nunca antes as pessoas nutriram nogGes tao elevadas dos homens ¢ tao pequenas de Deus. Os evangelistas falam sobre Deus como se tivéssemos de ter pena dele em vez de adord-lo, como se ele estivesse se derramando em lagrimas no céu, esperando que as coisas melhorem e que as pessoas o “deixem fazer as coisas do seu modo”. Nunca antes, talvez, Deus tenha sido tio completamente esquecido e diminufdo em nossa estima. Auto-estima, auto- imagem, autoconfianga, auto-isso, auto-aquilo tem substituido a conversa sobre os atributos de Deus. Ironicamente, isso tem criado 0 oposto da sua intengao. Quanto mais tempo gastamos contemplando nossa propria gran- deza no espelho, mais claramente somos obrigados a ver as verrugas. Sem © conhecimento do Deus em cuja imagem fomos criados, e da graga que nos fez filhos de Deus, 0 narcisismo (amor-préprio) rapidamente se trans- forma em depressio (dio a si mesmo). A Reforma produziu uma era de grandes pensadores, artistas e obreiros porque elevou Deus as alturas é baixou a cabega humana diante da sua majestade. Mas tudo isso pode mudar! Os pratos da balanga podem ser revertidos. Ja aconteceu uma vez e pode acontecer novamente. Finalmente, serfamos negligentes se deix4ssemos de mencionar a preo- cupagao da Reforma com 0 “sacerdécio dos santos”. Lutero ¢ Calvino de- safiaram 0 modo monistico de vida, dizendo a carpinteiros, leiteiros, ad- vogados ¢ donas de casa que seu trabalho no mundo era um chamado tio divinamente ordenado, ¢ certamente pelo menos tao digno quanto parte 16 Maravilhosa Graga da gigante rede burocratica das organizagoes cristas que caracterizavam a vida religiosa medieval. Eles argumentaram que Deus leva a sério este mun- do e esta vida tanto quanto a vida futura, e que os cristaos deveriam fazer isso também. O trabalho secular nao é simplesmente um meio de fazer dinheiro para dar igreja ou para prover o rendimento necessario a fim de ter o tempo livre para se voluntariar as atividades relacionados ao ministé- rio. O trabalho é divino, disseram os Reformadores. Os artesios cristios deveriam ser os melhores artesios. Os artistas cristios deveriam colocar seus coragées ¢ almas em seu trabalho. Afinal, nao é um emprego; é um chamado! Resumindo, a Reforma libertou os crentes da tirania da igreja, mas nao do seu cuidado; da ansiedade de assegurar a aceitagao divina; da preocupa- io com a prépria pessoa que sempre acaba nos conduzindo ao desespero; da visio baixa de Deus; ¢ de uma visio baixa do chamado e obra de uma pessoa no mundo. A Reforma trouxe a liberdade de volta A consciéncia crista restaurando 0 foco do evangelho do centrado em nés para 0 centra- do em Deus, centrado em Cristo. Hoje, precisamos deste tipo de mudan- a novamente. A Reforma trouxe a liberdade de volta a consciéncia cristA restaurando o foco do evangelho do centrado em nés para o centrado em Deus, centrado em Cristo. Hoje, precisamos deste tipo de mudanga hovamente, Nem todos concordarao com o contetido deste livro, mas a tradigao da Reforma é uma veia rica. Se nds a ignorarmos, seremos mais pobres. Ela é catélica, no melhor sentido da palavra. A Reforma buscou a reforma da igreja, no a sua destru . Ela compartilha com as comunidades Catélica Romana e Ortodoxa Oriental um amor pelos credos e pelo testemunho primitivo quanto a Cristo, uma apreciagio pela sabedoria de séculos de discernimento e uma insisténcia de que os cristaos aprendem juntos a Pala- Introdugo 7 vra de Deus, nao de uma forma individualista, subjetiva. E uma tradigéo biblica, testando a crenga € as ages, que flui diretamente da crenga nas Escrituras. E uma tradigao evangélica, tendo suas raizes na recuperagio do préprio evangelho. Muitos, por engano, criticam a Reforma pela falta de énfase missiondria. Mas, 0 que foi recuperado do préprio evangelho e es- palhado por toda a Europa senio um empreendimento missionario singu- lar? Além disso, missiondrios foram enviados a terras extensas. Os primei- ros missionérios protestantes no hemisfério ocidental foram enviados da Genebra de Calvino. Muitos dos maiores evangelistas ¢ missiondrios que 0 mundo jé conheceu eram comprometidos com as convicgdes compartilha- das neste livro: David Brainerd, Jonathan Edwards, George Whitefield, C. H. Spurgeon, William Carey, David Livingstone e muitos outros, E uma tradigao prdtica. A fé Reformada tem produzido uma preocupa- cio pelo bem-estar tanto fisico quanto espiritual das pessoas, convencido de que Deus tem chamado seu povo para viver e trabalhar neste mundo. Ela nao se contenta em s6 salvar almas, enquanto corpos desabrigados acon- chegam-se em volta de uma fogueira para se aquecerem. Isso foi demons- trado pelo modelo incrivel que se tornou Genebra quando, diariamente, milhares de refugiados, escapando da perseguicao, eram cuidados, acomo- dados ¢ empregados. Os didconos serviam como assistentes sociais