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Capitulo 6 Centros, reis e carisma: reflexdes sobre 0 simbolismo do poder Introdugao Como tantas outras idéias-chave na sociologia webe- riana, verstehen, legitimidade, ascetismo do mundo inter- no, racionalizagdo, 0 conceito de carisma nao é explicito com relagao ao seu referente: o que denota, afinal? um fenémeno cultural ou um fendmeno psicolégico? Como o carisma ora € definido como “uma certa qualidade” que destaca um individuo, colocando-o em uma relagio privi- legiada com as origens do ser, ¢ ora considerado um poder hipnotico que “certas personalidades” parecem possuir € que Ihes torna capazes de provocar paixGes ¢ dominar mentes, nao é possivel saber ao certo se ele é um status, um estimulo ou uma fusio ambigua dos dois. A tentativa de escrever uma sociologia da cultura e uma psicologia social em um tinico conjunto de frases é 0 que dé a obra de Weber sua complexidade orquestral € sua profun- didade harmédnica. Mas é, também, 0 que da origem a sua intan- gibilidade crénica, sobretudo para ouvidos pouco acostumados A polifonia Em Weber, um exemplo classico de sua propria catego- ria, a complexidade é bem administrada, € a indefinigio contrabalangada por sua habilidade extraordin4ria em man- ter unidas idéias conflitantes. Em tempos mais recentes € menos herdicos, no entanto, a tendéncia tem sido ade aliviar © peso que scu pensamento carrega, reduzindo-o a apenas uma de suas dimensées, mais comumente a psicoldgica. Em nenhum outro caso isso € t4o verdadeiro como no conceito 182 de carisma,' Desde John Lindsay até Mick. ‘Jagger, muita gente a foi chamada de carismatica, devido a sua capacidade de atrair um determinado namero de pessoas com o brilho de sua personalidade: ¢ a interpretagao mais comum que se da a0 aparecimento — este um pouco mais genuino — de lideres carismaticos nos Estados Novos, é que esses seriam um produto da psicopatologia que a desordem social alimenta.? No psicologismo generalizado desta era, tao bem observado Por Phillip Rieff, 0 estudo da autoridade pessoal se estreita Para transformar-se em uma investigacio do exibicionismo € da neurose coletiva; seu aspecto espiritual desaparece de vista.* Alguns estudiosos, ¢ entre estes Edward Shils é um dos mais proeminentes, procuraram evitar essa reducdo da va- liosa complexidade weberiana a clichés neofreudianos, a0 admitir que existem temas miltiplos no conceito weberiano de carisma, que quase todos eles foram afirmados mas nao desenvolvidos, € que, para preservar a forca do conceito é preciso elabora-los € descobrir qual é, precisamente, a dina- mica de sua interacéo. Entre a falta de clareza que resulta quando se tenta dizer muita coisa ao mesmo tempo, ¢ a banalidade que € fruto de um repiidio do desconhecido, existe a possibilidade de tentar definir a razio pela qual BR ea SE G0 are stcligenstoes 1. Para uma excelente revisto geral dessa questio, ve Eisenstadt para sua coletdnea dos trabalhos de Weber sobre carisma, Max Weber on charisona and institution building, Chicago, 1968, p.ixlvi, Sobre a “psice. fosizacio” da legitimidace, veja H, Pitkin, Wittgenstein and justice, Berkeley ¢ 10s Angeles, 1972; sobre “ascetismo do mundo interno”, veja D. McClelland, The achieving soctety, Princeton, 1961; sobre “racionalizacio", A. Mitzaman, The iron cage, Nova lorque, 1970, Toda essa ambigitidade ¢ até confus interpretagdes, cabe-nos dizer, nio deixam de ter alguma just 08 préprios erros dle Weber. introdugio de S.N. 2, Fara alguns exemplos, veja “Philosophers and kings: studies in leadership’, Daedalus, verdo, 1968, 3. B Rieff, The triumph of the therapeutic, Nova torque, 1966. 183 alguns seres humanos véem transcendéncia em outros, € exatamente o que significa esta transcendéncia. No caso de Shils, as dimensdes do carisma previamente negligenciadas s4o retomadas quando ele focaliza a conexao entre 0 valor simbélico de individuos € a relagao que estes mantém com os centros ativos da ordem social.’ Tais cen- tros, que “nao tém qualquer relagio com geometria ¢ muito pouco com geografia”, sdo, em esséncia, locais onde se concentram atividades importantes; consistem em um pon- to ou pontos de uma sociedade, onde as idéias dominantes fundem-se com as instituigdes dominantes para dar lugar a uma arena onde acontecem os eventos que influenciam a vida dos membros desta sociedade de uma maneira funda- mental. £ o envolvimento- mesmo quando este envolvimen- to é resultado de uma oposicao ~ com tais arenas € com os eventos ocasionais que nelas ocorrem, que confere 0 caris- ma. O carismatico nao é necessariamente dono de algum atrativo especialmente popular, nem de alguma loucura inventiva; mas esta bem prdximo ao centro das coisas. Esta proposigio de que a origem do carisma relacion: aum ponto central privilegiado tem uma série de implicagées A primeira delas é que figuras carismaticas podem surgir em qualquer parte da vida social — tanto na ciéncia ou na arte, como na religido ou na politica -, desde que esta area esteja suficientemente em evidéncia, e, por esta razio, parega imprescindivel a sociedade. A segunda é que 0 carisma nao aparece apenas sob formas extravagantes ou em momentos passageiros, mas, ao contrario, é, ainda que inflamavel, um aspecto permanente da vida social, que, ocasionalmente, explode em chamas. Assim como nio existe um tinico sen- 4. Shils, “Charisma, Order, and Status”, American Sociological Review, abril, 1965; idem, “The Dispersion and Concentration of Charisma", in Independent Black Africa, org, WJ. Hanna, Nova lorque, 1964; idem, “Centre and Periphery”, in The Logic of Personal Knowledge: Essays Presented to Michael Polanyi, London, 1961. 184 timento moral, estético, ou cientifico, também nao ha uma Unica forma de emogio carismitica, embora as paixdes, ¢ muitas vezes paixdes distorcidas, sejam certamente parte integrante deste sentimento, essas variam radicalmente de uum caso para outro. No entanto, ndo é minha intengao Prosseguir aqui com esse tema, apesar de sua importancia Para uma teoria geral sobre 0 autoritarismo social, Meu objetivo € investigar uma nova luz que se acendeu com a abordagem de Shils: 0 contetido sagrado do poder do sobe- O reconhecimento do simples fato de que governantes € deuses tém certas propriedades em comum é bastante antigo. “O desejo de um rei é profundamente espiritual”, escreveu um tedlogo politico do século XVII, que, alids, nao foi o primeiro a fazer tal afirmagao; “ele contém uma espécie de universalidade total.” © tema ja foi também objeto de varios estudos: 0 livro extraordinario de Ernst Kantorowicz, The King’s Two Bodies — um debate magistral sobre o que o autor chamou de “teologia politica medieval” — esbocou as vicissitudes do carisma de monarcas no mundo ocidental em um periodo de duzentos anos ¢ em uma meia diizia de paises, e, mais recentemente, houve uma pequena explosio de livros com uma certa sensibilidade para o que hoje tende @ ser chamado, de forma um tanto ou quanto vaga, de aspectos simbdlicos do poder.