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usiane Munhoz de-Omena Aj Pedro P. A. Bei Jy, ae tee As aca Ts Sociais da Morte Dialogos Interdisciplinares rad Com a presente obra, busca-se desafiar a abordagem da tematica da morte a partir de estudos de caso e de discuss6es tedricas que possibilitam ultrapassar 0 mal- estar em relacdo ao tema para reencontra-lo como um objeto privilegiado, a partir do qual é possivel compre- ender nossa propria sociedade. A abordagem da mor- te em diferentes culturas, temporalidades e espaciali- Ye CMV EMM s1cels) Ue Tmo Mel) cee sites [oo monstrando sua variedade semantica e desafiando o Cee R Arora tere ire mee tel ore RCM) sobre o tema. Sabemos, pois, que a morte das pessoas nos recorda a finitude e a fragilidade do presente. Mas também pode constituir-se na celebracao do devir hu- mano, do viver a partir da acao que se inicia no instan- te que se passou e se projeta para 0 futuro. O presente, assim, carrega consigo seus mortos para se projetar, en- quanto possibilidade, no mundo do que ainda nao foi trazido a existéncia. : TepU cue amen Doutoranda na UFPel , INSTITUTO DE FILOSOFIA FACULDADE Dt a; |rcmncus wuaanas ISBN 978-85-462-0729-9 9 Mah Conselho Editorial Profa. Dra. Andrea Domingues Prof. Dr. Ant6nio Carlos Giuliani Prof. Dr. Antonio Cesar Galhardi Profa. Dra. Benedita Cassia Sant'anna Prof. Dr. Carlos Bauer Profa. Dra. Cristiane Famer Rocha Prof. Dr. Eraldo Leme Batista Prof. Dr. Fabio Régio Bento Prof. Dr. José Ricardo Caetano Costa Prof. Dr. Luiz Fernando Gomes Profa, Dra. Magali Rosa de Sant'Anna Prof. Dr. Marco Morel Profa. Dra. Milena Fernandes Oliveira Prof. Dr. Ricardo André Ferreira Martins Prof. Dr. Romualdo Dias Prof. Dr. Sérgio Nunes de Jesus Profa. Dra. Thelma Lessa Prof. Dr. Victor Hugo Veppo Burgardt ©2017 Luciane Munhoz de Omena | Pedro P. A. Funari (orgs.) Direitos desta edicdo adquiridos pela Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou pracesso similar, ‘em qualquer forma ou meio, seja eletrdnico, de fotocépia, gravacéo, etc, sem a permissao da editora e/ou autor, A797 As Experiéncias Sociais da Morte: Dialogos Interdisciplinas/Pedro P. A. Funari (org.). Jundiai, Paco Editorial: 2017. 244 p. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-462-0729-9 1, Morte 2. Interdicisplinaridade 3. Meméria 4. Antropologia. |. de Omena, Luciane Munhoz. Il. Funari, Pedro P. A. CDD: 300 indices para catalogo sistematico: Arqueologia 930.1 Antropologia 301 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL Foi feito Depésito Legal Av. Carlos Salles Block, 658 Ed. Altos do Anhangabau, 2° Andar, Sala 21 Anhangabaii - Jundiai-SP - 13208-100 11 4521-6315 | 2449-0740 contato@editorialpaco.com.br Sumario AGRADECIMENTOS 7 Prefacio 11 Renata Senna Garraffoni Morte, Memaria e Narrativas de Vida APRESENTAGAO 15 PARTE 1 21 Morte e Memoria nas Sociedades Mediterranicas (Sécs. VIII a.C. - IV d.C.) CAPITULO 1 23 Ana Paula Pinto No Limiar da Morte: Homero CAPITULO 2 53 Luciane Munhoz, de Omena Pedro PA. Funari O ridiculo de um funeral: a simbologia da morte na satira Apocolocyntosis de Séneca CAPITULO 3 81 Clindio Umpierre Carlan A representacéo da morte nas moedas de Constantino PARTE 2 Morte e Arqueologia sob 0 Viés Moderno e Contemporan 93 leo, CAPITULO 4 5 | Claudia Rodhinyes | As experiéncias da morte no Rio de Janeiro colonial | | CAPITULO 5 | 133 Lonise Prado Afonso | Jaciana Marlova Goncabes Arai | A morte, o morrer e o papel social da arqueologia na sociedade contemporanea CAPITULO 6 161 Maria Elizia Borges Um olhar indagador sobre os cemitérios: as representacdes modernas da morte CAPITULO 7 191 Flivia Regina Marquetti In memoriam CAPITULO 8 21 Nandi Vieira de Oliveira Luciano Pereira da Silva Rituais funerarios na regido do pantanal de Caceres, Mato Grosso, Brasil DADOS SOBRE OS AUTORES 237 Prefacio Morte, Memoria e Narrativas de Vida Eram essas as lembrangas, as exortagdes, pensamentos e estados de espirito que moviam tao forte e doloridamente meu coragio quando, com a Marcha Fiinebre retumbando aos meus ouvidos, vi desaparecer 0 caixio do melancdlic eatras dele o longo cortejo solene; ¢ voltavam a me domi- nar sempre que eu escutava a mesma musica. Ela invocava em mim a figura de nosso Eberhard com aquele modo in- seguro e contraido de segurar cabeca e ombros, com belos tracos tristes e o olhar manso sempre fitando o insondavel. (Herman Hesse, 1956) Essas palavras poéticas de Herman Hesse é parte de um con- to intitulado Marcha Fiinebre (Em meméria de ura camarada da juventu- d). Nele Hesse relata um dia qualquer em sua vida em que busca ligacdes entre uma obra musical ¢ as vivéncias pessoais. Ao fazé- -lo opta por uma miisica pouco usual, a Marcha Funebre, tocada na ridio que ouvia por um jovem pianista. A oportunidade de ouvir a musica o levou a reflexdes sobre Chopin, mas também sobre a potencialidade da musica avivar memédrias. Lembrou de Seu antigo emprego como livreiro em Tubingen, da morte do avé e do colega de escola Eberhard. Pouco sabia do colega, mas 0 flash de meméria provocado pela musica traz 4 tona uma série de sentimentos, de percepcio do outro, de alteracao da relagao com 0 tempo, ja que ao lembrar da morte do colega de escola na velhice ee um novo encontro com sua juventude. ice conto de Hesse aqui porque sua nareativa de- a | a Motte ea velhice de uma maneira ae ao 7 ¢ refletir sobre suas primeiras experiéncias com 11 _— Luciane Munhoz de Omena | Pedro P. A. Funari (orgs.) a morte, Hesse apresenta ao leitor lembrangas da infancia, do colégio, do diretor da escola, recontando aspectos de sua vida por tempos esquecida. O conto, embora curto, 0 faz lembrar de paixGes, medo, espanto, zombaria, e apresenta um aspecto da morte muitas vezes esquecido, o da irrupgao das lembrancas e, consequentemente, da vida, de suas vicissitudes, poténcia ¢ fluidez. Muitas vezes considerada um tabu, finitude ou rumo ao desconhecido, nao paramos para pensar sobre a morte como parte da frui¢ao da vida e, portanto, como parte da experiéncia cultural humana. Esse é 0 aspecto abordado no livro As experiéncias sociais da morte: didlogos interdisciplinares, organizado pot Pedro Paulo Funari e Luciane Munhoz de Omena. Sua leitura é, sem davida, inquie- tante, pois ao trazer 4 tona o tema da morte no contexto das ciéncias humanas, os organizadores da coletdnea nos desafiam a sair de nossas zonas de conforto e encarar o fendmeno em suas miultiplas facetas. Conscientes de que as representacées sobre a motte no passado e presente trazem em seu bojo relacées entre o humano, a natureza € o divino, os autores reuniram reflexdes de especialistas em histéria ¢ arqueologia para pensar a morte como um campo aberto aos estudos culturais. Nesse contexto, cultura material e escritos sao a base para reflexGes diversas sobre memoria e narrativas de vidas. Se os textos constituem