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2 INDIVIDUO, CULTURA E SOCIEDADE SOCIEDADE HUMANA E “SOCIEDADES” ANIMAIS NAO-HUMANAS Todos nés sabemos da existéncia de certo tipo de “organizacao social” entre animais nao-humanos, nao apenas entre mamiferos superiores, tais como os macacos, por exemplo, mas também insetos: formigas, cupins, abelhas, notada- mente. Entre esses insetos, verificamos algo que poderemos chamar de “divisao do trabalho”, “hierarquia social”, “poder politico” etc. Mas seré que poderemos chamar, ao menos no sentido humano, de social a vida desses animais? Mesmo admitindo como social a vida desses animais, qual a diferenca entre a sua “sociedade” e a sociedade do homem? Quando comparamos as “sociedades” animais ndo-humanas, particularmen- te a sociedade daqueles insetos, 0 fazemos porque constatamos que 0 comporta- mento de tais animais apresenta certas padronizagées parecidas com algumas padronizagées verificadas entre os seres humanos. Padroes de comportamento sfio formas regulares de agdo associadas a determinadas situagées. Todas as espécies animais, e nao apenas a espécie homo sapiens, apresentam formas padronizadas de comportamento. Os padrées de comportamento observaveis entre 0s animais ndo-humanos so, porém, substancialmente diferentes dos verificdveis entre os homens. Se compararmos, por exemplo, os padrées de comportamento de formigas de uma mesma espécie, porém localizadas em areas diferentes e sem possibilidade alguma de contato, notaremos, como jé constatou a Zoologia, que eles sao idénticos. Se observamos rigorosamente o comportamento das abelhas de uma colmeia qualquer durante o maior tempo que nos for possfvel, mesmo durante anos, constataremos que os seus padrées de comportamento sao constantes. No entanto é inteiramente dbvio que os padrées de comportamento do homem e, logo, as suas formas de organizagio social sao extremamente mutaveis no tempo e no espaco. Os padrdes de comportamento do homem brasileiro na atualidade nao séo 0s mesmos de dez anos atras. Algumas formas padronizadas de agir permaneceram, outras se transformaram e outras, ainda, 46 cederam lugar a novas formas. Os padrées de comportamento do homem brasi- leiro nao s&o os mesmos do homem francés, por exemplo, Assim, enquanto os padres de comportamento dos animaisnao-humanos possuem um altissimo grau de estabilidade no tempo e no espago, os padrdes de comportamento do homem so extremamente flex{veis. Isto ocorre precisamente porque os padres basicos de comportamento dos animais nao-humanos sao transmitidos através da heran- ga biol6gica.’ Jé os padrées de comportamento do homem so transmitidos e aprendidos através da comunicagio simbélica.” As formas padronizadas de agir dos animais nao-humanos sao transmitidas geneticamente, logo, decorrem da natureza, enquanto as padronizagées predominantes do comportamento humano no estéo nas condigdes bioldgicas tipicas da nossa espécie, Os padrées de comportamento do homem sio artificiais, criados pelo préprio homem. Se as abelhas, como jé foi constatado, se comunicam entre si através de uma espécie peculiar de “danga” durante o v6o, estes padrdes de comportamento nao foram inventados por elas, mas esto no seu proprio organismo, pois resultam de impulsos inatos, naturais, biologicamente estabelecidos. Logo, as abelhas nao precisam aprender esses padrées para se comunicarem com as outras. Elas j4 nascem com eles. Um castor também nao precisa aprender a fazer diques. Esse 6, igualmente, um padrdo de comportamento biologicamente herdado por esse animal. Mesmo quando supomos que os padrdes de comportamento dos animais ndo-humanos resultam da “pressao das circunstAncias”, como defende a econo- mista Joan Robinson,’ temos que admitir que as formas padronizadas de adap- tagao As circunstdncias ambientais terminam por serem incorporadas ao patriménio genético de cada espécie. Isto nao significa que os animais ndo-huma- nos sejam destituidos da capacidade de aprender, nem que a totalidade do comportamento do homem resulte apenas da aprendizagem. Significa que o comportamento dos animais néo-humanos é predominantemente padronizado pela heranga biolgica, enquanto o comportamento humano é sobretudo padroni- zado pela aprendizagem através da comunicagao simbélica. As peculiaridades