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Ra eee ee | debates critica haroldo de campos METALINGUAGEM . & OUTRAS METAS : . Aaa Dados Internacionais de Catalogagio na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) ‘Campos, Haroldo de, 1929-2003. Mctlalinguagem & outras metas : ensaios de teoria ¢ critica literéria / Haroldo de Campos. — ‘Sao Paulo : Perspectiva, 2006. — (Debates ; 247 / dirigida por J. Guinsburg) 2 reimpr, da 4. ed. de 1992, ISBN 85-273-0329-9 1. Literatura brasileira = Histéria ¢ critica 2, Literatura comparada 3. Mctalinguagem L, Guinsburg, J.. Il. Titulo, IU, Série. 04-5426 CDD-869.909 indices para catélogo sistematico: 1. Literatura brasileira : Histéria ¢ critica 869.909 4° edigdo — 2* reimpressio Dircitos reservados 4 EDITORA PERSPECTIVA S.A. Av. Brigadciro Luis Ant6nio, 3025 01401-000 — Sao Paulo — SP— Brasil ‘Telefax: (0-15) 3885-8388 wow.editoraperspectiva.com.br 2006 6. O GEOMETRA ENGAJADO* Joao Cabral ¢ a Geragdo de 45 O poeta Joao Cabral de Melo Neto, nascido no Recife em 1920, costuma ser arrolado entre os integrantes da cha- mada Geragao de 45. E mais, ha mesmo quem o indique como lider inconteste dessa geragéio, que, sucedendo as de 22 ¢ 30, teria, de certa mancira, representado uma reagdo contra a “indisciplina” modernista, contra a sua propalada auséncia de forma, No entanto, nem o modernismo pode ser dado como carecedor de preocupagées formais (seus nomes mais representativos, Oswald ¢ Mério de Andrade, foram incans4veis experimentadores de formas); nem 45 pode ser reconhecida como instituidora de uma nova ordem. poética entre nds (a menos que se confunda forma com * Conferéncia pronunciada em 1963 na Universidade do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, no “Curso de Integragéo, Ciéncia e Arte”; em 1964, no Studium Ge- nerale, anexo A Escola Superior Técnica de Stuttgart, Alemanha, 7 férma...); nem JCMN — a nfo ser por um critério de cro- nologia tabelioa ~ pode ser inclufdo nessa geragdo, naqui- lo que cla acabou representando como idedrio estético. Realmente, a assim dita Geragdo de 45 encarnou, sobre- tudo, uma nostalgia restauradora de cdnones pré-modernis- tas, aliada, freqiientemente, a uma sensibilidade que se fi- xaria numa faixa gustativa anterior ao préprio simbolismo, quase nunca perturbada (no plano da metdfora, por exem- plo, onde punha suas reivindicagdes mais sentidas) pela revolugio verbal que est4 j4 na obra dos mais importantes poetas simbolistas e prossegue pelo surrealismo afora. A poética de 45 cultiva preferentemente o senmo nobilis, a palavra erudita ou menos corrente; pée de quarentena as dissonancias imagéticas (tao caracterfsticas da linguagem de um Murilo Mendes, por exemplo), em pro! de uma nocdo apaziguadora de “clima” ou decorum poemati- co; reabilita as formas fixas de organizagdo do pocma, espe- cialmente o soneto!. J4 JCMN est4 no pélo oposto des- sas preocupacées. Sua poesia se prende, nitidamente, a uma constante estilfstica que pode ser puxada, sem solugdo de continuidade, desde 22: é a vertente da poesia-minuto de Oswald de Andrade ~ a “poesia pau-brasil” ~, que passa a informar certos poemas do primeiro Drummond € vai en- contrar o seu lugar natural na linguagem reduzida da poesia cabralina*, © préprio JCMN, em depoimento escrito em 1952 so- bre a Geracdo de 45°, mostra as diferengas profundas que o 1. Sérgio Buarque de Holanda, que em 1952 (azia critica mililante de poesia, {foi dos primeizos a detectar na preceplistica de 45 “o gosto da forma accita, que se confunde tantas vezes com 0 da convencio ¢ do esteredtipo”.. Excrevia entéo: “Quem no reconhece esse gosto do esleredtipo nos decretos, por exemplo, de um os jovens poctas da ‘geracio de 45°, quando sustenta que 0 bom verso nio contém esdrixulas (apesar de Cambes), que a palavra ‘frula’ deve scr desterrada em pocsia, ‘em favor de ‘fruto’ ¢ a palavra ‘cachorro' igualmente abolida, em proveilo de ‘cio’, € mals que 0 Oceano Pacifico (adeus MeWvlle € Gauguin!) nio € nada poético, bem ‘80 oposto do que sucede com seu vizinho, o Oceano {adico?” (“Rebeliéo ¢ Con- vengio", I, Didrio Carloca, 20.4.1952, glosando um artigo de Domingos Carvalho da Silva com objeqSes dessa natureza a O Cio sem Plumas de JCMN, Coreio Paulista- 70, 43.1951). 