abordagens mais amplas e filoséficas sobre a morte, a cultura material permite pensar a diversidade cultural daqueles que nao nos deixaram escritos, entre eles os povos in- digenas ou tradicdes de povos ceramistas que dificilmente teria- mos noticias se nao fosse por meio das escava¢Ges atqueol6gicas de seus enterramentos. Além disso, as abordagens sobre ue térios modernos permitem reflexdes sobre arte tumular, relacao com a natureza e sobre os meios em que as pessoas falecidas € suas familias gostariam de serem lembradas. an Cada capitulo do livro nos leva, portanto, a refletit sobr . morte de maneira intimamente relacionada 4 vida: se © oom deixa de existir, os sentimentos se materializam em textos ou 12 As Experiéncias Sociais da Morte: Dialogos Interdisciplinares formas de cuidar da meméria do falecido nos enterramentos. ‘As formas de luto e cuidados com os falecidos variam cultural e historicamente, assim, as anilises aqui Propostas indicam essa di- versidade e nos fazem pensar sobre as potencialidades da morte como objeto de pesquisa e base para reconstituicao de narrativas de vidas nem sempre conhecidas. Como parte dos estudos cul- turais, as discussdes sobre morte e vida indicam novas formas de relacio entre presente e passado, de memédria, diversificando nossas abordagens sobre os limites da experiéncia humana. A obra, com certeza, nos desafia a novos olhares sobre a vida e suas multiplas formas de devires. Curitiba, abril de 2016, Renata Senna Garraffoni (Debis/UFPR) 13 Apresentacgao Buenos Aires, Argentina. Era o ano de 2010, quando, em uma viagem de férias, acompanhada por minha amada Sophia, Sonia ¢ Paula, igualmente queridas, repleta de entusiasmo, resolvi brin- da-las com uma caminhada ao cemitério da Recolela, Ao entrar no territério dos mortos, observando, deste modo, a constru- io dos edificios funerarios com suas esculturas equestres, anjos, relevos em marmores, casas-timulos, pinturas, percebi, mesmo sob 0 tabu com relagio ao temor 4 finitude e, portanto, a morte e ao morrer (cf. Elias, 2001; Hope, 2011, Kiibler-Ross, 2012; Ariés, 2014; Omena & Funari, 2014, entre outros), 0 quanto o mundo dos mortos se entrelacava aos dos vivos. Tal experiéncia despertou em mim o desejo de querer compreender a simbolo- gia da morte na sociedade romana. Fato que intensificou minha atual especialidade. Interessei-me em produzir reflexées criticas sobre a arqueologia da morte — estudo das praticas, ritos e sim- bologias que a envolvem (Ribeiro, 2007, p. 18) — na aula tomana como veiculo de comunicagio ¢ produgéo social da meméria do motto, de seus ancestrais € de seus familiares. Tal processo abrangia, por exceléncia, a procissao, 0 enterro, 0 Sexo, idade, o status eas filiagdes sociais (ver nessa coletinea Omena & Funari, 2017), 4 medida que os vivos representavam aquilo que se queria que se pensasse “sobre a familia, sobre o grupo social e sobre 0 morto” (Ribeiro, 2007, p. 96). Entio, ao retornar a Goiania, apresentei minhas inquietagdes a amiga e companheira de estudos Ana Teresa Marques Gon- calves, que, prontamente, mostrou-se interessada em me apolar. Nos anos consecutivos, passamos @ oferecer disciplinas em nos- so Programa de Pds-graduagao em Historia da Universidade Federal de Goias, com temiaticas que, ¢(m especial, englobavam reflexdes acerca da morte e de suas associagdes com os aspectos Sociais, politicos e religiosos presentes nas sociedades mediterra- nicas. E preciso enfatizar, ainda, que, no ano de 2014, em fungao 15 Luciane Munhoz de Omena | Pedro P. A. Funari (orgs) dos nossos esforgos, meu e do professor Pedro Paulo A. Funari, em divulgar e produzir reflexes criticas sobre os estudos mor- tudrios, organizamos o dossié intitulado Representagies da Morte no Mediterraneo Ocidental e Oriental — publicado em 2015 na Revista Classica — Revista Brasileira de Estudos Clasicos. Neste empreen- dimento académico, contamos com a participagio de diversos pesquisadores, como Ana Teresa Marques Goncalves (Univer- sidade Federal de Goids), Margarida M. de Carvalho (Universi- dade Estadual Paulista-Franca), Dario N. Sanchez Vendramini (Universidad Nacional de la Rioja/Argentina), Julio César Ma- galhaes (Universidade de Sao Paulo), Fabio Vergara Cerqueira (Universidade Federal de Pelotas), José Geraldo Costa Grillo (Universidade Federal de Sao Paulo), Renato Pinto (Universida- de Federal de Pernambuco), entre outros. Partindo desses di4- logos institucionais, devo mencionar também o meu estagio de pos-doutoramento, com financiamento da FAPEG/' CAPES, no Instituto de Filosofia e Ciéncias Sociais, Universidade de Campi- nas, sob a supervisdo do prof. Funari, com o Projeto intitulado Memoria e luto: a simbologia da morte no logos filosifico de Licio Anen Séneca ema didlogo com os vestigios materiais (27 aC. — 68 dC). Assim, ao longo do ano de 2015, durante o estagio pds-dou- toral, decidimos nao somente organizar a coletinea denomina- da Praticas funerdrias no mediterrdneo romano, bem como a referente obra intitulada As expenéncias sociais da morte: didlogos interdisciplina- res. Como 0 ptdprio titulo indica, queriamos explorar e, a0 mes- mo tempo, ampliar o escopo disciplinar no que se refere aos ¢s- tudos sobre a morte. Sabemos, pois, que as celebracées da morte, as praticas funeratias ¢ seus significados tornam-se, com efeito, um mecanismo de reprodugio social. E dessa forma que consi- deramos a morte um ptocesso histdrico e, em geral, as evidencias arqueoldgicas e a cultura esctita incidem em praticas mortuarias, em ritos, em simbologias que se transformam, em diversos con- textos histéricos, em espetaculos de poder. As imagens produzi- das nas procissdes funerarias, nas estelas, nos frisos, 10s diversos 16 As Experiéncias Sociais da Morte: Didlogos Interdisciplinares formatos de timulos, nos epitafios, nos cenotafios e no simbo- lismo da motte, representado nas narrativas textuais (eg. Séneca, Dini Clandii Apocolocyntosis, Ovidio, Tristia, entre outras), produ- ziam uma memoria seletiva, digna de lembranga que, de fato, cria- ya um passado comum a ser incorporado 4 memoria social. Ora, entendemos que seria imprescindivel apresentarmos aos leitores perspectivas mais interdisciplinares e, por consequéncia, optamos por abarcar diferentes periodos histéricos, uma vez que acompteensao acerca da arqueologia mortuaria engloba distintas épocas ¢ reas do conhecimento, como a Literatura, a Histéria, a Arqueologia, a Filosofia, as Ciéncias do Direito, a Antropologia ea Educacao. Temos, aqui, a fusao que se estabelece entre morte e educacio. Veremos, por isso, por exemplo, em Polibio (208 — 125 aC), historiador grego, ressaltar que os discursos profe- tidos nos rostra deveriam atuar no comportamento dos jovens aristocratas, bem como enaltecer o falecido e seus familiares em um ambiente dramatizado pela multidao (Polibio. Historias VI, 