organicas da espécie homo sapiens nao explicam, por si mesmas, o comportamento humano t{pico e as suas formas de convivio. E verdade que a nossa espécie é dotada de certas caracteristicas organicas que sé ela possui, tais como: um extraordindrio grau de complexidade e especializaga0 neurocere- bral; a possibilidade de visao policrénica e estereoscdpica (os touros, ao contrario do que supée o senso comum, nao se irritam com a cor vermelha, pois s4o organicamente incapazes de perceber as cores como tais); um aparelho vocal que possibilita a emissao de sons articulados; a mao preénsil, que confere ao homem uma capacidade impar de manipulagao dos objetos; uma coluna vertebral que, 1. DAVIS, Kingsley. A sociedade humana. Trad. M. P, Moreira Filho. Rio de Janeiro e Séo Paulo: Fundo de Cultura, 1964. p. 40-71, v. I 2. Idem. 3. ROBINSON, Joan. Liberdade e necessidade: uma introdugao ao estudo da sociedade. Trad. Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Zahar, 1971. p. 11-12. 47 conjugada a localizacéo central do orificio occipital, dé aos individuos humanos a capacidade de andar em posigao erecta. No entanto, todas essas caracterfsticas sao apenas condigdes necessdrias, mas ndo suficientes ao desenvolvimento da personalidade e do comportamento humano na sua forma social. As caracteristi- cas bioldgicas peculiares da nossa espécie constituem uma condigao necesséria ao desenvolvimento de maneira prépria do homem se associar a outros e viver em grupo, mas nao bastam para que o homem desenvolva a sua sociabilidade. Sem elas, o homem néo se torna social, mas clas nao sao suficientes, pois a forma tipica de sociabilidade do homem nao 6, ao contrério dos animais n&o-humanos, uma conseqiiéncia direta das peculiaridades do seu organismo. Isto significa que um organismo normal é condigéo necesséria ao desenvolvimento da sociabilidade no homem, Sem esta condigdo, a aprendizagem através da comunicagao simbélica nao atua ou se processa de modo deficiente. As deficiéncias orgdnicas congénitas limitam ou, dependendo do seu tino e grau, impedem o desenvolvimento da capacidade humana de convivio social. Um organismo normal, entretanto, nao basta para que o homem se torne social, no sentido humano da expressao, Apesar das suas caracteristicas organicas especificas, 0 homem nao nasce social, porém somente adquire as caracteristicas comportamentais conhecidas como tipicamen- te humanas através da socializagaio. Mas o que significa socializacdo na lingua- gem da Sociologia? SOCIALIZACAO E COMUNICACAO SIMBOLICA. Na terminologia sociolégica, socializagao nao significa, como se usa entender em outros contextos, distribuigao igualitaria de bens ou servicos, como, por exemplo, na expressao socializagdo da medicina. Para a Sociologia, socializa- cio significa transmissao e assimilagéo de padrdes de comportamento, normas, valores e crengas, bem como o desenvolvimento de atitudes e sentimentos coleti- vos pela comunicagao simbélica. Socializagao, portanto, é 0 mesmo que aprendi- zagem, no sentido mais amplo dessa.expressao. A comunicagao entre animais néo-humanos se faz através da chamada “linguagem emocional”, isto é, de uma linguagem que deriva diretamente dos estados emocionais. Por isto, sao tao limitadas as possibilidades de comunicacao entre animais néo-humanos. Jé a comunicagéo humana se processa através de simbolos. O simbolo, como o define Leslie White, “é alguma coisa cujo valor ou significado é atribufdo pelas pessoas que o usam”.> E explica esse antropélogo que usa a expressao coisa “porque um simbolo pode assumir qualquer forma fisica; pode ter a forma de um objeto material, uma_cor, um som, um cheiro, 0 4. CASSIRER, Ernst. Antropologia filoséfica: ensaio sobre o homem. Trad. Vicente Felix de Queiroz, Séo Paulo: Mestre Jou, 1972. p. 57-58. 5. WHITE, Leslie. Os simbolose o comportamento humano. In CARDOSO, F.H., ANNI, Octavio. Homem e sociedade. 4. ed. S80 Paulo: Nacional, 1968. p. 182. 48 yoy Noda movimento de um objeto, um gosto”.