sai02r2021 "Somos elernos": em busca de uma flosfia da vida @ da merte [by ano I ensaio | ane It ensaio | Jan, 2021 | Medium
“Somos eternos”: em busca de uma filosofia da
vida e da morte
Série: sobre Principios e Fins
IZ anoll:ensaio
Jan 14:9 min read
|
FS OMTKYE TORN OS”:
POR WTINDES:
SERIE: SOBRE PRINCIPIOS E FINS
Um ano atrds comecei a escrever um ensaio sobre a nogdo de humanidade que
carregamos conosco. Demorei quatro meses para escrevé-lo, Tive que ver 0 inicio da
pandemia no Brasil para compreender a importancia da recusa ao modo de vida
universalista, e hoje, com mais de 200 mil mortes resultantes do exterminio promovido
pelo governo, pude escolher quais pensamentos iria registrar para a posteridade.
O ensaio “As ordens no paraiso”: o que vem depois do humano, foi meu primeiro texto
publicado pela Ano I: ensaio. Nele manifestei a violéncia silenciosa que uma
perspectiva universalista pode carregar, principalmente quando é vinculada ao
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entendimento do que é 0 ser humano. Nessa ideia, o humano universal é o homem
branco, europeu, heterossexual e cisgénero. Essa nocao enraizada e difundida pelos
ideais iluministas da modernidade fez com que processos de dominagao fossem
naturalizados, seja por meio do racismo cientifico ou pela difusao das doutrinas cristais
que demonizam saberes originarios. Na contemporaneidade a violéncia colonial no
Brasil mostra-se de varias maneiras, seja por meio do exterminio da populacao negra e
indigena, ow nas violéncias silenciosas causas pelo epistemicidio nas universidades
brasileiras.
Naquele ensaio publicado em abril, apresentei Ailton Krenak com os saberes dos povos
origindrios e a relagdo respeitosa com a Terra, entendendo-a como o ser vivo que
realmente é, como maneira de romper com politicas coloniais. No presente ensaio,
evidencio os riscos do universalismo quando o assunto é a morte. Minha proposta 6
abordar a morte a partir de uma perspectiva de terreiro, apresentando a dindmica do
nascer e do morrer no candomblé Ketu/Nag6, sobretudo nas interfaces que Orisa
Nadndad nos ensina.
Grada Kilomba no livro Memérias de plantagdo (2020), explica que existem duas
premissas falsas difundidas nos espagos de conhecimentos institucionais que
mascaram as violéncias coloniais, sendo elas: a universalidade ¢ a objetividade.
Observa-se que esses dois critérios sao utilizados para deslegitimar conhecimentos de
outras culturas e outros povos que no seguem a cartilha imposta e/ou importada
pelo/dos colonizadores. Consequentemente, diversas vozes sdo silenciadas para a
manutengio do conhecimento produzido pelo “centro” [1] delimitando quem tem 0
poder de falar.
No primeiro ano de pandemia, as andlises de conjuntura difundidas no Brasil eram em
sua maioria ditadas por tedricos europeus ¢ norte-americanos [2], que por meio de
especulagées mirabolantes imaginaram um futuro global — desde um retorno ao
comunismo até 0 autoritarismo das maquinas — e a verdade é que aqui estamos, com 0
saldo de milhares de mortos e com vivos usando méscaras no queixo. A premissa de
que “estamos todos no mesmo barco”, como se morréssemos por igual é dibia e pela
primeira vez. em minha vida pude ver pessoas privilegiadas com medo da morte.
Sabemos que todos iremos morrer, mas nao considerar os abismos sociais e culturais
que existe entre nés ¢ eles, e perceber como essas diferengas demarcam quem morre
primeiro, é ignorar a cor, género ¢ classe social dos mais de 200 mil mortos de Covid-
19 no Brasil.
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2024 | Medium
Vimos e sentimos da pior forma como essas estruturas universalistas nao funcionam na
pratica para salvar vidas, mas para garantir as estruturas de dominagao. Afinal, o
privilégio traz a noc&o de imortalidade e no jogo das “historias de vida e histérias de
morte” [3], sabemos como acontece a precarizagao de um em detrimento do conforto
do outro. Deste modo, entendo que a questo da fragilidade da humanidade perante o
virus, empurra-nos para ver o ébvio — as muitas mortes — lancando uma opacidade
em torno da nogao do que é a vida.
Presumo que a contribuicao de filésofas e tedricas brasileiras seja de diagnosticar 0
problema e de apresentar novas formas de futuro, de mundos possiveis para questdes
que dizimam populacées inteiras. Dito de outro modo, é importante que nds,
coloquemos 0 dedo na ferida colonial para evidenciar, cada uma em sua respectiva
Area, a dimensao do problema que vivemos e que muitos nao sentem, e quicd
apresentar novos caminhos a seguir.
Maya Fernandes. Nadnad e a casa de barro (2021), Acrilica sob papel.