53.54). Tal como percebemos, a morte ¢ seus aparatos perfor- maticos vinculam-se, em termos simbdlicos, 4 formagao do cor- po de cidaddos nas sociedades mediterranicas. Ao que nos parece, a associacio entre morte e educagao sur- ge igualmente nas sociedades contemporaneas. Como tessaltam Louise Prado Alfonso e Jaciana Matlova Goncalves Aratjo (ver nessa coletinea), ha uma preméncia em discutirmos, em tetmos sociais, a exclusio das criangas nos cenarios mortuarios. Nor- malmente, apds a morte de familiares, acredita-se que as crian- as nfo poderiam assimilar tal fendmeno, uma vez que nao tém estrututa emocional e, desta forma, o luto seria algo imprati- cavel, Ao patafrasearmos as autoras, supomos que as criangas vivenciam a morte, por exemplo, a partir do falecimento de um bicho de estimagiio ou, se quisermos ampliar a discussao, pode- Mos mencionar as formas midiaticas, como os filmes ficcionais, os documentitios, os games os quais exploram, como sabemos, 8 divetsos cenarios da morte. A questio, aqui formulada, elenca VW Luciane Munhoz de Omena | Pedro P. A. Funari (orgs.) nao a associacao da morte com os dispositivos institucionais que se transfiguravam nas sociedades mediterranicas em simbolos de cidadania (Cf. Wallace-Hadrill, 2008), porém perpassa, a partir da inclusio das criangas, discussGes a respeito dos comporta- mentos sociais ante a morte € o morrer nos dias atuais, levando- -se em consideragio o saber arqueoldgico. Podemos vislumbrar, a partir da riqueza documental, em di- ferentes espacos temporais, a relevancia do discurso interdiscipli- nar para a compreensao dos fendmenos culturais da morte. Por isso, em termos metodoldgicos, optamos por especialistas vin- culados as diversas areas do conhecimento cientifico, tal como indicamos acima, bem como por criar certa unidade cronolégica que, sabemos ser ficticia, entretanto, “guiara os nossos leitores as tematicas mortudrias representadas nas sociedades grtega, ro- mana, moderna e contemporanea”. Para tanto, dividimos 0 livro em duas grandes secdes: morte ¢ meméria nas sociedades mediterranicas © morte ¢ arqueologia sob 0 viés moderno ¢ contempordneo. Na primeira parte, encontraremos representagdes da morte em testemunhos escritos, como Homero e Séneca , em termos materiais, em es- tudos numismaticos. Na outra secao, o leitor se deleitar’ com a relevincia do papel da arqueologia da morte em nosso tem- Po, rituais funerdrios na tegiao de Caceres, Mato Grosso do Sul, como também com as discussdes acerca do citcuito de produgio € apropriacao de esculturas Presente nos cemitérios modernos, j4 que se transformaram em cemitérios-museus (ver nessa cole- tanea Borges), imprimindo, desta feita, valores hist6ricos. Sem maiores delongas, convidamos os leitores 4 compreensio das distintas faces da morte. Goiania, margo de 2016. Luciane Munhoz de Omena (Faculdade de Histéria\UFG) 18 ——SS—— ‘As Experiéncias Sociais da Morte: Dialogos Interdisciplinares Referéncias Documentagao Textual: OVID. Tristia. Trad. Arthur Leslie Wheeler. London: The Loeb Classical Library, 1939. POLIBIO. Histéria. Trad. Mario da Gama Kury. Brasilia: UNB, 1996. SENEQUE, L. A. Apocolocyntosis. Trad. W. H. D. Rouse. London: The Loeb Classical Library, 1925. Obras Gerais: ARIES, P.O homem diante da morte. Trad. Luiza Ribeiro. Sio Paulo: UNESP, 2014. ELIAS, Norbert. A solidao dos moribundos. Seguido de enve- lhecer e morrer. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. HOPE, V. M. Remembering to mourn personal mementos of the dead in Ancient Rome. In: HOPE, V. M.; HUSKINSON, Ja- net (orgs.). Memory and Mourning: Studies on Roman Death. Oxford: Oxbow Books, 2011. pp. 176/195. KUBLER-ROSS, E. Sobre a morte e o morrer. O que os do- entes terminais tém para ensinar a médicos, enfermeiros, teli- giosos e aos seus prdprios parentes. Trad. Paulo Menezes. Sao Paulo: Martins Fontes, 2012. OMENA, L. M. de; FUNARI, Pedro Paulo. Apresentagao - Dossié. Revista Brasileira de Estudos Classicos, v. 27, n. 01, p. 77-82, 2014. RIBEIRO, S. M. Arqueologia das praticas mortuarias. Uma abordagem historiografica. Sdo Paulo: Alameda, 2007. WALLACE-HADRILL, A. Rome’s Cultural Revolution. Lon- don: Cambridge, 2008. 19 Capitulo 4 As experiéncias da morte no Rio de Janeiro colonial Clandia Rodrigues Ainda que nao se possa ignorar a vigéncia de praticas e re- ptesentacdes relacionadas 4 morte e aos mortos nas diferentes culturas presentes no Rio de Janeiro colonial, a exemplo das in- digenas e das afticanas — para além de outras culturas minori- tarias, como as europeias protestantes, as judaicas, etc. —, € ine- gavel o predominio das concepgées € atitudes catdlicas entre a maioria da populac’o. Com efeito, até o final da dominacao lusa, falar da morte e dos mortos na América implica falar so- bre aspectos da cultura funeraria catélica entio predominante e que se pretendeu impor aos diferentes grupos sociais e étnicos. Afinal, atuante na conquista, ocupagao e povoamento da regiao, desde o século XVI, a Igreja catélica agiu como braco do Estado lusitano em sua colénia americana e, da mesma forma que nos demais cantos do Império portugués, fez da morte um especial instrumento de cristianizagio/catequese ¢ de imposicao de sua hegemonia sobre os stiditos-fi¢is (Rodrigues, 2004, p. 93-147). : O predominio do catolicismo, entretanto, nao deve conduzir a ideia de que sua expressao, na América Portuguesa, tenha sido de forma unica ou “pura”. Formas que nao eram assim nem ™esmo no Reino e no restante da Europa, ao longo da Epoca Moderna, tendo em vista a presenga de varios elementos das antigas e medievais tradigdes ditas “pagas” ¢ da cultura popular 95 Luciane Munhoz de Omena | Pedro P. A. Funari (orgs.) (Delumeau, 1971, p. 323; 1976, p. 100-104; Furet ¢ Ozouf, 1989 p. 28; Thomas, 1991, p. 151). Nao foi tnica porque exsiny, outras praticas religiosas e, por extensio, funerarias 14 Sociedade colonial. Nao foi pura porque o catolicismo teve que dialogar com elementos destas outras culturas funebres, como as indige. | nas e afticanas, na sincrética e miscigenada sociedade Colonialdy Rio de Janeiro. ' Como resultados varios deste didlogo, poderiamos falar da existéncia de crencas e praticas fiinebres catdlicas, africanas, in- digenas, judaicas, dentre outras; mas também de atitudes que mesclavam elementos de uma ou mais destas crencas e praticas, sem implicar que a adogio de uma significasse necessariamen- te a dissimulacio da outra (Rodrigues, 2003, p. 155-162; 2007, p. 460). A feliz expressio de Joao José Reis sobre a presenca da morte “como festa” no “catolicismo batroco” do Brasil de outrora, talvez, possa melhor explicar 0 modo plural pelo qual devemos compreender as atitudes diante da morte e dos mortos na sociedade do Rio de Janeiro, ao longo dos cerca de trés sécu- los de colonizacio lusa (Reis, 1991). A proposta deste capitulo é identificar um pouco desta colorida e multifacetada cultura fu- neraria das trés Principais matrizes culturais presentes na regiio: a indigena, a catdlica ea africana. 