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sein die, eat GERD A. BORNHEIM INTRODUGAO AO FILOSOFAR (O PENSAMENTO FILOSOFICO EM BASES EXISTENCIAIS. 9° Edigo copy ©1969 Gerd A. Roaen (ope hard Minds evi: vo Maris ‘sag clewiler ee Mend Eta a Fotos Gaps iets exis ee, mg pores, ‘ax Deming Sep os Ajo 277 ‘ar os136170- Fac e367098 ho Pda. SUMARIO “Tor on cos msernon Nenu pa dec pode - {eats reprdunds em qulquer mes ou rma so ecco 1- PosigSo do problema, 13, | i Il-Andlise da admiragio ingénua, 37 —— : IL-0 comportamento dogmatico, 55 IV~A ruptura da dogmaticidade ea experiencia negativa, 69 ‘ \V~Extensio da experiencia negativa, 81 cP hat Cyan Chr Bri die SP VI-Significado e superagio da experiéncia negativa, 97 name VIl-A conversion, 11 cc "Cath tac“ Soa eae Conclusio, 132 a Apéndice Fost eSisems, 157 ee Bibliografia, 153 ene Indie nae, 19 = oie para caigsatemsins t {ret tc 5 tan wnced Rn 43 H A meus pais e minhas irmas ADVERTENCIA Este ensaio foi escrito no inicio de 1961, e recebeu por titulo Motioacio Bésia ¢ Atitude Originante do Filoso- far. Destinado a servir de tese para concurso a livre- docéncia, o seu texto sofreu pequenas modificagées apés a realizagio das provas. O autor se propde o estudo do ato de filosofar con- siderado de um ponto de vista existencial, ou seja, 08 ‘caminhos que levam a conseiéncia mundana a assumir 0 labor filosésico, A vida do ente repousa no destino do Ser. ‘Mas para 0 homem permanece a questo de saber se ele encontra a conformidade prépria de sua esséncia que corresponde a esse destino. Marry Hebeccen We shall not cease from exploration And the end of all our exploring Will be to arrive where we started ‘And know the place forthe first time. TS. Buc 1 POSIGAO DO PROBLEMA. (© comportamento originante do filosofar a possibi- lidade de eslarecer a problematica que tal comportamen- to.coloca constituem o objeto do presénte estudo. Baseado na conviegio de que nao se trata de um problema que possa ser descartado como simplesmente secundério ou de menor importincia, 0 autor parte assim, do pressu- posto de que a coloragio fundamental de uma filosofiajé se determina, em certo sentido, a partir mesmo da atitude iniial assumida por todo fildsofo. Trata-se, portanto, da problematica implicada no ponto de partda do filsofar Referimo-nos a0 filosofar, e queremos, desde logo, estabelecer uma distingio preliminar. A atitude inicial do fildsofo determina o carster titimo de sua filesofia, Mas esta determinasio, profundamente enraizada no ato de flosofar, nio deve ser confundida com o proble- ma do primeiro principio filosico, com a primeira afir- ‘magio, a partir da qual um determinado filésofo poderd alicergar e desdobrar o todo de seu pensamento, obedi- ente & incoercivel tendéncia para a sistematizagio, que é inerente a natureza mesma da filosofia. Este ponto de partida, primeiro principio, seja ele de natureza légica, ‘ontolégica, gnosioldgica ou de qualquer outro teor, 13 sobressai de uma problemitica antecedente e condicio- nante, que vem a confundirse com certas exigencias existenciais de todo filosofar. ‘Tomemos um exemplo. O fato de um Descartes ha- ver estabelecido 0 cogito como ponto de partida, assergio primeira de toda a sua metafisca, dé a este primazia absoluta dentro de uma certa ordem deduti Mas o estabelecimento desse primeiro principio meta- fisico radica e corresponde a todo um itineririo prévio. No caso particular de Descartes, tal itinerério é, a0 ‘menos parcialmente, conhecido, pois o priprio fil6sofo ‘os transmitiu, em diversas de suas obras, as etapas que © levaram a filosofar. Sabemos, por exemplo, de seu descontentamento em face da situagio da ciéncia de seu tempo.' Homem dade a viagens, fala-nos da necessidade de percorrer “o grande livro do mundo”, a fim de conhe- cer 05 costumes de seus contemporaneos, bem como os de povos estrangeiros’, ¢ termina a primeira