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wu tn . A sie Morin Fores Com a Metafice do Amore 2 Metafiica da Morte ~ sobre a morte ¢ 1a relgdo ‘com a inderruibilidade de mst term 1 Schopenhauer pretende sldifcat, por tam lado, a concepsio do amor sexoal enquante manifesagio a eaia dita da ‘vstacia do mundo, a Vontade cega de da, sedenta por exstndia, por outro, & morte enquanto mero desaparccimento do organismo gerado no ato sexual, con- ‘cernindo apenas 10 fenbineno, aio 0 ‘er intimo de cada pariclaridade, Em realidad, vida © morte, um jogo ince sant, sio emanagies dessa nica € mes ma Vontade como coia-em, da qual 0 ‘mundo multfacerdo diane de née € mero espelho Embora 0 ponto de partida tedrico do ‘ldsfoseja pessimist, o objetivo de suas cexposigher, por veres demasiado crs, por assim dizer, erapéutico, ou sei, {tateae de um pensamento trigico no sentido ariatdlico do terme. ‘Alowofia de Schopenhauer, a0 conccber tragicamente a existenci,colocs 20 mes: ‘mo tempo com objec 0 provocar uma pice de caatsediante dela. Dai po- dermos denominé-Ia uma flosofis do consoo, a oxi entre pessimism ted ‘oe otimiame pritica, o que o leitorpo- derdaveriguar nos dois textos desta ei ora ofereida ao pablco brasileiro on pin Ko Ha Tea METAFISICA DO. AMOR METAFISICA DA MORTE METAFISICA DO AMOR METAFISICA DA MORTE Arthur Schopenhauer raiso spat taioza sani eta MEL OLVERA CACCIOLA Martins Fontes Fao 2000 Yndice Prefcio. Introdusao. Bibliografta sumdrta ronologia. Metafsica do amor. Metafsica da mone. - «Bes 7 Prefacio {Uma filosofia do consolo Contexto Publicado em 1818, © mundo como vontade e re- _presentagao® a obra mixima de Aur Schopenhauer. Este filésofo alemao, nascido em Danzig em 1788, po- de ser considerado 6 autor de uma obra 6. O restan- te desua producio intelectual € como que comenti- ros e desenvolvimentos de temas ja li abordados. {6 caso do volumaso conjunto de suplementos publi- cados em 1844, que incluem a Metajiica do amor (nGimero 44) e a Metafsica da morte~ sobre a morte ‘esua relagdo com a indestrutblidade de masso ser em ‘i (imero 41). Com elas pretende solidificar, por ‘um lado, a concepeio do amor sexual enquanto mani festagao a mais direta da esséncia do mundo, a Von- tade cega de vida, sedenta por existEncia, por outro, ‘a morte enquanto mero desaparecimento do orga- rismo gerado no ato sexual, concernindo apenas a0 fendmeno, ndo 20 ser intimo de cada partcularidade. Em realidade, vida e more, num jogo incessante, si0 ‘emanagbes dessa nica e mesma Vontade como coisa aa Are Sbpenave ‘emi, da qual o mundo multifacetado diante de nds & mero espelho. As metalisicas do amor e da morte apresentam-nos fllosoficamente a trama conceitual do grande drama césmico que é a existéncia, pois a Vontade ¢ intrinsecamente uma autodsedrdia const fio mesma, 0 que z do enredo dessa pega algo rmuitas vezes trigico, traduzido na famosa frase schopenhaueriana alles Leben Leiden ist toda vida & sofrimento). No entanto, embora 0 ponto de partida te6rico do fldsofo seja pessimista, 0 objetivo de suas ‘exposigdes, por vezes demasiado cmuas,é, por assim dizer, terapeutico, ou sea, tat-se de um pensamen- to tigico no sentido aistoxéico do termo, Arsttcles define a tragédlia como a encenagio de uma ago de ‘ariter elevado que, despertando o terror e a pieda- de, conduz a catarse dessas emogbes, por ele consi- detadas ruins. Ora, a filosofia de Schopenhauer, 20 ‘concebertragicamente a existéncia, coloca ao mesmo tempo como objetivo 0 provocar uma espécie de ca- tarse diante