2. Oliveira Bastos, “Esquema, Poesia e Processo”, Didsio de Noticias, Rio de Janeiro, 1.1.1956; “Vinte € Dois ¢ Forma”, Didrio Carioca, 1.4.1956. 3. “A Geragéo de 45”, IV, Didrio Cartoca, 21.12.1952. 2B separam do consenso estético que definiria essa geragio. Primeiro aponta o que se poderia denominar “uma pre- feréncia idealista, nos poctas desse grupo, na sclecao ¢ tra- tamento da linguagem de. sua poesia”, Mostra, a seguir, como essa preferéncia finda por se traduzir numa valori- zagio do “sublime contra o prosaico”, do “inefavel contra 0 tangivel” etc, E acrescenta: Trata-se de uma poesia feita de sobre-realidadcs, feita com zonas exclusivas do homem, ¢ o fim dela é comunicar dados sutilfssimos, a que s6 pode servir de instrumento a parte mais leve ¢ abstrata dos dicionérios. O vocébulo prosaico est4 pesado de realidade, sujo de realidades inferio- res, as dos riundo exterior, ¢ em atmosferas tio angélicas s6 pode servir de neutralizador, Assim caracterizada uma inclinagao (que o futuro pro- varia como a que daria perfil estético A indigitada Geragio de 45 ou pelo menos a obra de seus mais convictos defenso- res), JCMN sustenta — ¢ no caso, sem divida, falando em causa prépria — que entre os homens de 45 havia também poetas com preferéncia “pelos meios préprios da prosa”, ¢ que, portanto, tal geragdo ndo poderia ser definida “por meio de uma tendéncia comum, uma orientagdo geral de seus poctas”. Donde, sua conclusdo: “O que h4 de comum entre os poetas que a constituem € a sua posigao histérica. O momento em que iniciaram seu trabalho de criagdo”. Va- le dizer: para o préprio JCMN, o finico possfvel critério de aglutinagdo entre ele e a geragdo em que o incluem € o me- ramente cronolégico. E acrescentemos de nossa parte: nem mesmo em “posicdo histérica” comum, a rigor, seria Ifcito falar, pois esta supée uma historicidade comum, uma co- mum visdo da histéria. O que, a evidéncia, nao pode haver entre um marcado pendor idealista para o imponderdvel ¢ uma acentuada propensio realista para o substantivo ¢ para 0 concreto. O Engenheiro e a Psicologia da Composigao JCMN estreou com Pedra do Sono (1942). Neste livro jA se encontram em germe algumas das qualidades da poe- 79 sia cabralina: o despojamento, o gosto pela imagem visual, de tactil substantividade (“No espago do jornal / a sombra come a laranja”), aquilo que Cabral diz.ter aprendido com a poesia de Murilo Mendes (“dar precedéncia a imagem sobre a mensagem, ao plastico sobre o discursivo”), ¢ algo que sem dévida aprendeu com a gente de 22 e apurou com Drummond, certo humor seco servido por uma 4gil mani- pulagdo de sintagmas extrafdos diretamente do coloquial ¢ postos em contraste com outras dreas mais “puras” de seu vocabuldrio, para aquele efeito de choque ou dialética — que sempre o interessou — entre poesia e prosa, O poeta comega também a debrugar-se criticamente sobre o préprio poema, ouve-lhe as “vozes liquidas”, ¢, assim, ndo € A toa que o livro surge com uma epigrafe de Mallarmé (“Solitu- de, récif, étoile...”), poeta critico por exceléncia, o Dante de nossa idade industrial. Depois desse livro ¢ de uma incursdo sem maior importincia no poema dialogado (“Os Trés Mal-Amados”, 4 base do conhecido texto de Drummond), Cabral enceta a fase definitiva de sua obra, publicando O Engenheiro (1945) ¢ Psicologia da Composigdo