parte do “isi de me nin in nad Mi marred aceaire ea eS neeieeirennee ees Sienna ews ee ed SR. aloe eee ees Tela ee ec ss Etta gcorees Sometneeeas ae PRG a See pe ere SERRE ACRE neers Ronis be Wade tac cee saat Eel aoe meee recta SA aoe aS 27 tie eminent a ver ce nr tons fect femss de dive ores eco seca eres eipernentre ros ncnton gus ene Opuntia, em ‘etleniosobre a conas que se spreentavay, que dla sigan poten Ts ptare pc occa wea Yo ia fase poe “4 Discurso do Método declarando: “Tomei um dia a reso- lugéo de estudar também em mim mesmo, e de empre- gar todas as forgas de meu espirito na escolha dos cami- hos que deveria seguir”.’ Pode-se mesmo afirmar que © itinerério anterior ao cogito, seguido pelo Pai da Filosofia moderna, coincide com 0 predominio de um profundo sentimento de insatisfacdo,insatisfacio que se vai traduzir, de maneira mais especifica, nas diversas ‘tapas que constituem 0 processo da diivida metédica. Assim, $e 0 cogito 6 0 ponto de partida metafisico da filosofia cartesiana, o filésofo Descartes faz arrancar as suas preocupagSes de uma série de circunstancias que ‘vio condicionar todo o seu pensamento. (© problema que o autor deste trabalho se prope analisar nas paginas que seguem nao é 0 do cngito ou de qualquer outro principio semelhante ou de andloga funglo. Nao é tampouco o da legitimidade de um tal pponto de partida. Mas o problema a que se vai atender aqui é 0 da atitude inicial do filosofar, ou seja: aquele especifico comportamento que leva o homem a ocupar- se de filosofia, a sentir-se até mesmo um condenado a essa tarefa, segundo o sentimento de Sécrates.* dem p12 CE PLATAO. Apoide Smt. 294 3d. — Em cat a Nthamne, sepa de Hegel stl be tard wep para condeness Fees g om Bait pe tana Cio Het gar Be rommanns Weg 184 p. 2731 15 (Ora, desde esta vivéncia de insatisfacio ~ para nos atermos ao exemplo de Descartes ~ até “a resolugSo de estudar’, ha um caminho mais longo do que & primeira Vista possa parecer, hé mesmo todo um itineririo coinc- dente com a biografia do fildsofo. Aliés, aqui topamos com a nossa primeira dificuldade, pois quem_diz biografia diz algo de estritamente individual ede incon- fandivel em sua originalidade: exstem tantas biografias quantos homens no mundo. E se asim é, pode parecer, em um primeiro momento ao menos, que tudo o que resta a fazer € a histéria da vida dos filésofos iustres, transferindo o problema para a extensio da Hist6ria, sempre inacabada, da Filosofia, e fragmentando-o em ‘um ntimero indefinido de capitulos exemplares. Contudo, quem se resolve ou se sente condenado @ fazer Filosofia assume, pelo simples fato dessa resolucio, uma cert responsabilidade, um compromisso que, como todo compromisso, impée determinadas condigies, as aquais coincidem e ao mesmo tempo transcendem 0 que possa haver de abitririoeirredutivel em uma existéncia individual’ O caminho do fil6sofo € um inelutével com- promisso com a natureza da filosfia, 0 que vale dizer: com o priprio sentido do real e de sua verdade. A auten- ticidade ndo s6 de uma flosofia, mas também a de uma Vida filoséfica, dependem de sua fidelidade a0 real (O estudo da conscinciafiloséfica, desde a sua etapa ingénua e pré-fils6fica até o despertar para o problema do sentido da realidade, acompanhando as etapas bisi- ‘as e necessérias de seu desenvolvimento, é 0 que se propée, mais especficamente, 0 autor destas paginas. 