1. A morte e os mortos entre os indios Em que Pese a diversidade étnica dos varios grupos indigenss que habitavam o tertitério da América portuguesa no moment do contato com os europeus, é possivel identifigar, pat “ dos costumes funetarios “mais comuns/corriqueitos”, # P™ [ indios ¢a antropofagica, Quando da chegada dos europeus, 08 ™ 96 a As Experiéncias Sociais da Morte: Didlogos Interdisciplinares que habitavam o Rio de Janeiro viviam se autodestruindo e co- mendo uns aos outros (Vasconcelos, 1943, p. 277-278; Almeida, 2003, p. 45), tornando a antropofagia uma das principais marcas das atitudes nativas diante da morte as quais se fizeram notar com grande forga nos relatos deixados por aqueles que travaram contato com os diversos grupos indigenas na regiado que seria conquistada, como foi o caso de André Thevet (1944[1557], p. 258-260), Hans Staden (1930[1557], p. 165-169) e Jean de Léry (1980[1578], capitulo XV). Dentre essas, a obra de Hans Staden foi a que mais detalhou o ritual antropofagico tanto por meio da escrita como através de ilustragdes, que se referiam a algumas das etapas do ritual. Segundo ele, ser escolhido pelo chefe para desfechar 0 golpe que mataria o prisioneiro era considerado uma grande honra: aquele que deve matar o prisioneiro pega na clava e diz: “Sim, aqui estou, quero te matar, porque os teus também mataram a muitos dos meus amigos ¢ 0s devoraram”. Res- ponde-lhe o outro: “Depois de motto, tenho ainda muitos ””. Entao desfecha- amigos que de certo me hao de vingar’ altam e logo -lhe 0 matador um golpe na nuca, 0s miolos s as mulheres tomam o corpo, puchando-o para 0 fogo; ¢s- follan-no até ficar bem alvo ¢ Ihe enfiam um piozinho por de traz, para que nada lhe escape. Uma vez esfolado, um homem o toma e lhe corta as pernas, acima dos joelhos, e também os bragos. Vém entao as mulheres; pegam nos quatro pedagos ¢ correm a0 redor das cabanas, fazendo um grande vozerio. Depois, abrem-lhe as costas, que mas as mulheres separam do lado da frente, ¢ repartem entre si; guardam os intestinos, fervem-no ¢ do caldo fazem uma Sopa que se chama Mingau, que ellas ¢ as criangas bebem. (taden, 1930, p. 165-167) o7 Luciane Munhoz de Omena | Pedro P. A. Funari (orgs) Imagens 1 2: Ilustragdes da Antropofagia Fonte: Staden, 1930. As ilustragdes acima sfo algumas das que constam da obra e foram selecionadas para serem aqui indicadas por se referirem ao ritual desctito na passagem acima transcrita. A que fica 4 di- reita é a unica que possui legenda, sendo descrita no livro como “assando um prisioneiro” (Staden, 1930, p. 169). A morte e os mortos estavam por tras das guerras que os diversos grupos rea- lizavam entre si e uns com os outros na medida em que, mais do que conquistar territérios, riquezas ou povos, elas objetivavam principalmente vingar os antepassados mottos pelos inimigos. A vinganga consistia no elemento fundamental destas sociedades, como pudemos verificar na transctigo acima. Destatte, tanto mottos pretéritos como os que ainda estariam por vir represen” tavam 0 elo entre passado, presente ¢ futuro. O situal antrop™ fagico se constituia em ceriménia essencial, motivador ¢ ae culminante das expedicdes guerreiras, sendo através dele que . vingava os antepassados mortos ¢ se buscava fortalecer os me™ bros do grupo que comia o inimigo (Kok, 2001, p. 23-24). oO Como afirmou Gléria Kok, a religido tupi-guata™ a a torno da crenca em outra vida na qual a motte, 2 Cos tect tia se encontravam banidas: a chamada éerra sem mal. Urn’ 98 AAs Experiéncias Sociais da Morte: Didlogos Interdisciplinares partilhada pelos deuses e pelos antepassados, onde residiria a felicidade e cujo ingresso se daria através da morte. Mas 0 acesso aeste “lugar” nao era livre, visto depender do desempenho tido em vida. Aos guerreiros que tivessem aprisionado e matado mui- tos inimigos ou 4s mulheres que se dedicassem ao Pteparo da carne dos prisioneiros que seriam mortos nos banquetes fune- ratios ¢ 4 sua ingestao, era permitido 0 ingresso naquele “além” desejado, passando a conviver com os antepassados e os deuses. Aos considerados covardes e aos que nunca mataram nenhum inimigo, o destino era a mortalidade da alma, 0 apodrecimento do corpo, a necrofagia por um espirito maligno. Acreditava-se que, caso nao encontrassem alimentos sobre a sepultura, estes espiritos devorariam o defunto e atormentariam sua “alma”. Tanto que, pata aplacar a sua presenca nas proximidades das aldeias, mantinha-se um fogo aceso, realizavam-se oferendas e objetos especialmente confeccionados para a ocasiao eram man- tidos na entrada das aldeias, a exemplo dos maracas — que, para os tupinambas, eram um receptaculo dos espiritos dos antepas- sados, através dos quais estes Ultimos enviavam mensagens aos vivos; tornando-se, assim, objetos cultuados enquanto havia a materializacao do espirito dos ancestrais (Kok, 2001, p. 34-51; Léty, 1980, p. 207; 247-8). A partir deste sistema de crengas no post-mortem e n0 sobre- natural, uma série de rituais era realizada diante da morte co- tidiana, aquela diferente da do ritual antropofagico, envolven- do 0 pranteamento do morto com efusivos choros, lamentos descabelamento dos vivos; o amortalhamento do corpo em sua Propria rede amarrando-o bem com cordas de algodio, para se “ita que ressuscitasse ou vagasse; o sepultamento dentro de ot vasos, que eram enterrados junto as ora ou rogas, para que o Corpo tivesse contato com a terra, diante do temor 99 a Luciane Munhoz de Omena | Pedro P. A. Funari (orgs.) da desintegracao do corpo; a disposigao de alimentos Proxim, ao cadaver, seja pata alimentar aqueles espiritos devoradores de cadaveres seja pata alimentar 0 proprio morto que, Segundo a crencas, retornaria a sepultura para se alimentar; as ceriménias ligadas ao luto, com choros que duravam varios dias; dentre ou. tros (Kok, 2001, p. 29-33, Métraux, 1979, p. 105-110; Raminelli, 2008, p. 204-205). Uma compreensio mais abrangente deste processo pode ser vista na nota do tradutor da obra de André Thevet, quando procurou relacionar os elementos presentes nos costumes finebres dos tupinambas a partir da leitura e compi- lagao que fez dos diferentes relatos de viajantes, memorialistas missionarios que escreveram sobre os indios que habitavam o litoral da América portuguesa com os quais os europeus tiveram contato nos primeitos momentos da conquista: O nitual funeratio dos tupinambis (séc. XVI e XVII) era constituido dos seguintes elementos: a) O pranto, com es- tranhos lamentos, mais intensos nos dois, ou mesmo cinco dias, que se seguiam ao traspasse (ufo principal, diz Thevet). Cardim afitma que durava um dia; outros mais. Muitas ve- 2e8, 0 choro era acompanhado de