com a Fabu- Ja de Anfion e Antiode (1947). Em O Engenheiro, a epigrafe de Mallarmé € substitufda por outra, de Le Corbusier (“..machine 4 emouvoir”), que ambos, poeta ¢ arquiteto, pertencem a uma mesma familia espiritual - a dos constru- tores -, na qual se inserem as melhores admiragdes de JCMN. O poeta que, em Pedra do Sono, exibia ainda as im- pregnagées do alogicismo surrealista, aqui se volta delibe- radamente a légica (nao cientffica, mas poética) do cons- truir, E a instauragdo, na poesia brasileira, de uma poesia de construgao, racionalista e objetiva, contra uma poesia de ex- pressdo, subjetiva e irracionalista’, Os poemas de O Enge- 4, Tivemos presente, aqui ¢ em oulros pasos deste estudo, a sucinta mas fun- damental andlise da dialética da criagio em JCMN, feita por Décio Pignatari em “Situacéo Atual da Poesia no Brasil” (lese-relatério para o 11 Congresso Brasileiro de Critica e Historia Literiria, FFCL de Assis, 1961), O mesmo autor, em texto de 1957 (“Poesia Concreta: Pequena Marcagéo Histérico-Formal”), hoje republicado na Teoria da Poesia Concreia, Séo Paulo, 1965, j4 apontava certas caracteristicas b= sicas da poesia cabralina: “a palavra nua ¢ seca, as poucas palavras, a escolha subs tantiva da palavra, a estrutura ortogonal, arquitetdnica ¢ neoplasticfsta, das estrofes, 0 jogo de elementos iguais [..] a servigo de uma vontade didética dé linguagem dire- ta, ligéo que néo deveria ter sido esquecida”. 80 aheiro sio como que feitos a régua e a esquadro, riscados ¢ calculados no papel, ¢ sua sem4ntica funda coincidentemen- te um 4mbito plastico de referéncias: Alu, o sol, 0 ar livre envolvem o sonho do engenheiro. O engenheiro sonha coisas claras: superficies, ténis, um copo de 4gua. © ligis, 0 esquadro, o papel; © deseaho, o projeto, o nimero: ‘© engenheiro pensa o mundo justo, mundo que nenhum véu encobre. Neste poema estd todo o programa construtivo do poc- ta ¢, ao nivel técnico, um dado que seré muito importante considerar: a unidade compositiva mais caracteristica de JCMN, a quadra, ndo tomada como forma fixa (ou forna), mas como um bloco, como unidade-blocal de composicdo, elemento geométrico pré-construfdo, definido ¢ apto con- seqiientemente para a armagio do poema. Esta unidade- quadra, conforme o caso, serd reduzida em sua medida mé- trica; seu curso ser4 interrompido pelo recorte brusco do enjambement; a rima toante, mais prépria a expressdo do desacorde. acistico, nela prevalecerd sobre a consoante. Em O Engenheiro, a vertente critica do autor se intensifica: 0 poeta se ocupa obsessivamente da mecdnica da criagdo (“A Mesa”, “O Funcionério”, “O Poema”, “A Licdo de Poesia” rodam em torno dessa perquiricao). Trata-se de uma em- presa de desmistificagio do poema, que ¢ sacado de sua au- ra de mistério c de inefavel, e mostrado como é, objeto hu- mano, escrito “a tinta e a lM4pis”, fabricado na “maquina util” do poeta. Em Psicologia da Composigdo esta “luta branca sobre o papel” é levada ao seu auge. Nao foi por coincidéncia que 0 poeta passou a se interessar, inclusive, pelas artes grdficas, imprimindo ele préprio seu livro, num prelo manual. O projeto cabralino € agora decididamente mallarmaico: a criagio considerada como luta contra 0 aca- so, A epfgrafe de Jorge Guillén — “Riguroso orizonte” — corrobora a implacabilidade da andlise a que o poeta quer submeter o seu préprio instrumento. A Psicologia da Com- posiggo (que de Mallarmé retroage ao célebre ensaio de Poe sobre a génese de “O Corvo” — “The Philosophy of 81 Composition”) constitui-se de trés pegas: a qué Ihe serve de titulo; “Fabula de Anfion”; “Antiode”. Na “Fabula”, o poc- ta (Anfion) cria uma cidade (Tebas ou 0 proprio poema) suscitando-a do nada (0 deserto), depois de domar o acaso (“raro animal"), com o poder de sua flauta. Entdo, lamenta a