5 Podemas dle com MONTAIGNE, que “ada home tz em ta forma mad condi human (Eau Ps, isbotoqe des Pade 13sh-p 90 16 el: Evidentemente, histria da filosofiaoferece um rico ¢ variado material para este estudo, que nio deve nem pode ser rejitado. Se quisermos saber quais as caraters- ticas do comportamento filosdficoe da atitude inical do filosofat, nada mais correto, concreto e evidente do que perguntar aos préprios fiésofos, aqueles que construiram © monumento da filosofia. Este inevitavelotimismo ini Gil, porém,néo tag em resullar frustrado, a decepgio invade o pesquisador, logo ao inicio do trabalho. De fato, poucos flésofos ocuparamse do tema ou dleixaram transparecer ao menos aspects de sua bografia spiritual. O que normalmente se observa & que a obra filosofica apresenta-se jf pronta, montada nas suas con clusbes, deando completamente de lado, num abandono imponderével para a pesquisa, aquilo que se poderia chamara pré-hstria de um determinado sistema filos6f- co. Encontra-se um desenvolvimento temstico, mas, do Ponto de vista do comportamento pessoal do filsofo, nfo se percebe faciimente o que o levou a um tal desdobra- mento de idéias. Outras vezes, o problema éabordado em. tumas poucas linhas, quase por acaso, eo tema, longe de ser realmente ventilado 6 proposo, ji de antemo, como resolvido,levando 0 leitor a uma série de conjeturas. Ou ‘ainda, vemvnos em socom uma pagina de importancia secuncria, um ensaio de juventude ou alguns trechos de correspondéncia: apenas breves indicacbes, que per ritem vislumbrar, aqui ou ali, um aspecto do problema. "Neste desamparo, a compensacio pode vir de alguns poucos pensadores, de tipo exstencial, cua obra, muita Yezes, esume-se em uma espécie de dirio intimo. For ‘outro lado, a atmosfera geral de uma determinada flosofia pode facltar 0 acesso & atitude do respectivo filésofo Giant da raidade. Ascim, a leitura de um Schopenhauer termina por revelar-nos uma postura em face do real pro- v7 fundamente diversa da que encontrames em Nietzsche, por exemplo. Mas, tanto estes fldofosexistencias como Equeles em que podemos disceriatravés das construies flosficas uma attude bsica, ab inves de aclarar 0 nso problema apenas como que nos advertem da importing fundamental do mesmo, acenando is dificuldades que ele oferece. Em suma, 20 abo de algumas persrutages 00 longo da Fisteria da Floeofao primero mais iminente perigo que surge ode dissolver a problematica da attude flosoica ‘nical em alguma modalidade de relativism, afoganco a questio nas brumas da hist ‘Uma falsificagio do problema consistria em dis- solvélo na diversidade de Weltanschauungen, quer dizer, ‘em compreender a filosofia como o espelho que dé ‘unidade cultural a uma determinada época. E isto em nome do bem conhecido argumento que diz que a filosofia das concepgbes do mundo, fazendo sogobrar a problemitica filosdfica dentro de certos limites do hori- zonte hist6rico,s6 pode fazé-1o em nome de uma filosofia, esta, por sua vez, coloca, em pé de igualdade com qual- {quer outra, 0 problema de sua validez. E, dentro da pers- pectiva que estamos examinando, este historicismo tam- ‘bem nao poderia fugir, como qualquer outra modalidade de filosofia, ao problema da atitude inicial do filosofar. Vale dizer que a legitimidade da flosofia nto pode obedecer a uma pesquisa reduzida ao estritamente hist6rico, pois se se trata de legitimidade, o plano mera- mente historico, a questo fat, revela-se por definigio insuficientee deve ser transcendido.(Ou be a perspecti- va historicista, em qualquer de suas miodalidades, é cor- rea, e neste caso 0 nosso problema a rigor néo existe, pois 18 se confundiria simplesmente com uma espécie de cultu- rologia ou tipologa,exigindo da flosfia a abdicacio de seus foros de cigncia: ela no passari, portanto, de uma cespécie de morfologia flosdfico-cutural, que jamais seria total e completa incidindo naquela fragmentagio a que nos referimos acima; ou ento, contrariamente, devemos admitr o erro em que incide o historcismo, impondo-se a tarefa de julgé-lo ~transcendendo-o consetientemente assim como se juga qualquer outraflosofia Portanto, se quisermos manter de pé o nosso proble sma, somos obrigados a dar razio a Husser, quando, em uma de suas obras, distingue filosofia e Wellanschung “Ahistria, a ciéncia empirica do espinito em geral, &inca- paz de decidir com seus proprios mics, em