terriveis “baques”. b) O elogio do motto. c) A ornamentagio, que consistia, tratando- -se de algum principal, ou chefe de familia, em lavar, pin- tar, untar de mel e cobrir 0 cadaver de penas, carapugas e outros adornos. d) O amortalhamento, na rede em que of- dinariamente dormia o defunto; quando nao era 0 corpo amottalhado na rede, os tupinambds manietavam-no com fios de algodio ou de outras matérias. No amortalhamento, © cadaver tomava a posicio fetal (como observou A. M. Gongalves Tocantins); mas a Posi¢’o mais comum era a de quem estava sentado nos calcanhares, Algumas vezes tam- bém se dobrava o cotpo de tal modo que os pés tocavam 100 As Experiéncias Sociais da Morte: Didlogos interdisciplinares na cabega. e) A inumapao do corpo no pote (igacaba ou camu- cim), que depois se enterrava na cova, A cova tinha a boca oval ou redonda e a profundidade de quatro a cinco pés (a altura de um homem). Abria-se na propria oca do morto (quando se tratava de um Principal ou chefe de familia), ow no patio da taba. No caso de falecer uma crianca, cavava-se a fossa atras da casa. Algumas pessoas eram enterradas nos campos, longe da taba. Da abertura de cova encarregava- -se 0 parente mais chegado do morto. Em certas ocasides, dispensava-se a igacaba; mas, nesse caso, construia-se o ti- mulo de modo a permitir que a terra ndo tocasse no cad4- ver (estacadas de pau, uso de uma cuia na cabeca, etc). f) A colocagio, na cova, dos materiais necessdrios ao morto — a dixeita, a cabaca de agua, o pote de cauim, o alguidar de comida (fatinha, carne assada, peixe, aves) ¢, 4 esquerda, as armas ¢ instrumentos agrarios. Nao faltava mesmo a cangoeira e 0 macinho de tabaco. g) A restituigio, em ato priblico, dos objetos, com os quais 0 morto havia presenteado aos seus amigos ou parentes. h) A construpiio da chocinha de pala (pindoba), no alto da cova, junto a qual se acendia 0 fogo. i) O jejum (no dia do traspasse, ou do enterro, os parentes sé se alimenta- vam 4 noite). j) O Auto. No dia seguinte ao do enterro, a vii- va cortava 0 cabelo bem frente ao couro, o mesmo fazendo todas as parentas e amigas que a iam visitar. Ao conttario do vitivo, ou dos homens, que o deixavam crescer. k) A festa da tirada do luto, realizada geralmente um més apés 0 tras- Passe, com dangas, jogos, miisicas e vinhos. As mulheres pintavam-se de jenipapo e os homens voltavam a tosquiat- -se. (Thevet, 1944, p. 262) Assim como outras praticas culturais indigenas, estas atitudes foram alvo da condenagio eclesiastica e, por isso, de intensa aio 101 Luciane Munhoz de Omena | Pedro P. A. Funari (orgs.) catequética pot parte do clero catélico. Nos discursos de mis. sionarios, principalmente jesuitas, ntcae se os habitos funerg. tios dos nativos, identificados como imbufdos do Paganismo, da idolatria e, principalmente, do “canibalismo”. Para a Igreja, agir sobre estes costumes era uma forma de resgatar a alma daqueles individuos. Na busca deste resgate, os aldeamentos setiam alvos de diferentes tentativas de imposi¢io do catolicismo ¢, mais es. pecificamente, das praticas e concepsoes fanebres cristas, atra_ vés da instituigio da escatologia catélica. Com este objetivo, a Igreja buscou impor aos nativos os caminhos para a obtencio da salvacio da alma, impondo a modificagao dos seus rituais atra- vés da introdugio da pratica do amortalhamento cristio, do se- pultamento eclesidstico em torno das capelas, da eliminacao do costume de se deixar comida nas sepulturas e, principalmente, da extingao da antropofagia, dentre outras (Kok, 2001, p. 102-107). A conversao, no entanto, nao se fez sem resisténcias da parte das varias etnias e estas podem ser identificadas nos atos de de- senterramento dos cadaveres para que eles fossem “devidamen- te” comidos pelos inimigos, no receio de se abandonar 0 costume de amortalhar e amarrar o cadaver em sua rede, na recusa do se- pultamento distante das casas, na rejeicio de se deixar de prantear os mortos (Kok, 2001, p. 102-107; Almeida, 2003, p. 145-146). Em sua Cronica da Companhia de Jesus, Segundo Simao de Vascon- celos mencionou a certa altura que os padres da companhia comegaram a conhecer, que a dificuldade da conversio era grande, e nao menor o perigo dela; porque estava esta gente bravia, e arraigada em seus costumes barbaros, prin- cipalmente no de comer carne humana [...]. Desfaziam-se em selo Nobrega, e os mais companheiros, porque viam a cada passo diante de seus olhos aquela infanda carnigaria 102 As Experiéncias Sociais da Morte: Dialogos Interdisciplinares nos terreiros, e ouviam com seus ouvidos a solenidade das festas, com que matavam, e repartiam como em agougue as carnes de seus inimigos; e nao podiam pér remédio a tio detestavel abuso, desonra da prépria natureza. (Vasconce- los, 1977, p. 198-199) Certamente, por este motivo, os missionarios tiveram que fazer concessdes (Almeida, 2003, p. 145-148; Cruls, 1965, Pp. 109), mantendo alguns dos costumes fiinebres nativos, no pro- cesso de introdugio dos catdlicos. Segundo Gloria Kok, para “que os indios conseguissem aceitat um novo modo de sepulta- mento dos corpos, no qual o panegirico do morto, o suprimento de farinha, a presenga do fogo ¢ a protecio ao peso da terra” no tivessem “mais valor nem significado, o funeral cristio teve que absorver elementos do funeral indigena, tais como as missangas, os buzios e o pranteamento” (Kok, 2001, p. 104). Apesar das resisténcias ou permanéncias, muitos dos indios aldeados se mostraram abertos 4 conversao. E neste processo estiveram presentes as amedrontadoras pregagOes jesuiticas, a exemplo das que usavam o tema da morte e dos castigos no além-tamulo para os considerados pecadores. O jesuita Alexan- dre Perier, por exemplo, relatou o sucesso que teve durante cerca de trinta anos de missio no Brasil, no século XVIII, ao adaptar a escatologia catdlica para o nivel da compreensio dos indios através do uso de estampas iluminadas com a cor do fogo, que apresentavam imagens dos terriveis castigos infernais aqueles que nao seguissem os ensinamentos eclesidsticos. Segundo ele, tais ilustragées impressionavam tanto os indios durante suas Pregacdes que alguns chegavam a lhe procurar no meio da noi- te para se confessar, dizendo-lhe que nao queriam esperar para fa78-lo no dia seguinte pelo medo de irem para o inferno caso 103 Luciane Munhoz de Omena | Pedro P. A. Funari (orgs,) morres Aravjo, 1997, p. 156-157). O desdobramento desse processo foi a ptogressiva ante tuigio dos costumes indigenas pelas praticas finebres Catblicas, com o passat do tempo, apos uma convivéncia entre os gtupos mais assimilados que se encontravam nos aldeamentos ¢ os mais essem naquela mesma noite sem ter se confessado (apud resistentes, que ainda viviam nos sertoes, em suas aldeias origi. nais, Passemos a analisar as experiéncias da morte catélica, 2. A morte e os mortos no catolicismo