obra feita, cotejando-a com 0 projeto da obra (“a nuvem civil sonhada”), ¢, encontrando na flauta (no instrumento) 0 mével da discrepancia entre o projeto original ¢ sua reali- zag&o, rejeita-a, jogando-a no mar, e procurando o deserto perdido, talvez para 0 recomego de tudo. Em “Antiode”, 0 poeta denuncia a poesia “dita profunda”, ¢ neste passo poe o dedo na crise da prépria linguagem poética. Dessacrali- zando a poesia, JCMN desalicna a linguagem respectiva de seus paramentos nobres, mostrando que poesia no é “flor” mas “fezes” (“Poesia, te escrevia: / flor conhecendo que és fezes”). Depois deste conhecimento, que o leva A mate- rialidade mesma do poema, como texto, o poeta emerge pa- ra redenominar a flor como flor dentro do pocma, ndo uma flor metaforizada, mas flor que é a palavra flor. A reali- dade do poema € agora a realidade do seu texto. “Flor” ¢ “fezes” se equivalem, sem privilégios especiais, na dialéti- ca da composigéo. A nobreza da poesia € uma balela solip- sista, tio precdria como a mosca azul de Machado de Assis sob 0 dedo do pole, Em “Psicologia da Composigao”, o poema-titulo, 0 problema tratado em “Anfion" com apoio numa transposi¢ao mitica ¢ enfrentado de maneira direta, de modo a se poder dizer que aquela é como que a chave deste, O Cio sem Plumas e O Rio Da desalienagao da linguagem, JCMN passa ao pro- blema da participagdo poética. O caminho é natural (por mais surpreendente que parcca), J4 se observou que os poe- tas mais aptos a participagio criativa sio aqueles que mais meditaram sobre o seu préprio instrumento®. Em 1954 (“Da 5, Décio Pignatati, tese cit: “Sb a alitude radical na poesia ~ aquela que est 8&2 Funcdo Moderna da Poesia”, tese apresentada ao Congres- so de Poesia realizado em Sao Paulo), JCMN atribufa o divércio entre o poeta de hoje ¢ seu leitor a “preferéncia dos poetas pelos temas intimistas e individualistas”. Preo- cupava-o o problema da comunicagio. Langava critica con- tundente ao chamado “poema moderno”, “escrito quase sempre na primeira pessoa ¢ usado indiferentemente para qualquer espécie de mensagem”, poema que é “a prépria auséncia de construgdo e organizagao, é o simples acdmulo de material poético, rico, é verdade, em seu tratamento do yerso, da imagem ¢ da palavra, mas atirado desordenada- mente numa caixa de depésito”. Traduziu-se este scu em- penho pelo alargamento do auditério na investidura da tematica do Nordeste - do subdesenvolvimento econémico agudo e do pauperismo dessa regio — no bojo de sua poe- sia, cuja linguagem jd se desvinculara antes, programatica- mente, de compromissos com a poética do sublime e do scrafico. O Cao sem Plumas (1950), pocma do Capibaribe e do seu sofrido homem ribeirinho, é um primeiro passo nes- sa diregdo. O livro é todo ele feito de paralclismos semanti- cos, de similes voluntariamente rudimentares a base de “como” ou “quando”, de termos prosaicos. Releva assina- lar, como o faz Anténio Houaiss’, que 0 poeta assume a vi- sada do humilde, para o qual o Capibaribe é um “rio-cio0”, “pai de outros cdes, cdes-homens, cies sem plumas”, ¢ ndo a perspectiva de certa sociologia herdldica, “que 0 ver4, ao tio, como rig-ledo”, Em 1954, no ano de sua tese, 0 pocta retoma o tema, num poema de hausto longo, O Rio ou Re- lagdo da Viagem que faz o Capibaribe de sua Nascente @ Ci- dade do Recife. Aqui vemo-lo j4 fazer prosa em poesia (nao prosa poética nem poema em prosa, mas poesia que fica do Jado da prosa pela importancia primordial que confere a in- formagao semAntica). Nesse sentido, pode-se dizer que ICMN dé categoria estética a muito daquilo que, no cha- sempre a perguntar ‘que é poesia?” - alimentando indefinida ¢ concretamente as suas contradighes, pode conduzir A responsabilidade integral do poeta empenhado ‘em construir, e a resultados poéticos positives”. 