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da economia, das desigualdades sociais e das for- mas de democracia. Essas mutagdes Implicam € tomar necessitias transformagées importantes na conceped, produgdo © gestdo de cidades e do ter nitério; elas engendram uma nova revolugio urbana moderna, a terceiza desde a rewlugio da cidade clissica¢ da cidade industrial ‘A séciedade deve, portanto, dotarse de novos ‘nstrumentos pare tentar controlar essa revolugdo us- bana, tra partido dela e imitar seus events prejur faos, Paraiss, é necesséra a formulagao de uma novo nbanismo, adequado 20s desafios e ds formas abuais de pensar ede agir nesta terceira modernidade. ‘O objeto deste live € contrbuir para expicte ‘0 dos desaios maiores a er enfrentados por esse novo urbanismo, bem como a formulagdo de alguns prineipios fundamentals & sua concep¢do. Em uma primeira parte, destacaremos os vincu- los estruturais que artculam cidades e sociedades ‘modemas, revolugbes urbanas etipos de urbanismo produzidos nas dues primeiras fases da modemida- de, No segunda e terceira partes, analisaremos as principats caractersticas da nova modemnidade que se esboga eos principals tapos da revolugto urbana {que ela mesma prevoca e sobre a qual ela se apoia, Finalmente na quarta parte apresentaremos dez de- safios principais ¢ esbogaremos alguns principios ser desenvolvidos para buscar sua soluséo. capitulo ‘uRnanizaghO E MODRRNTZAGRO 1. Cidade e sociedade: uma estreita correlagiio Podemos definir as cidades como ogrupamentos de populagdo que nifo produzem seus préprios melos de subsisténcia alimentar A existéncia das cidades pressupte, portanto, desde a sua origem, uma di- visdo técnica, social e espacial da producto, e im- pica mpcas de natureza diversa entre aqueles que pproduzem os bens de subsistincia ¢ 0s que produ- zzem bens manuifaturados (artesos), bens simbéli- 0s (religiosos, artistas etc), o poder € a proteco (querreicos). dindmica da urbanizagio esti ligsda a0 potencial de interagio oferecido pelas cidades, a sua ‘urbsnidade”, ou seja, & poténcia multiforme que gera o reagrupamento de uma grande quantida- de de pessoas em um mesmo lugar (O crescimento das cidades esteve correlacona- do, a0 longo da hist6ca, com 0 desenvolvimento dos ‘meios de transporte e armazenamenta dos bens ne- ccessitios para abastecer populagdes crescentes em ‘qualquer estagio do ano. Também esteve vineulado as técnicas de transporte e estacagem das informa- fs necesséias & organizagdo do trabalho ¢ das tro- cas, como demonstra o aparecimento conjunto da esctta e da contabiidade, Por fim, o tamanho das cidades dependeu dos meios de transporte ¢ “armna- ASCHER, F. O5 novos principias do urbanismo. Trad. Nadia Somekh, So Paulo: Romano Guerra, Qa) 2010, 103 p. Capitulo 1: Urbanizaco e modernizaco. P 19-29 enagemn” das pessoas, paticularmente das técnicas de consirugio em altura, de gestio urbana dos fiaxos do abastecimento (sistema vidio, esgoto, agua etc), cessim como das exgncias de protegio e de control. ‘A histéva das cidades foi assim marcada pela his- t6ria das técnicas de transporte e estocagem de bens ©), de informagses (i) e de pessoas (p), Este sistema de mobilidade, que cra denominamos “sistema bip’, constitu o nicleo das dinkmicasurbanas desde a es- cata atéa internet, pasando pela roda, a imprensa, @ ferrovia, o telégrafo, 0 concreto ermado, o condicio- ‘pamento, apasteurizago ea efrigeracto,o bonde, 0 elevadior, 0 telefone, a radiofonia etc. O crescimento horizontal e vertical das cidades tomou-se possivel ‘acas&invencio e utlizagso dessas téenicas ‘As formas das cidedes, sejam projetada, sejam resultantes mais ou menos espontaneamente de di- nmicas diversas, cristalizam erefletem as lépicas das sociedades que asacolhem, Dessemodo, a concep das cidades antiga expressava, mais paticularmente, os preceitosreligiasos e militares que condtitufam as “justfcativas”principsis das cidades e grupos sociais que as habitavam, fim um mundo pouco seguro, as cédades medievais se protegam atrés das muralhas onganizavamse através de comporagiies em tomo & praca do mercado, torres e eampandrie, expressan- Aoespacialmente de forma imbricada a solidariedade ea dependéncia que caracterzava as populacées das cidades no seio das soctedades feudsis. Mais tarde, © desenvolvimento das sociedadtes modemas impri- ‘miu progressivamente novas