Um ou outro sentido, se se pode distinguir a religito, como forma part- cular de cultura, da religiso como idéia, isto é, como reli- jo vlida; do direto valido;efinalmente se € necessiio dlistinguir entre afilosofa no sentido histérico e a flosofia vilida; se hd ou no entre uns e outros a relaio da idea no sentido plattinico da palavra, coma forma velada de ua aparigho": Embora ni possamos acitar inegralmente 0 cextremo rigorismo desta distnclo, tipica do ‘centifcis- {5 Wjse foo ot de HUSSERL sre o pabems La phinpie cece amae Quininc F p iealoeo {Miwa dest obec dodo era tin ne eds pt ‘Sepeal dum cnc va cm oP m ‘Stans ners nus manos cogado sar nas do qe gam gat Fema Sc arenas an ae Fra como nope ur povars shai sudo gil hago lo howe folate guar oa pote provers prota ons Se 19 mo” do Pai da Fenomenologia, cabe reconhecer que 0 ‘proprio Hlusserl nlo deixa de acentuar 0 imenso valor da historia para o filésofo’” De fato, para 0 problema em discussio, o mérito fun- damental do historicismo, além da enorme riqueza de ‘material que possa oferecer a sua modalidade de pesquisa, consiste, malgrado as suas limitagoes, em ter recolocado 0 problema da natureza da filosofia, bem como o da atitude Inicial do filosofar, que decorre daquele. Pois se tocamos aqui no problema do historiismo, ndo € para mostrar a incompatibilidade de uma posiglo imanentista em face da natureza propria da filosofia- que foge ao tema proposto = porém para destacar ainda mais a importincia da moti- vacio na atitude inical do filosofar. B aqui temos um pro- bblema que, se mergulha profundamente em condigies sécioculturais, se determina sobretudo a partir do telos que Ihe é proprio: a busca da verdade. ‘Nao 6, a maneira de Husserl, 0 problema da validez da filosofia que nos vai interessar. Se ecusamos legitimi- dade a tese historicista, € porque nos sentimos mais Iibertos para acentuar uma caracteristica do problema sobre a qual deveremos insistir ao longo deste trabalho: referimo-nos a densidade existencial que acompanhs necessariamenteo filosofar; e, como € dbvio, a dimensio existencial do homem no pode ser dissociada de sua profunda e fundamental historicidade. Precisamente em relacio a radical historicidade do ser humano, 0 histori- cismo desfalece e se revela insuficiente* 7 "Gowan mesmo dents exressimte bre oats de cunconber planer ines aor ds ata noseni aarp ftv pra oom pl. ‘sua pespectia hte, o problema vem onan nero gue caps be Heeger Up tah» esi EGDWG LANDGRERE n Psp er Coe Bonn, Ateneo "ag 1982, plot ess 20 Mas abordemes o problema sob um outro aspect: © 4o surtohist6rico do pensamento filoséfico. A deficéncia fundamental deste tipo de andlise € a sua objetividade alienadora. N3o se respitanela a ditingSo entre 0 com- to filossfico € © comportamento do historiador 4a filosofia, ou sea, daquilo que Heidegger chama de Prilosphiewissenscht? Sem divida, a andlise histrica & Imprescindivel;€ ela que nos permite aceder a0 cond- cionamento possbilitador de certa etapa do desenvolv- ‘mento da Glosoia. Contudo, embora reconhecames necessidade de tal tipo de andlse importa salientar aqui a sua radical inouficénca.Ofato forgoso de haver a flosofia surgido em um determinado momento da cultura ociden- tal no ésuficente para consderara explicagio dese fato como um problema coincidente com o da aitude inicial do Flosofar. Na verdade, 0 problema colocado dentro da tmoldura da origem histrica da filosofia ~ mesmo se deixarmos de lado o carter de pariculariade inerete a tal tipo de elucidacto ~ contribui muitos menos do que & primeira vista parece para a tematic do flosofa. Por mais que se busquem causas histricas para explicar a génese do pensamento floséfico, por mais ricas que sejam as conclusdes alcangadas neste dominio, sempre sobraré um res{duo iredutivel e por assim dizer refratrio&explicagio causal: sempre cairemos na neces- sidade de aludir a um “milagre grego”. Diante da possibilidade desea investigagio histér- a, dois parecer ser os caminhos bisicos que podem ser seguidos. cot nae ep Taner M Ninos og 15, p. paid sma on conte arucus te ti ee Petia Gaia, 180 RD a © problema consiste em buscar as causas histricas da filosofig.e da cultura grega, e 0 primeiro caminho implica @nyfazer um inventério das influéncias extragre- gas ~ egipeas, babildnicas, fenicias, persas, etc. - que tenham contribuido para a formagao do mundo grego. Mas na medida em que esse tipo de explicagbes for coroado de sucesso, 0 fendmeno mesmo que se quer explicaresvai-s, pois dissolve-se a originalidade da cul- tura grega, no sentido de que se reduz grego a ele- rmentos prégregos. Impée-se, enti, 0 reconhecimento de que a especificidade da cultura grega permanece {nexplicada, e assim, por mais rcas que sejam as andli- ses, subsiste fato de que esta cultura é diferente das otras culturas da época. © outro caminho, que permanece aberto, é oda ten- tativa de uma explicagso interna, desde dentro da propria Gréca, do original grego, para chegar, assim, & brigem da filosofa antiga. As andlises aqui se envique- ‘eem e podem ser conduzidas pelos mais diversos pon- tos de vista: filol6gico, literario, religiso, artstico, ‘econémico, politico, etc. Mas a riqueza dessas andlses nfo consegue, aqui também, elidir aquele residuo que permanece sempre inexplicado. Realmente, a céncia do individual, do hist6rco, néo tem fundo, dai por que uuma andlise da cultura grega permanecera sempre insatisfatoria. Nao ha ciéncia, nao ha intuigdo, ndo ha amor, que possam fazer um individuo compreender de ‘maneira absoluta um outro individuo, seja pessoa ou fato cultural, histrico. A assergho de Herdcito € rigo- rosamente valida: “Mesmo percorrendo todos os cami- ‘hos, jamais encontrarésos limites da alma, tio profun- do 60 seu logos". 10CE DIES, rg 5. 2 Se abrimos esse paréntese sobre a. perspectiva hist6rica na consideragao' da origem do pensamento filos6fico, ndo foi, evidentemente, para roubar a virtude propria desse tipo de andlise, mas para mostrar a sua radical insuficiéneia na abordagem do problema que nos interessa. A nosso ver, o que a hist6ria ndo pode fornecer podé-lo-é uma andlise de ordem antropoligico-existen- Gal, radicada, portanto, no comportamento daquele ser que faz e é responsivel pela flosofia. Para isto, devemos agar o prego proprio de todo conhecimento cientifico, ‘sto 6, devemos ficar no plano do geral. Mas € precisa- ‘mente a possibilidade de permanecer nesse plano do geral {que permite ptr a descoberto a extensio universal da ati- tude originante do filosofar, e deste modo vinculé-la a todos os que penetram no Ambito filosdfico, sejam gregos ou nio, ressalvadas, evidentemente, as peculiaridades de cada individuo, e respeitadas as circunstancias histricas. Afirmamos acima que, se quisermos saber da ati- tude inicial do comportamento filos6fico, o caminho que se impie de imediato ¢ consultar os filésofos. Real- mente, se desejarmos perceber, de maneira mais concre- ta, acomplexidade do problema, lancemos mio, por um instante, de certos exemplos que nos oferece a Historia da Filosofia. Olhando sobre o passado da filosofia, deparamos ‘com certas atitudes bésicas, predominando diversa- mente, umas ou outras, em cada fil6sofo. Karl Jaspers ddestaca trés destas atitudes", que talvez ndo sejam as 1H Inaction pb. Td Jeanna Hoch Fars, Plo. 952 23 Xinicas possivels, mas que sio encontriveis com certa freqiéncia, resguardadas diferenciagies por vezes fun- damentais: a) A primeira atitude nos vem da Grécia cléssica. Platio e Arist6teles pretendiam ver na admiragio o inn pulso inicial de todo filosofar. No comportamento admi- rativo 0 homem toma consciéncia de sua propria igno- ancia; tal consciéncia leva-o a interrogar 0 que igno- 1a, até atingir a supressio da ignorancia, isto 6, 0 co- nhecimento. ) A