O recurso a nogio da punicao infernal no além-tamulo utili. zado da Idade Média, para convencet 0s fi¢is sobre a necessidade de se prepararem para a morte renunciando aos pecados pot este jesuita nao foi exclusivo pata 0 caso dos indigenas, fazendo-se presente junto aos demais segmentos sociais. De modo geral, fez parte das estratégias utilizadas pela Igreja catdlica, desde o final, com base no uso de uma pedagogia amedrontadora (Delume- au, 1983, p. 375-376; Vovelle, 1983, p. 133; 140-141; Rodrigues, 2005, p. 50-52). Figurando na escatologia catélica como um dos lugares do além-tumulo, o inferno representava o destino para o qual iriam as almas condenadas a penar e a sofrer eternamen- te de castigos no ardente fogo. Enquanto o paraiso era o lugar almejado por todos, mas destinado aos eleitos e sem pecados, 0 purgatorio —instituido como dogma catdlico a partir dos séculos XII XIII - se afigurava como a antecimara do inferno, para onde se destinavam todos aqueles que tivessem pecados leves € cotidianos em telacio aos quais nao tivessem cumprido a peni- téncia devida (Le Goff, 1981, p. 21-25; 373). 104 As Experiéncias Sociais da Morte: Didlogos Interdisciplinares Religiao soterioldgica por exceléncia, o objetivo maximo do catolicismo era a salvacao da alma no além-timulo. Foi neste sen- tido que a Igreja investiu bastante na ameaca da punicio com a nao salvagio aos que nao se pusessem sob suas diretrizes. Dife- rentemente da tradicional concepgao do Juizo Final, que afirmava que o julgamento seria coletivo e realizado no final dos tempos, 0 periodo final da Idade Média assistiu a emergéncia da nogio do “Suizo particular” ou “escatologia individual”. Segundo esta nova representacao, logo apos a morte haveria um julgamento indivi- dual pelo qual seria decidido o destino da alma: se paraiso, pur- gat6rio ou inferno (Ariés, 1989, p. 115-116). Como se sabia que dificilmente ela iria para o paraiso, a iminéncia da morte causava a angustia sobre se o destino seria o Inferno ou o purgatério, cujas penas e castigos seriam tao terriveis quanto os do Inferno, com a diferenga de serem temporiarios. Os “tiltimos momentos” adqui- tiram, assim, grande dramaticidade na medida em que ocorreria um intenso combate no leito de morte entre anjos e demdnios pela posse da alma do moribundo no momento do trespasse. Dai a necessidade, segundo a Igreja, de que o moribundo estivesse bem preparado, munido dos sacramentos, das oragées e dos ritos ditigidos pelo cleto (Rodrigues, 2005, p. 48; 53-59). Com base nestas concepgées, a instituicio eclesidstica ado- tou uma pedagogia culpabilizadora e amedrontadora, que busca- va convencet os fi¢is da necessidade de cumprirem seus ensina- Mentos e doutrinas sob o risco da condenagio divina (Delumeau, 1983; 1989). Neste sentido, ela disseminou uma série de atitudes com vistas 4 preparacio para a morte, que seriam divulgadas Pelo clero através das Ptegagdes — a exemplo das de Alexandre Perier descrita anteriormente — e da redacio dos chamados “ma- fuats de bem morrer”. Também chamados de ars moriendi ou artes ‘ 1 de bem wmorrer, estes manuais ganharam repercussio entre os 105 he Luciane Munhoz de Omena | Pedro P. A. Funari (orgs. séculos XIV e XV, representando um género de literatura devo. cional composto por textos ¢ imagens que procuravam ensinas Os passos a serem seguidos no momento derradeiro, como uma espécie de cartilha. Neles, ilustrava-se aquela Tepresentacio da luta entre anjos e deménios, levando ao fiel uma visualizagio da cena que se passaria no leito de morte por ocasiao do Julgamen- to Particular (Chartier, 1976, p. 53; Chaunu, 1976, p. 276; 1978 p. 279-282; Vovelle, 1983, p. 144). : Exemplo tipico deste tipo de literatura no mundo ibérico foj © Breve aparelho ¢ modo facil para ensinar a bea morrer um cristio (BN/ RJ, Castro, 1677). Escrito pelo jesuita Estevam de Castro, o ma- nual se constituiu em um dos maiores sucessos editoriais portu- gueses deste tipo de literatura. Tendo a sua primeira edigao em 1621 e a ultima identificada em 1724, seriam pelo menos onze edigdes que circularam no mundo portugués por cerca de cem anos, ensinando os fi¢is-vassalos a morrerem segundo os ensina- mentos catdlicos (Araujo, 1997, p. 164). Com esta obra, o jesuita procurava orientar o sacerdote ou leigo que fosse acompanhar o moribundo os passos que este devetia seguir, principalmente diante da doenga. Em cerca de 290 paginas, exortava que o en- fermo buscasse primeiramente o sacramento da peniténcia, sob o atgumento de que, uma vez confessado, Deus perdoatia a culpa e aliviaria a pena (BN/RJ, Castro, 1677, p. 4-6; 9-97). Tal aspecto demonstra a agio eclesidstica no sentido de ameasar e, paralela- mente, indicar o apaziguamento, através dos seus ritos, oragdes ¢ palavras de consolo, a fim de transmitir confianga e seguranga 20 fiel desesperado (Delumeau, 1983, p. 293-298; 315-339; 321; 340- 351), num esquema que parecia ser perfeitamente encadeado. Depois de confessado, o segundo passo indicado era © de que o doente fizesse seu testamento, de modo a restituit “o mal ganhado”, satisfazendo ao proximo qualquer dano 0U in- 106 As Experiéncias Sociais da Morte: Didlogos Interdisciplinares juria que tivesse feito, assim como perdoar as ofensas € agravos que outros lhe fizeram (BN/RJ, Castro, 1677, p. 99-100). Para isso, Estevam de Castro ensinava como redigir, aprovar e fazer a abertura de testamentos. O passo seguinte era pedir a eucaristia. Considerada 0 “tnico remédio de todos os males”, e que deve- ria ser levada ao enfermo “com a pompa, e aparato costumado dando-se por modo de widtico” (BN/RJ, Castro, 1677, p. 140- 141). A sua administragio seguiria a do sacramento da extre- ma-ungio que deveria ser dada ao moribundo quando sentisse que estivesse enfraquecendo, “antes de perder 0 juizo natural”. Segundo Estevam de Castro, este sacramento seria fundamen- tal para aparelhar 0 agonizante “com armas convenientes para aquele tempo da batalha tltima, e mais fortes tentagdes” (BN / RJ, Castro, 1677, p. 140-148; 162). Deste modo, buscar os sacra- mentos ¢ redigir o testamento eram as duas primeiras atitudes que, segundo este discurso eclesiastico, deveriam ser tomadas na iminéncia da morte. A partir de uma amostragem de 3.595 registros patoquiais de dbito setecentistas das pessoas que estariam aptas a receber os ““iltimos sacramentos” quando moribundas (excluidos os 207 registros relativos aos chamados inocentes, criangas até sete anos, que estavam isentos do seu recebimento), pude identifi- car os indices de recurso a pratica sacramental na iminéncia da morte na freguesia da Sé, no final do século XVIII. Os regis- tros se encontram no Arquivo da Ciiria Metropolitana do Rio de Janeiro, no fundo Assentos Paroquiais. Com base na anilise, verifiquei que 74,1% (2.664) receberam todos ou pelo menos um dos sacramentos; 