Iigieas 2 concepofo e ‘a0 funcionamento das cidades, Hioje o urbanismo necessita,portanto, de uma compreensio fina da logica que se estabelece na sociedade contemportnea 2. As transformagdes de longa duragio da sociedade moderna E usual caracterizar as sociedades ocidentais contempordneas pelo qualificative “moderne” para distingui-las simultoneamente de um passedo rela- tivamente distante e de outras sociedades de regis- tros diferenciados. Mas essa nogdo € bastante vagn, ede uso incOmodo e ambiguo. Assim, fil datar © aparecimento dos “tempos modemos” que se ins- talarain progressva e diferencialmente em diversos patses do Ocidente europew e da Amética. A nogio cde moderidade foi também utilizada em contextos « perspectivas que a tornam suspeita de manter um projeto hegemfnico do Ocidente ou a acusam de sustentar ambigdes demesiadamente funcionalistas, cujos prejuizos udemos comprovar, notadamente no urbanismo, Dee fatn, é mais correto falar de “modemizagéo", pols a modemidede no é um estado, mas um pro- cesso de transformagio da sociedade. Pode-se dies, inclusive, que o que diferencia as sociedades moder- ras de outras € o feto de 2 mudanca sero seu prine!- pio essencial. Na verdade, muitas outras sociedades ppassaram e passam por transformagées, tm hiss; ‘mas nio se organizam necessariamente tendo como nidcleo central da sua dindmica de funcionaento a rnudanca, o progresso, 0 projeto. Peo contro, €@ tradigo que consti seu principio essencial, e are- ferencia 20 passado que fundamenta, de forma gecal, suas representagbes de Futuro. Os componentes da modernizagio ‘A mociemizagéo é um processo que emergiu bem antes dos tempos que denominarmos, usualmente, ‘0s novos pncipios do urbanismo ‘modemos, Ela resulta da interagdo de trés dindini- cas socioantropolégieas, eujos tragos podemos reco nhecer em diversas sociedades, mas que ao entrar em ressoniincia na Europa durante a dade Média, produziram as sociedades modernas: a individuali- ‘ago, aracionalizagio e a diferenciagto social ode-se defini a individualizaczo, em primei- ro lugar, como a representago do mundo, nfo a ppartr do grupo a0 qual pertence o individuo, mas «partir da sua pr6pria pessoa. O uso na linguager do “eu!” no lugar do “nés" e ainda a invengio da perspectiva, que foram se impondo, progressiva- mente, no fir da Idade Média, ilustram perfeita- mente esse processo de individualizagao, Podemos falar igualmente de individuago, para explicar as Isgicas de apropriagio ¢ dominio individuais, que ‘vio ocupando progressivamente o lugar das ligicas coletivas. Assim, as socledades modemas separem ¢ redinem individuos, ¢ no grupos. ‘A racionalizago consiste na substituigo pro- gressiva da tradigio pela raxio na determinacSo dos atos. A repetigo dé lugar as escolhas. Estas + pressupsem preferéncias e projets individuais e coletivos; elas usam o conhecimento derivado da cexperiéncia, os saberes cientificos e mobilizam as, téenieas. A acionalizagao 6 uma forma de “desen cantamento do mundo”, pois atrbui as agées bur roanas ¢ 2s leis natura 0 que fora anteriormente atibuido aos deuses. ‘A diferenciago social € um processo de diversi agi das funpes de grupos e individu no interior cde uma mesma sociedad. Ela € amplamente refor- sada pelo desenvolvimento da divisto técnica e social do trabalho, ¢ resultante da dinémica da economia de mercado, A diferenciagao produz diversidade © desigualdade entre grupos ¢ individuos gerando as- sim uma sociedade cada vez mais complexa. Esses trés processos alimentam-se reciproca- mente © produrem sociedades cada vez. mais dife- ‘enciadas,formadas por individaossimultaneamente ‘mais pareidose mais ingulares, com possbiidades deescolha mais complex. De fato, inividualizagto, racionaliagtio © ai- Ferenciagao no sao exclusivas da modemidade; mas € a sua combinagio que, em cirunstaneias histéricas particulares, desencadeou a dinfimica da ‘modemizagio, como uma bifurcagéo na qual se in- corporou o "mundo ocidental” por volta do ano 1000, ‘Nenhuma sociedade anteriormente havia conheci- do essa conjuncéo ou tinha entrado nessa espiral de “desenvolvimento” especffica da modemidade. As primeitas fases da modernizacio Se a modemidade nfo 6 um estado, a moder- nizagio tampouco um processo continuo, sendo possivel distinguirtrés grandes fases, A primeira cobre aproximadamente 0 perfodo qualificado como tempos modemos ¢ abarca do fim da Idade Média ao comeco da revolugo industrial Ela testemunha a transformacio do pensamento e do lugar da religio na sociedade, a emancipaggio da politica e a emergéncia do Estado-nacto, o desen- volvimento das ciéncias ea expansdo progressiva do capitalismo mercantile, logo a seguir, do industrial. Pode-se classificar esta fase como “primeira” ou “alta modernidade’ A segunda fase é ada revolugto industrial, que assiste & produgio de bens e serrigos, subordinads, em grande medida, as logicascapitalistas; 0 pensa- ‘mento técnico ocupando um lugar central na socie- n Os eovs prncpios do utbarisme dade e a constituigéo do Estado do bem-estar Ba segunda, ou "média modemidade’, ‘A cada uma dessas épocas corresponderam mo- dos de pensamento e criago, figuras dominantes ‘concepyées do poder, representacSes da sociedade, ‘ritézios de efiedcin, formas de organizagdo e, cera mente, princfpios e mods de concepedo e organi- ‘agiio do territério. A instalagdo da primeira ¢ da se- gunda modemidades efetuou-se progressivamente, porém a amplinide das transformagies nas diversas csferas da sociedade provocou crises de todo tipo — econdmicas, sociais, politica, religiosas. A concep- ‘¢40, a construct e o funcionamento das cidades nfo escaparam dessas transformagdies ¢ crises. 3-As duas primeiras revolugdes urbanas ‘modemas A cidade do renascimento e dos tempos modernos ‘A primeiza modemidade produaiu uma ver- dadeira revolugdo urbana. A cidade medieval dew lugar a uma cidade “clissica” na qual o novo poder do Estado aparece em cena de forma monumen- tale se apresenta, através da perspectiva, a0 olhar do individuo, tragando avenidas, pragas ¢ jardins urbanos que cruzam e dividem as ruclas, aleias € hortas, recuando e transformando muralhes, re- definindo e separando o paiblico do privado, 03 espagos interiores e exteriores, definindo funces, inventando calgadas e vitrines. Esse movimento € crescente, as rua se alargam e se diferenciam fun- cional e socialmente, as cidades se estendem, os baittos periférics proliferam, aglomerando de ma: neira nova populagoes e atividades. A anquitetura se constitu parslelamente como uma discipli moderna, reenguendo-se de um campo espectfico, {ntegrando valores e novas téenicas, sem desprezar antigas refer@ncias, mas assumindo novas liberda- des, notadamente com 0 barroco. Esta primeira cidade é modema porque é conce- bida racionalmente porindividuosdiferenciados. AS eventuais referéncias dos seus criadores & tradioo ro sto atos repetitivos, mas sim refletem escolhes racionais com diversas motivagtes. Ela expressa a instauragdo do Estado-nagto, a expansio dos ter trios, a mobilizagio das novas ciéncias e técnicas, 4 autonomia nascente dos individuos, Esta cidade € também modema porque & projeto; ela cristaliza a ambigao de defini o porir, de dominar o futuro, de ser omarco espacial de uma nova sociedade; ela é0 desenho de um designio, De fto, ela daré origem as, ‘utopias que sto em si formas dereadeiras. A cidade da revolugdo industrial ‘A segunda revolucéo industrial comeyox com a revoluglo agricola que aumentou a produgio ai renter, porém expulsou do campo grandes quan: tidades de agricultores de maneira concoritante 0 desenvolvimento do capitalism industrial Esse duplo processo provocou um enorme erescimento demogréfico nas cidades, acaretando um cres- cimento espacial acelerad, gerando, 90 mesmo tempo, uma grande pauperizaco de uma parte das populagdes urbanas. ‘£ neste contexto que emergem progressive: mente novas concepgties de cidade, marcadas fun- damentalmente pelas mesmas l6gicas que regiam © mundo industrial dominante. O urbenistno mo demo (a palavra “urbanismo” aparece sob diversas B (Os novos principios do urbanismo formas na vada do século 19 para 020) aplica, no campo da organizagdo das cidades, os principio es- tabelecidos na indstia. Anogio-chave 6 a da espe- cializagio: o taylerismo a sisternatizaré na inddstei, onde trataré de decompor e simplifcar as tarefas para tomar sua realizacdo mais rentvel. O urbanis- ‘mo modemo vai colocé-la em prética sob a forma de roneamento que, mais tarde, Le Corbusier © 8 Carta de Atenas levardo a0 extremo. Na cidade da revolugao industrial, a mobilidede das pessoas, das informagées e dos bens assume igualmente um lugar novo e mas importante. A pri ricira necessidade 6, com efeito, adaptar as cidades asnovas