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) 6 6 -— cadernos de teatro EXPRESSAO CORPORAL — Nelly Laport MANIFESTO EXPRESSIONISTA — Poul Kornfeld ASSASSINO, ESPERANCA DAS MULHERES — Oskar Kokoschka A MORTE E 0 DEMONIO — Frank Wedekind DOS JORNAIS CADERNOS DE TEATRO N. 66 julho/agosto/setembro-1975 Publicagio d'0 TABLADO patrosinado pelo Servigo Nacional de Teatro (MEC) Redago ¢ Pesquisa ’O TABLADO Diretor-responsével — JoKo Séxcio Maninno Nunes Diretor-executivo — MARIA CLARA MacHADo Redator-chefe — Viroisin Vauut Diretor-tesoureiro — Eppy REzENDE NUNES Secretirio — Sixvia Fucs Redagio: © TABLADO. ‘Ay. Lineu de Paula Machado, 795 ZC 20 Rio de Janeiro — Brasil (03 textos publicados nos CADERNOS DE TEATRO 36 poderdo ser represeniados mediante autorlzagao fa SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teairais), a, Almirante Barroso, 97, Rio de Janeiro. A MORTE E O DEMONIO de ‘Frank WEDEKIND * ‘Traducdo de Luiz Francisco REBELLO PERSONAGENS: © Manqués Casti-Prant ELFRIDA VON Mateus Lisiska Konia ‘Tris Raranicas Uma sala com duas poltronas ver~ ‘methas, wna em frente da outra, e ‘cujas janelas tém os cortinados cor- ridos. No proscénio, a direita e a es- querda, hd de cada tado wma peque- na parede de hera, atrés das quais é possivel wma pessoa esconder-se das restantes personagens sem que deixe de ser vista pelos espectadores. ‘Airds de cada uma dessas paredes, ‘hd wma pequena polirona vermelhat Porta central, Portas laterais. Elfrida von Malchus esté sentada ‘numa polirona. Nota-se que ndo estdé @ vontade. Veste wm traje austero, com chapéu, casaco e luvas. ELeRIDA — Quanto tempo terei de esperar! (longa pausa, durante a ‘qual permanece sentada ¢ imével) Quanto tempo terei ainda de espe- rar! (outra pausa longa). Quanto tempo terei ainda de esperar! (de- pois de nova pausa, levanta-se, des- pe 0 casaco pondo-o sobre uma poltrona, e tira 0 chapéu, que poe sobre o casaco. Em seguida percorre duas vezes a cena, visivelmente agi- tada. Parando). Quanto tempo terei de esperar! As suas iiltimas palavras, entra pela porta central 0 marqués Casti- “Piant. E wm homem de elevada estatura, com o crinio calvo ,a fron- te alta, grandes olhos negros’ melan- célicos, nariz. marcadamente aquilino @ fartos bigodes negros pendentes. Enverga wm casaco preto, um colete de fantasia escuro, caleas cinzentas fescuras, sapatos de verniz, gravata preta com um aljinete de brithantes. CastePIANt (com uma vénia) — Que deseja, minha senhora? ELeRIDA (agitada) — Ainda hé pouco disse & senhora que me aten- ddeu, tio claramente quanto & huma- amente possivel, a razio porque estou aqui. CastePIANt — A senhora disse -me, com efeito, porque est aqui. E. disse-me também que pertence & So- ciedade Internacional da Luta con- tra a Prostituiglo. ELFRIDA — Exatamente: sou ‘membro da Sociedade Internacional da Luta contra a Prostituigio. Mas ‘mesmo que 0 no fosse, nfo teria podido evitar esta caminhada, por mais que ela me custasse, Ha nove meses que ando no rasto desta infe- liz criatura, Sempre que eu chegava a um sitio, tinham acabado de a evar para outro. Mas agora esté nesta casa! Sei que esté ainda aqui! Confessou-mo a... senhora que me ‘tendeu sem quaisquer rodeios. E fez ‘mais: prometewrme que mandava vie festa sala a rapariga, de modo a poder conversar tranquilamente com ela a 6s. E por ela que espero. Nao tenho vontade nem vejo motivo de suportar um segundo interrogatério. Csar-Piant — Peco-lhe, minha se- hora, que no se enerve. A rapari- ga deseja apresentar-se decentemen- fe vestida. A... “senhora” que a atendeu, receando que os seus nervos f arrastassem a qualquer ato irrefle- tido, pedui-me para Ihe vir dizer isto, fa fim de atenuar quanto possivel 0 desagrado que deve causar-lhe ter de esperar num lugar destes! ELFRIDA (enguanto nervosamente caminha de um lado para outro da cena) — Pego-lhe que me poupe a sua conversa de salio. A atmosfera que reina aqui nada tem de novo para mim. Quando entrei pela pri mira vez numa casa destas, tive de Ttar contra um verdadeiro mal-estar fisico, $6 nesse dia tive consciéncia dde que era preciso vencer-me a mim mesma se quisesse vir a ser_um membro ative da nossa Sociedade. ‘Ao. principio, as nossas aspiragies eram para mim um simples passa- tempo, no qual eu tomava parte 36 para nfo me tornar uma criatura inti til, quando envelhecesse. CasT-PIANI — As suas palavras despertam em mim um profundo in- teresse, Conceda-me todavia a honra do provar-me que pertence & Socie- dade Internacional da Luta contra a Prostituigio. Sei, por experiéncia, ‘que muita gente'tem em mira esse temprego com um objetivo bem diver- so da salvagZo das raparigas perdi das, Se pretende alcangar seriamente 10s seus altos propSsitos, deverd satis- fardla a severa fiscalizago que somos obrigados a exercer. ELrRipa — Sou membro da nossa Sociedade hi jf quase trés anos. Cha- ‘mo-me Elfrida von Malchus. Cast-Piast — Elfrida von Mal- hus?! ELrRpa — Sim, Fifrida von Malehus. Conhece o meu nome? Caste-Piaxt — Leio todos os anos © relatério da vossa Sociedade. Se nflo estou em erro, fez 0 ano passa~ do uma conferéncia na reuniso anual de Colénia, nfo 6 verdade? Exria — Por deseraga minha! Durante dois anos inteitos nio fiz mais do que escrever e falar, falar © cescrever, sem descobrir em’ mim a coragem para combater diretamente ‘© comércio das mulheres, até que feste negécio infame encontrou final ‘mente a sua vitima debaixo do meu proprio teto, na minha propria fami lial CastEPiaNt — As causas dessa desgraca, se estou bem informado, ino foram a sua correspondéncia, 08, seus livros, as revistas que no soube esconder da rapariga por cuja salva- ‘gio se encontra agora aqui? ELERIDA — Tem perfeitamente azo! Despragadamente nilo 0 posso contradizer! Noite ap6s