* No entanto, o contato entre Kamtorowicz, The king's 1wo bodies: a study in medieval political theology, Princeton, 1957; RE. Giesey, The royal funeral ceremony in Renaissance France, Gencbra, 1960; R. Strong, Splendor at court: Renaissance spetacte and ihe theater of power, Boston, 1973; M. Walzer, The Kevolution of the Saints, Fambridge, Mass., 1965; M. Walzer, Regicide and Revolution, Cambridge, Inglaterra, 1974; 8. Anglo, Spetacle, pageantry, and early Tudor policy, Oxford, 1969; DM. Bergcron, English civic pageantry, 1558-1642, London, 1971; EA utes, The Valois Tapestries, London, 1959; E. Straub, Repraesentation Maiesta. us oder Churbayerische Freudenfeste, Munique, 1969; G.R. Ketnodle, From art 40 theatre, Chicago, 1944. Para um livro popular recente sobre a presidéncia dos 185 esse trabalho essencialmente hist6rico € etnografico € os interesses analiticos da sociologia moderna €, no minimo, superficial; uma situago que o historiador de arte Panofsky, em outro contexto, comparou a de dois vizinhos que tém o direito de cagar na mesma drea, mas um deles é dono da espingarda € 0 outro de toda a munigao. As reformulagdes de Shils, embora ainda em estigio inicial, ¢ algumas vezes apresentadas em um tom excessiva- mente apoditico, prometem ser de grande importincia na luta contra esta separacao tao pouco frutifera, principalmen- te porque elas nos estimulam a buscar a universalidade do desejo dos reis (ou presidentes, generais, fibrers, e secreta- rios do partido) naquele mesmo lugar onde buscamos a dos deuses: isto é, nos ritos € nas imagens em que ela se exerce. Mais precisamente, se 0 carisma€é sinal de envolvimento com ‘0s centros que dao vida a sociedade, ¢ se tais centros sio fendmenos culturais ¢, portanto, historicamente construidos, a investigacio do simbolismo do poder e a da natureza deste poder sao, na verdade, empreendimentos muito semelhantes. ‘A distingao que se faz levianamente entre a aparéncia externa de um governo, ¢ a propria substancia deste governo, torna-se, assim, menos aguda, ¢ até mesmo menos verdadeira; como acontece com a massa € a energia, o que importa é a maneira pela qual uma se transforma na outra. No centro politico de qualquer sociedade complexamen- te organizada (para reduzir, agora, 0 foco de nossa visio) sempre existem uma elite governante e um conjunto de stados Unidos sobre tema semelhante, veja M. Novak, Choosing our king, Nova lorque, 1974, Estudos antropol6gicos, especialmente aqueles cujo tema craa Africa, vém sendo bastante sensiveis esses assuntos, ji ha bastante tempo (como exemplo, cabe-nos mencionar, como obras essenciais: E.E, Evans-Prit chard, The divine kingship of the Shilluk of the Nilotic Sudan, Cambridge Inglaterra, 1948, ¢ tanto Myth of the State, New Haven, 1946, de E, Cassirer, como Les rois thaumaturges, Pasis, 1961, de M. Bloch ¢ também o préprio Kantorowicz). A citagio no texto é de N. Ward, reproduzida no diciondrio de inglés Oxford sob a palavea “numinous” [espiritual}. 186 formas simbélicas que expressam 0 fato de que ela realmente governa. Nao importa o grau de democracia com que essas elites foram escolhidas (normalmente nao muito alto) nem a extensio do conflito que existe entre seus membros (normal- mente bem mais profundo do que imaginam aqueles que nio sao parte da clite); elas justificam sua existéncia ¢ administram suas ages em termos de um conjunto de est6rias, ceriménias, insignias, formalidades € pertences que herdaram, ou, em situag6es mais revolucionarias, inventaram. Sao esses simbolos ~ coroas € coroagées, limusines ¢ conferéncias — que dio a0 centro a marca de centro € ao que nele acontece uma aura nao 86 de importincia, mas, algo assim como se, de alguma estra- nha maneira, ele estivesse relacionado com a prépriaformaem que 0 mundo foi construido. A seriedade da alta politica e a solenidade dos altos cultos sio resultados de impulsos que so, na realidade, bem mais semelhantes do que parecem ser 4 primeira vista. Essa semelhanga é mais visivel (embora, como irei argu- mentar eventualmente, nao seja nem um pouco mais verda- deira) em monarquias tradicionais que cm regimes politicos, pois, nestes tiltimos, disfarga-se melhor a tendéncia natural dos seres humanos para antropomorfizar 0 poder. A inten- sidade com que se focaliza a figura do rei 0 estabelecimento 6bvio de um culto, as vezes até mesmo de uma religiio, ao seu redor, tornam o carter simbélico da dominagao dema- siado palpavel ¢, portanto, impossivel de ser ignorado mes- mo por seguidores de Hobbes ou pelos utilitarianistas, A visibilidade € tanta, que acaba deixando a descoberto aquela verdade que todo o misticismo do cerimonial da corte deveria supostamente esconder — ou seja, que a majestade nao é inata, ¢ sim construida. “Uma mulher nao é uma duquesa se esta a cem jardas de uma carruagem.” Chefes transformam-se em rajas, pela aparéncia estética de seu governo Tudo isso surge com maior clareza que em qualquer outra situacao nas formas cerimoniais onde os reis tomam posse simbélica de seu dominio. Em particular, os cortejos reais (entre os quais, onde existem, a coroagio é apenas 0 primeiro) identificam 0 centro da socicdade ¢ confirmam sua conexio com coisas transcendentes ao demarcar um territ6rio com os sinais rituais de dominagao. Quando reis viajam pelo campo, mostrando-se a seus stiditos, presencian- do quermesses, conferindo honras, intercambiando presen- tes, ou desafiando seus adversarios, estio marcando seu territ6rio, como o fazem Lobos € tigres com seus odores, como se esse fosse quase uma parte fisica deles préprios. Como veremos, este processo pode ser executado através de estruturas de expressio ¢ de crenga tio variadas como 0 protestantismo anglicano do século XVI, o hinduismo java- nés do século IV 0u 0 islamismo marroquino do século XIX; mas, seja onde for que ele acontega, € irreversivel: a ocupa- cdo real passa a ser vista como se a sua volta tivesse sido construido algo ainda mais poderoso que uma cerca divina. A Inglaterra de Elizabcte Tudor: virtude e alegoria No dia 14 de janciro de 1559, véspera de sua coroacio, Elizabete ‘Tudor — “uma filha cujo nascimento foi uma desi- lusio para seu pai, ao destruir suas expectativas de sucesso, € que por isso tornou-se, indiretamente, a causa da morte prematura de sua mae; uma princesa ilegitima, cujo direito ao trono era, entretanto, quase to valido quanto o de seu meio-irmio ¢ 0 de sua meia-irma; um pomo de discérdia durante 0 reinado de Mary Tudor; ¢ uma sobrevivente do alvoroco constante que faziam os emissérios imperiais ¢ espanhdis em seus esforcos para que fosse assassinada” ~ desfilava em um enorme cortejo (havia mil cavalos, enquan- to ela, coberta de jéias ¢ tecidos de ouro, ia sentada em sua liteira descoberta) pelas ruas da cidade de Londres. Enquan- to passava, um espetaculo didatico gigantesco se desdobrava a sua frente, ato apés ato, estabelecendo-a como soberana na paisagem moral daquela alegre capital que cinco anos 188, antes tinha feito o mesmo, ou tentado fazer 0 mesmo, pelo rei Felipe da Espanha.