dela. Dai podermos denominé-la uma fi- losofia do consolo, a ascilar entre pessimism te6ri- 0 € otimismo pritico, o que o letor poderd averiguar nos dois textos desta edigao ora oferecida ao pabl- co brasileiro, 7 Averdade doamor autor de O mundo como vontadee representa~ (eo observa que em geral os poetas ¢ fiecionistas se rjc ‘ocupam principalmente com a descrigio do amor entre os sexos. No entanto, este tema quase no foi ‘rabalhado pelos fil6sofos, e, embora Plato 0 abor- de com certa extensio, especialmente no Banquete ‘eno Fedro, 0 que ele diz se circunscreve “ao domi- rio dos mitos,fabulase ditos espirituosos, e concer- ne na maior parte das vezes apenas a0 amor grego pelos rapazes" (MA, p. 6). Ainda segundo Schopen- hauer, Rousseau escreveu falsidades, Kant foi su- perficiale Spinoza, ingénuo, a ponto de ter afitmado: *O amor € uma cécega acompanhada da idéia de uma ‘causa exterior’: sentenga que merece mais © nosso regozijo, em vez de poder ser considerada ua con- tribuigio importante ao estudo do assunto. De modo que 0 filésofo se sente pioneiro nessa matéria. Antes cde mais nada, ele afirma: ide Eas nase quem pense o cantrisio. Como, pergunta-se, ‘Gm senfimento que coloca de lado todas as conside- rages, move o individuo para enfrentar todos 0s obs- {culos, mesmo se a custa da propea vida, seria uma {quimera? Nao, o amor existe; ¢ bem 0 demonstram a literatura € a cotidianeidade. Uma investigagio mais aapurida revelari: ele nada mais é do que 0 “impulso. ‘sexual" (Geschlechisirieb) que, com suas “gradages ‘E nvangas", ocupa a maior parte do pensamento das jovens, coloca em confusio as mais sérias cabecas, iniscui-se na céncia, na politica, na are, e &, a0 lado “Ws imor vida, 2 mais fore e ativa das molas impulso- Ma = Mea do amor MM = Meta ca more, Abr Sepntaner——— ras do homem, onipresete em qualquer vida, ej na de um aldedo ou na de um chefe de Estado, No undo, apesar de todos esses desvosGaublimagdes, diam os ‘sicanalisas)“aa-se aqui simplemente de cada Jo30 encontat a sua Mara’ vale dizer, de um par de aman- is seu peat pa, drm ge osa, de cada esforgo por unito com 0 sexa.aposto, Vontadé de vida, cuja principal manifestaga0 & exa- ‘uimente a sexualidade. (© amor também € para ser chamado de ilusao, pois o individuo pensa perseguir fin préprios, ima- ‘gina procurar um gozo particular, quando em verdade \tabalha para algo universal, a espécie. A prova des- se laborar em favor do bioligico & o fato de o esse cial no envolvimento entre duas pessoas no sera si piles comespondéncia, a afinidade de almas, mas a POSSE, 0 go20 fisico. O fim de todo impulso sexual 6 a cOpula, Ora, aqui, talver alguns criticos julgassem ‘uma tal visio por demais éspera e realist; diante dos quais Schopenhauer se defenderia: "Pois nlo & a de- terminagao precisa das individualidades da proxima ‘gerac2o um fim muito mais elevado e mais digno que aquéles seus sentimentos extremados e bolas de s- ‘ao supra-sensiveis? Sim, pode mesmo haver, entre 0s. fins terrenos, um mais importante e elevado? Apenas cle comtesponde a profundeza com a qual o amor apai- gt xonado é sentido, & seriedade com a qual ele entra ‘em cena, € importincia que atribul até as mais in- signifcantes ninharias que 0 cercam e ocasionam" GMA, p.1D, “Muitas vezes o individuo um vaso por demais frill para carregar uma tio pungente Vontade, e que- bra-se. Foi o caso do Werther, personagem de Goethe {que se apaixonou por uma mulher casada, a qual no podia coresponderthe, pois nio era uma Bovary Jpronta para o