exgencias da produc, do consumo ¢ das trocas mercants. Isto requer uma malha de gran- des vias de circulagio entre estagdes e grandes lojas, bern como redes de gua, saneamento, energia (gis, clewicidade, vapor) e comunicagio (telégrafo, tele- fone, comreio expresso), ‘As exigencias de crescimenio ¢ de funciona- mento das cidades provocaram também uma forte robilizagio cientfica e técnica para aumentar & rentabilidade no transporte €0 armacenamento de bens, inforraagées e pessoas. A eletricidade, part ccularmente, teve um papel decisivo na liberagao das potencialidades de crescimento das cidedes, verticalmente com os elevadores, horizontalmente com 0 bonde, 0 telégrafo e 0 telefone, depois o motor a exploséo, A diferenciagio social inscrevia-se de outro ‘modo no espago: cam os elevadores, 08 pobres passaram a ocupar os andares ingeriores, enquan to 06 ticos subiam aos andares mais ensolarados; mais tarde, com o desenvolvimento dos transpor- tes coletivos e as bondes, formaram-se bairos re- sidenciais de alta renda e bairros industriais para fbricas e operitios. Ainda aqui foi decisivo 0 pa- pel dos transportes urbanos para tomar possfvel a ampllacio dos teritéros urbanos e sua recompo- sigdo em grande escala, Mais tarde, 0 automével individual ¢ 03 eletro- domésticos inscreveram o fordismo, quer dizer, 0 sistema combinado da produsto ¢ do consumo de ‘massa, mais nitidamente no espaco urbano, com ‘0s grandes conjuntos de habitagéo social ou ca- sas individuais, hipermercados e infraestruturas Vidrias, O advento do quarteto carro-geladeira- aspirado-méquina de lavar constituiu 0 amago das transformapées urbanas, tomando possivel 0 trabalho feminino assalarindo, a compra semanal 2 ampliagio dos deslocamentos. Os bairros mo- rnofuncionais das atuais periferias urbanas so sua ‘expresso mais clara ‘O desenvolvimento do Estado do bern-estar ede diverses servigos piblicos contribu igualmente na estruturagio das cidades, através da rede de linhas de transporte coletivo, de escolas, de hosptais, de banheitos pablicos, de postos de correio, de equi- [pamentos esportives etc. Além disso, os poderes pa blicos foram levados a atuar cada vez mais tanto no campo do urbanismo quanto no campo econdmico- octal, principalmente para enfeentar insuiciéncias, incoer®ncias e disfungbes das ligicas privadas e do ‘mercado, particularmente no campo fundistio © imobiliio, Foi criads, assim, toda ordem de estra- turas e procedimentos para “planejar” mais racional- mente as cidades, ou se, 0 mais cientificamente possivel, para agit apesar das limitagfes da proprie- dade privada, para otdenay, isto é, predefinir ¢ esti- ‘ular a expanslo periférica e a renovagio. snovos princpios do urbanisma * ‘As formas urbanas desta segunde revolugio cet- tamente veriaram na teoria e na pritica, conforme as diferentes cidades e pafses. Mas todos os funda- doves do urbanismo ~ particularmente Haussmann, Card, Sitte, Hovard ¢, certamente, Le Corbusier —estavam movidos, através de suas préticas ou re flexbes e apeser de suas diferencas, por esta mesma preocupacio de adaptagio das cidades a sociedade industriel. As eidades e o urbanismo conheceratm, assim, uma verdadeira revolugdo em relagdo &s anti- gas cidades e concepgées arquitetOnicas e espaciais da primeira revolugo urbana para chegar, por fim, a tum urbanismo fordista-keynesiano-corbusiano, cexpresséo de uma racionalidade simplifcadora com seu planejamento urbano, seu zoneamento mono- funcional, suas armaduras urbanas hierirquicas, adaptado & producio ¢ ao consumo de massa em centros comerciais, suas zonas industriis ¢ sua eit cculagdo acelerada ¢ urna materializagdo também do Estado do bem-estar com seus equipamentos co letivos, servios publicos e habitaces sociais. Esta segunda revolugdo urbana no eliminou totalmente ‘as cidades preexstentes, apeser de ter sido bastante radical na Franca, desde a destruigSo massiva de Haussmann is “renovagées bulldozer” dos anos 1950-1970. De fato, mito Frequentemente, 0 €5Pa50 construido, assim como os cidadios, demonstrarara suas habilidades de permanéneia, de resisténcia € de readaptagto. Dessa forma, mais uma ver as ci aces comprovaramn sua capacidade de sedimentar siferentes camadas de sua historia, funcionando ‘como palimnpsestos, esses pergarminhos que no rmudara, mas que acolhem sucessivamente eseritas diversas. Todavia, mesmo as pares preserva