° [Comegando na Torre de Londres (onde apropriadamente comparou sua visio do dia com o episddio em que Deus liberta Daniel dos ledes) ela seguiu para a Rua Fenchurch, onde uma criancinha Ihe ofereceu, em nome da cidade, dois presentes — linguas bentas para clogid-la © coragSes sinceros para serviela. Na Rua Grace- church, deparou com um tableau vivant chamado “A uniao das dinastias de Lancaster € York.” Tinha o formato de um arco que ia de um lado ao outro da rua, ¢ este estava coberto de rosas vermelhas e brancas ¢ dividia-se em trés niveis. Na parte mais baixa, havia duas criancas, cercadas por uma rosa feita de rosas vermelhas, representando Henrique VII € sua esposa Elizabete; na parte central, duas outras criancas, representavam Henrique Ville sua esposa Ana Bolena; nesse nivel, uniam-se sobre as criangas 0 banco de rosas vermelhas que se originava no nivel superior ~ 0 dos Lancaster — ¢ 0 de rosas brancas que desciam do nivel inferior — 0 dos York. No nivel superior, entre rosas yermelhas ¢ brancas, empolcira- va-se uma s6 crianca, representando a prépria homenageada (€ legitima) Elizabete. Em Cornhill, havia um outro arco, também com uma crianga representando a nova rainha, mas, neste caso, a crianca estava sentada em um trono levado por quatro homens da cidade, vestidos para representar as qua- as descrigées da procissio de Elizabeth em Londres (ou sua “entrada” em Londres) das quais a mais completa é a de Bergeron, English civic pageantry, P. 11-23. Veja tambem R, Withington, English pageantry, art bistorical outline, vol. 1, Cambridge, Mass., 1918, p. 199-202; e Anglo, Spetacle, pageantry, p. 344-59. 0 texto citado € de Anglo, Spetacle, pageantry, p.345, Acidade também estava resplandecente; “pelo caminho, todas as casas estavam ornamentadas, de cada lado da rua, havia barricadas de madeira nas quais se debrugavam merea- ores ¢ artistas de todos 08 ramos, vestidos com longas capas negris e cobertos com capuzes de tecido vermelho e negro... com todos seus simbolos, bandeiras cestandartes” (citagao, em Bergeron, English civic pageantry, p. 14, da deseri ‘a0 feita pelo embaixador de Veneza em Londres). Para a entrada de Mary Felipe, em 1954, ver Anglo, Spetacte, pageantry, p. 324-43, and Withington, English pageantry, p. 189. 189 tro virtudes — religidio pura, amor dos stiditos, sabedoria € justica. As quatro virtudes, por sua vez, pisavam os quatro vicios a elas opostos — supersticao e ignorancia, rebelifio € insoléncia, loucura e vangloria, adulagio e chantagem (tam- bém personificados por citadinos fantasiados). E se acaso a iconografia fosse demasiado complexa, a crianga enderecava a rainha que ela representava versos admonit6rios, que deixavam bem clara sua mensagem: Avverdadeira religido suprimira a ignorincia ¢, com seus pesados pés, quebrara a cabeca da supersticio O amor aos stiditos destruird a rebeliéio ¢, zelando pelo principe, pisara sobre a insoléncia Ajustica pode desfazer as linguas bajuladoras ¢ a chantagem Enquanto que a loucura e a vangloria cederio suas maos sabedoria Assim por muito tempo permanecerd o governo que ndo se de vie do curso correto, que deixe o mal apodrecer, que pratique a sabedoria.” Assim instruida, a rainha seguiu para Sopers-Lane, onde estavam no menos que oito criangas, distribuidas em trés niveis, Como anunciavam as pequenas tabuletas penduradas sobre suas cabecas, seu papel era representar as oito bem- aventurangas de Sao Mateus, as quais, segundo um poema recitado pelas criangas, tinham-se cristalizado no carater da rainha, gracas ao sofrimento € aos perigos por ela vencidos em seu caminho até ao trono (“Fostes oito vezes abengoada/ 6 ilustre rainha /com a humildade de vosso espirito/ quando tantas dificuldades vos assediaram”).” Dali, seguiu para Cheapside, e, chegando ao Standard, deparou-se com os retratos de todos os reis ¢ rainhas do passado, organizados / Citado em Bergeron, English civic pageantry, p. 17. Diz-se que a rainha respon- deu: “Ouvi com cuidado os bons sentimentos que me sto dirigidos, ¢ tentaré responder as vossas muitas expectativas” (#bid., p. 18) 8, Anglo, Spetacle, pageantry, p. 349. 190 em ordem cronolégica, até chegar a seu préprio retrato, no Upper End recebeu dois mil marcos em ouro dos dignitarios da cidade (“Fiquem certos”, ela hes disse em agradecimen- to, “que para a seguranga e tranqiiilidade de todos yocés, ndo economizarci, ¢, se for necessario, gastarei meu proprio sangue”);’ c chegando ao Little Conduit, deparou-se com a mais estranha das imagens — duas montanhas artificiais, uma “ingreme, nua ¢ cheia de pedras”, representando “o bem-es- tar comum em decadéncia”, outra, clara, fresca, verdejante, € bela, “representando “o bem-estar comum em prosperida- de.” Na montanha sem vegetagao, havia uma tinica drvore morta, cum homem mal vestido, obviamente desconsolado, sentado sob ela; na montanha verde, uma arvore cheia de flores, e, a seu lado, de pé, um homem bem vestido e obviamente feliz. Nos ramos dessas 4rvores haviam pendu- rado tabuletas que continham uma lista das razées morais que levaram aos dois est4gios de satide politica: em uma drvore, a auséncia de temor a Deus, a bajulagao dos princi- pes, a falta de compaixao dos governantes, €a ingratidio dos stiditos; na outra, um principe sbio, governantes cultos, stiditos obedientes, temor de Deus. Entre as montanhas havia uma pequena caverna, de onde saia um homem que representava 0 Tempo, vestido a cardter ¢ com sua foice. Acompanhava-o sua filha, a Verdade, que presenteou a rai- nha com uma Biblia Inglesa (“O ilustre rainha... as palaveas sempre yoam, mas a escrita sempre permanece”) que El bete aceitou, ¢ a seguir beijou, elevou sobre sua cabeca e, dramaticamente, apertou contra seu peito."” ae Apés um discurso em latim pronunciado por um estu- dante no cemitério da igreja de Sao Paulo, a rainha prosse- guiu para Fleet Street, onde encontrou nada menos que 9. Bergeron, English civic pageantry, p. 15. 10. A citaco encontra-se em Anglo, Spetacte, pageantry, p. 350, 191 Débora, “a juiza e restauradora da dinastia de Israel”, em um trono colocado em uma torre, sob a sombra de una palmei- ra, Rodeavam-na seis pessoas, cada duas delas repre- sentando respectivamente a nobreza, 0 clérigo € 0 povo. A legenda inscrita na tabuleta A frente destas figuras dizia: “Débora com seus estados em consultas para o bom governo de Israel.” Tudo isso, escreve 0 criador da alegoria, tinha sido preparado para encorajar a rainha a nao temer, “embora seja uma mulher; pois, com o espirito © 0 poder do Deus Todo- Poderoso, mulheres governaram honradamente ¢ politica- mente, e durante muito tempo, como 0 fez Débora.”"