noite, en- quanto cu, satisfeita comigo e com ‘© mundo, me deitava na minha cama para um sono de dez horas, que neahum instinto humano perturbava, aquela criatura de dezessete anos, sem que eu tivesse a menor suspeita, fenirava no meu escritério e alimen- tava a sua imaginacio sequiosa de amor com os meus livros que ilustra- ‘vam a luta contra a prostituigdo com as mais sedutoras descrigbes dos pr eres sensuais ¢ das piores deprava- oes. E eu, tio estdpida que nao via, com os meus vinte © oito anos, que na mani seguinte a rapariga tinha (© aspecto de quem passara a noite fem claro! Em toda a minha vida, nunca soube o que era passar uma noite sem dormir! E quando entrava de manhii no meu escritério, nem sequer perguntava a mim mesma ‘como podia haver uma tio grande desordem entre os meus papéis! CastePiast. — A. rapatiga, se no estou em erro, tinha entrado a0 servigo dos seus pais, para pequenos trabalhos caseiros? Exrrioa — Sim, por infelicidade sual Tanto @ minha mae como o meu ppai esetavam encantados com a sua educacio, a sua modéstia. Para meu pai, que € funcionario ministerial © burocrata até & medula, a sua pre senga era como um taio de luz ‘Quando ela, de repente, fugiu de nos sa casa, os meus pais deixaram de cchamar & minha atividade de associa da uma mania de velha solteirona, declarando-a abertamente um delito perigos oS Caste-Piat — A rapariga é filha natural de uma lavadeira? Por ven- tra sabe quem era 0 pai? Exrnipa — Nao, munca the per- ‘guntei. Mas afinal quem é 0 senor? E como sabe tudo isto? Caste-Piaxt — Bem... a rapari- ga tinha lido um relatério da vossa Sociedade que nos jornais difrios se publicavam certos anGincios, median- te os quais os comerciantes de rapa- rigas, com habeis subterfigios, atra- fam a si as jovens para as conduzir ‘a0 mercado do amor. A rapariga pro- ccurou entio no primeiro jornal que Ihe veio parar as mios um desses aaniincios, escreveu uma carta muito correta, oferecendo-se para ocupar 0 lugar ‘falsamente indicado nesse anGncio. Foi desta mane conhect ELFRIDA — E atreve-se a dizer-me isto com esse cinismo? Cast-Piant — Sim, minha senho- ra, atrevo-me a contar-lhe isto com tola a objetividade. ELFRIDA (muito excitada, de pu- nhos cerrados na sua directo) — ‘Aquele monstro que atirow a rapari~ ‘ga para a desgraga é ento o senhor? Casti-Piant (sorrindo com melan- colia) — Se a senhora desconfiasse quais so verdadeiramente as causas da sua tremenda excitacio, teria tal- vez a inteligéncia suficiente para nfo se assustar com 0 monstro que eu The parego. ELERIA (seca) — Nio percebo. Que quer dizer? CastEPiaNt — A. senhora, ainda... virgem? Exenipa (ofegante) — Com que Gireito me faz uma pergunta des- CastePiant — E quem é que, fem todo 0 universo, me proibe de a fazer? Mas deixemos isso. Em todo © caso, ndo é casada. Tem, como disse hd pouco, vinte e oito anos. Es- tes fatos demonstram-Ihe suficiente- mente que em confronto com as outras mulheres, mesmo sem falar naquela criatura’por causa de quem aqui veio, a senhora possui uma quantidade minima de sensualidade. ELFRIDA — Nesse ponto admito que tenha razio. Casti-Piaxt — Estou muito lon- ge de Ihe atribuir tendéncias anor- mais, Mas a senhora sabe de que ‘maneira conseguiu calar, por muito débeis que fossem, os seus instintos sensuais? ELFRIDA — De que mancirs? Casti-Praxt — Entrando para a Sociedade Intemacional da Luta contra a Prostituicdo! ELFRIDA (com ira contida) — Quem é 0 senhor?! Eu vim aqui para libestar das garras do vicio uma Criatura infeliz. Nao foi para ouvir seus discursos de mau gosto! CastePiat — Nem supus nun ‘ca uma coisa dessas. Mas partindo deste ponto de vista, estamos mais perto um do outro do que poderia sonhar o seu orgulho de burguesinha virtuosa, A natureza dotou-a com uma sensualidade quase inexistente. Em mim as tempestades da vida criaram hé muito um deserto tert vel. Mas 0 que para a sua sensuali- dade é a luta contra a prosttuigio, 6 justamente 0 comércio das muthe- es para a minha sensualidade, se ainda quiser reconhecer_ em mim ‘qualquer coisa desse género. ELERIDA (indignada) — Nao seja hhipGerital Julga talvez que me ilude ‘com as suas charlatanices sentimen- tais de aventureiro, a mim, que hé quase um ano sigo o rasto desta, rapariga dum antro de vieio para ou- ‘rol Eu, neste momento, nJo_ sou membro da Sociedade Internacional da Luta contra a Prostituigao! Estou aqui como uma criminosa, que, sem saber, atirou uma jovem indefesa miséria e a0 desespero! Nao descan- sarei até ao fim dos meus dias en- quanto no tiver arrancado esta pobre rapariga ruina que a espr tal Quer fazer-me acreditar que uma ccuriosidade doentia me arrasta para ‘esta casa?! O senhor é um mentiro- so! E nem se quer acredita no que diz! Nio foi por sensualidade insatis- feita que vendeu esta rapariga, mas por avidez de dinheiro! Sim,” ven- deu-a apenas para fazer um bom negécio! Cast-Piast — Um bom negéci Sem diivida! Mas os bons negécios ‘sio aqueles que dio vantagens a am- bas as partes! Eu s6 me ocupo de negécios vantajosos! Todos 0s outros sho imorais! ... Ou pensa talvez que o mercado do amor é um mau negécio para a mulher? ‘Exrra — Que quer dizer com isto? CastePiant — Apenas isto: no sei se neste momento se encontra fem condigées de me ouvir com uma certa atengdo. ELFRIDA — Poupe-me, por cari- dade, esse. preficio! Caste-Prat — Em suma, 0 meu raciocinio é este: quando um homem se encontra em estado de necessida- de, muitas vezes niio Ihe resta outra solugio qu no seja roubar ou mor- rer de fome. Quando, porém, se trata de uma mulher, resta-the ‘ainda a possbilidade de se vender a si pro- pria, E isto porque, vendendo o seu. amor, no precisa de experimentar nenhum sentimento. Desde que 0 mundo 6 mundo a mulher tem feito ‘uso deste. privilégio. Mesmo