das cidades antigas que foram conservadas materiale ‘mente passaram por transformagées profuundas ‘dexara de funcionar do mesmo modo que antes. ‘A.cada ume das duas primeiras fases da moder- nizagéo, corespondeu uma mudanea profunda na ‘mancira de concebes, produzi, utilizar e pecs, de ‘maneia geral, os temitiose, partcularmente, as cidades. A Europa ocidental j4 conheceu assim duas revolugées urbanas modemas. Pode-se levan- tar entio a hipétese de que se esboga uma nova fase da modemizagdo e que as mudangas que se vislumbram no urbanismo atual apontam para uma terceirerevolugo urbana modema, (Os novos princes do urbansona capitulo 2 ATERCEIRA MODERNIDADE, ‘A modemidade saiu abslada do séeulo 20, ¢ a pas: sagem pare 0 ano 2000 acasionou miltiplas refle- Ges e comentérios que resssltaram nfo 56 0 ex traordinavio “projresso” realizado durante os cem anos precedentes, mas também os dramas que 0 mundo conheceu, proporcionats ao seu proprio progresso, € que, por conta disso, constitiem-se ‘em passivo ds modernidade. De fato, a mademidade sempre foi objeto de re- -agdes hosts de todo tipo, Poa, Ins tints anos, ctica assumiu uma nove forma, denominada pos-modema. Hss2 nogo reegrupa, em um mesmo balaio, desde fikésofos'¢ socidlogos que acreitam discern sinais de uma crise radical e de uma su peragzo da modemidade, até criadores, particu larmente os arquitetos, que se engajaram em um projeto pés-modemista sob a forma de uma extioa A estética funcionalista, Esse movimento nfo dei 1a de ter seu interesse, pois chama a atengio para as mudangas em curso, Todavia, estas mudengas indo anunciam nem apontam o fim d2 modemiza- ‘80, mas ressaltam, porém, o falo de que @ socie- dade modems se libera de um racionalismo que se tomon demasiado simplsta e de suas certezas, «que ela desprende-se das formas de pensamento rmessitnico ou providencial que ainda marcavam @ propria ideia madera de progresso, De certa forma, ASCHER, F. Os novos principios do urbanismo. Trad. Nadia Somekh, So Paulo: Romano Guerra, 2010, 103 p. Capitulo 2: A terceira modernidade. P 31-59 estamos nos tomando verdadeiramente moderios, ‘ede uma forma cada vez meisropida, De fato, ore forgo reciproco das caracteristicas que constituemn a modernidade dé a impressdo de urma sceleragiio da modemizagdo, Entramos assim em uma tercel- ra fase ou tercolt episédio da modemizac30 que diversos autores qualificaram de modemidade “ra: ical’, modernidade “avangada’, de “sobremoderni- dade" ou ainda, baba” modemidade. 1. Uma sociedade mais racional, mais individuatista e mais diferenciada A modemizagio reflexiva Aracionalizaglo, que € um dos ts processos de base da modemizacio, prossegue marcendo, cada vez mais profundamente, todas 2s ages individuais coletivas. Ela conde a uma “refletividade” sobre a vida social modeme que podemos definit como “o exaine e a revisio constante das priticas socinis, ‘luz das infonmagdes referentes a essas préprias préticas", Dito de outro forma, nfo se trata mais de simplesmente mobilizar conhecitnentos prévios 2 ‘certas aches, mas examinar permanentemente as escolhas possiveis ¢ reexaminé-las em fungdo da- guilo que elas jé produziram. A refletvidade € a re- fexto antes, durante e depois... De fato cada individuo, como cada coletividade, esté confrontado constantemente com um sem riimero de situagSes ¢ circunstincias individuais « coletivas cada vex mais diferencindas e mutantes. Isto leveadois pas de consequéncias. Forum lado, 6 cada ver mais raro que os atores possam recorrer a uma experiéncia deta passada, ou seja, um conhe~ cimento operativo jé estabelecido, para enfrentar uma determinada situago, jé que, estatisticamente, cla teré cada vez menos chance de jéteracontecido cu de se reprornit A agd0 necessts, portanto, com mais frequéncla, de uma reflexta especifica que per- rita elaborar uma resposta e no escolher uma de um cardépio preesistente, de recoreer a uma eceita, ‘uma rotina, 2 um hébito ou mesmo a uma crenge cu tradigé0, Por outro lado, a crescente complexida de da vida social, real, mas também revelada pelos novos conhecimentos cientiicos, toma necesséios novos avangos cientifices e tecnolégicos. Novos procedimentos cientificos e maior utilizagdo das ciéncias ¢ das técnicas ‘As cigneias que podem contribuir para a elzbo- ragfo das decisdes passeram por répklas mudancas ¢ viram emergi novos paradigmas. Tr€s