! Na Igreja de Saint Dunstan, outra crianga, esta do Hospital de Cristo, fez outro discurso. Finalmente, em Temple Bar dois gigantes ~ Gogmagog, albiao {da Inglaterra] e Corineu, 0 bretiio — levavam tabuletas onde versos faziam um sumirio de todas as alegorias que tinham desfilado, ¢ ai terminava © cortejo. O mesmo cortejo vai, em 1565, para Coventry; em 1566 para Oxford; em 1572 a rainha faz uma longa viagem por todas as provincias, parando para “festas de mascaras e desfiles” em um grande numero de casas nobres. Ela “entra” também em Warwyck, no mesmo ano, € no ano seguinte vai a Sandwich, onde € recebida com drag6es dourados ¢ ledes, uma taga de ouro € uma cépia do testamento grego. Em 1574, é a vez de Bristol (onde tem lugar uma batalha simu- Jada na qual um pequeno forte chamado “Politicas frageis” € capturado por outro maior, chamado “Beleza perfeita”). Em 1575, visita 0 castelo do duque de Kenilworth, perto de Coventry, onde ha uma alegoria com Triton cm uma sereia, Arion em um golfinho, a Dama do Lago, ¢ uma ninfa chama- da Zabeta que transforma seus amantes em aryores; € mais tarde “entra” em Worcester, Em 1578, as rosas vermelhas € 11. Grafton, citado em fbid, p. 352. Sua previsio nio estava errada: Débort sgovernou por quarenta anos, Flizabete por quareata e cinco. 192 brancas e Débora reaparecem em Norwich, acompanhadas pela Castidade e pela Filosofia que pée Cupido em deban- dada. E clas continuam, “essas peregrinacées sem fim, que muitas vezes levavam seus ministcos ao desespero” — em 1591 vai a Sussex © Hampshire, em 1592 a Sudeley, ¢ uma vez mais a Oxford. Em 1602, um ano antes de sua morte, haum ultimo cortejo, em Harefield Place. O Tempo aparece, como naquele primeiro dia em Cheapside, mas desta feita com as asas aparadas ¢ uma ampulheta onde a areia nao se movia."* Seus cortejos reais, observa Strong sobre Elizabete ~ “os mais legendarios ¢ bem-sucedidos de todos (seus) exponentes” — eram “os meios através dos quais 0 culto da virgem imperial era sistematicamente promovido.’O caris- ma que centro havia inventado (alids, de forma bastante deliberada) para ela, utilizando os simbolos populares da virtude, da fé, ¢ da autoridade, ela levava para o campo, com um talento para a arte de governar bem maior do que aquele de seus pragmaticos ministros que a isto se opunham, fazen- do de Londres nao s6 a capital da imaginagao politica brita- nica, mas também de seu governo. Essa imaginagao cra alegérica, protestante, didatica pict6rica; alimentava-se de abstragSes morais transformadas em emblemas. Blizabete era Castidade, Sabedoria, Paz, Bele- za Perfeita ¢ Religiao Pura, tanto quanto rainha (em uma peeeenetcsel ny esti sarees. 12, A citagio vem de Strong, Splendor at court, p. 84, 15. Para as procissées de Elizabete fora de Londres, veja Bergeron, English civic Pageantry, p, 25s; ¢ Withington, English pageantry, p, 204s 14, Strong, Splendor at court, p. 84, Cortejos eram, 6 claro, um fendmeno comum em toda a Europa. O Imperador Carlos ¥ por exemplo, fer des soneion wen Faises Baixos, nove na Alemanha, scte na Iulia, quatro na Prange dois og Tnglaterrae dois na Acia, como ele mesmo lembrou a seu pablice quando Adicou (bid, p. 83), Nem eram unicamente um fendmeno doséculo XVI Pare os cortejos dos Tudor do século XY veja Anglo, Spetacl, pageantry, 21s: pare 0 dos Stuarts, no século XVII, veja Bergeron, English cite pagtry, pose Strong, Splendor at court, p. 2135 193 propriedade de Hertford ela chegou a ser Seguranga no Mar); e, sendo rainha, ela era todas essas coisas. ‘Toda sua vida publica — ou, mais precisamente, a parte de sua vida que © piblico via — foi transformada em uma espécie de mascara filosGfica na qual tudo representava alguma idéia ampla, € nada acontecia sem ser imediatamente associado a paribo- Jas. Até seu encontro com Anjou, provavelmente o homem com quem Elizabete chegou mais perto do casamento, tor- nou-se uma reflexio moral alegérica; ele chegou a sua presenga sentado em um rochedo, que foi levado até ela pelo Amor € pelo Destino, arrastando correntes douradas."’ Pou- co importa se chamamos a isso de romantismo ou de neo- platonismo: o que importa é que Elizabete governou um territério onde as crengas eram visiveis; e, entre essas, cla era apenas a mais visivel de todas O centro do centro, Elizabete nao s6 aceitou essa me morfose de si mesma em uma idéia moral, como contribuiu para que isso acontecesse. E foi gracas a isso — a essa sua disposicao para ser representante, nao necessariamente de Deus, mas das virtudes que Ele ordenava, ¢ especialmente da versio protestante dessas virtudes — que seu carisma se ampliou. Foi a alegoria que Ihe deu uma aura magica, ¢ foi arepeticao da alegoria que manteve viva essa magica. “Como deve ter sido emocionante e importante para os espectado- res”, escreve Bergeron com referéncia ao presente de uma cépia da Biblia inglesa, entregue a Elizabete pela filha do ‘Tempo, “ver a Verdade em uma unido visivel com sua sobe- rana... Moralmente, a Verdade escolheu entre 0 bem ~ a montanha florida, o futuro, Elizabete —e 0 mal—amontanha rida, 0 passado, falsas religides ¢ uma falsa rainha, Tal é 0 caminho da salvagao.”"® 15. Yates, The Valots Tapestries, p. 92. 16. Bergeron, English civic pageantry, p. 21. 194 A Java de Hayam Wuruk: esplendor e hierarquia Existem outros meios de relacionar a personalidade de um soberano com a de seu dominio, além daquele que 0 envolve em homilias ilustradas; assim como a imaginacao moral, a imaginagao politica também € varidivel, e nem todos 08 cortejos s40 como os dos puritanos ingleses. Nas culturas indicas da Indonésia classica, 0 mundo era um local um pouco menos improvavel, € o aparato real tinha um carater hierarquico ¢ mistico em vez de religioso € didatico.'” Deu- ses, reis, nobres ¢ plebeus formavam uma corrente continua de status religioso que se estendia desde Siva-Buda — “o soberano dos soberanos do mundo... 0 espiritual dos espi- rituais ... 0 inconcebivel dos inconcebiveis” até o mais hu- milde dos camponeses, que mal podia levantar seus olhos para a luz, ja que a relagio entre os niveis mais altos ¢ os mais baixos era a mesma que entre realidades mais ¢ menos importantes." Se a Inglaterra de Elizabete era um turbilhao de paixdes idealizadas, a Java de Hayam Wuruk era um continuo de orgulho espiritualizado, “Camponeses reveren- ciam os chefes", diz um texto clerical do século XIV, “os chefes reverenciam os senhores, os senhores reverenciam os ministros, os ministros reverenciam o rei, os reis reveren- ciam os sacerdotes, os sacerdotes reverenciam os deuses, os 17. Java foi hindu mais ou menos desde o século IV até o século XY, quando, pelo ‘menos em nome, tomou-se islimica. Bali permanece hindu até nossos dias, Muito do que se segue neste cnsaio é bascado em meu proprio trabalho: veja C. Geertz, Negara: The theatre state in nineteenth-century Bali, Princeton, 1980. Para um estudo mais geral da Java hindu, veja NJ. Krom, HindoeJavaans- che Geschiedenis, segunda edicio [Haia, 1931] 18. 