adultério: como desenlace, o suicio. ‘Sea Vontade nido podia ser satisfeta no peito de um. ‘mortal (Werther), no havia mais lugar para a subsis- téncia de uma vontade individual ineficiente em favor do biologico. E, como o sofimento foi grande demais, ‘nica saida foi Werther colocar fim ao viver. A no. nterviesse a loucura, a qual, quando ocasiona- dla por amores infelizes, significa um mecanismo uti lizado pela natureza para proteger do mal maior. Mottvagdes inconscientes e sexualidade Na Metafsica do amor digna de nota a noo cde motivagao inconscients) uma conieituagio tio cara 3 psicandlise. Isso se pereebe quando n0s € exposto tum leque variado de fitores que, secretamente, sem conseitnia do S020, ativam o Tmpulso sexual em Javor da espécie e tomam ditva a incinagdo entre duas pessoas. Por exemplo, os homens dio preferén- Gia as mulheres entre 05 18 ¢ 28 anos, pois estas se encontam no melhor do seu periodo fet, enquanto prj. er ep clas preferem os homens entre os 30 e 35 anos, por que a sua forca de reproducio esti: no apogeu. A satide, a consttuigdo do esqueleto, a abundiincia de ‘came € a beleza do rosto, nesta ordem, si0 outros atributos deveras atraentes para o varlo, em vista da constituigio « manutencao da futura pro. Ja 0 Uni vverso feminino leva em conta a firmeza de vontade, a forga e coragem masculinas; uma mulher ama um hhomem feio, mas nio aquele destituido de masculi- nidade: no seu inconsciente atuam motivagdes pri- ticas, ela anseia por protecio para sie para a erianca por vir. E8sas so partes das, como as chama Scho- penhauer, "consideragdes absolutas" que definem cescolha matua de parceiros. Hal um complemento a ‘elas, as chamadas consideragoes relativas, de cunho individual, vilidas para cada caso especifico de aman- tes, € que visam a corrigit desvios do tipo adequado da espécie, conduzindo entio a uma sua melhor ex- pposicio. Desse modo, no amor apaixonado, € impor- tante, em dado casal, que o grau de masculinidade cdo homem corresponda ao grau de feminilidade da ‘mulher, Ninguém & cem por cento homem, nem cem por cento mulher. Do encontro feliz destas duas pro- ‘porgdies, acende-se e lameja a chama amorosa. Mas, diz Schopenhauer, 0 inteiro ajuste desse mecanismo @ inconsciente, “ algo sentido instintivamente”. Ca- dda uim aspira sem o saber a suprimie as proprias fr cquezas, caréncias e desvios do tipo adequado da es- ppécie mediante o outro. Daf homens fracos gostarem. cde mulheres fortes, e vice-versa, ou eto louros pre- ferirem morenas ou negras, individuos com narizes aachatados sentirem um prazer indelével diante de na- rizes de papagaio, etc. Por tris de semelhantes incl rnagdes atua 0 deus de amor, Eros, wabalhando para ‘husiano em geral, ou seja,arquitetando a vinda de Lim novo ser a0 mundo. © impulso sexual, portanto, encontra-se em to- dda parte a todo momento, usando variados disfarces, @ recorrendo a sinuosos desvios. Freud, no preficio, A quarta edicio dos Trés ensaias de teoria sexual, re conhece com senso de justica nos seguintes termos ‘© enraizamento da psicandlise na conceituacao scho- ppenhaueriana, onde até o conceito de sublimagio ~ ‘0 desvio da sexualidade do seu fim privilegiado, a ge nitalidade ~ jf € para ser antevisto: “‘Pois o filésofo ‘Amthur Schopenhauer ja mostrou hi muito tempo aos ‘homens em que medida 0 seu agir e ambicionar s20 determinados por esforgos sexuais ~ no sentido co- ‘mum da palavra -, € um mundo de letores devia de certo ter sido incapaz, para assim perder de vista to completamente uma tio envolvente adverténcia!”