segunda atitude Karl Jaspers a encontra na divi- 1a, podendo-se apontar Descartes como sendo 0 seu re- presentante classico. Neste comportamento, a verdade & atingida através da supressio provisbria de todo 0 co- nhecimento ou de certas modalidades de conhecimento, {que passam a ser consideradas como meramente opina- tivas. A distinglo grega entre daxa eepisteme tem a mesma raiz, A diivida metédica aguca 0 espirito critico proprio da vida filos6fica, enisso reside a sua eficécia. ©) Finalmente, a terceira atitude implica no senti- mento de insatisfagio moral. Se em seu comportamento usual encontramos o homem absorvido no mundo que o ‘cerca, a filosofia se impoe como tarefa a partir do momento em que esse homem quotidiano cai em sie pergunta pelo sentido de sua propria existéncia. O mundo exterior é abandonado em conseqiéncia de um sentido de insatisfacio, levando o homem a tomar cons- ciéncia de sua propria miséria. Assim Epiteto, por exem- plo, quando escreve: “O principio da filosofia, para aqueles que se dedicam a esta ciéncia como deve ser (..), € a consciéncia de sua propria fraqueza e de sua impoténcia nas coisas necessérias”.” 12 Eis Tin neh Sou Pr Ls Bells Lats 146,12, pl 24 Sem diivida, nessas trés modalidades de atitude hi muito de verdade, no sentido de que elas sd encon- tradas em todo fildsofo, em um grau maior ou menor, a despeito da possivel predominncia de uma ou outra sobre as demais. Na admiracio encontramos um com- portamento de abertura 0 mais espontaneo e original possivel do homem diante da realidade. Sem a duivida, io chega a se desenvolver o indispensivel espirito crti- «0, que deve acompanhar toda tarefa de ordem filos6fi- ca, E pela inquietacao moral fundamenta-se 0 filosofar em seus aspectos éticos. ‘Assintese dessas trés atitudes poder-se-ia constituir, talvez, no ideal do complexo comportamento inicial do fil6sofo, desde que se verificasse dentro de um determi- nado equilfbrio. Este sentido de sintese apresenta-se, a0 ‘menos, como primeira e tentadora solucio em face da pluralidade de comportamentos. Mas tal equilfbro difi- cilmente pode ser verificado, porque as atitudes ~ tomadas em si mesmas, enquanto atitudes, ena medida fem que uma, como de fato acontece, predomina sobre as demais ~ reclamam um certo grau de exclusividade, evando-as, em conseqiiéncia, ase repelirem. Ea sintese, nesse caso, se possive, jf nfo coincidiria com o impulso inicial, mas seria, muito mais, o fruto de um trabalho de reflexdo sobre o problema, incidindo em um deverser abstrato; ou entio, colocando essa diversidade de ati tudes sobre outras bases, terfamos a descricio de mil plas experiencias, constitutivas todas do filosofar, Esta diversidade, contudo, ndo pode ser posta de lado por nés, mas impde-se precisamente como 0 mate- rial que deve ser explicitado para a compreensio do problema. Com isto queremos dizer que o impulso ini- ial do filosofar, longe de constituir um problema de ‘uma pega $6, apresenta-se como um todo complexo, 25 jos aspectosfundamentas devem atender as proprias ‘aracersticas béscas da natureza da filosofia ‘Areferénca a aspects ea possiblidade de flarmos no predominio de uma attude sobre as emais decor- rem do fato de que se empresa a uma atitude maior valor que as outras. Ora, é nessa diferenciagio valorati- va que reside oceme do nosso problema, pois podemos ‘edevernos enti perguntar qual delas apresentacardter de maior fundamentaidade, em fungSo da natureza da Filosofia, ecomo deve ser compreendida esta fundamen talidade dentro da diversidade de aspectos. O presente ensaio pretende mostrar que o elemento originante e precipuo do filoofar, nao obstante a inalienavel com Plexidade do fendmeno, reside na atitude admirativa. Realment,tomadas em si mesmas, todas as tésati- tudes apontadas revelamse insuficientes e parciais. A

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