7: Pigeaud, Java in the 14th century: a study in cultural bistory, 5 vols. Haia, 1963. 1:3 (vanes); 3:3 (inglés). Na realidade a corrente continua descendo até chegar aos animais e demdnios. 195 deuses reverenciam os poderes sagrados, ¢ os poderes sa- grados reverenciam o Nada Supremo.”” Mesmo neste cendrio tio pouco populista, 0 cortejo real era uma instituigio de peso, como pode-se deduzir pela leitura do texto politico mais importante de Java, um poema narrativo do século XIV o Negarakertagama, que nao s6 se baseia em um cortejo real, como também é parte dele.” © principio basico da arte indonésia de governar — que a corte deve ser uma cépia fiel do cosmos € 0 reino uma cépia da corte, € o rei, liminarmente suspens deuses ¢ homens, a imagem mediadora de uns para os outros ~ pode ser representada de uma forma quase dia- gramatica. No centro € Apice, 0 rei; a seu redor ¢ a seus pés, © palacio; ao redor do palicio, a capital, “confiavel ¢ submissa”; ao redor da capital, o reino, “indefeso, servil, condescendente, humilde”; ao redor do reino, “preparan- do-se para mostrar obediéncia” o resto do mundo — todos os elementos dispostos segundo os pontos cardeais, uma configuracao de circulos concéntricos que retrata nao s6 a estrutura da sociedade mas também uma mandala poli- tica, a do universo como um todo: entre 19. Pbidl., 1:90 Gavanés); 3:135 (ingk Algumas mudancas na tradugio para tomar o texto mais claro, Mesmo assim, “poderes sageadlos" e “o Nada Supremo” (isto é, Siva-Buda) sto tradugdes pouco adequadas para conceitos religiosos bastante dificeis, um assunto que ndo podemos tratar com profundidade neste contexto, Para uma bierarquia ainda mais diferenciada, veja o texto Nawantaya, ibid, 3:119-28. 20. Ibid. (apesar do titulo, a obra € basicamente um texto, uma tradugdo © um, comentirio do Negarakeriagama), Das 1.330 linhas do poema, no menos que 570 sio dedicadas a descrigdes dos cortejos reais, € a maior parte das linhas restantes sio subordinadas as primeiras, Literalmente, “Negarakertagama” sig- nifica “manual para a ordenagio cOsmica do estado", ¢ este & o seu verdadeiro tema ¢ nao a hist6ria do Majapahit, como freqiientemente se presume, Foi escrito em 1365 por um clérigo budista que residia na corte do rei Hayam Waruk (que reinou de 1350 a 1389), 196 A capital do reino em Majaphit € 0 Sol e a Lua, sem nobres; Os dominios feudais com os bosques que as rodeiam sdo auréolas em volta do sol e da tua; As muitas outras cidades do reino.., sao estrelas e planetas; muitas outras ilhas do arquipélago sao reinados de anel, estados dependentes, atraidos pela Presenca real.2! E essa cstrutura, a profunda geometria do cosmos, que © poema celebra € na qual, parte como rito e parte como politica, ele se encaixa no cortejo real © poema se inicia com a glorificagio do rei. Este 6, simultaneamente, Siva em uma forma material — “O igual daquele que faz 0 dia”, em cujo nascimento vulcdes entra- ram em erupgao ¢ a terra tremeu ~¢ um nobre vitorioso que conquistou toda a escuridao existente no mundo (“Extermi- nados esto os inimigos... Recompensados os bons... Refor- mados os maus”).”* A seguir, descreve-se 0 palacio: ao norte, as reas de recepgao; a leste, os templos religiosos; ao sul, 05 aposentos da familia; a oeste, os aposentos dos emprega- dos; no centro, “O Interior do Interior”, 0 pavilho pessoal do rei. Depois, com o palacio ao centro, descreve-se 0 complexo que 0 cerca: leste, o clérigo xivaita; sul, 0 clérigo budista; oeste, os parentes do rei; norte, a praca publica, 21. Negarakertagama, canto 12, estrofe 6, Uma vez mais reconsteui o inglés de Pigcaud, desta vez com dado, para melhor expressar o que considero ser o sentido do trecho. Sobre 0 conceito de mandala na Indonésia, onde significa a0 mesmo tempo “circulo sagrado”, “regio sacra" © “comunidade Feligiosa’, sendo também um simbolo do universo propriamente dito, veja J Gonda, Sanskrit in Indonesia, Nagpur, 1952, p. 5, 131, 218, 227; Pigeaud, Javer, 4:485-86, Sobre este tipo de imaginario nos paises asidticos tradicionais de um modo geral, veja P Wheatley, The pivot of the four quarters, Chicago, 1971 22. Cantos 1-7. A familia real, como o primeiro circulo a partic do rei, também recebe clogios. “Aquele que faz 0 dia", € obviamente uma metonimia para o sol, que € © proprio Siva-Buda, “A nao entidade suprema" na Indonésia indica 197 Segue-se, com o complexo ao centro, a capital propriamente dita: ao norte, os ministros mais importantes; a leste, o rei jovem; ao sul, os bispos xivaitas ¢ budistas; a oeste, prova- velmente as varias camadas do povo, embora isso nao seja mencionado.” O préximo circulo, com a capital ao centro, contém as noventa € oito regides do reino, que se estende da Malasia ¢ Bornéu ao norte € ao leste até o Timur ¢ a Nova Guiné, no sul e oeste; e, finalmente, 0 circulo mais externo, Sido, Cambodja, Campa e Annam ~ “Outros paises protegi- dos pelo Ilustre Principe.””* Praticamente todo o mundo conhecido (partes da China e da india também s4o mencio- nadas mais tarde) é representado como s¢ estivesse voltado para Java; Java inteira, como se estivesse voltada para Maja- pahit; ¢ Majapahit inteira como se estivesse voltada para o rei Hayam Wuruk ~“O Sol € a Lua brilhando sobre o circulo Na fria realidade, apenas a regio ao leste de Java estava voltada para o centro desta maneira, ¢, em grande parte, com uma atitude que nao poderia ser propriamente descrita como indefesa ou humilde.”° Era para essa rcgiao, onde o 23. Cantos 8-12. Existe bastante controvérsia com respeito aos detalhes deste trecho. (Cf. WE Stutterheim, De Kraton van Majapahit, Haia, 1948: 1. Kern, Het Oud-Javaansche Lofdicht Negarakertagama van Prapanca, Usia, 1919, € nem todos esses detalhes so claros. O desenho foi obviamente simplifieado neste texto (na realidade é um sistema de 16-84 pontos ao redor de um centro, ealém disso é cosmolégico c nao exatamente geogrifico), ‘As camadas do povo” € uma interpolagio minha, com base em conhecimento adquiride mais tarde, em outros exemplos. “O jovem rei” nio indica o delfim, mas sim a linha da segunda ordem no reino, Este sistema de “rei dupto” é comum nos estados da Indonésia indica mas é demasiado complexo para ser explicado aqui, Veja mew livro Negara para uma discussio mais completa do assunto. 