Tive que aprender a lidar com a morte desde cedo quando vi meus amigos, um por um,
deixando este mundo. Desde ento vi que havia algo de muito errado com nossa forma
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de viver. Que nao bastava ser uma militante de esquerda, ou debrucar-me durante
horas sobre livros antigos e modernos, que me apresentavam modos de vida que nao se
encaixavam no que compreendo como mundo. Percebi que a filosofia é uma busca
incansével por aquilo que néo compreendemos. E deste modo, era preciso procurar na
pratica, em histéria que nao me cram contadas em livros de uma filosofia ocidental.
Foi em um sonho que encontrei o que tanto procurava. Na casinha de barro com o chao
de terra batida, haviam camas improvisadas de bambu nos cantos dos cémodos. O sol
da manh atravessava a porta principal fazendo sombra, alegrando minha visao. Foi na
porta que a vie ela me viu, fazendo questao de me chamar. Era uma senhora negra
com rugas profundas no rosto e bracos fortes que me fez lembrar o colo de minha avé.
Com seus olhos enormes me encarou durante um bom perfodo, e com um sorriso,
resolveu me dizer que estava 4 minha espera por muito tempo e que sem dtividas eu
era a criatura mais linda que ela ja havia visto. Neste momento seu olhar mesclou-se ao
meu e pude sentir como se féssemos uma s6. Por um milésimo de segundo eu estava
completa. Foi assim que Nadnad me encontrou e eu entendi o que era o principio eo
fim.
Roberval Marinho, meu Gbagbalorisa, certa vez me disse que “somos eternos” e essa
fala me marcou profundamente. Existe um itén [4]antigo que demonstra o que Gbagba
afirmou.
Na criagdo dos humanos, Orise Osala tentou modelar os corpos de diversas maneiras.
Aprimorowo ar de que era feito ¢ viu os corpos esmaecerem.
Juntou pau e pedra que deixaram os corpos rigidos, dificeis de modelar.
Apanhou ds dguas, éleo de palmeira e viu os humanos escorregarem entre seus dedos.
Por tiltimo, criou um corpo a partir do fogo, que entrou em combustiéo e consumiu-se,
forgando o Orisa a continuar a feitura.
Cansado, Osala para na beira de um rio lodoso, uma regido de mangues ¢ observa uma
mulher sair de dentro do rio. Era Nadnad, que junto com seu cetro magico fez emergir um
punhado de lama, modelando-a em corpos distintos para formar os humanos e depois
entregou a Osala. Ele muito agradecido, perguntou o que a Orisa queria em troca. Ela,
muito sabia, respondeu que a condigéo de entregar os corpos de lama era que eles
retornassem para ela ao fim do ciclo vida. E 0 acordo foi firmado. Nadnad oferece os
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corpos, Osala o ar que habita em nossos pulmées e Ogtin possibilita que essa existéncia seja
vivida, pois o Orisa da tecnologia, da guerra, também garante o movimento e nos impede
de ficarmos estagnados.
Vocés ja devem ter lido diversas variagGes desse itan. O candomble, diferentemente das
religides cristas, nao é universalista. Nao temos uma doutrina igual para todos os
terreiros. Possuimos um sistema préprio de costumes, regras e tradigdo. Esse itan que
relatei vem de minha vivéncia em um dos terreiros Ketu/Nag6. Foi ld que me entendi
enquanto Maya de Nadndd e passei a compreender os ciclos da vida e da morte que
formam a eternidade do ser.
Orisa Nadnad é descrita por Gbagba Roberval Marinho:
Este Orisa é.a senhora do saber da morte que equilibra e dd sentido a vida. Senhora do
saber do duplo associado a energia do Orisa Ogun como o senkor da vida, ao qual como
senhora da morte estd indissociavelmente ligada [5].
Para Marinho, Orisa Nadnéd possui uma relacio intrinseca com a terra, lugar de onde
todos nés saimos e que pela l6gica, iremos retornar. Nadnad em sua sabedoria do duplo
da vida e da morte, possui a capacidade de fazermos retornar A natureza,
transformando nossos corpos ¢ espiritos em energia para impulsionar e formar novas
vidas que esto por vir. Na obra Os Nagé e a morte [6], mostra-nos como Nadnad é
associada aos elementos da agua, lama e morte [7]. A lama dessa Orisa é a que nos
oferece a vida e ao mesmo tempo, lembra-nos que no somos imortais. Nadnad, nao
possui essa relacdo maligna com a morte e arrisco-me a dizer que esse entendimento
de uma “morte ruim” ou uma “morte boa” fazem parte de séculos de uma filosofia e
moral cristd, cheia de dualismos que ndo competem a outras tradig6es.
A capacidade de adjetivar a morte é algo propriamente dos humanos. Nadnad nao faz
nenhuma distincdo entre raca, localizago geografica e classe social. Contudo, parece-
me que junto com nossa vontade de adjetivar a morte surgem os processos de
precarizacao da vida, onde algumas pessoas esto mais debilitadas que outras e por
isso, encontram a morte mais cedo ou com maior frequéncia.