que se ponha todo o resto de parte, 0 ho- ‘mem € por natureza incomparavel- monte superior & mulher, pela simples razio de que ela tem de softer para dar & luz, ELERIDA — Mas 6 essa a mais evi- dente de todas as contradigdes! Sem- pre o tenho dito! Dar filhos a0 mun- do 6 tortura e softimento; criar filhos 6 considerado um passatempo! ‘A benigna providéncia, que aliés & tio prédign em alos insensatos, acumulou dores ¢ angéstias sobre 0 sexo mais frigill CastePiant — Nesse ponto, mic ‘nha senhora, somos 0s dois da mes ma opinido! gora quer roubar as suas infelizes irmis 0 tnico privi- gio que... A insensata providén- cia Thes conceden perante o homem, isto 6, o privilégio de poder, em caso de extrema necessidade, vender 0 seu amor? & assim que julga defen- der os direitos da mulher?! ELERIDA (quase em Idgrimas) — A ppossibilidade de mos vendermos pesa Sobre © nosso sexo como uma des- graca indizivel, uma eterna maldi- sto! (Cast-Piast — Mas se 0 comér- cio do amor grava como que uma maldigio eterna sobre o sexo fe nino, Deus sabe que a culpa nio & nossa! O ideal para nés, comercian- tes, seria que 0 mercado do amor se desenvolvesse publicamente, sem perturbagées, como qualquer outro negécio honesto! O nosso tinico fito 6 atingir no mercado os pregos mais, altos, Atire as suas censuras A cara da sociedade burguesa, se quer com= bater a opressio do seu sexo infeliz! Se quer defender os direitos naturais, 4das suas irmis, comece por comba- ter a Sociedade Internacional da luta ‘contra a Prostituigio! Etrnipa — Néo Ihe consinto que procure iludir-me com esses. sofis- mas! Estou absolutamente convenci- da de que no pensa um s6 instante fem dar a liberdade a essa rapariga! E eu, to estipida, que me deixo fir car aqui a ouvir os seus discursos, fenquanto a pobre € metida a forea ‘numa carruagem, levada estagZo do caminho de ferro mais proxima © cconduzida sabe Deus para onde! Isto 6, sei muito bem: para um sitio onde @ Sociedade Internacional da Luta Contra a Prostituiglo ndo conseguir mais encontré-la! Agora sei o que resta fazer! Pega 0 chapéu e 0 casaco. CastePiant (sorrindo) — Se soubesse, minha querida senhora, ‘quanto esse acesso de ira embeleza © seu rosto burgués, nio teria tanta pressa em se ir embora. ELFRIDA — Deixe-me sair! Nio tenho tempo a perder! CastePiaxt — Onde tenciona it ‘agora? ELERIDA — Sabe-o tio bem como CastePIaNt — (Agarra Eljrida pelo pescoro, apertathe a traquéia, obriga-a a sentar-se numa poltro- na) — Deixe-se ficar aqui! ‘Tenho ainda umas coisas a dizer-the! Eex- pperimente gritar, se acha que vale a penal Aqui estamos habituados a to- daa espécie de gritos humanos! ‘Vamos, grite © mais alto que puder! (largando-a). Quero ver se sou ca- ppaz de Ihe iluminar o eérebro, antes que saia dagui para se queixar policiat ELeRipa (ofegante e sem voz) — a primeira vez. na minha vida que suporto uma violéncias destas! CastePiaxt — A. senhora tem feito, na sua vida, tantas coisas int teis para a redengio moral das mu- Theres de prazer! Faga ao menos qualquer coisa de dtil para a rede Gio moral do prazer! E verd entio {que as pobres criaturas deixardo de the despertar compaixio! Como essa 6 considerada a mais abjeta e vergo- nhosa de todas as profissdes, as mu- Theres de sociedade preferem entte- gar-se gratuitamente a um homem do que fazer-The pagar os seus favo- res! E assim que clas desonram 0 proprio sexo, tal como um alfaiate desonra_o seu oficio ao fornecer fratuitamente os ternos aos seus Clientes! ELFRIDA (ainda entontecida) — Nio percebo uma 6 palavra do que tem estado a dizerme! Entrei para a escola aos seis anos e 1é fiquei até ‘a0s quinze, Trés anos depois fiz 0 ‘meu exame de professora. Enquanto era nova, freqientavam a casa de meus pais os senhores da melhor so- ciedade, Um deles, que tinha herda- do uma propriedade de vinte milhas ‘quadradas, © que teria ido atras de mim até ao fim do mundo, pediu-me fem easamento, Mas eu senti que no podia amé-lo. Talvez tivesse errado. ‘Talvez me faltasse apenas aquele mi nnimo de paixio que para casar é sempre necessitio. Casti-Piant — Considera-se mente vencida? Etrrma — Explique-me ‘uma coisa: se a rapariga, com a ‘que leva, tem um filho, quem toma conta dele? CastePiaxt — B a si e as suas colegas da associagio que compete pensar nisso! Mas entdo as senhoras, ‘que reclamam os direitos das mulhe- res, tém alguma coisa de mais im- portante a fazer neste mundo? En- quanto houver na terra uma mulher que reccia ser mie, a emancipagao feminina nio passaré de um mito! A maternidade é para a mulher uma necessidade da natureza, tal como dormir ¢ respirar. A burguesia é que tem barbaramente diminuido este di- reito inato da mulher! Um filho natural é considerado uma vergonha 4quase to grande como 0 proprio co- ‘méreio do amor! Chama-se prostitu- ta A mie de um filho natural, exata- mente como a uma rapariga desta ‘casa! O que sempre me fez nojo no vosso movimento feminino, foi a mo- ralidade que enxertaram nas vossas ‘educandas antes de as iniciar para a ‘vida, Mas a senhora acredita que 0 ‘comércio do amor teria sido procla- mado 20s quatro ventos como um escindalo, se o homem pudesse fazer concorréncia & mulher! Inveja, des- peito, e nada mais! A natureza con- cedeu A mulher o privilégio de nego- ciar © seu amor, € por isso a ‘burguesia, gue 6 dirigida pelos ho- ‘mens, compraz-se em apresentar esse ‘comércio como o mais depravado de todos 0s crimes! ELFRIDA (Ievanta-se, despe 0 casa- co que pde sobre a cadeira; andando de um tado para outro) — Nao pos 0, neste momento, digo-Ihe sincera mente, verificar até que ponto as suas afirmagGes esto certas ou er: das... Mas como 6 possivel a um hhomem com a sua cultura, a sua po- sigdo social, a sua superioridade inte lectual, passar a vida entre os ele- ‘mentos mais indignos da sociedade humana? Foi talvez a brutalidade dos seus argumentos que me levou a tomé-lo a sério, Mas sinto que me brigou a pensar em varias coisas, coisas em que eu, sozinha nunca teria sonhado em pensar! Hé trés anos que ‘ougo todos 0s invernos entre doze a vinte conferéncias, proferidas pelas ‘maiores autoridades femininas e mas- cculinas sobre a matéria. Nao me lem- bro de ter ouvido nunca uma palavra que fosse to a0 fundo da questio como as que hoje the ouvi dizer! 