24. Cantos 13-16 25. Canto 92 26. Sobre 0 exagero no tamanho de Majapahit, veja, com precaugio, CC, Berg, “De Sadéng oorlog en de mythe van Groot Majapahit”, Indonesie 5 (1951); 385-422. Veja também meu artigo “Polities past, politics present: some notes on the uses ‘of anthropology in understanding the New States”, in C, Geertz, The Inter- pretation of cultures, Nova lorque, 1973, p. 327-41, 198 sentido do reino, por mais fraco que fosse, era pelo menos algo mais que mera presunc’o poética, que os cortejos reais eram enviados: oeste para Pajang, préxima 4 Surakarta de nossos dias, em 1353; norte para Lasem no Mar de Java em 1354; sul para Lodaya € o Oceano Indico, em 1357; leste para Lumajang, quase Bali, em 1359.7” $6 0 tiltimo destes cortejos, entretanto, provavelmente © maior de todos, foi descrito em detalhe ~ mais de quatro- centas linhas Ihe foram dedicadas. O rei deixou a capital no comego da estagao seca, visitou cerca de 210 localidades espalhadas em uma area de entre dez a quinze mil milhas quadradas, ¢ retornou pouco antes que a mongio do oeste trouxesse as chuvas. Eram cerca de quatrocentos carros, com rodas s6lidas, puxados por bois; mais para efeito do que para qualquer outra coisa, havia elefantes, cavalos, burros © até camelos (importados da {ndia); ¢ também bandos de pes: soas a pé, algumas carregando fardos, outras exibindo as insignias reais, outras certamente dangando ¢ cantando - 0 cortejo todo movimentando-se lentamente, a uma milha ou duas por hora, como um engarrafamento arcaico, pelas estradas estreitas e esburacadas em cujas margens alinha- vam-se multidées de camponeses embevecidos. O setor mais importante da procissio, que vinha aparentemente no meio dela, tinha a sua frente o carro do ministro de maior catego- tia, o conhecido Gajah Mada. A este seguiam-se, em ordem hierarquica, as quatro princesas do reino — a irma, a prima, atia ea mae do rei ~com seus respectivos cénjuges. Depois delas, sentado em um palanquim e rodeado por dezenas de esposas, guarda-costas ¢ empregados, vinha o rei “enfeitado com ouro ¢ j6ias, brilhando.” Como cada uma das princesas representava um dos pontos cardeais (assinalados com sim- bolos tradicionais em seu carro € nela prdpria através de seu 27. Canto 17. Outros cortejos menores € com objetivos especificos so também mencionados nos anos 1360. Veja os cantos 61 70, 199 titulo que a associava com o quarto do pais que, em relagao 4 capital, ficava naquela diregao), ¢ o rei representava o centro no qual todas se resumiam, a prépria ordem da marcha para 0 interior do reino representaya a estrutura do cosmos, estrutura que, aliés, a organizacao da corte também refletia.* Para que esta aplicagao da simetria dos céus A confusao da terra estivesse completa, era preciso que o campo, seguindo o mesmo exemplo, ¢ o mesmo desenho, também adotasse essa estrutura. ‘As paradas desta caravana desajeitada — em ermidas na floresta, lagos sagrados, santudrios nas montanhas, acampa- mentos de sacerdotes, templos ancestrais ou estatais, ou nas praias da costa (onde o rei “acenando para o mar”, compu- nha alguns versos para aplacar os deménios maritimos — no tinham outra funcio senio a de reforcar esta imagem de espetaculo ambulante metafisico.”” Aonde quer que Hayam Wuruk fosse, cobriam-no com presentes luxuosos ~ tecidos, especiarias, animais, flores, tambores, dispositivos para fazer fogo, virgens. A excegao das virgens, a maior parte destes objetos ele redistribuia, quanto mais nao fosse, porque seria invidvel transporté-los todos. Organizavam-se ceriménias em todos os lugares, € nestas eram numerosas as oblacées: em territério budista, ofertas budistas, em territério xivaita, ofertas xivaitas, ¢ em muitas dreas, um pouco de ambas. Eremitas, doutores, sacerdotes, abades, feiticeiros, sibios, 28, Cantos 13-18, O sistema direcional se integrava com o simbolismo das cores, jf que as quatro cores primarias ~ vermelho, branco, preto € amarclo ~ eram. dispostas ao redor de um centro matizado. Ox cineo dias da semana, os cinco periodos do dia, ¢ 05 cinco estigios do ciclo vital, bem assim como as plantas, os deuses, € um ntimero de outras formas simbélicas naturais ou sociais, se fundiam nessa mesma estrutura, tornando-a, portanto, extremamente comple xa, uma representacio pictérica da toralidade do cosmos, 29, Cantos 13-38, 55-60, Quatro ou cinco destas paradas so deseritas detalha- damente; mas, certamente o ntimero total de paradas seria de dezaquinze vezes ‘maior que isso. 200 vinham a sua Presenga, buscando contato com energias sagradas; ¢ praticamente em todas as cidades, e as vezes até em acampamentos, dava audiéncias publicas, também cercadas de cerimonial, para autoridades locais, mercado- res e membros mais importantes da populagao em geral. Quando nao Ihe era possivel chegar a certos lugares — tais como Bali, Madura, Balmbangan — os chefes vinham ao seu encontro trazendo presentes, em sinal de deferéncia, ¢ “tentando superar uns aos outros.” Tudo fazia parte de um vasto ritual que buscava ordenar 0 mundo social confron- tando-o com a magnificéncia yinda de planos mais altos, © com um rei que, ao imitar os deuses com tanta perfeigao, chegavaa parecer, ele proprio, um deus, aos olhos de seus subordinados. Em suma, no lugar do moralismo cristio, a estética a. Na Inglaterra do século XVI, 0 centro politico da sociedade era 0 ponto no qual a tensao entre as paixdes que o poder incitava € os ideais a que este poder deveria supostamente servir tinha chegado a seu limite maximo; portanto, © simbolismo dos cortejos era admonitério € convencional: os stiditos advertiam, ¢ a rainha prometia. Na Java do século XIV 0 centro era 0 ponto no qual esta tensao tinha desaparecido no esplendor da simetria c6s- mica: por conseqiiéncia, 0 simbolismo era exemplar € mimético: o rei exibia, € os stiditos copiavam. O cortejo em Majapahit, da mesma forma que 0 cortejo elizabetano, propagava os temas dominantes no pensamento politico — a corte reflete 0 mundo que o mundo deve imitar; a sociedade se desenvolve 4 medida que assimila este fato; ¢ € fungao do rei, que empunha o espelho, garantir que essa assimilacao se processe. Neste caso, € a analogia, nao aalegoria, que produz a magia: Java inteira sera como a capital dos dominios do Rei; As milhares de cabanas de camponeses serio como as proprie- dades cortesas que cercam 0 palicio; 201 As outras ilhas serao como as terras cultivadas, felizes ¢ tranqiiilas; s € Montanhas serao como os parques, ¢ Ele ird a to- das, com paz em seu espirito°” As florest O Marrocos de Hasan: movimento e energia Nao € necessario que 0 poder seja disfarcado de virtude ou cercado de cosmologia para ser visto como um poder a servico de interesses especificos: sua espiritualidade pode ser simbolizada de uma forma direta. No Marrocos tradi- cional, “o Marrocos que existiu” como Walter Harris 0 cha- ma, o poder pessoal, a habilidade de fazer com que as coisas acontegam como queremos que acontegam ~ prevalecer — era por si sd o sinal mais indisputavel de graca.*' Em um mundo de vontades dominando vontades, ¢ a de Ali domi- nando todas as outras, o poder nfo precisava ser repre- sentado como outra coisa além de si mesmo para que se inundasse de significados transcendentes, Como Deus, os reis desejavam € exigiam, julgavam e decretavam, castigavam € recompensavam, C'est son métier; Nao cra preciso ter justificativas para reinar, E claro que era preciso ter capacidade, ¢ isso no era tio facil de encontrar em um campo imenso ¢ mutante de, literalmente, centenas de aventureiros politicos, todos inte- ressados em construir uma maior ou menor configuracio de 30. Canto 17, esteofe 3. Uma ver mais alterei a traducio, especificamente, traduzt ‘negara como “capital” em vex de “cidade”. Sobre os virios sentidos dessa palavra, veja meu Negea. 