* Até os softimentos de amor seriam compreensf- veis a partir da perspectiva metafisico-imanente do amor. Eles S10 0 signo da efervescéncia do sentimen- to de imortalidade congénito a cada um de nbs. [Noutros termos, caso 0 amor atnja o seu fim privile- siado, pode o amante viver nas geragoes vindouras, 2. eu, S Game rk. cher, Prank, 19689. px Ant Sopa {que a futuracrianga herdarcaractersticas pater nas e muaternas. O apaixonado pressente valetem ‘pena os perigos a serem enfrentados no intuto de si- tsfazer esse clamor, pois € 0 nileo do seu ser que desea persis. Amorte, musa da flosofia ‘A mote no € 0 oposto da vida, mas um aconte- cimento complementar que a define. © homem, co- ‘mo vida, um ser para a morte. Refleir sobre esta € lancar luz sobre o viver e a natureza intima das coi- sas, do mundo em geral como reflexo especular da ‘Voontade, mero impeto cego para a existéncia, Dai po- der-se dizer: a morte € a “musa” da flosofia “ifiil- mente se teria filosofado” sem ela. Se 0 animal frui imediatamente toda a imortalidade da especie, sem qualquer angistia diante do fururo, no homem nas- ‘ceu, com a faculdade racional que 0 animal nao pos- sui, certeza amedrontadora da moralidade, Todavia, ‘4 metafisica pode fornecer um consolo, ea flosofia Schopenhaveriana exposta na Metafisica da monte ‘se inscreve justamente nesta chave, ou seja, ela ten- {2 nos ajudar a “encarar com um olhar tranquilo af ‘ce da morte’. Como? Tentando provar que no ser em. side cada um reside um Kern aus der Fwighet (nt- cleo de eternidade), que de modo algum se aniquila «quando do desaparecimento do organismo. O que de resto coincide com a metafisica do amor, pois 0 ato Pegi voluptuoso possibilta o germe de uma nova vida que etpetua a de seus autores, que portanto so imor- redouros. Sim, morte vida nao sto em género inteiro di- ferentes. Todavi, este € um ponto de chegada, e antes de li estar, coloque-se uma pergunta condutora: de conde ver o temor da morte? De modo algum do conhecimento, responde Schopenhauer, pois a partir deste ele parece até to- lo, ft que 0 valor objetivo da vida bastante incerto, Permanece em aberto se, devido a tantos softimentos (alles Leben Leiden is), no seria preferivel 0 no-ser 0 ser. Diante da reflexao ¢ rsivel preocupar-se tan- to como sucumbir, i que o conhecer revela a ausén- cia de valor que envolve os viventes, combatendo as- sim o'medo diante daquele. © apego 3 vida & iracio- zal, e isto € uma explicago, ou sea, todo 0 nosso ser ‘em si é uma concentracio da Vontade de vida, que esta inteia tanto em nosso proprio Eu quanto em um milhao de Nao-Eus; e, para a Vontade, a existéncia tem de valer como 0 supremo bem, pois, por ser ir- zacional, total nconsciéncia volitiva, impeto cego es- forcando-se por objetivaga0 fenoménica, ndo possui parimetros de avaliagi, i que o intelecto, a conscién- ia, no Ihe € originario, mas meramente uma ferri- mena acrescida ao organismo tendlo em vita a sobre- vivencia em meio as adversidades do meio ambiente. Em verdade, os homens temem a morte porque tmagt- ‘nam que o ndo-ser se seguird a ela. Mas, contra-argu- Arr ceptor smenta Schopenhauer, se assim 0 & entZo teriam de temer 0 nio-ser anterior a0 nascimento, pois & certo que 0 nao-ser ap6s a morte, enquanto ndo-ser, na0 pode ser diferente daquele anterior ao nascimento, por conseguinte nao ¢ lastimavel Se ofosse, terfamos de lasimar também o tempo em que ainda niio ért- ‘mos, mas isso nto ocorte. Além do mais, 0 ndo-ser pbs a mone, caso de fto