avancos importantes, de certa forma relacionados, porén de origens diversas e relativamente antigas, modi- ficaram bastante profindamente os insteumentos aac vellexiva: a teoria dos jogos © das escolhas Timitadss, as ciéreias cognitivas eas teorias da com- plexidade, do acaso e do caos (Os avangos que se seguiram a partir da teoria das escolhas limitadas influenciaram consideravel- ‘mente a economie, a sociologa, a ciéncia politica e tiveram, muito rapidamente, aplicagoes coneretas, EBsses evidenciaram que os meios para atingir um ffm podiam assumir uma multiplicidede de formas, mesmo em sitaagbes incertas. Este tipo de aborda ‘gem conduziu a uma diversificaglo profunda da no- #0 de racionalidade enquanto adaptagio dos meis ‘um fim. Essas teorias tiveram umn papel central para o desenvolvimento das cigncias que serviram de base & inforendtice; clas tomibérn tiveram uma in- B ‘pos do urbanisme fluéncia muito importante no campo da econoraia edo planejaanento (© progresso das ciéncias cognitivas abre igual- mente hoje, dita ou indiretamente, perspectivas imensas e até inguietantes sobre a possibilidade de cesplicar mecanismos do pensamento, de smultili- car suas possibilidades, isto &, de criar quase sujci- tos. A ficgdocientifice jd nos famliarizou com essa angistia, Certamente néo chegamos a este ponto, Jonge disso, apesar da “Lei de Moore” (teria sobre a cuplicagdo do rendimento dos computadores 4 cada dezoito meses). Por outro lado, jé estamos fa- miliarizados com os conhecimentos algoritmicos ¢ ‘ncorporamos de maneira pritica as inovapSes, tis como a distingio entre hardvrare e softvrare que, indiscutivelmente, fzeram evoluir nosso modos de representagio e de organizagéo. ‘Aracionslidade limitada & is ciénetas cognitvas, deve-se actescentar um terceiro campo, onde esto sendo elaborados, hi dezenas de anos, novos para- digmas da teoria da complexidade, Esta categoria é evidentemente um balaio de gatos e engloba, de certa forma, as ei@ncias cognitivas. Mas ela & mut to mais ampla e poxemos incluir nela abordagens advindas de reflexdes mateméticas¢ fisicas sobre 0 ca03, 0 acaso, os fractas, as bifurcagies, a autoges- ‘0, que se difundem, hoje em dia, em diversos € variados campos cientficos, paraalém da fisicae da biologi, direta ou metaforicamente, Fes avangos cientificos contribuem na renovaco das formas de representagdo e de modelizacdo, ¢ abrem perspecti- vas considersveis em termos de stmulaco. grande er dos pés-modemistas foi, prov ‘velmente, ter interpretado essa diversficagao cien- tifieae teériea como indicio de uma crise da razio rmodema, quando esses enfoques da incerteza, da complexidade, do caos, nade mais si0 do que o seu pleno desenvolvimento. Essas “novas racionalida des’ constituem o niicleo da modemizagio reflex va. A nogio de feedback, por exemplo, central nos ‘exemplos de avangos cientficos que acabamos de rmencionar, uma noglo-chave pare a ago rflexva (0 feedback & uma rettoagso que permite modificar aguilo que precede por aquilo que segue, &, um dis positivo de regulaglo das causss pelos efeitos, que implica um conhecimento e uma avaliacso perme nentes dos efeitos das agées, f um fundamento das abordagens incternentais e procedimentais que revolucionaram muitos campos particularmente aselagies entre estratépaetética, a gestao das em: presas, oplanejamento, & um elemento dos chamma- dos mstodos heurfstioos, que procesier a avaliacdes sucessivas e hipéteses provisGras para permitir agir cestrategicamente em contextos cada vez:mais incer- tos. Cada agdo se fundamenta sobre uma hipstese de resultado; a andlise do resultado permite enta0 refinar ou invalidar 2 referida hipotese. A qualidade a velocidade do retorna da informasio so deci sivas e originam téenicas novas de monitoramento que superam as usuais planithas gerenciais. O co- nhecimento ndo esté mais separado da aco, mas cst6 dentro dela Uma sociedade do risco Paradosalmente, © deserwolvimento das cién- cias da tecnologia 6, de certa forma, fator de isco fem relagio a0 projeto modemo, De fato, 0 rsco & lum conceito modemo que difere do perigo. O pe- rigo € que ameaga oi compromete a seguranca, a existencia de uma pessoa ou coisa, O risco é um 8 (05 nove pinelpios do uibanismo % perigo eventual, mais ou menos previstel € men: surével. Um risco pode ser potencial (hipotético) ‘ou conereto, Em situagio de incerteza, a