Se temos “histérias de vida” e “histérias de morte”, essas hist6rias sao delimitadas por
enquadramentos sociais e econdmicos, que nada tem haver com Orisa. Nesse sentido,
se no fossem os processos de subjugaciio de determinados povos e as intimeras
politicas ptiblicas que so ineficazes para a preservagao da vida, terfamos histérias de
eternidade com ciclos de vida e morte, pois uma é indissociavel da outra. Terfamos
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processos de coletivizacio da matéria e da energia vital, que é o momento em que
Nadnad recebe de volta o que era seu, para unirmos com a Terra e outros elementos
naturais. Esse processo ja é feito por outros seres, por que conosco seria diferente?
Vivemos na eternidade através do outro, dos que ainda nao encerraram seus ciclos, por
meio da meméria que deixamos, das narrativas, itdn, ou como nossos egungun [8]
ancestrais. Para tanto, é preciso aprender a viver. Refletir sobre nossa prépria
existéncia. Sobre a existéncia do outro que esta no mesmo mundo que nés.
Hipoteticamente, se o cenario das tiltimas elei¢ées tivesse sido diferente, talvez 0 saldo
de mortos fosse menor e Nadnad teria realizado a passagem de poucas pessoas.
Compreendem a diferenca? O problema nao € sobre ter uma morte boa ou ma. De
covid-19, nas mos da policia ou dormindo. E preciso conseguir viver para encontrar
Nadndd na velhice e garantir que a meméria continue no terreiro. I preciso garantir
que o outro também tenha o direito de viver, de responsabilizarmos coletivamente
sobre nossas agdes que fragilizam a vida de algumas e dificultam a existéncia de
outras.
Para sermos eternos é preciso repensar sobre o um modo de vida amparado na
coletividade. Nao se trata de uma vida individualizada, de uma vida que favoreca os
universais e agrida o que é compreendido como subalterna. O grande problema que
estamos enfrentando neste século no sao as novas formas de morrer, mas 0 velho
modo de vida importado e imposto para nés.
Com Nadnad venho aprendendo sobre o nascer e o morrer. Sobre como é uma
dindmica necessdria dos seres e principalmente que nao devemos sofrer, mas buscar
maneiras pragmaticas de ter uma vida em comunidade, de compartilhar o maximo que
pudermos enquanto nosso tempo é de vida. Aprender a morrer é aprender a viver.
Facamos disso uma maxima com efeitos evidentes em nossa vida e na dos outros.
Contra qualquer politica universalista e colonial penso no poder do ase. Que mesmo
do, perseguido e convertido em outras tradigées, resiste e transforma nossas
historias. La no ilé sei que todos seremos eternos.
demoniz
Notas
[1] Kilomba dialoga com Gayatri Spivak sobre a nocdo de centro e periferia,
relacionando a periferia 4s margens na obra Pode a subalterna falar?. Sigo a traducao
do titulo da obra da Spivak realizado por Kilomba, para evidenciar que essa subalterna
tem género definido. Para Kilomba, a subalterna pode e deve falar, contrariando a
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osm buaca de ira sofa dave eda ors by an It eni| ano I: ents [an, 2021 | Medium
descricdo de Spivak, pois é necessdrio que as sujeitas subalternizadas se coloquem na
disputa do discurso, para que haja uma mudanga real do status quo.
[2] HARVEY, D, et al. Coronavirus e a luta de classes. Terra sem amos: Brasil, 2020.
AGAMBEN, et al. Sopa de Wuahn. Editorial: ASPO (Aislamiento Social Preventivo y
Obligatorio), 2020.
[3] udith Butler em seu livro Quadros de guerra: quando a vida é passtvel de luto, fala
sobre como existem histérias de vida e histérias de morte, sendo elas definidas de
acordo com uma relacio de dominacdo de uma classe/raca sobre a outra, em
detrimento de transformar a vida de alguns mais precaria e até em uma nao vida.
[4] E uma narrativa oral, um mito, que é contado e permanece na tradi¢io dos
terreiros.
[5] O Gbagbalorisa Roberval Marinho no livro Orisa e suas qualidades presenteia-nos
com uma obra que relata a estrutura de seu terreiro, além de toda a sua vasta vivéncia
de ase, seja no Ile Ase Opo Afonjd ou no Ogbe Ogun Egbe Ase Eko. A segunda edicao do
livro sera lancada ainda na primeira parte do ano de 2021 pela Editoria Oribé.
[6] Santos, Juana Elbein dos. Os Nagé e a morte: Padé, Asésé ¢ 0 culto Egun na Bahia.
Petrépolis, Vozes, 2012, p. 86.
[7] (Santos, 2012, p. 114).
[8] De modo geral, egunguns so espiritos ancestrais.
Maya Fernandes é escritora, ensafsta, podcaster e fil6sofa de bar. Doutoranda em
Teoria e Histéria da Arte pela UnB, mestra em Metafisica e graduada em Filosofia pela
mesma universidade. f professora de Filosofia da Arte e Filosofia da Fotografia,
desenvolvendo estudo sobre a imagem abstrata na Antiguidade e na Arte Moderna.
Seu site é www.linhasdefu;
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