Fosse real, nd0 poderia ser ‘um mal, “pois cada mal, como cada bem, tem a exis- {€acia por pressuposto, até mesmo a consciéncia essa, entyetano, cesa com a vida, come também no sono © no desmaio" (MM, p. 67); logo, a auséncia da mesma, como nao sendo um mal, ¢ conhecida. Tam- bem no sono ha um desaparecmento da consciéncia ‘© sono é imo da monte, o desmaio € 0 gémeo. Por conseguint, sea consciéncia desaparece com a more, esaparece 30 mesmo tempo qualquer vestiglo de algo capaz de perceber uma coisa sum. Enfim,are- ‘mauao flsofo,nlo €a pate cognoscente de n6s que teme a mone, mas exclusivamente a nosa cois-ems, 2 Vontade de vida. “Quando entio, mediante as ind viduos, a Vontade de vida avista a mort, como o fim, do fenémeno, com o qual eas dentfiou e pelo qual se vé poranto limitada, todo 0 seu ser se insurge con- tea ele com viokéncia” MM, p. 68). Na more, sublinhe- se; teme'seo fim do organism, com 0 qual Vonts- de se dentificara; no entanto, é um medo infundado, pois 0 desaparecer do corpo nit significa aniquila: (0 do principio vivificame que o anima, assim como, rfc. se um péndulo encontra 0 seu ponto gravitacional, chegando ao repouso, nio se concluiré dai a aniqui- ago da gravidade’. Mas Schopenhauer esti empe- ‘nhado em consolidar a sua filosofia do consolo,e sabe que para muitos tis colocagdes nao seriam suficien- tes, Entao langa mio de uma idéia materialista: quem ino € capaz de conceber 0 quanto € quimérico 0 na- {da apésa mone, pelo menos se console com a mona Tidade da matéria, Esta se consolida em cristal, brilha como metal, sola fascas eléticas, transfigura-se em. plantas e animais, enfim, nada se perde, tudo se trans- forma, Essa constincia da matéria € um testemunho da indestruibilidade de nosso verdadeieo ser em: ‘Outro fator que nos levaria a duvidar da realidade dda morte como aniquilagio € que, 20 se observar a natura, percebe-se a sobrevivencia do imperfeito, do inorginico, diante dos seres mais perfeitos e com- pplexos, 08 orginicos. Enquanto, por um lado, as pe ddras est2o at hai centenas de milhares de anos, por ‘outro, uma vida onginica animal raramente dura mais ‘de cem anos. Entio, pergunte-se, a nasureza oferece ‘em pressa suas crages infinamente engenhosas, en- ‘quanto as mais simples permanecem intacas. Nao, Tesponde 0 flésofo, "sso & algo to evidentemente absurdo, que no pode ser nunca a ordem verdadeira 5. pardon, obser Schopeniave: © que en 16s tee 2 mone Yonnde, noo deve, pols metal qu om a 80 ‘Teme, osueso do conieciena, oc, deer tem, pols —_ ar Sepeaner—— das coisas, mas antes s6 um invélucro, que a escon- de ou, falando de modo mais correto, um fendmeno condicionado pela constituiglo de nosso intelecto" (MM, p. 80). Quer dizer, Schopenhauer trbalha com a disingo Kantiana entre coisi-emsi e fendmeno. Para Kant, aquela a realidade das coisas, este € 0 mo- do como as mesmas nos afetam no tempo e no espa- 60, formas a prion de nossa sensiblidade, porém sem sevelarem a sua indole, ito €, 0 entendimento iio co- hece a esséncia delas. Schopenhauer mune-se de tis conceitos quando concebe a more. Percebemos 0 de- “saparecimento dos organismos no tempo e no espago, mas isso mio € o sucumbir do seu verdadeiro ser, 0 ‘qual ¢ imorredouro, nao estando submetido as formas. A priorida percepsio. Se ndo se é aniquilado pela morte, &se levado de ‘modo até natural ao pensamento de uma especial me- tempsicose. A nossa consciéncia pode desaparecer, sim, todavia nascer, dura efindar sio meras concep. (eS tempos, e 0 tempo ndo € absoluto, mas