° O simbolo esta presente em todos os momentos da nossa vida, pois ele no se limita A palavra. A palavra 6 0 simbolo por exceléncia mas nao é a sua nica expresstio. A linguagem verbal, no entanto, € 0 mais importante instrumento de socializacao. O simbolo verbal permite ao homem conduzir suas agdes segundo situagées, objetos e pessoas fisicamente distantes, assim como de acordo com acontecimentos passados ou hipoteticamen- te futuros; permite a transmissdo de conhecimentos, técnicas e idéias em geral; permite, enfim, a elaboragéo de um universo de idéias paralelo e tao real quanto oambiente e as pessoas. Por isto é tao rica de possibilidades a comunicagio entre os homens. , portanto, compreensivel que o simbolo, sobretudo 0 verbal, seja tao importante para o proceso de socializagao e, em conseqiiéncia, para a continui- dade dos sistemas sociais. Embora a socializagao seja mais intensa durante a infancia e a adolescéncia, 6, no entanto, um processo permanente, porque, mudando de grupo e de posicaio social, os individuos tém de se adaptar a novas situagées sociais e essa adaptacao é feita através da aprendizagem de novos modos padronizados de agir e mesmo de pensar, Ademais, todas as sociedades esto sempre se transformando, mudan- do os padrées de organizacao. As sociedades simples, como as sociedades indigenas, se transformam mais lentamente; as sociedades complexas, como as sociedades do tipo urbano-industrial, se transformam com mais rapidez. De qualquer modo, qualquer que seja o tipo de sociedade, ela esta sempre em mudanea. Isto requer do individuo, para que ele possa se adaptar as transformagses do seu ambiente social, a assimilacio dos novos padroes de comportamento desenvolvidos na sociedade. E através da socializacdo que o individuo pode desenvolver a sua personali- dade e ser admitido na sociedade. A socializagao é, portanto, um processo fundamental nao apenas para a integragao do individuo na sua sociedade, mas também para continuidade dos sistemas sociais Usa-se distinguir a socializagdo em dois tipos bésicos: a priméria e a secundéria. Socializagio primaria é a que dé aos individuos os padrées de comportamento bésicos necessarios a uma vida normal na sua sociedade, Jé a socializagao secundaria é a que se refere & aprendizagem de padrées de compor- tamento especiais para determinadas posigoes e situagoes sociais. Se o individuo assume uma determinada profissao, é através da aprendizagem dos conhecimen- tos e das técnicas, bem como da assimilagao dos padrdes de comportamento proprios ao exercicio daquela ocupagao que ele se submete & socializagao secun- daria necesséria A sua adaptagao A nova posigao e As situagées sociais que dai decorrem. O casamento também demanda a submissio do individuo a socializacao secundaria apropriada as exigéncias sociais da nova condi¢ao. Leslie. Op. cit. p. 182 49 CULTURA Como os padrdes de comportamento predominantes nas relagées entre animais ndo-humanos so transmitidos pola heranga biol6gica, usa-se denomi- nar, a exemplo de Kingsley Davis, essas sociedades de sistemas biossociais.’ As formas de organizaco das relagdes sociais entre os homens, pelo fato de elas se basearem em padrées artificiais, no derivados das caracteristicas organicas especificas da nossa espécie, sao classificadas como sistemas bio-sécio-culturais, segundo a denominagao do mesmo socidlogo, pois o que caracteriza a sociedade humana é precisamente a cultura. Mas o que significa cultura para 0 cientista social? O sentido sociolégico da palavra cultura nfo é mesmo da linguagem do senso comum. Na linguagem cotidiana, a palavra cultura é empregada com varios significados. Ora significa erudigao, grande soma de conhecimentos, quan- do, por exemplo, se diz que “fulano tem cultura”; ora significa determinado tipo de realizagdo humana, como a arte, e ciéncia, a filosofia. Isto sem falar no sentido agricola original da expressio. Ja o sentido sociolgico dessa palavra nao se limita a essas acepgdes. E, no entanto, téo amplo que nao exclui nenhum desses significados. Na linguagem sociolgica, cultura 6 tudo o que resulta da criacdo humana. A cultura, portanto, tanto compreende idéias quanto artefatos. I classica a definigao de Edward B. Tylor: “Um todo complexo que abarca conheci- mentos, crengas, artes, moral, leis, costumes e outras capacidades adquiridas pelo homem como integrante da sociedade.”