31. WB, Harris, Mforoeco that was, Boston, 1921, A discussio que se segue limitase a0 perfodo da dinastia Alawita, isto é, do século XVII ao século XX (ainda esta no poder), € a maior parte do contetido refere-se a0 século XVIII ¢ XIX. Uma vez mais, dependi fortemente de minha propria pesquisa (ve} observed: religious development in Morocco and Indonesia, New Haven, 1968; ©, Geertz, H. Geertz, and L. Rosen, Meaning and order in morocean society, ‘Cambridge, England and New York, 1979, 202 apoio pessoal a seu redor. Em Marrocos nao havia nem a hierarquia do hinduismo medieval nem o salvacionismo do cristianismo da Reforma para canonizar 0 soberano; havia somente um sentido agucado do poder de Deus € a crenga de que, no mundo, este poder se manifestava através dos empreendimentos de homens poderosos, en- tre os quais os mais notaveis eram os reis. A vida politica € uma batalha de personalidades em qualquer parte do mundo, € mesmo nos estados onde o poder é mais cen- tralizado figuras secundarias resistem As imposicgdes do centro; mas no Marrocos nao se considerava esta resistén- cia como algo que estivesse em conflito com a ordem das coisas, um elemento desintegrador da forma ou subversi- vo da virtude, mas sim como a expressao mais pura daque- la ordem, A sociedade era agonistica ~ um torneio de vontades; portanto, a prépria monarquia ¢ 0 simbolismo que a exaltava também o eram. Neste contexto, nao era to facil distinguir entre cortejos reais ¢ ataques de sur- presa. Do ponto de vista politico, o Marrocos dos séculos XVIII ¢ XIX era uma monarquia de guerreiros, cujo centro se situava na planicie AtMintica, com um ntimero de “tribos” pelo menos esporadicamente submissas, assentadas nas re- gides férteis mais préximas, ¢ um mimero menor delas espalhadas pelas montanhas, estepes € oasis que cercam o pais.” Do ponto de vista religioso, compreendia uma dinas- tia “xarifiana” , ou seja, que se diz descendente de Maomé, um ntimero de especialistas no Corio, juristas, professores, escribas (ulema) ¢ os famosos marabus, um grupo de ho- mens que, mortos ou vivos, cram considerados sagrados, € 32. O melhor trabalho sobre 0 estado marroquino tradicional é o de E, Aubin, Morocco of Today, Londres, 1906, O termo “tribo” é de difieil aplicagio em. Marrocos, onde os grupos sociais nao sio estiveis e definidos. Veja J. Berque, ‘Quiest-ce qu'une tribu nord-africaine?", in Eventail de Lhistoire vivante: bommage @ Lucien Febvre, Paris, 1953. 203 com poderes milagrosos.** Em teoria, isto é, na teoria isla mica, os reinos religioso ¢ politico eram um 86, € 0 rei, 0 califa, chefe de ambos; 0 estado, portanto, era uma teoeracia. Esta teoria, no entanto, nem para o proprio rei poderia ser mais que um ideal perdido, em um contexto onde aventu- reiros carismaticos surgiam de todos os lados e a qualquer momento. Se € que a sociedade marroquina tem algum principio geral que a orienta, este deve ser um que reza que aS pessoas s6 possuem verdadciramente aquilo que tém a capacidade de defender, seja essa propriedade terra, agua, mulheres, s6cios comerciais, ou autoridade pessoal: qual- quer que fosse a magia do rei, ele era forgado a protegé-la arduamente. A visio dessa magia era relacionada com outro famoso conceito norte-africano: 0 baraka.*’ O termo ja foi compa- rado a intimeros outros conceitos na tentativa de explica-lo — mani, carisma, “cletricidade espiritual”; trata-se de algo assim como um dom de poder sobrenatural que pode ser utilizado poraqueles que o recebem a seu bel-prazer, de uma forma natural e pragmatica, com propésitos mundanos ¢ de interesse proprio. Mas o que melhor define baraka, ¢ 0 diferencia de outros conceitos semelhantes, é que € radical- mente individualista, algo que um individuo simplesmente tem, como tem forca, coragem, energia ou agressividade, ¢, como o sao estes atributos, é também distribuido arbitrari: mente. Na verdade, ¢ em um certo sentido, baraka poderia ser considerado um resumo destes atributos, as virtudes que, ao serem ativadas, dao a alguns seres humanos poder 33. Veja A. Bel, La religion musuimane en Berbérie, Patis, 1938, vol. 1; E. Gellnet, Saints of the Atlas, Chicago, 1969; C. Geertz, Islam observed. Muitos dos ulemds © marabus eram também xarifes. Sobre os xarifes marroquinos de um modo geral, veja F. Lévi-Provencal, Les historiens des Chorfa, Patis, 1922. 34. Sobre o conceito de baraka veja R, Westermarck, Rill and belief in Morocco, 2 vols, Londres, 1926; C. Geertz, Islam observed. 204 de prevalecer sobre outros. Para triunfar, fosse na corte ou em um acampamento na montanha, era necessario demonstrar que se tinhao baraka, que Deus nos tinha dado essa capacidade de dominar, e esconder esse dom poderia literalmente signifi- car a morte. Nao era uma condi¢ao, como a caridade, ou um traco do carater, como o orgulho, que transparecem por si mesmos, € sim um movimento, como a vontade, que existe através do impacto que provoca. Como tudo mais que o rei fazia, os cortejos reais tinham como fungio provocar esse impacto, principalmente para atingir aos que julgassem que seu proprio baraka era comparivel ao do rei. Em Marrocos, os cortejos aconteciam quase conti- nuamente, nao de forma esporddica ou periddica, deter- minada em qualquer programa preestabelecido. “O trono do rei é sua sela”, rezava um dito popular, “e o céu seu palio.” E outro: ‘As tendas reais nunca sao armazenadas.” Diz-se de Mulay Ismail, o famoso consolidador da dinastia, 0 homem que, no fim do século XVII e comego do século XVIII, tornou © seu baraka realidade, passando a maior parte do seu reinado “sob ona” (na primeira parte de seu reinado, obser- va um historiégeafo da época, 0 rei nao passou um s6 ano inteiro em seu pakicio); e mesmo Mulay Hasan (d. 1894), 0 iltimo dos reis do antigo regime no Marrocos, normalmente passava seis meses do ano viajando, mostrando soberania aos céticos.