apenas ‘uma forma de conhecimento que temos das coisas, pelo que tal conhecimento ¢ limitado as aparéncias ¢ Imperfeito, portanto nao se apica a0 ems. O homem, como fenémeno, € tansitério, sem diivida, mas co” ‘mo coisa-emsi & imperecivel € reaparece, pois dele hi de sobreviver um germe, um nicleo de existéncia, ‘que pode vivificar-se num outro individuo: “..a mor. te 60 perder de uma individualidade e o obter de wma ‘outra, por conseguinte uma mudan¢a de individuali- dade sob a condugao exclusiva de sua propria vonta- ne Pre de" (MM, p. 128), Tal mudanca de individualidade, porém, no implica de modo algum a consciéncia de existencias anteriores. Octerno retorno do mesmo Antes de Nietzsche, Schopenhauer teorizou filo soficamente 0 mito do eterno retorno do mesmo, as- sociando-o 8 metempsicose, Em vez de postular uma Tinha retahistérca, condutora do genero humano a um bom fim, postu 6 circulo como emblema da existen- ia, Tudo ji esteve af inimeras vezes e volta. "Sem- pre e por toda parte o circulo € 0 auténtico simbolo a natureza, porque ele & 0 esquema do retorno. Este é de fato a forma mais geral na natureza, que ela ado- ta.em tudo, desde 0 curso das estrelas até a more & nascimento dos seres orginicos, e apenas por meio do ual, na torrente incessante do tempo e de seu con- tetido, torna-se possivel uma existencia permanente, isto é uma natureza” (MM, p. 84). O cuidado com que 0 inseto prepara uma cela para pdr 0 seu ovo 40 Jado de provisbes para a larva que surgri na primave- ra seguinte, e depois more tranquilo € no todo seme- Thante ao cuidado com o qual o homem prepara o seu cdesjejum para a manha seguinte, e depois vai dormir: fem esséncia, 0 inseto que morte € idéntico 20 que rnasce, assim como © homem que dorme & 0 mesmo {que acorda, ou, em termos mais globais, o homem Anbar epee org = que morre (um grande sono) & 0 mesmo que um dla renascerd (despertaré) num recém-nascido. Cada novo € lepido ser ganha sua existéncia a ‘custa da velhice e morte de um defunto que sucum- Diu. No entanto, ambos os acontecimentos expressam © equilibrio do eterno retorno do mesmo, a grande douttina de imoralidade da natureza, Se uma folha de 4rvore chort no outono o seu destino, ji que cai e te- ‘me o proprio aniquilamento, restaria, a parti da pers pectiva dessa doutrina, chamar-he de tola e conso- lardhe dizendo que as folhas verdejantes da proxima primavera sao ela mesma revigorada, enquanto a ar- vore é 0 seu principio vivificante. Ha uma Gnica es- séncia cosmica, a Vontade presente indivisa em cada particularidade, revenescendo a cada nascimento. Se © organismo desaparece, nao desaparece 0 seu inti- mo. F certo, tudo se demora 6 um instante e corre para a more: plantas, animais, homens. A morte ceifa ‘sem parat; no entanto, malgrado isso, € como se no fosse assim. As plantas sempre verdejam, os insetos sempre zunem, 0s homens sempre estio ai em vigo- ‘a juventude, também os povos sempre estio ai, em- bora mudem os seus nomes. E Schopenhauer coloca 4 peda de toque da sua argumentagio: *malgrado mi- Tenios de more e decomposicio, nada ainda se per- ddeu, nenhum étomo de matéria, muito menos algo do ser intimo, que se expe como natureza. Por iss0 po- demos a cada momento exclamar animados: ‘Ape sar do tempo, da morte e da decomposigao, estamos todos reunidos!” (MM, p88. “Exclamar animados" Veja-se como ¢ parcial a let tra (especialmente por parte de alguns nietzschianos) ‘que pretend ver em Schopenhauer o grande e radi- ‘al pessimista, Na verdade, com sua metalisica