primeita ‘etapa de uma andlise mcional consiste em fotmular hipéteses de risco. O risco surge entio quando a natureza e a tradigo perdem sua influéncia e os indivéhos devem deciie por si inesmos e, por con- seguinte, les se esforgam pare avaliar as probabi- lidades de um determinado acontecimento © suas eventuais consequéncies ( risco aumenta com o provesso de moderniza- «0, pois o perigo e o conhecimento que ele prod io maiores. De um lado, as tecnociéncias, pelos préprios instruments com os quais elas dotam certs atores privados e pablice, eam noves peigos, como indi carn os atuais problemas ambientas, Certarente, 0 ‘mesmo tempo, outros riscos passam aser controls. Mas o “isco zero” € un horizonte que recua quando pensarnos aleangélo.Além disso, s rscos localizn dos. pessoais so substitudos por outtos mais am- plos ou planetétis. O priprio desenvolvimento dos ‘modes de comunieagdo e de transporte ampliaa sua d&fusdo € seu conhecimenta. A distancia espacial « temporal entre 2s causas e seus eventuas efeitos também aumenta, formulando, deforma inovadora, «2 questo da responsabilidade e da éeica. Por outro lado, o risco ctesce porguc 0 conlec- mento reflexiv transforma a inconscincia do perigo, a incerteza ou 0 que em outros tempas era consice- rao como a vontade dos deuses, etn ut futuro em. parte previstvel e eventualnente conteolével; 0 avan- 0 ds eidncias dessacraza ¢ “desnaturalia", assim, 0 perigos, ¢ transforma o destino, 0 contingente, 0 caso, em objetos de conhecimento, em realdades potencialmente calculéveis © mensurdveis. A eleva- ‘0 considerével do “nivel” de educacio, da cultura Cientficee da infornacto difunde socialmente esse fendimeno. A sociedade tadua, assim, cada vez mais, suas dificuldedes, seu temor e sua inseguranca em termos de rsco isto €, em termos de perigns que ela deve sev capaz de identifica, medic e gent Suge as- sim novos conhecimentos especializados (a cindinica, cu citncia do pergo, a gest de isos ec.),dspost- ‘vos cals vez mais presentes na vida cotians e nowas regas de atuagio, camo o principio da precaucdo, par exemplo, que deve apicarse quando es experts se de- claram incompetentes ou nao chegam a um acordo. Os rises sio assim construidos sociaimente repousam sobre o estabelecimento de normas espe- ciicas. Ocupam cada vez mais o centro da vida de todoze do debate pitbico em urn mundo moderna ‘que no pode evtar os perigns, mas que pode tentar decidir quai ele aceitae a que preso. Uma autonomia crescente ante os limites espaciais € temporais, ‘Os novos meios de transporte e armazenagem. de pessoas, informagées e bens, que a sociedade cksenvolve ¢ disponibiliza para onganicagbes ¢ indi- viduos, permite a estes uma cetta emancipagia de limites espacias ¢ temporais. De um lado, a presen- galfisica © a proximidade nfo siio mais necessérios, para um certo tipo de troca ou pritica social, pois & possivel telecomunicarse ou deslocarse mais rapi- damente. Por outro lado, a simultaneidade ou a sin- cranizacéo das agbes sio menos indispensives, pols ‘muitas delas podem acontecer de maneira defasada ‘ow assinerénica, gragas 88 secretérias eletzBnica, agravadores ou servigos de mensagem de todo tipo, a Cs naves principe do utbanismo ee cada vez mais posstvel escolher individualmente lugares e momentos de comunicagio e de tres. ‘O aumento das possbilidades de acho e intera- «glo em uma distancia espacial ¢ temporal é tal que ¢s inlvduos podem tera impresséo de poder estar fem muitos lugares e tempos sirulténeos. Um sen- timento de ubiquidade e muliteruporalidade acom- panha assim um duplo processo de “deslacagio” ¢ de "desinstantaneamento” {A deslocagio se tracuz concretamente pelo en- fraquecimento progressivo das comunidades locas. Isto no significa, evidentemente, 0 desaparceimen- to de toda a vida local, das relagbes soviais de pro- simidade, das escolhas locais; porér, local jé nao 0 lugar obrigatério da maioria das préticas socials nos diversos campos do trabalho, da Eamifia, do Is- ‘er de politica, da religto ete. Todavia os novos ins- trumentos de transporte e de comunicaso abrem rnovas possibilidades de escofha em matéria de loca- lizaglo residencial, de atividades, e mudam a natu reza do “local: este nio ¢ herdado ou imposto, por rem é resultado das ligicasreflexvas, das decistes que sfo fo mais complexas quanto maiores forem fos meios de deslocamento ou de