*” Os reis nem sequer mantinham uma capital Yinica: mudavam a corte incessantemente entre todas as chamadas cidades imperiais — Fez, Marrakech, Meknes € Rabat — e nao se sentiam totalmente em casa em nenhuma delas. Viajar era a regra, no a excegio; ¢ embora o rei nao pudesse, como Deus, estar em todas as partes ao mesmo tempo, podia pelo menos tentar dar esta impressao: “Nin- 35. Sobre a mobilidade surpreendente de Mulay Ismail, veja OV Houdas, Le Maroc de 1631-1812 par Ezziani, Amsterdam, 1969, p. 24-55; a referéncia do texto na pagina 46. Sobre Mulay Hasan, veja S. Bonsal, Morocco as it is, Nova lorque € Londres, 1893, p. 475; of Harris, Morocco that was, p. 1s. 205 guém podia estar seguro de que 0 sultéo nao chegaria a frente de suas tropas pela manha. Nestas ocasides, as pessoas mais inflexiveis se dispunham a negociar com [seus] repre- sentantes ¢ accitar condigdes que beneficiassem o sobera- no.” Como seus adversarios, 0 centro perambulava: “Cruze terras © mares € vocé destruira seus inimigos”, diz outro provérbio marroquino, “fique sentado € eles 0 destruirao.” Referiam-se a essa corte ambulante como mehalla, cujo significado literal era “estacao intermediaria”, “acampamen- to”, “escala”, ou como harka, que literalmente significava “movimento”, “agitagio”, “agio”, dependendo do aspecto — governamental ou militar —a que se queria dar maior énfase. Normalmente o rei permanecia acampado em uma area por um perfodo que poderia durar varios dias ou varios meses, € depois mudava-se, pouco a pouco, para outra, onde per- maneceria por periodos semelhantes, recebendo os chefes locais ¢ outros notaveis, organizando festas, enviando expe- dig6es punitivas quando necessario, ¢ de alguma forma, marcando sua presenga. O que, aliés, nao deveria ser muito dificil, pois um acampamento real era um espetaculo impres- sionante, um mar imenso de tendas, soldados, escravos, animais, prisioneiros, armas, € seguidores. Na estimativa de Harris, o acampamento de Mulay Hasan em Tafilalt, em 1893, teria cerca de 40.000 pessoas (“uma estranha mistura em que a confusao total ¢ a mais perfeita ordem se sucediam uma a 36.5. Schaar, Conflict and Change in Nineteenth Century Morocco (dissertagio de Doutorado, Universidade de Princeton, 1964), p. 72, A mobilidade constante também marcava, ¢ de forma semelhante, a natureza da corte: “O proprio tipo de vida que a maioria dos membros {da corte] sdo forcados a levar os desarraiga, e os impede de ter contato cont sua tribo ou sua aldeta nativa, vinculando-os 4 instituicao da qual sao dependentes, @ exclusdo dle qualquer outros lacos. A maior parte [da corte] se concentra ao redor do sultdo, e se torna némade como ele. Passam a vida sob lonas, ou entdo, em epécas variadas, em uma das cidades imperiais—mudancas constantes, na verdade, enenbum taco ent lugaralgum. Seus horizontesse estreitamn, as coisas externas perdem importdncia, e os membros da [corte] ndo tém olbos para outra coisa ‘sendo este mecanismo poderoso, mesire de suas vidas e de sew destino” (Aubin, Morocco of today, p. 183). 206 outra... ripida € constantemente”), € de cingtienta a sessenta tendas, s6 no complexo real. E mesmo ja no final de 1898, quando toda essa movimentacao ia chegando ao fim, Weis- gerber fala de “milhares de homens € de animais” no acam- pamento de Mulay Abdul Aziz em Chaouia, que ele também descreve, mais realisticamente, como um imenso lago de Jama contaminada.” Amobilidade do rei era, portanto, um fator essencial de seu poder; unificava-se o reino — na medida, bastante parcial, em que este pudesse ser unificado ou mesmo chamado de reino — através de uma busca constante de contatos, sobre- tudo contatos competitivos, com, literalmente, centenas de centros de poder menores que nele se encontravam. O conflito com os poderosos locais nao era necessariamente € nem freqitentemente violento (Schaar cita a maxima popular segundo a qual o rei usava noventa € nove estratagemas, dos quais 0 uso de armas de fogo era s6 0 centésimo) mas era continuo — rixas, intrigas € negociagdes, umas atras das outras—principalmente para um rei ambicioso que desejasse criar um estado.** Era uma ocupa: (© exaustiva, a que s6 os 37. WB. Harris, Taflet, Londres, 1895, p. 240-43; F, Weisgerber, Au Seuil du Maroc modern, Rabat, 1947, p. 46-60 (onde também pode-se encontrar um mapa do campo). Em movimento, nao era menos impressionante; para uma descrigio vivida ¢ completa, com encantadores de serpentes, acrobatas, leprosos ¢ ho- mens abrindo suas cabegas com machadinhas, veja Harris, Morocco that was, p. 54-60. Os harkas cram empreendimentos multitribais, cuja parte mais importante era constituida pelas chamadas tribos militares~jaysb —que serviam 4 corte como soldados em troca de terra e outros privilégios. Nio podemos resistir a mais um provérbio aqui: f--barka, baraka: “Ma bengio na mobilidade.” 38. Schaar, Conflict and change in Moroceo, p. 73. A violencia consistia principal ‘mente em incendiar os acampamentos € cortar as cabecas de inimigos particur larmente recalcitrantes (as quais, salgadas pelos judeus, eram exibidas a entrada da tenda ou do palicio do rei), Ameditacio, que era mais comum, era conduirida pelos funcionarios reais ou, freqiientemente, por varios tipos de figuras religio- ‘sas especialmente treinadas para esta tarefa, Schaar (ibid., p. 75) observa que ‘05 reis, ou pelo menos os que fossem sabios, procuravam nao ser demasiado severos: “O ideal era atacar 0 inimigo de forma agil, recother os pagamentos de tributos, estabelecer uma administragio rigorosa em seu meio, ¢ seguir adiante na direcio do préximo alvo. 207 incansaveis podiam se dedicar, O que a castidade significava para Blizabete, ¢ a magnificéncia para Hayam Wuruk, a energia era para Mulay Ismail ou Mulay Hasan: enquanto estivesse em movimento, castigando um adversério aqui, obtendo um aliado acolé, o rei conseguia dar mais credibili- dade a assercao de que seu poder tinha-Ihe sido concedido por Deus. Porém, s6 enquanto durasse esse movimento. O grito tradicional com que as multidées saudavam o rei que passava — Allah ybarak famer Sidi - “Deus lhe dé baraka para sempre, meu Senhor”, era mais ambiguo do que parece: “para sempre” terminava quando o controle acabasse. Nao ha exemplo mais comovedor do quanto a consciéncia dos governantes marroquinos era dominada por esta realida- de, nem testemunho mais cruel de sua veracidade, do que o terrivel Ultimo cortejo de Mulay Hasan. Frustrado em suas tentativas de que reformas administrativas, militares e econd- micas produzissem resultados, ameagado de todos os lados pelos poderes curopeus que se introduziam no reino, des- gastado pelo esforgo de tentar manter 0 pais unido durante vyinte anos 86 com o poder de sua personalidade, Mulay Hasan decidiu comandar, em 1893, uma expedigio gigantesca ao templo do fundador de sua dinastia, em Tafilalt, um odsis 4 margem do deserto a umas trezentas milhas ao sul de Fez. Uma viagem longa, ardua, perigosa e cara, que foi realizada apesar das opinides quase que unanimemente contrarias, esta expe- dicao foi provavelmente a maior maballa jamais organizada no Marrocos — um esforco dramatico, desesperado, €, no final, desastroso, de auto-renovar-se. A expedig4o, composta por trinta mil homens convoca- dos entre os membros das tribos leais ao rei da planicie Adlantica, montados principalmente em mulas, saiu de Fez em abril, atravessou o Atlas médio € alto no verao € no comego do outono, € chegou a Tafilalt em novembro.” 39. Material sobre a meballa a Tafilalt pode ser encontrado em Harris, Tafilet, p 2138; R. Lebel, Les Voyageurs francais du Maroc, Paris, 1936, p. 215-20; 208

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