da mor te pretende nos apresentar uma filosofia do consolo, ‘mostrar-nos 0 “lado posiivo da coisa” (0s termos $10 dele), para assim encararmos tranquilamente 0 su- ‘cumbir corporal, pois neste no perdlemos a nossa es- séncia € sempre estaremos de volta Conclusao ‘As metafisicas do amor e da morte schopenhaue- rianas, perceba-se, apresentam-nos 0 decisivo jogo centresimpulso sexual, que tende a ertar unidades or- inicas, expondo a Vontade césmica numa misiade de seres complexos, e a moe, que poe fim temporal a esses fendmenos. ‘Aqui, 60 momento de convidaro leitor a compro- var o parentesco entre os pensamentos de Schopen- hauer ¢ Freud. Ambos postulam uma luta continua centre Eros (vida) e Ténatos (morte) como resultado da qual se tem propriamente a efetividade. Freud mes- smo efetua a aproximagio na lilo introdut6ria 3 psi- candlise inttulada Angustiae vida do impulso. Depois. de desenvolver a teoria de que 0s impulsos eréticos trabalham para a constituicfo de unidades cada vez ‘maiores, culminando com a propria sociedade huma- nna como um todo, enquanto os impulsas de morte se Anrep ‘opdem a eles, procurando desfazer as suas constru- bes, Freud afirma: “Vés talvez direis encolhendo os Ombros: isso no & ciéncia natural, mas fllosofia scho- penhaueriana, Mas por que, minhas senhoras e meus senhores, nao devia um pensador audaz ter anteci do 0 que de modo objetivo e arduo a investigag0 mi ‘nuciosa confirma?" No entanto, logo em seguida rela~ tiviza essa aproximacio, e sentencia: “Além do mais, ‘0 que dizemos nao é nem sequer um Scbopenbauer correto. N6s nao afirmamos que a morte seja 0 Gnico fim da vida; n6s no deixamos de observar a0 lado «da monte a vida. Nés reconhecemos dois impulsos fun damentais e deixamos a cada um o seu fim." De fato, para Schopenhauer ndo existem dois impulsos aut rnomos que jogam entre si para constituir 0 mundo, ‘mas apenas a Vontade de vida & 0 mais real das obje- 10s, € 0 jogo entre vida e morte é emanagao dela - & ‘© chamado monismo da Vontade. E aquele jogo, en- ‘quanto fendmeno no espago e no tempo vinculados. pela causalidade, & uma aparéncia ndo-essencial, € ‘uma grande iusto: “Assim como, pela entrada da noi- te, desaparece o mundo, e todavia apesar disso em ne- ‘nhum momento deixa de ser, do mesmo modo em aparéncia perecem pela more o homem ¢ 0 animal, € ‘no entanto apesar disso subsiste indestutivel 0 seu. verdadero ser. Pense-se na mudanga da morte e da vi- da em vibragto infintamente veloz,e se tem diante de sia objetivagio constante da Vontade..” (MM, p. 88). “read op ft XY p15 eat Pree — (© mais real € a voligao origina, ¢ viver © morrer slo fendmenos superfciais dessa chama_primeva. Em todo 0 caso, etendo-se essa diferenca (Freud pre- tendia fazer cincia, i Schopenhauer metafsica), no se pode negar 0 parentesco entre ambas os pensa- rmentos, que definem 0 jogo entre impulso sexual (de vida) e morte como constitutive da efetividade. ‘Mas, para além das comparagoes, no deixe o lei- tor de eter da leitura dos dois textos que se seguem 2 proposta subjacente a eles: se amor € morte ocasio- ‘nam softimento, o enigma deles pode ser metafisica- mente deciftado, e isso € reconfortante, € otimismo pritico. Schopenhauer, uma flosofia do consolo. Frankfurt sobre-o-Meno, novembro de 1997 i Jae Bawoza Introducao Pode parecer que, 20 publicar sob a forma de li- vros separaclos os dois textos de Schopenhauer inti- tulados Metafsica do amore Metafisica da morte, que ‘constituem dois capitulos dos Complementasao Mun- cdo como