8,8% (315) foram descritos como nao os tendo recebido; ¢ que em 17,1% (616) dos registros houve au- séncia de referéncia ao ato. Dentre os motivos alegados para o nio recebimento dos sacramentos, a maioria se deveu 20 fato de 107 ee Luciane Munhoz de Omena | Pedro P. A. Funari (orgs) a morte ter sido repentina, sem tet havido tempo para a sug ad. ministracio (ACMRJ, Assentos Paroquiais). Estes sio Percentuais consideraveis no sentido de que parte significativa da Popula. cio da cidade recorria aos “ultimos sactamentos” na iminéncig da morte com vistas a, quando nao curar a enfermidade que se considerava ser decorrente do mal da alma (Rodrigues, 2005, p. 121-124), pelo menos garantir condig6es satisfatérias no mo. mento do “passamento”, quando se acreditava que intensifica- vam as ameagas dos demOnios a fim de tomarem a alma do fiel moribundo. O recurso 4 pratica sacramental diante da morte de- monstra, pois, aquela crenga na imagem do julgamento particu. lar, projetada secularmente pela Igreja. Da mesma forma que expressaram sua preocupacio com o destino de sua alma através da busca dos “ltimos sactamentos”, segundo as orientagGes eclesiasticas, os fi¢is também demonstra- ram a preocupa¢ao com a salvacao no momento de redigir seus testamentos, principalmente ao fazerer constar a frase comuma ptaticamente todos estes documentos, “Temendo-me da morte ¢ querendo pdr minha alma no caminho da salvacio, faco este meu testamento...” (Rodrigues, 2005, p. 99-100). A leitura deste tipo de documento referente ao periodo colonial nos permite identificar uma estreita rela¢ao com as orientagdes emanadas dos manuais de bem morter, a exemplo do Breve Aparelho. De modo geral, é possivel afirmar que os testamentos do Rio de Janeito seguiam de perto a formula ensinada por Estevam de Castro, que especificou a ordem e forma de se fazet os testamentos, priorizando a parte escatolégica (Rodrigues, 2005, p. 100-128; 2015, p. 32-37). Foi neste sentido que os testadores procuraram redigit 0 i cumento para fazer sua profissao de fé; pedir a intercessio de santos e anjos, da Virgem e de Cristo pela sua alma; organizat 108 ca As Experiéncias Sociais da Morte: Didlogos Interdisciplinares seu funeral de acordo com os rituais catélicos; estabelecer sufra- gios por sua alma ¢ pelas de outrem; instituir legados pios; doar esmolas a pobres; demonstrar arrependimento pelas “faltas” € pecados que se acreditava ter cometido em vida; saldar dividas; etc. Deste modo, ainda que o testamento tenha sido utilizado para transmitir herancas, este objetivo parecia nao ser tao re- levante quanto 0 soteriolégico, haja vista a prioridade dada ao tema da salvacao em detrimento do da transmissio de bens. Na- quela época havia, inclusive, quem estabelecesse sua alma como ‘nica herdeira, mostrando como até mesmo a transmissao de heranca poderia ser feita em fungao da salvacao. Tal pratica também se sintonizava com a legislagio eclesidstica da época, a exemplo das Constituigées Primeiras do Arcebispado da Bahia (de 1720), que determinavam aos pirocos ¢ aos demais clérigos que fossem fazer os testamentos, que tivessem “em primeiro lugar intento do que” convinha “a salvacio do testador, descargo de sua consciéncia, paz e quietacio de sua familia e sucessores, aconse- Ihando-lhe com caridade ¢ zelo” que tratasse de sua salvagio, dis- pusesse de suas coisas ¢ as deixasse de tal sorte ordenadas que niio ficasse “ocasiao aos herdeiros de demandas” (IHGB, Vide, 1720, Livro 4, titulo XXXTX). Demandas estas que, obviamente, se refe- riam aos gastos piedosos com sufragios, esmolas ¢ legados, os quais eram secularmente incentivados pelo clero. Deste modo, a institui- Gio eclesidstica procurava insistir em que o testamento estivesse su- bordinado aos objetivos soterioldgicos, ainda que legalmente fosse um instrumento de transmissio de heranca. Se em termos de contetido os testamentos demonstraram uma sintonia com as orientagdes eclesidsticas, a frequencia da Pratica testamentaria na sociedade colonial dependia de outras questdes para além da fé ou do medo da morte. A anilise de 3114 registros Paroquiais de dbito da ja referida freguesia, refe- 109 Luciane Munhoz de Omena | Pedro P. A. Funari (orgs.) ‘os individuos em condigdes de testar (excluidos os tei. a rentes os de esctavos ¢/ou menor filhos di / lores de 14 q tros de escravos, / a legislagao da época, nao testavam), nos permite pessoas que morreram tendo deixado suas las. Enquanto a primeira metade apre. que, segundo verificar o indice de Ultimas vontades registrad: *P sentou maior indice de testamentos redigidos (5%), a metade seguinte representou um momento de recuo da Pritica (29,6%) em fungio do crescimento do indice dos que nao testaram (13% na primeira metade e 18% na segunda) ¢ das suséncias de tefe. réncia a0 ato no registro de dbito (42% na primeira ¢ 52,4% na segunda metade). Dentre os que foram pode como nio tendo feito testamento, a pobreza ¢ a morte repentina aparece. ram como principal justificativa na maioria absoluta dos casos, (ACMR], Assentos Paroguiais). Alias, 0 fato de o registro mencio- nar que um individuo nio havia deixado testamento, por si s6, jé indica a importancia que se dava 4 redac4o das “ltimas vonta- des”, como exortavam as orientagGes eclesiasticas e certamente indicavam que aquele individuo tinha condiges de fazé-lo. Por seu lado, o expressivo indice de auséncia de referéncia aponta para aqueles que efetivamente nao teriam condigGes econdmicas de deixar testamentos. A tedacio de um testamento dependia das posses materiais do individuo, apesar de estar pressuposto nas Constituigies Primei- ras que qualquer um poderia fazé-lo (sobre os tipos de testamen- tos: cerrado, aberto, holografo e nuncupativo, ver Mattoso, 1979; Oliveira, 1988; Paiva, 1995). Na pratica, entretanto, os que nio tinham bens a deixar nao o redigiam, salvo excegao, conforme afirmou Sheila de Castro Fatia, Segundo ela, “a grande maioria da populacio livre/liberta nao fazia testamento, uns por nao te- rem condicées, outros pela forma [repentina] da morte” (Faria, 1998, p. 272). Dentre os 601 tegistros de dbitos da capitania do 110 As Experiéncias Sociais da Morte: Didlogos Interdisciplinares Rio de Janeiro relativos ao século XVIII, por ela analisados, re- ferentes aos individuos em condigées de testat e com referéncia 4 redacao do testamento, 62% mencionaram que a pessoa havia feito testamento antes da morte. Os 38% de registros restantes que afirmaram que o individuo morreu “sem testamento” suge- rem que eram pessoas que teriam condigées de fazé-lo, mas nio puderam. A maioria, segundo verificou a autora, sofreu mor- te violenta e/ou repentina. Para aqueles em relagao aos quais nao foi feita indicagio explicita do motivo pelo qual no testou, Sheila afirma que seriam justamente os individuos de quem nao se esperava a redagao de um