telecomunicacées disponives a individues ou orgenizagbes. Isto no teva problemas de coeséa social, pols estas Wigicas ppodem resultar em novas formas de segresaro, ‘Um individualizagio cada ver mais pujente ‘Na sociedade modem, 0s individuos néo 36 podem escolher, mas deve fazé-lo continuamente © trabalho, o consumo, a religito, o préprio corpo, tudo se tora, ou parece tornar-e, passvel de deci- snes, As escolhas individuals sio sempre, 20 menos ‘em parte, determinadas soelalmente, mas osisterns rr ‘em que se constroem essas decisées € mais comple 0; 05 indivéduos, assim como as organizages, esto mais conscientes de decidir sob uma racionalidade limitada, e suas escolhas dependem de um maior niimero de interagées. Tanto as escothas mais im pportantes, quanto as pequenas decis6es cotidianas tomam-se assim sempre singulares, ‘A multiplcidete de escolhas que os individuos cefrentam, que variem segundo seus préptios meios, i origenn a “perfis” de vida ¢ de consumo, cada vez mais diferenciados, tomando cada vez menos per ceptfel a pertinéncia eventual a grupos socials, se sarda permantncia, sempre forte das determinagies ‘econdmicas © socioprofissionas, Esta diversificagao colocs problemas tanto do ponto de vista sociopoti- ‘co ~comno representa interesses dos mais varia? -, ‘quanto do ponto de vista econémico, Toma-se cada vez mais dificil fundamentac uma campanhe de ‘marketing em algumas categorias-tipo, que se trate de catogotias socioprofissionas, de idad, de niveis de tends, estilos de vida ou perfis psicossociolég- cos. As tipologias se desdobram em grupos cada ver rmenores. Os marketeros, depois de um esforgo de recottar o mercado em “grupos de identidade restrita” @ em “nichos’, se veem hoje obrigados a considerar a singulardade crescente das demandas eletvas ou ‘potencias dos consumidores. A routiplicagéo das op- ‘gdes e a personalizagio (0 one-to-one) sto 0 nae pls tine da indstria e dos servic, Os produtores € 08 cistibuidores criam assim megabases de dados a fim de conhecer de forma personalizada seus comprado- res potenciaise se esforgamn em diversifcar suas at- vidades para adaptar-se os seus hibitos e dese. As novas tecnologas da informacao e da comunicagio geroem, nesse auto, um papel decisivo, » (0s novos prnefoios do urbanisro * ‘Uma diferenelagdo social eada ver mais complexa A diferenciagio social & crescente e marca de for: ‘ma cada vez mais Forte todas as esferas da vida social {A divisio social do trabalho se acentua e se expressa simultaneamente nas especializagdes_profissionals mais numerosas e dfinidas, e em uma globaliaacio fecondmica que a induz a mudar de escala. A globa- Tizagdo se distingue das fases anteriores da interna cionalizago da economia, pelo fato de no se tratar somente da movimentacio de homens, capita, ma- tétias-primas e mercadotia, mas por efetivar-se atra- viés da organizagto do processo de producto em uma scala internacional e por uma mobilidade generaliza- da. globalizago, associando sociedades locas diver- sificedas em um mesmo processo produtivo, amplia a Ciferenciagto social através de uma tiferenciagdo ter ritoral, Ela contibui também para uma diferenciaca0 cultural, pois no mesmo movimento em que parece “homogeneizaras priticase status socais, difundindo cos mesmos objetos, as mesmas referéacias e quase 0s ‘mesos modos de oxganizaco, a globalizagao amplia, de forma india, o espectro sobre o qual os individu- os, grupos e organizagées podem realizar suas esco- thas e desenvolver suas particularidades. ‘A diferenciagio social transforma igualmente as estruturas familiares e seu funcionamento. A fartia tipiea ~ casal com fihos, que constitu a referencia econtinica e politica dominante — é hoje em dia mino- riticia. Mas as famslias tradcionais so, elas mesmas, cada vex mais diversificadas, pois quase um quarto delas fo “recompost’,induaindo a uma estruturagso Familiar cada ver mais complexa, que demégrafos € juristas tem dificuldade em classifica, com flhos que tém até oto avés, sem contar 08 meio-imos, 05 it- ‘mos postigos e as quase cunhads. A diferenciagéo dé-se também pela diversificagio dss histéras de vida. Os ciclos de vida, ourora mar cados por algumas grandes etapas, quase idénticas para tados, conhecern, hoje em dla, episédios ve tiados, eflicas, cam 0 regresso de jovens adultos ao

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