vontade e representacao, estejamos indo con- tra as intengdes do autor, que nos adverte que, para ‘compreendé-o, temos de ler integralmente tudo © que esereveu, "De um modo geral", nos diz ee, “quem qui- ser se familiarizar com a minha flosofia devers ler-me ‘até a Glima linha, Tenho essa pretensio. Pois no sou ‘um escrevinhador, um fabricante de manuals, um ra Discador a soldo.." No entanto essa exigéncia, que no fundo € a de todos 0s filésofos, é na realidade menos Jimperiosa quando se trata de Schopenhauer. Com efet- to, nao sendo a sua obra, como ele nao se cansa de repeti, sendo “o desenvolvimento de um pensamento 7. te monde comme rl pibntation Compemento do lo ap Marae rops td Buen, Pats, 18.27, [Nes redo os textos de Schopenhauer Fram azo para © pong pri ds edie por Guero ET = Ar epee “nico, cujas partes tém entre si, na sua totalidade, a ‘mais intima ligag0", este pensamento,latente em tu- do, revela-sefacilmente em tudo. Chave magica que proporciona, a cada vez, a solugao dos problemas os _mais diversos, ela encontra neles outras tantas novas ilustragdes. Pode-se, pois, muito mais impunemente ddo que numa flosofia dedutiva, destacar da doutrina ‘um ou outro de seus fragmentos. Como ela nao se de- senvolve linearmente numa cadeia de conseqiéncias, ‘mas substitu a sucessdo do discurso a presenga per ppétua de uma intuicao imanente, € sempre possivel ligar imediatamente a “idéia do momento” a0 pensa- ‘mento tinico que nao cessa de Ihe estar subjacente. Sendo tinico, esse pensamento ¢ também um pen ‘samento simples: "Nao ha sistema filoséfico t2o sim- piles e construido com tio poucos elementos como 0 ‘meu, acrescenta, preendemos & primeira vista.” Por isso mesmo, po- ‘demos exprimi-lo em poucas paginas. ‘Avontade constitu o fundo das coisas. Ela nao é apenas ive, €todo-poderosa, O que sai dela nao so 7G temonde. demo 1, $54, ea fe Baden, p29. 5 Poagmonte sur Gosche dor Pape, § 14 Carp od Palpomens) Ea Recs, 1, pp. 1956 ra. ‘somente suas agées, €0 mundo em que ela atu, a¢30 ‘e mundo no sendo outra coisa que o procedimen- to que ela emprega para chegar a conhecer 2 si mes- ‘ma. O mundo, sendo aquilo em que ela se objetiva para se representar a si mesma, € 0 espelho no qual ‘ela se contempla, Mas € um espelho onde sua unidade se quebra, pois ela s6 0 produz ao se refratar através {das formas do espago, do tempo, da causalidade, em ssuma através do intelecto, que, enquanto principio de rizio, € principio de individuagi0, © mundo € assim ‘seu fendmeno imutivel, abarcando nele a infinidade dos fendmenos panticulares mutiveis, provenientes de sua forma constituinte. Gragas a ele e a0 seu de- ssenvolvimento de reino em reino até o homem, a vor tade consegue saber 0 que ela quer e o que é aquilo {que ela quer. Ora, o que ela quer é precisamente esse ‘mundo mesmo, a vida tal como se realiza nele, Von- tade e querer-viver io portanto uma s6 ¢ mesma co sa,¢, sendo a vontade eterna, igualmente 0 & 0 que- ret-iver, como 0 & também, por conseguinte, o mun- do ou vida, que é sua manifestagio necessia, E por {sso que, estando preenchidos pelo querer-viver, nao temos que temer por nossa existéncia, mesmo no mo- mento da mone. Com isso acham-se introduzidos 0 problema da morte e, a0 mesmo tempo, o do amor, uma vez que 0 ‘amor é aquilo pelo que a vida aparece neste mundo. ‘© que compreendemos por morte € nossa mor- te, dos individuas que somos. Mas os individuos sto ‘apenas aparéncias fugidia, provindas da objetivagao,

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