e ofi- ciais que tratavam do bem-estar. Sob a supervisio pessoal de Calvino, um hospital foi estabelecido, a indiistria prosperou, © comércio simples foi ensinado aos refugiados, ¢ o proprio Reformador redigiu as leis de sanea- mento mais sofisticadas e radicais da Europa de entio. Tanto os protestan- tes quanto 0s catélicos reconheceram as realizagdes notiveis de Genebra em edificar um centro de piedade pritica, acima da piedade individualista freqiientemente associada ao evangelicalismo contemporaneo. A afeigao que a cidade tinha por Calvino foi retratada em cores vivas nos tiltimos momentos de sua vida quando toda Genebra, e grande parte da Europa, pranteou a morte do Reformador. E uma tradigao de adoragao. Porque Deus é grande, ele deve ser reve- rentemente adorado. Além disso, muitos dos Reformadores se preocupa- ram em “nao jogar 0 bebé fora junto com a gua da banheira”. A meta de 16 Maravilhosa Graga Lutero e Calvino era reformar a Missa, nao aboli-la. As igrejas desta tradi- Gio produziram algumas das mais impressionantes hinédias e salmédias da historia da igreja, musical ¢ liricamente ricas e tocantes. Na verdade, foi Lutero quem disse, “Nao estou satisfeito com quem despreza a miisica, como todos os fandticos fazem. Fu coloco a miisica préxima 3 teologia € The dou 0 mais alto louvor”. HA muitas outras contribuigées que esta tradigdo promove e deve con- tinuar promovendo enquanto nos aproximamos do século 21. O mundo esta olhando para uma igreja que sabe 0 que deve ser realizado ¢ para cristios que conhecem o que créem e a razio pela qual créem. Que Deus possa usar este breve estudo em alguma pequena medida em diregio a este fim. E que todos possam ver quao maravilhosa € a graga. — Capitulo um — Salto Através de Arcos é para Animais de Circo Em muitas ocasies pergunto a mim mesmo, “Por que sou um cris- tio?” Nunca me satisfiz com as respostas pré-fabricadas que ouvimos de vez em quando e nio desejo aceitar com meu coragio uma fé que nao consegue convencer a minha mente. Uma fé convincente, ¢ nada menos do que isso, € requerida se é para cu me entregar de coragio e alma as suas reivindicag es. Numa certa ocasido eu pensei em trocar minhas fichas por dinheiro ¢ deixar 0 que parecia ser um jogo. E verdade? Perguntava repetidamente. Podemos dizer que a Biblia contém a tinica revelagao confidvel de Deus aos humanos? Intrigava-me o fato de que tantas pessoas — pessoas inteligen- tes — podiam pensar légica € racionalmente sobre qualquer outro aspecto de suas vidas mas fecharem suas mentes quando se tratava de religiao. Eu também fiz isso. Mas todos nés temos perguntas e as minhas se aprofundaram cada vez mais até que a resposta finalmente me encarou. Criado em um sélido lar cristo, com a educagao de devogées didrias e a piedade simples de pais crentes, me foi oferecido o ambiente aconche- gante, encorajador e significative do Cristianismo evangélico. Mas, duran- te meus anos de adolescéncia, os mesmos clichés, slogans € experiéncias que haviam fornecido um sentido de estar “dentro” e de pertencer a um. grupo comegaram a parecer superficiais e banais ¢ a personificar os orna- mentos sem satisfagio do que Francis Schaeffer chamou de “gueto evan- gélico”. As regras que nunca havia questionado comegaram a me sufocar. Minhas escolas crist: s se tornaram prisées, No sétimo ano, eu tinha um instrutor biblico que se deleitava particularmente em enumerar as coisas pelas quais serfamos amaldigoados. Se, por exemplo, morréssemos com 20 Maravilhosa Graga um pecado nao confessado, poderfamos estar eternamente perdidos. As implicagdes me perseguiam ¢ cu nao podia entender a razio pela qual meus colegas pareciam relativamente calmos, especialmente porque o nf- vel real de manutengao da lei ndo era tio impressionante entre eles tam- bém, Eu me preocupava: E se eu realmente falhar em algum sébado a noite € Jesus voltar antes de eu poder caminhar pelo corredor da igreja nova- mente no domingo? E se cu nao puder me lembrar de um pecado particu- lar a fim de confessi-lo? Hé tantos meios pelos quais posso perder a mi- nha alma! Enquanto isso, comecei a ler a Epfstola de Paulo aos Romanos ¢ nio pude largé-la. Eu lia uma passagem e entio perguntava a mim mesmo, por que nao escuto isso na aula ou na igreja? Um dia na aula, finalmente, quan- do 0 instrutor biblico estaya nos assombrando novamente com maldigdes e trevas, lembrei-me de uma passagem de Romanos. Leyantando minha mio, interrompi antes que eu pudesse me conter. “Isso nao é 0 que a Biblia repliquei — nao em uma forma dogmatica. Eu simplesmente disse isso. “Mas, ao que nao trabalha, porém cré naquele que justifica o fmpio, a sua fé lhe € atribuida como justiga”, continuei citando 0 apéstolo Paulo (Rm 4.5). © professor passou por varios tons de vermelho e gritou, “A Biblia

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