6, “Sobre ICMN” em Seis Poeras e um Problema, Rio de Janeiro, Servigo de Documentagéo, MEC, 1960. 83 mado romance nordestino, tinha apenas categoria docu- mentdria, Sua poesia-prosa (“Quiero que compongamos io e td uma prosa” é a epigrafe de Bercco que a define), poesia narrativa, é, no entanto, altamente reduzida e concentrada em relagdo & prosa de fico habitual (embora seja mais larga ¢ mais discursiva do que a poesia-poesia de seus livros anteriores, entendendo-se O Cao sent Plumas como um estagio de transito entre ambas as dicgées do pocta, um momento de equilfbrio estavel entre as conquistas constru- tivas de O Engenheiro e da Psicologia ¢ a vontade de comu- nicagdo, de abertura do 4mbito semantico do poema)’. 0 Rio, poema “tecido em grosso tear”, lancado numa toada deliberadamente mondtona ¢ iterativa, consegue nado obs- tante — em sua pauta ¢ a seu modo — 0 isomorfismo estéti- co; dé no texto, no fluir do texto, a presenga viva, o lento desenrolar do caudal que lhe serve de tema, com seu corte- jo contrastante de grandezas e misérias. As Duas Aguas Com o engajamento, a participagdo ao nivel social, nem por isso se pacificou a dialética da criagdo em JCMN, Que sua poesia é dialética ndo para o conforto de alguma sintese ideal, hipostasiada no absoluto, mas pela guerra permancn- te que engendra entre os elementos em conflito, 4 busca de conciliagio, e onde o possfvel se substitui normativamente ao eterno. Duas Aguas (1956) é 0 titulo significativo da an- tologia de seus poemas reunidos. “Poesia de concentragio reflexiva ¢ poesia para auditérios mais largos.” Poesia criti- 7.. Em 1964, no posticio que escrevemos para a edigéo alemd de O Cao sem Plumas (Der Hund ohne Federa, tradugio de Willy Keller, cadsmnos Rot, n* 14, Stuttgart), formulamos 0 problema da seguiate forma: “Na primeira linha, predomi- ‘na o poema autocritico, 0 poema-sobre-o-préprio-poema {0 poema como metalin- ‘guagem voltado sobre a mecdnica de sua propria linguagem-objeto); na segunda, 0 texto do poema é 0 suporte material para uma informagéo de tipo documentitio ou semiatico sobre detereninada realidade ou contexto social exterior ao poersa. Em O Cao sem Plumas {..] © poeta consegue um equilibrio estével entre as duas vertentes caracteristicas de sua obra”, Este postécio fol republicado, com 0 titulo de “El Geémetra Comprometido”, na revista Carmoran y Delfin, n® 7, nov. 1965, Buenos Aires, 8 ca ¢ poesia que pée o scu instrumento, passado pelo crivo dessa critica, a servigo da comunidade. Da primeira dgua, ¢ o admirdvel “Uma Faca s6 Lamina” (1955), onde a psicolo- gia vira fenomenologia da composigdo®, onde, “no estilo das facas”, assistimos ao implacdvel descascamento do objeto pocmatico; da segunda, o auto “Vida ¢ Morte Severina” (1954-1955), sua obra menos consumada e mais diluida nes- sa vertente da participagao, embora de boa fatura ¢ intercs- sante como experiéncia de poesia dramiatica. Terceira Feira (Quaderna, Dois Parlamentos, Serial) Com Quadema (1960) prossegue JCMN o seu percur- so, Este € um livro fundamentalmente construfdo sobre o médulo da quadra-quadrado’. Alids, Quadema é a face do dado onde se marcam quatro pontos, e, no “lance de da- dos” cabralino, esta face sempre comparece sobre as de- mais. Como na estética neoplasticista de Mondrian: “A re- lagdo de posigao — a relagdo retangular — é indispens4vel para expressar o imutdvel em oposigdo com as relagées va- ridveis da dimensdo. A neopldstica procura expressar 0 va- ridvel ¢ o invaridvel simultaneamente ¢ em equivaléncia”®. Aqui as relagdes invariantes seriam as configuradas na uni- dade-quadra, as variantes no jogo semantico. Em Quadema as duas dguas de nosso poeta comunicam-se como bracos que sao de urh mesmo manancial, nao se distinguindo as ve- zes sendo pela ocasiao tematica, E onde intervém Espanha. 