29 CastiPiant (destacando as pala- vras) — Nés, minha querida senho- 1, devemos partir sempre do princi- pio de que andamos como os sonim- bulos a beira dum telhado e de que toda a sibita iluminagio nos pode fazer cair de repente.... ExeRDa (ollando-o com os olhos ‘muito abertos) — Que, quer dizer om isso? Que enormidade vai dizer- me ainda? CastiPiant (muito tangilamen- te) — Digo isto apenas em relagio As suas opinides, das quais até hé ppouco s¢ sentia to segura que no hresitava em as distribuir a uns e ou- tros, como se tivesse recebido de Deus 0 encargo de julgar 0 géncro hhumano. ELFRIDA (sem deixar de ité-lo) —Oue grande homem!... Que ho- rem superior! Casre-Prant — As suas palavras reabriram a ferida mortal que eu ‘wouxe comigo 20 mundo e que hé de ser ainda a causa da minha more te, (Deixaste cair sobre wma poliro- nna.) Eu sou... um moralista Exrnpa — E queixa-se de que the tenha sido dado o poder de tor nar outeas pessoas felizs? (Depois duma breve lua interior, atirase-the ‘aos pés). Case-se comigo por amor de Deus! Nunca tina. imaginado a possibilidade de me entregar @ um hhomem antes de 0 ter conhecido! Nanea tinha pressentido, até agora, qual fosse 0 ‘significado’ da palavra “amor”. E junto de si que pela pri- mira vez 0 compreendo! O amor enaltcee 0 homem para além do seu préprio ser desgragado! Eu sou uma rulher mediocre e vulgar, mas o meu amor por si toma-me tio livre e fousada que nada é ja impossvel para rim! Para onde quer que vé, eu hei de precedé-lo! Se for para uma casa de coresio, iri A sua frente! Se 0 levaram da’ pisto a0. patiulo, ire "sua frentel Nao deine fugir esta ‘casio! Case. comigo, su Case. comigo! Assim na atingit-nos! CastI-PIANI (acaricia-lhe os cabe- los sem a olhar) — Que voc’, meu bravo animalziaho, me ame ou nfo, é-me completamente indiferente. Nao Jmagina sequer quantos milhares de vex tive de suportar as mesmi ras exposes sentimentsis, Nao. € ‘ue eu desvaorize o amor. Longe de mim tal idéial Pena 6 porém que 0 amor tenha de servir jus a tantas mulheres que tnicamente sua senstalidade sem pretenderem a minima compensagio, © que com a sua indigna oferta nos Srruinam 0 negdcio. Etrmios — Case comigo! Esté ainda a tempo de comecar uma vida oval O castmento faré de si uma pessoa regrada, Pode vir a ser reda~ tor de jorais socialist, deputado, due sei eu! Casando comigo ficaré @ Saber a0 menos uma ver na vida, de quanto. sacrifcios.sobre-humanos & xpaz a mulher com o seu amor sem Timites! CastePiANt (acaricandosthe os cabelos, sem a olhar) — Os ses 52 frifcissobreshumanos causar-me- Siam néuseas na melhor des hipste- Ses! Os tnicos animais que eu fui fapaz de amar foram os ties; 20 pé dias cadelas sentinme sempre como tum pedago de madeira, $6 mo. con- sola'aideia de que o casamento, que a senhora exalta com tanto entsias- zo e para o qual se eriam as cadels, 6 uma insituigéo cultural. AS insti- twigdes culturais nascem para ser ultrapassadas. A humanidade hi de ultrapassar 0 casamento como ultra ppassou a escravidio. O livre mercado do amor, em que triunfam apenas 6s tigres, baseia-se nas eternas leis, da natureza. Que orgutho sente a mulher, a0 conquistar 0 direito de se vender pelo prego mais alto que (© homem Ihe oferece! Os filhos natu- ris fieam melhor a0 pé da mie do que os legitimos a0 pé do pai. E como soa triunfalmente a palavra “prostituta”! Na hist6ria do paraiso esti escrito que 0 c&u concedeu a ‘mulher a forga da seduezo. A mulher seduz quem quer e quando quer. Nao espera o amor. A sociedade burgue- sa combate esse perigo infernal para nossa sacrossanta cultura, criando a mulher numa atmosfera de nebulosi- dade artificial. As adolescentes sio mantidas cuidadosamente na igno- rincia do que seja ser mulher. Do contrdrio seria subversio de todas as instituigdes do Estado! A. burguesia ‘no hesita diante de nenhum golpe baixo, quando é a sua defesa que esti em jogo. O mercado do amor ‘aumenta na razio direta do progres so cultural. Quanto mais inteligente € 0 mundo, mais vasto é 0 mercado do amor, E a nossa tio apregoada cultura deixa, em nome da morali- dade, que milhdes de prostitutas morram de fome, ow entio priva-as dda honra, do direito & vida, e atira- as para 0 reino dos animais! Tudo isto em nome da moral! Hé quantos sfculos dura esta imoralidade, que srita aos cus vinganga, € por quan- to tempo encherd ainda o mundo de estragos, em nome da moral! ELFRIDA (gemendo, sem voz) — Case comigo! E a primeira vez que oferego @ minha méo @ um homem! No espero felicidade maior do que cstar ajoelhada a seus pés, ouvindo as suas palavras CastePIAnt (sem a olhar) — a alguma vez perguntou a si mesma o que € 0 casamento? teria — Até agora nunca nha tido essa curiosidade. (Levan- tando-se) Mas diga-me 0 senhor! Farei tudo para amoldar-me 3s suas exigéncias! Caste-Piant (sentando-a nos joe- thos) — Venha c4, minha pequeni- nal Eu explico-the. (Como Elida hhesita um momento.) Nao se assus- tel ELFRIDA — Nunca me sentei nos joelhos de um home CastePiant — Dé-me um beijo! Elfrida beija-o. CastePIay — Obrigado. (repe- lindo-a) Quer entio saber 0 que & © casamento? Diga-me primeiro qual 6 mais forte: 0 homem que tem um elo ou 0 homem que nao tem ne- ‘num? ELFRIDA — © homem que tem um cdo, evidentemente. Cast-Piant — E agora diga-me ainda qual é mais forte: o homem ‘que tem $6 um co, ou 0 que tem dois? ELFRIDA — Penso que & aquele que tem um s6, porque dois cies tor- fnam-se ciumentos um do outro. Casti-PIaN — Isso seria ainda 0 menos. A razio 6 outra. E porque tem de dar de comer a dois cies, se no fugiam-the, a0 passo que um s6 io pensa em’si proprio © no seu dono, e, se for necessério, defende-o ainda dos assaltos dos ladrdes. Exrripa — E com essa horrorosa ‘comparagdo quer o senhor explicar- -me a unitio desinteressada ¢ indis- solivel entre 0 homem e @ mulher? Meu Deus, por que experiéncias deve ter passado! Casti-Piant — © homem s6 com ‘uma mulher € economicamente mais, forte do que sem nenhuma. Mas é também economicamente mais forte porque no tem que pensar em duas ‘ou mais mulheres. Esta é a pedra an- gular do casamento. ELERIDA — O senhor afinal € um pobre homem, digno de compaixio! eve alguma vez um lar? Uma mie ‘que 0 tratasse quando estava doente, {que Ihe lesse historias durante a con valescenga? A qual pudesse confiar quando alguma coisa Ihe pesava no coragio, e que o ajudasse sempre, sempre, mesmo quando desesperava jf de encontrar algum auxilio no ‘mundo? Caste-Praxt — O que me acon- teceu em pequeno nao sucede a ne- ‘nhuma criatura humana sem The des- truir 0 gosto de viver até ao fim dos seus dias. Imagina 0 que seja wm rapaz de dezesseis anos a quem ainda batem porque nfo Ihe entra na eabeca 1 tébua de logaritimos?! E quem me batia era o meu pai. E eu devolvia- Ihe as pancadas! Batia-the com 0 de- sejo de o matar! De uma vez, tanto Ihe bati que © matei! A senhora sabe {quem so as criaturas que agui vivem comigo. Pois nunca ouvi de nenbuma fn novas indignidades. Mas tudo isto sio coisas sem importincia. As bofeta- das, os murtos, 0s pontapés que 0 met pai, a minha mie e uma dézia de professores porfiavam em atirar sobre © meu. pobre corpo indefeso, rio eram nada comparados as bofe- tadas, aos murros e aos pontapés que © destino se encarnigou em desferir contra a minha alma indefesa! ELeRipa (beija-o) — Se tu sou- esses como eu te amo por todas ‘esas coisas horriveis! CastePiaNt — A vida humana & morte dez vezes pior do que a morte! E nio s6 para mim. Para si, para todos os homens! Para um homem simples, a vida 6 feita de dores, sotti- mentos e torturas que © seu” corpo tem de sofrer. E se 0 homem, Iutando nna esperanca de fugir as torturas Jo corpo, alcanga uma existéncia mais alta, entio a vida representa para ele, dores, softimentas ¢ torturas que a sua alma tem de sofrer ¢ a0 pé das quais as torturas do corpo chegam a ser suaves... A prova mais evidente de que a vida humana um martitio esti no fato de os homens se terem visto obrigados a imaginar um Ser que & s6 bondade e amor, e que imploram todos os dias, a todas as horas, para suportar a vida! ELFRIDA (acariciando-o) — Se nos ceasarmos, todas as torturas do corpo ¢ da alma terio fim! Nao tera que reocupar mais com todas essas ter- riveis questdes! A minha mae possui uum patriménio privado de sessenta mil marcos, de que 0 meu pai nem Sequer suspeita, apesar dos seus vinte @ cinco anos de felicidade conjugal. ‘Niio the agrada a perspectiva de ter de repente sessenta mil marcos & sua disposicio? CCastI-PIANt (empurrando-a, nervo- samente) — A senhora no sabe 0 que & uma earicial Comporta-se como tum burro que quisesse parecer um 31 ‘edozinho de luxo. As suas mos cau- sam-me dor! Bem se vé que no aprendeu coisa nenhuma. A servido amorosa da sociedade burguesa con- tamina todos os seus gestos. O seu ‘corpo nio tem raca. Falta-the 2 sen- sibilidade necessérial A sensibilidade 0 pudor! Falta-Ihe o sentimento da ficdcia das caricias; aquele sent ‘mento que toda a ctiatura de raga ‘raz consigo ao mundo desde que EtrRipa (levantando-se, indigna- da) — E atreve-se a dizer-me isso nesta casa?! CasTEPIANt (levantando-se por sua vez) — Atrevo-me a dizer-Ihe isto nesta casa! ELFRmpA — Que me falta a neces- séria delicadeza de sentimentos? Que ime falta 0 pudor necessirio? ! Cast-Piaxt — Que Ihe faltam 0 pudor e a necessiria delicadeza de sentimentos! Atrevo-me a dizer-the isto nesta casa de ma nota! Conven- ga-se, de uma vez para sempre do Tato ‘com que estas mal afamadas raparigas exercem o seu oficio! A. mais humilde rapariga desta casa conhece a alma humana melhor do ‘que o mais eélebre professor de psico- logia. Eu reconhego a primeira vista a mulher que ¢ feita para © amor, porque as finhas do seu rosto irra” diam inocéncia e felicidade, (Obser- vando atentamente Elfrida). Nos te3- gos do seu rosto, minha querida Senhora, nfo se 18a felicidade nem 1 inocéacia, Erma (hesitando) — portanto no acredita que eu possa_ ainda aprender, com a minha forga de vou- tade, com a minha energia, com 0 ‘meu’ enorme entusiasmo por tudo 0 que é belo, a delicadeza de sentimen- tos em que falava? Casti-PIast — Nao, minha se- nhora, ndo acredito! Tire dai o sen- ‘ido! ELFRIDA — Estou tio profunda- mente convencida da importincia moral de tudo o que me diz, que ace taria sem uma hesitagéo o maior sari- ficio que me fizesse vencer o meu sen- tido urgués e mesquinho da existén- iat Cast Piast — Nio, nio, nfo me deixo iludir com esse estratagema! A vida jé 6 suficentemente horsvell Nio, minha senkorat Nio queira apa- gat 0 tinico raio de luz divina que penetra na noite medonha da nossa ‘arttizada existincia terrestre! Por- ue vivo eu afinal? No, nfo, a tinica flor pura que existe ainda no denso ‘atagal enchareado de suor e de san- gue que € a vida, nio deve ser espe- Zinhada. Acredite-me: se acima das légrimas desesperadas e dos gemidos que brotam das dores do parto, das dores da existéncia e da tortura da morte, no brilhasse esta Gnica e re- fulgente estrela, ha meio século que teria metido uma bala na