® O que deve ser ressaltado nessa definicao 6a indicagdo de que a cultura compreende todas as elaboracdes resultantes das “capacidades adquiridas pelo homem como integrante da sociedade”, pois a cultura, como ja deve ter ficado claro, nao decorre da heranga biolégica do homem, mas de capacidades por ele desenvolvidas através do convivio social. S60 homem possui cultura. Todos os homens possuem cultura, no sentido de que, vivendo em sociedade, participam de alguma cultura. Ao contrario do que se afirma na linguagem vulgar, quando se diz que algum individuo néo tem cultura, a cultura nao é exclusiva das pessoas letradas, j4 que qualquer individuo normalmente socializado participa dos costumes, das crengas e de algum tipo de conhecimento da sua sociedade. Por esta razdo, é comum o emprego, principalmente entre antropélogos, da expresso eneulturagéo como sindnimo de socializagao, jA que esta implica necessariamente a interiorizagao da cultura pelo individuo. Todas as sociedades, e nao apenas as que possuem escrita, tém uma cultura. ‘Tanto a mais simples e isolada sociedade tribal quanto a mais complexa sociedade urbano-industrial possuem cultura. A cultura, compreendendo conhecimentos, técnicas de transformagao da natureza, valores, crencas de todo tipo, normas, 6, pois, o modo de vida préprio de cada povo. Ela é 0 fundamento da sociedade e 0 7. DAVIS. K. Loc. cit. 8, Apud RUMNEY, Jay, MAIER, Joseph. Manual de sociologia. Trad. Octavio A. Velho. Rio de Janeiro: Zahar, 1963. p. 98. 50 que distingue 0 homem dos animais ndo-humanos. Cada povo, cada sociedade tem sua cultura, 0 que equivale dizer, seu modo de vida.® A cultura de um povo 60 modo proprio de convivio que ele desenvolveu para a adaptacao as circunstan- cias ambientais. Ela é também a parte do ambiente resultante da transformagao da natureza pelo homem, com 0 seu trabalho. E ainda o ambiente social criado pelo homem, Por isto, a cultura é, por exceléncia, 0 dominio do artificial e do convencional. O estudioso dos fenémenos culturais deve, porém, ter consciéncia do risco da reificacdo da cultura, ou seja, de concebé-la como uma entidade que existe por si mesma, independente dos seres humanos, sem os quais ela nao existe. Em iltima instancia, sdo os individuos associados em grupos que criam, expressam, transmitem, recebem, reinterpretam e transformam a cultura de sua sociedade. A heranga cultural que, ao nascer, encontramos em nosso meio social foi o resultado da invengao de outros individuos, os’ nossos antepassados, j4 que a cultura 6 uma criagéo humana. Assim, ndo é possivel observar diretamente a cultura de nenhum povo, mas, apenas 0 comportamento dos individuos e, indire- tamente, suas idéias e seus sentimentos coletivamente partilhados, expressdes concretas da cultura que eles compartilham, CULTURA MATERIAL E NAO-MATERIAL Usa-se distinguir a cultura em dois setores: o da cultura espiritual ou ndo-material e o da cultura material. A cultura ndo-material compreende, como a expressao denota, 0 dominio das idéias: a ética, as crengas, os conhecimentos, as técnicas, os valores, as normas etc. A cultura material é constituida dos artefatos e objetos em geral. Um machado tosco, feito com uma lasca de pedra presa por cipés a extremidade de um pedago de madeira, é, numa sociedade néo-letrada, uma expresséo da sua cultura material; um avido, na nossa socieda- de, 6 componente da parte material da nossa cultura. A distingao entre cultura material e nao-material, contudo, deve ser encarada como uma classificagio puramente nominal, para fins analiticos, pois, na realidade, estas so dominios interdependentes da cultura total. O violino, por exemplo, que é um elemento da cultura material, ndo poderia ter sido desenvolvido sem o conhecimento cientifico dos fenémenos fisicos. Todo artefato, dessa maneira, estd sempre ligado, em sua origem, a algum tipo de idéia, no s6 a algum conhecimento que possibilite o desenvolvimento de técnicas de transformagao de natureza, mas também a valores, inclusive os estéticos. A fabricagéo de uma cadeira, por exemplo, est4 condicionada nao somente pelos conhecimentos que tornam possivel a transfor- magao de madeira (se a cadeira for de madeira), mas também pelas nogoes de 9. FICHTER, Joseph H. Sociologia. Trad. Hebe Guimaraes Leme. Sao Paulo: Editora Pedagégica ¢ Universitaria, 1975. p. 320-323. ELIOT, T. S. Notas para uma definicao de cultura. Trad. Geraldo Gerson de Souza. So Paulo: Perspectiva, 1988. 51

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