8. A poesia concreta prenunciou esta evolugéo cabralina, Em manifesto lan- ‘gado em 1956 (“Olho por Olho a Olho Nu”, hoje na Teoria da Poesia Concreta), es- crevemos & maneira de uma proposta-instigacSo: “no apenas psicologia mas feno- menologia da composicéo”. Concomitantemente; publicévamos a série “o & mago do & mega” (1955-1956), inspirada por essa alitude fenomenolégica de perquirigéo redutora do eidos do compor (“a coisa / da coisa / da coisa [..] zero a0 zénit / nie tescendo / ex-nihilo”), 9, José Lino Griinewald, “O Ultimo Livro de Cabral - Quadema", Tribuna da Imprensa, Tabléide, Rio de Janeiro, 6-7.08.1960. 10. Ane Plastico y Arte Plastico Puro, Buenos Aires, Editorial Victor Leru SRL, 1957. Mondrian, no seu neoplasticisino, considerou também a poesia, explic- tamente: “A arte do verbo toma-se assim expresso plistica em relagSes equilibra- das... [..] plistica das relagdes” (0 Neoplasticismo, Séo Paulo, Grémio da FAU, 1954), © manifesto de Mondrian foi langado em Paris, ema 1920, 85 Pois o Nordeste € reencontrado por JCMN através de sua prolongada permanéncia em terras espanholas. A dura me- seta de Espanha ¢ 0 Nordeste dspero se sobrepdem na mesma 6tica, como o homem espanhol e o homem nordes- tino, na magreza exemplar de seus destinos, se confraterni- zam. As “Paisagens com Figuras’, poemas de 1954-1955 publicados em Duas Aguas, com sua alternancia proposita- da de cenas nordestinas’e espanholas, podem ser vistas co- mo o casulo deste livro de 1960, Em Quadema ressaltam poemas como “De um Avido” ¢ “A Palo Seco” (no fundo, verdadeiros poemas sobre o poema). O primeiro proceden- do, através dos circulos do véo de um aviio que se levanta do Recife, & epokhé fenomenolégica do pocma (e da visio que ele encerra) até o seu cidos: do “diamante ilusério” que € Pernambuco visto do alto ¢ transformado j4 em memé6ria, até o homem, que é “o niicleo do niicleo do seu nficleo”, O segundo, definindo a atitude poética de JCMN em termos de uma concreta experiéncia espanhola (como, nos poemas de “Paisagens”, o diddtico “Alguns Tourciros”). “A Palo Seco” pode ser considerado mesmo um poema-lema de to- do o poetar cabralino, em sua dureza e em sua enxutez, em seu cortante laconismo: “Se diz a palo seco / 0 cante sem guitarra; / 0 cante sem; o cante; / o cante sem mais nada”, Na linha alistada, aqui regida também pelo médulo estrito da quadra, destaca-se o “Paisagens com Cupim”, onde: “Tudo carrega o scu caruncho / Tudo: desde 0 vivo ao de- funto. / Da embatiba das capoeiras / 4 economia canaviei ta”, Em Quadema, por outro lado, assoma o motivo femi- nino, raro na poesia cabralina anterior (lembre-se “Muther Sentada”, de O Engenheiro), tratado. porém com extrema sobriedade de notagao (“Estudos para uma bailadora anda- luza”; “Mulher vestida de gaiola”), revelando uma técnica de conversio de cmogdo abstrata em imagens concretas, coisificadas, que evoca a poesia amorosa dos chamados “poetas metafisicos” ingleses (John Donne, por cxemplo)”. 11 Ver, neste volume, ema nosso estudo sobre Drummond, a observacio so- bre a “poesia com sinal de menos” (nota 6), 12, Augusto de Campos, em nota a sua tradugéo do poema “Em Despedida, Proibindo 0 Pranto”, de John Donne, estabeleceu esta comparagio (Suplemento do Jomal do Brasil, Rio de Janciro, 55.1957), 86 Em 1961, Cabral nos deu simultaneamente Dois Parlamen- tos e a antologia Terceira Feira, com o inédito “Serial”, O primeiro leva o engajamento até a sdtira dos costumes poli- ticos, reabilitando um género que o poeta, em sua tese de 1954, considerava injustamente expulso da categoria de boa literatura. Em “Serial”, a linha de fusdéo das duas dguas & desenvolvida através do principio da composigdo em série (ocorrente em outros domfnios artisticos, como o da misica dodecafénica e