cabega! ELFRIDA — Nao consigo, por mais que me esforee, adivinhar 0 sentido dhs suas palavias. Que raio de luz € esse que penetra na noite de sua existéncia? Que flor & essa que nio deve ser caleada aos pés? Cast Piast (tomando Elfrida pela 1mao e segredando-the misterisamen- te) —B 0 prazer dos sentidos, minha senhora! O- triunfante prazer dos Sentidos, uminado pelo sol! © pra- zor dos sentidos € 0 raio de luz, a flor sem par, porque & a tinica flic- dade que nada perturba, a tnica ae- aria pura e genuina que se oferece & nossa existéncia terrestre! Creia que desde hé meio século nada me retém neste mundo se nfo a adoragiio desin- teressada desta felicidade que enche de alegria © compensa o homem de todas as torturas da existéncia com © prazer dos sentidos. ELFRIDA — Parece-me que vem alguém! ‘CastI-PIant — Deve ser Lisiska? ELERiDA — Lisiska? Quem é Lisis- ka? Caste-Prant — B aguela rapariga que estudou em sua casa os livros cconsagrados a Iuta contra a prostitui= glo! Agora pode ver, pelos seus pro- rios olhos, se eu exagerei ou nio! Aqui estamos, por sorte preparados ara estas ocasibes. (Leve-a até 0 roscénio da direita). Sente-se atris desta parede de hera. Daqui poder observar 0 amor sem véus de duas criaturas unidas pelo prazer dos sen- tidos! Elfrida semta-se na poltrona que esté junto ao proscénio da direita Casti-Piant vai a porta central, dé uma othadela para fora e depois sen- ta-se airds da parede da esquerda, Konig e Lisiska entram pelo centro. Ele tem vinte e cinco anos, veste wm terno esporte claro, calgdes curtos. Lisiska veste wm simples vestido bran- co que the chega a meio da perna, meias pretas, sapatos decotados de verniz preto, fita branca nos cabelos soltos. Kixi¢ — Nio venho aqui pass voluptuosamente 0 tempo na prisio dos teus encantos; e ficar-te-ei reco- nhecido se puder sair daqui sem em- briaguez. LisiskA — Nao me fale com tanta delicadeza. Aqui, € 0 senhor 0 dono, 0 senhor quem manda. Nao tenha receio em tingir com bofetadas, 0 meu rosto pilido e exangue. Para uma prostituta, isso é ainda uma hhonra... Lamentos, solugos € gemi dos nie devem sequer impressioné-lo. Acumule sem piedade tortura sobre tortural Mesmo que os seus punhos ‘me partissem a cara, o meu desejo ardente nfo ficaria ainda saciado. Kini — Confesso que nfo vinha preparado para tals palavras. ‘Assim se desejam as boas-vindas a ‘um héspede? Falas como se 0 pur- ‘gat6rio fosse j6 para ti um prazer. . Lisiska — Ao contritiol A voli- pia, esse monstro, agitasse eterna ‘mente como uma fiiria no meu peito. Julga que eu, pasto dos deménios, teria jamais vindo para esta casa se me pudesse libertar da alegria atroz do bater do coracio?! A alegria eva- pora-se como uma gota de fgua sobre a pedra quente! Ea voltpia insatis- feita, qual esfomeada imagem da desolagiio, lanca-se a todos os abismos para encontrar a morte! Se o senhor ‘fo for cruel comigo, pior para si Que the importam os meus gritos quando me bater! KOx1G — Se em ti € inato 0 impul- s0 negro de desceres de abismo em abismo, entio sinto remorsos de ter haver ¢scolhido, a ti, entre todas 2s tuas companheitas. .. Mas havia nos teus olhos uma luz de inocente feli- cidade que deslumbrou os meus senti- dos, Lisiska — E entretanto o tempo vai passando sem que a firia dos 1nossos sentides encontre os caminhos por onde se ha de escoar... La em cima, com os estatutos © © rel6gio em punho, esté sentada a tia Adélia; conta e calcula sem tréguas os minu- tos da nossa felicidade. Kixic — Tu estés saciada de pra- zer intenso € esperas 0 cansago pro- vvocado pelas dores e pelas légrimas; 6 assim aleangardés um profundo repouso, que nem de dia nem de noite acalma © teu desejo ardente! Lisiska — Se eu adormecesse, pedia-te que me acordasses com uma bofetada. KG — 0 tom é falso! O video tem uma rachal Podes desprezar a {felicidade, ¢ até a tua propria vidat Mas 0 sono? Nao, isso seria uma Dlastémial ‘Lisiska — Eu nfo sou propriedade sual © senhor no & meu tutor! Por isso nifo esteja a poupar com tanto do 0s meus bens terrenos! NZo tente consolar 0 meu cora¢o com sentimentos de humanidade! Eu res- peito sobretudo quem me bate sem 06 nem piedade. Pergunta-me se ainda sou capaz de corar? Buta-me, e terd a respostal KOw1G — Correm-me arrepios pela espinha e pelo peito, Deixa-me ir embora, Ao vir aqui, esperava colher da planta 0 doce fruto. Em vez disso disso ofereces-me apenas os espinhos. Como & que conseguiste passar do ccaminho floride para 0 matagal cer- rado? Lisiska doixe insatisfeto © meu desejol Nio se afaste com tamanha crueldade! Julga que este esejo ardente nasce porque estamos presas nesta casa? Nio! S6 a avidez Torturante dos sentidos nos prende aqui! Mas até esse céleulo & feito sem pensar, Noite apds noite, eu vejo com ‘uma nitidez maior que até nesta casa (8 sentidas nilo encontram paz. ELEnipa (para si, no seu esconde- rijo, com estupefagio) — Meu Deus! Nik Mas isto € exatamente 0 contréti daquilo que eu sempre imaginei! ‘Casti-Piant (para si, no seu escon- derijo, com pavor) — Oh diabo! Oh diabo! Isto & exatamente 0 contriio, daquilo que eu sempre imaginei sobre © prazer dos sentidos! Lisisk — Nio me abandone! Fscute-me! Eu era uma erianca ino cente e comecei a vida com seriedade © com 0 sentido do dever! Muitas vezes ouvia os meus professores, até os meus irmfos, falarem de mim fem vor. baixa com todo 0 respeito, ¢ fos meus pais diziam: “Tu serés um dia a alegria da nossa velhice!” E cis que, de repente, um belo dia, tudo isto se desvaneceu! E o prazer, uma vez acordado venceu todos os obsti- ‘culos, dominou todas os meus pensa- rmentos, passou por cima de todos os sentimentos. Fiquei to surpreendida com 0 que me estava a acontecer € ‘fio intensamente._me destumbrava, que mio vi o relimpago cair-me 20 