testamento, concluindo que os tes- tamentos se colocavam como peca fundamental para o ato de morter, mas sO dos que tinham bens a deixar (Faria, 1998, p. 273). Segundo Joao José Reis, redigir um testamento era um dos meios de se preparar para a morte, principalmente, mas nao ex- clusivamente, entre as pessoas mais abastadas Reis, 1991, p. 92). Estas afirmagées sao corroboradas pelas Constituigées Primeiras quando, ao determinat sobre a forma pela qual os dbitos deve- riam set assentados nos livros Paroquiais, afirmou que o registro deveria mencionar se o morto Fez testamento, em que deixou se dissessem tantas missas por sua alma, e que se fizessem tantos oficios; ou morreu ab éntestado ou era notoriamente pobre, ¢ portanto se lhe fez o enterro sem se lhe levar esmola. (IHGB, Vide, 1720, Livro 4, titulo XLIX, p. 292) Neste modelo proposto pelas constituigGes sinodais, era sig- nificativa a associac4o entre o ato de testar ea pobreza, no caso de o individuo ter falecido sem testamento. Desta forma, a Igreja demonstrava que sua Preocupacao para com o ato de testar tinha em vista tanto uma motivagio espiritual quanto a obtencao de 11 Luciane Munhoz de Omena | Pedro P. A. Funari (orgs) recursos para a tealizacio dos sufragios, para as obras pias ¢ Pata a realizacao do funeral. Recursos estes que assumiam a forma de legados, doagées ¢/ou esmolas, representando a materializagig dos objetivos sagrados. Como se petcebe, as representagdes do catolicismo sobre a necessidade de se preparar com antecedéncia para a morte tive. ram repercussio entre a populacio da cidade do Rio de Janeiro, Com vistas a obter a salvagio da alma, buscava-se estar prepara. do para o momento derradeiro. Foi com este objetivo, inclusive, que muitos fiéis se filiaram as intmeras irmandades e ordens terceiras objetivando receber os cuidados que estas associacdes realizariam para com 0 irmio falecido. A estas associagées cabia a realizacao dos rituais funerarios de seus filiados, acompanhan- do-os da doenga a morte, desta a sepultura e dai em diante no “outro mundo”, mantendo com eles uma uniao que, a partir de entio, seria selada por meio das oragGes ¢ de outros sufragios (Atiés, 1988, p. 12-19; Reis, 1991; Soares, 2000). Tais redes de solidariedade se manifestaram nas cerimOnias fanebres e nos elaborados preparativos para a despedida realiza- dos por parentes, amigos e confrades dos falecidos. Os mortos, nos seus funerais, eram alvos de um tratamento que ia desde a preocupacio extremada com o vestuario aos cuidados com o caixio € com a armacao da casa e da igreja. Os velorios e os cortejos eram ocasiGes de “festa”, no sentido da concorténcia de grande numero de assistentes e acompanhantes. Assim, da agonia 4 morte e desta a sepultura, a solidao ¢ 0 siléncio estavam ausentes. Desde a administragao dos tltimos sacramentos até 0 sepultamento, a presenga de parentes, amigos, fiéis afiliados as irmandades e do cleto era buscada como fonte de oracio pelas almas dos mortos. Tudo acrescido dos insistentes dobres dos sinos das igrejas por onde passasse 0 cortejo do viatico e, depois, 112 As Experiéncias Sociais da Morte: Didlogos Interdisciplinares o fanebre (Reis, 1991; Rodrigues, 1995). Esta estrutura poderia variar de acordo com as posses do morto e as de seus familia- res; variagao que se dava pela pompa do cerimonial, que poderia conter desde uma elaborada armagio da casa e da igreja até um cortejo finebre de carruagens, com a presenca de pobres, sacer- dotes, irmandades e até musicos. A busca pelo sepultamento no interior das igrejas era uma forma de se garantir a salvacao da alma, segundo a crenga de que a inumagao ad sanctos apud ecclesian, ou scja, em local sagrado, dentro do templo e junto aos santos, facilitaria no momento da ressurreicao. Acreditava-se que a sepultura adequada e inviolada possibilitaria a salvacao, na medida em que esta era associada a conservacio do corpo, com base na crenca de que a violacio da sepultura comprometeria o despertar do defunto no ultimo dia, €, por conseguinte, a sua ressurreicao para a eternidade (Aries, 1989, p. 41). Por questdes de fortuna ¢ ventura, nem todos os mortos eram entetrados nas igrejas ou ao seu redor. Na cidade do Rio, os esctavos ¢ homens livres pobres que nio pertences- sem as irmandades e/ou nao pudessem pagar por uma cova ou catacumba de igreja, os justigados a quem era vedado 0 sepulta- mento em local sagrado, os indigentes e os nao catolicos tinham como destino um dos varios cemitérios que existiram na cidade (Bravo, 2014). Nas areas rurais, a maioria eta destinada as sepul- turas da igreja matriz, sendo a diferenga estabelecida entre os que estariam dentro do templo e no adro a céu aberto (Franco, 2009; Goncalves, 2013; Paixio, 2015; Braga, 2015; Bruno, 2015). No caso dos estrangeiros cristios, passatam a contat com © cemitério dos ingleses/protestantes, situado na Gamboa. Em fungio do “Tratado de Amizade”, de 1810, estabelecido entre Portugal ¢ Inglaterra, os briténicos garantiram, além dos privi- légios excepcionais no comércio, a liberdade de culto e de dar 113 Luciane Munhoz de Omena | Pedro P. A. Funari (orgs.) sepultura aos seus mortos em cemitérios Particulares na América portuguesa, tendo apenas a ressalva de que nao poderiam dar as suas igrejas e capelas a aparéncia de templo e nem buscar 4 conversio dos habitantes do pais a sua religiio (Cruls, 1965, p, 369). Nesse sentido, foi construido um cemitério destinado aos ingleses que, devido a inexisténcia de outros locais desta nature. Za, passaria a sepultar estrangeiros de outras nacées e cultos, a exemplo dos judeus (Costa, 2010). No que se refere aos escravos, é importante dedicar um item especifico que nos possibilite aproximar de outra matriz cultural, no caso a das crengas ¢ praticas africanas e de como seriam vie venciadas na sociedade colonial. 3. A morte e o mortos entre os africanos Dando sequéncia ao tépico da predominancia dos sepul- tamentos eclesidsticos, o olhar sobre as experiéncias ligadas & morte dos escravos no Rio de Janeiro evidencia que, para além das covas pertencentes 4s igrejas matrizes e as irmandades dos chamados “homens de cor” — se considerarmos que, se por um lado, os registros de dbito raramente mencionavam quando o individuo era branco e, por outro, sempre explicitavam os pre- tos, patdos, mulatos, etc. —, existiam varios cemitétios ao ar livre: © cemitério dos “pretos novos” (como eram chamados os afti- canos recém-chegados pelo trifico e que morriam nos navios ancorados nos portos ou no mercado de escravos), inicialmente no largo de Santa Rita e, apés 1769, no Valongo (parte da atu- al zona portuaria do Rio de Janeiro); 0 dos franciscanos, ao pé do morto do convento de Santo Anténio, ¢ o da Santa Casa da Misericérdia (atras do seu hospital). Na descricio do enterto 114

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