o da pintura construtivista). Para JCMN es- ta solugdo foi natural, pois uma de suas constantes estilfsti- cas € a técnica de repetigées (os similes paralelfsticos de O Cao sem Plumas poderiam ser vistos j4 como verdadeiras séries semanticas) ¢ a padronizagdo do médulo compositivo. Daf a serializar seus poemas era apenas um passo. A série & tematica (mesmo tema) ¢ formal (mesmo nimero de qua- dras). JCMN nao a concebe, porém, como a de um produto industrial, projetado para ser produzido em # exemplares a partir de um tipo acabado (protétipo); sua série é ainda ar- tesanal, no sentido de objetos feitos a mao por um artesdo, que nunca os faz todos iguais, mas os labora e elabora, ti- rando variantes minuciosas ¢ sutis sob a aparente similitude de fatura. Este artisanat furieux explica o amaneiramento de alguns poemas do livro, 0 comprazimento luxurioso no diff- cil que se torna facil a forga da demasia de competéncia que © poeta ja tem no seu fabrico. Coincidentemente se nota em alguns desses poemas algo como um certo distanciamento dos fatos, um certo tédio dos acontecimentos, rogado ja pe- la curva da alicnagao de que o poeta se desembaragara em outros livros: quando ele gira e regira diante do olho 0 “O Ovo da Galinha”, parece um cultivador de ocupacées inusi- tadas, como aqueles ironizados em O Rio, apostados em ¢s- tudar “como se palitava os dentes nesta freguesia”. O poeta que, entre o agreste de um lado e o canavial do outro, sou- bera ver 0 homem como “a planta mais franzina / neste ambiente de rapina”, agora contempla o canavial do alpen- dre da casa-grande e discreteia sobre o tempo. Estas con- tradigGes ndo sao respigadas com propésito judicativo, mas antes para mostrar que a mente do poeta nao descansa em seus embates e contra-embates, ndéo aplacou suas lutas ¢ perplexidades, o que pode ser, inclusive, fecundo. Pois, no 87 mesmo “Serial”, outros poemas h4, como o “Velério de um Comendador”, onde o gume da critica social ndo se deixa amortecer por nenhuma nostalgia s6cio-ontolégica do “tempo perdido”, O melhor, porém, do livro sd os poc- mas dedicados as admiragées intclectuais do poeta, a série “O sim contra o sim”, onde surgem recortados na palavra justa Cesdrio Verde, Augusto dos Anjos, Marianne Moore, Francis Ponge, Mir6, Mondrian, Juan Gris, Jean Dubuffet. A obra de JCMN, obra que estd longe de seu término e que nos reserva ainda muitas surpresas, ¢ hoje sem divida a que mantém maior unidade e coeréncia de produgdo, den- tro de um alto gabarito, na poesia brasileira. Obra que hon- raria qualquer literatura ¢ que em qualquer literatura seria rara pela sua qualidade. Sua ressonncia ainda pequena jun- to ao piiblico de poesia brasileiro (esta ficgdo!) deve-se, em Parte, ao fato de que o poeta s6 recentemente (falando em termos relativos) comegou a ter tiragens comerciais, mas, sobretudo, resulta do rigor de sua concepgio poética, que Jamais se rendeu ao “vicio retérico nacional” ¢ ao sentimen- talismo epidérmico, encontradigo em tantos poetas que fa- zem praca de modernidade e até de vanguarda. Mesmo em seu aspecto participante, a obra de JCMN nao é de acesso facil ao leitor, que lhe estranhard a dureza e a secura, e que deparard com um testemunho dspero e contundente onde, possivelmente, esperaria achar uma ret6rica de tipo carita- tivo ou um apelo demagégico. Mas entre os poetas, espe- cialmente na nova geracio, a poesia de JCMN tem um lu- gar privilegiado: o lugar cartesiano da lucidez mais extrema. 13. 0 poeta, a quem lemos este trabalho em Genebra, em 1964, argumentou que ndo Ihe interessara a recuperacso proustiana do “tempo perdido”, do tempo da meméria, mas to-somente (no poema citado, “O Ovo da Galinha”) a fixagéo do tempo (ou tempos} fisico da percepsao. 88

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