ado, nem ouvi 0 trovio a minha Deira, Acreditei entdo que a vida nos tivesse sido dada para a gozarmos infinitamente, KOsia — E essa esperanca ongu- Thosa niio se verificou? Mas eu estou a falar-te como um cego que falasse de cores. Lisiska — Nao, foi apenas o ins- tinto infernal, que no deixou nenb- rma alegria atras de si Kaxic — Quantas raparigas mor- reram de amor! E em todas elas 0 desejo ficou insatisfeito? Como & pos- sivel entio que as mulheres se Iancem ‘aos milhées no mesmo caminho que tu escolheste? Oh, cala-te, calarte! A palidez do teu rosto deixa ver clara ‘mente que a juventude fugiu-te com a rapidez do’ vento. E quando per- 33 34 deste assim a tua inocéncia, aquele que te roubou deixou-te na miséria? Lisiska — Nio, mas veio outro que encontrou prazer © sofrimento, Turei sempre eterna fidelidade a todos ‘esses jovens ingénuos. Esperava que a ‘minha tortura desaparecesse com os outros. E era sempre a amargura que ‘eu encontrava, sem nunca achar des- ceanso, porque era somente um instin- to infernal que nfo deixava atrés de si nenhuma alegria, KOwic — Assim acabaste por vir ter a esta casa, onde levas uma exis- téncia de brilho efémero! Ressoa a misica, 0 espumante corre sobre as mesas, rebentam gargalhadas em cada alvorada que desponta, O longo dia de trabalho $6 conhece 0 rumor de linguas escaldantes, que murmuram palavras de amor. Ao pé de ti, sober- ‘ba rainha do prazer, sinto-me um vul- ‘gar mendigo! Vim’ ao teu encontro para comprar com o meu dinheiro uns instantes de prazet. Ah, como eu gos- taria de te arrancar raivosamente os cabelos! Uma finsia obscena de prazer te mantém agarrada & vidal S6 pode ser feu amigo quem se divirta a des- prezar os limites da humanidade! Eu procurava apenas refrescar-me, respi- rar o vento puro das montanhas, € niio sinto vontade de me afogar no Jodo mais sérdido deste mundo! Lisiska (suplicando) — Fique! Se ‘me abondona, faz-se outra vez noite a minha voltal Nio se vé emboral Cada palavra que sai dos seus labios magoa-me como se fosse uma chico- tada e atiga 0 meu desejo ardente Mas eu desejaria que me odiasse com tal intensidade que em vez de me {erit com os labios me agredisse com ‘0s punhos e enchesse o meu corpo de dores. Uma vez saciado, volte para ‘onde veio ¢ esereva com um sorriso © meu nome na sua agenda... E a mim... A mim resta-me a horrivel maldigio, 0 instinto infernal que nio deixa atras de si nenhuma alegria! KOx1G (muito sério) — Nao acre- dito no que ougo! E uma declaragio de amor que me estés a fazer?! Que horror! Desprezado pelas mulheres, quantas noites passei a chorar perdi- damente! E agora € uma prostituta ue me balbucia, pela primeira vez na vida, palavras de amor! Nao te entre- a8 aqui, sem escolher, queles que te ‘escolhem? E & a mim que pedes con- solagiio?! Se eu estivesse mais junto de ti, o meu destino encher-me-ia de pavor! Lisiska — Nfo acredite no meu amor! Aqui, & um dever fingir que se ama. Quer que eu jogue consigo a este jogo maldito? Que, em troca do seu prazer, eu sinta apenas repulsa? ‘Mas se maltratar 0 meu corpo com as, suas mos fortes e rijas, isso poderd unit-nos até que a morte me arran- aque de sil ‘asa. conseguiu violar-to a alma. Os meus olhos estio deslumbrados com 4 tua pureza, o meu coracio no se ceansa de mirar a tua imagem. Entre= gando-te a todos os excessos, suici- dase sem trguase lutas com a alma a sangrar de dores jamais pressent das, com a morte no Toso, € 0 co gio a transbordar de um édio escal- dante por toda a vi felicidade deste ‘mundo! (Ajoelha-se em frente dela) Deixa-me ser 0 teu amigo, 0 tea irmio! A dadiva do teu corpo esti muito abaixo de nés. Tio alto conse- ‘iste clevar-me! Posso jurar-te que, deste momento em diante, assim como a alma se une a outra alma, assim tu ‘me pertences! $6 assim eu sou teu! Das torturas infernais subiste 20 c&u, € jf ndo ouves o marulhar dos dese jos do amor. Seri isto que eu devo dizer aos homens. Em poemas castos, darei a conhecer a0 mundo os sofri- ‘mentos do amor que se vende. Juro-0 ‘em nome dos eternos astros celestes, da luz mais brilhante que ilumina a nossa noite! Déi-me uma prova ¢ con- fessa-me com inteira sinceridade: 0 amor alguma vez te deixou satisfeita? Lisiska (fé-lo levantar-se) — As ‘minhas palavras néo poderiam ser ‘outras, ainda que me quisesses matar, ‘Apenas encontrei 0 instinto infernal, que nio deixa atrés de si nenhuma alegria,.. Assim € de resto nesta casa: todos aqueles para quem o amor € tortura infinita e desejo insaciado aqui se encontram. E no tomamos 2 sério 0s outros visitantes que entram, saem. Homens como tu sio raros, porque nfo contam, como nés, que somos comparadas aos animais irra- cionais. Mas aceitas consolar este ‘meu desejo selvagem? KOwic — Embora sejam obscuros 6s caminhos pelos quais a tua mio me guia, uma estrela resplandece no alto ‘€ nos acompanha. Lisiska (abraca-o ¢ belja-o) — Entio vem, meu amor! Conhego hi ‘muito uma regio da maior voluptuo- sidade, onde 0 repouso & eterno ¢ nada jamais 0 pertuba. Ah, se eu udesse morrer fs tuas mios! Saem os dois a direita Casti-PIANt (precipitando-se para fora do seu esconderijo; desanimado) — Que foi isto?! T ELFRIDA (precipite-se para fora do sseu_esconderiio; apaixonadamente) — Que foi isto? Como é que eu pude imaginar, no meu oérebro érido, © prazer sensual? A. vida nesta casa ¢ sacrifcio de si proprio, ardente ma tirio! E eu, na minha falsa arroginci: no meu estipido orgulho virtuoso, considerava esta casa um antro de depravagio! CastePiant — Estou aniquilado! ELERIDA — Gastei miseravelmente ‘a minha juventude, que o e&u fez tio rica de sede e de capacidade para amar, no lodo escuro da estrada que sufoca a alma! Casti-Piant (atordoado) — Esta 6 a luz, clara como o dia, que sem se esperar atira por terra 0 sonim- ‘bulo que anda na beira do telhado! ELrRipa (apaixonadamente) — Esta é a luz, clara como o dia! Casti-PIANt — Que fago eu ainda neste mundo, se até 0 prazer dos sentidos no é mais do que um mas- saere infernal de carne humana, como toda a existéncia terrestre? E é este © iinico aio de Tuz que penetra oa noite tenebrosa da nossa vida mart rizadal Ah! Porque ndo meti eu, ha meio século, uma bala na cabeca? Ter-me-ia sido poupada esta vergo- nhosa bancarrota da minha alma! ELFRIDA — Quer que the diga 0 que pode fazer ainda neste mundo? E nogociante de mulheres, no é verda- do? E gaba-se de o ser! De qualquer modo, mantém as melhores relagdes ‘com todas as pracas importantes em ‘matéria de tréfico de mulheres. Pois ‘bem: venda-me! Suplico-Ihe: venda- me a uma casa como estal Comigo pode fazer um bom negécio! Eu mun- ca amei, mas isso em nada diminui o meu valor! E_comprometo-me sob juramento a nfio o envergonhar 20s clhos dos seus clientes! Cast-Piant (quase louco) — Quem me impede de dar um tiro na cabeca? Quem me ajuda 2 suportar estes arrepios gelados de morte?! tenia — Ajudo-o eu! Venda- mel E ficaré salvo! CastePiant — Mas quem & a senhora? Erni, — Quero encontrar a morte no prazer dos sentidos! Quero ser massacrada no altar ensanguenta- do dos amores sensuais, CastePiaxt — A senhora? Vea dela... a sit! ELrripa — Quero morrer como miértir, morrer como aquela rapariga «que hid pouco aqui esteve! Nio tenho porventura os mesmos direitos huma- nos, exatamente como os outros?! CastiPiaxt — Deus me livre! (Num espar forcado). Isto — isto que vé — isto 6 0 riso infernal de esc nio que acompanha a minha queda no abismo! ELenipa (deixa-se cair a seus pés) — Venda-me! Venda-me! veis da minha vida, Vendi uma vez no ‘mercado do amor uma criatura que ndo tinha sido feita para isto! Por causa desse delito contra a natureza passei atrés de uma grade seis anos inteiros da minha vidal ELFRIDA (abragando-o pelos joe thos) — Suplico-Ihe por tudo, pela ‘minha propria vida: venda-me! O senhor tinha razio! A minha atividade na luta contra a prostituigio no era mais do que sensualidade insatisfeita! Mas juro-lhe que a minha sensuali- dade no ¢ fracal Exija-me provas! Quer que o beije como louca? CasTEPIANt (no auge do deses- pero) — E.0 que sio estes gritos 20s ‘meus pés, que me dilaceram 0s ou dos?! Estes gritos de desgraga, que uivam pelas dores do parto, ‘pelas dores da existéncia ¢ pelas torturas ‘mortais! Nio posso mais suporté-lost Nilo posso mais tolerar os gritos das dores humanas! ExrRipa (torcendo as maos) — Se quiser, sacrfico-the a minha inocé: cial Se quiser, dou-the a minha pri- rmeira noite de amor! Casti-PIANt (gritando) — Era sé © que faltaval (uve-se wm tiro de pistola. Elfrida solia um grito que trespassa a alma. Casti-Piani vacila, ‘na mio direita segura o revélver ainda fumegante, apertando 0 peito com a ‘mdo esquerda. Cai sobre wna pol rona). Per...doe... Isto... isto no... foi... ele... gente... da mi...nha... parte ELFRIDA (levantando-se de um sal- to e curvando-se sobre ele) — Deus do eéul Feriu-se?! CastePAN! — Nio... me... rite... to... tdo alto... aos... meus ouvi.. dos... por... por fa. . vor ELERIDA (recua aterrada, levando fas maos @ cabeca e fixando Cast Piani. Num grito) — Nao! Nao! Nai Depois do tiro disparado entra- ram pelas trés portas da sala srés raparigas jovens e magras, vestidas como Lisiska. Olham curiosamente a sua volta. Depois de uma hesitagao, 35, 36 avangam até junto de Casti-Piani e, trocando sinais mudos entre si, pro ccuram discretamente socorré-lo na ‘sua luta contra a morte Cast-Piant (vendo as raparigas) = Quem... sio estes... estes. frites... de vinganga.. . espititos inganga?... Nao... nio!... sta €.... Mariella. bem vejo.. que és tu!. ie E esta... Teofilal * Mariel Beija-me... Mariella... (A. mais esbelta das trés raparigas curva-se sobre Cast-Piani e beia-o na boca. Cast-Piani,aterrado) — Nao, nio... niol — Assim nfo! — Bei- jame.... beijame.... doutra mane ral... (A. rapariga’ volta a belié 10). Assim!... Assim... assim!.. per...docm-me... Eu... engané asl... O... prazer... dos senti dos... tortura humana... servi humana... e enfim ese rendengio!... (Estd _rigidamente direito, os miisculos contraides, os ‘lhos desmesuradamente abertos). 2. preciso... € preciso... receber. de pé... 0... 0... 0 Senor. (Cai morto). ELraipa (chorando, as raparigas) —E agora? Nenhuma de vocés tem coragem? E no entanto foram, para este homem, muito mais do que eu! (As irés raparigas, recuam sacudindo @ cabeca, com uma expressio gelada, hesitante e medrosa. Eljrida volta-se, solugando, para o caddver de Casti- Piani). E tu perdoa-me, perdoa a ‘sta pobre miseravel! Eu sei que, no ‘mais fundo da tua alma, me despre- zavasl Mas perdoa-me se me atrevo a aproximar-me de ti! (Beija-o desvai- radamente na boca, rompendo numa torrente de Idgrimas). De certo nunca sonhaste que fosse uma virgem a fechar-te 0s olhos! (Fecha-the os ‘olhos e cai aos seus pés chorando desesperadamente). Tod und Teufel, “danca macabra em tris cena, serra por Wedekind em 1903 fe represntada pela primetra vez om 1912, uma das. pepas’ mais caracteriscas da lemaica'¢ do eslo do grande dramaturg0 ‘lomo. O fogo gelado que, de extremo a extreme, a pereorre, 0 tom polimico que hela a dentncia do farisismo” burguts ‘ume, @ volenela da lee que derrama Sobre as ralzes fiseas e piquicas do amor, 4 crueza com que as. relagdes entre 6 hhomem e a mulher sao desfibradase posts ‘2 nu, 0 desenho exasperado das. persona. ‘tens’ as brascas, por veces contraditris, Inucegsex do seu comportamento, — tudo bio, que em A Morte t-0 Diabo ¢ evidente, rmarea wma rupiura deliberada com a dre: Imatusia naturalist, endo. dominante,

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