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Meméria ABRACE IX Metodologias de Pesquisa em Artes Cénicas André Carreira Biange Cabral Luiz Fernando Ramos Sérgio Coelho Farias (organizadores) PS STRAT TRY NE at \t \ ye Ay ~~ 22 ol Associacao Brasileira de Pesquisa e Pés Graduacgao em Artes Cénicas ABRACE Beetras] O presente livro da asract, dedica- do ao tema das Metadologias da pesquisa em artes cénicas, teve origem no terceito congresso da Associagao Brasileira de Pesquisa ¢ Pés-Graduacio em Artes Cé- nicas, realizado na upEsc (Universidade do Estado de Santa Catarina), em ou- tubro de 2003. E projeto integralmen- te concebido pelo professor doutor André Carreira, presidente da Associa- 40 durante o biénio 2002-2004, que contou com a parceria da professora doutora Biange Cabral, da mesma ins- tituicdo, para seu bom desenvolyimen- toe sua conclusio, tal como agora ver a publico. Fundamental para o trabalho organizativo ¢ editorial foi a participa- cao dos colegas associados Luiz Fernan- do Ramos (tsp), Sérgio Coelho Farias (urwa) ¢ Ana Maria de Bulhoes Carva- Tho (uniRIO). Ao final do terceiro congtesso, uma gia da pesquisa” e deliberas, no interior do grupo, sobre a escrita de um texto que pudesse representar o tratamento da questo no ambito das pesquisas de- senvolvidas pelos seus membros parti- cipantes, para publicagio de um livro. No decorrer deste perfodo, cada grupo de trabalho fez sua opcao, fosse por um autor que tratasse do tema, de maneiraa representar 0 grupo, fosse pela articula- ao de dois ou trés textos de autores diferentes. Assim, logo de inicio, o que parece se destacar como marca fundamental do presente livro é scu espelhamento de um conjunto variado de opgGes de tra- balho, de representaco ¢, certamente, Metodologias de Pesquisa em Artes Cénicas Meméria ABRACE IX METODOLOGIAS DE PESQUISA EM ARTES CENICAS organizagao André Carreira Biange Cabral Luiz Fernando Ramos Sérgio Coelho Farias Rio de Janeiro, 2006 Berens] Metodologias de Pesquisa em Artes Cénicas € uma publicacZo da Associagdo Brasileira de Pesquisa € Pés-Graduagao em Artes Cénicas © Todos os direitos de autor ficam reservados para os autores dos respectivos capitulos. la, Edigio Marco de 2006 Capa Lev D. Rebonstein Revisiio Ana Maria de Bulhées Carvalho (UNIRIO) Organizagito André Luiz Antunes Netto Carreira (UDESC) Beatriz Angela Vieira Cabral (Biange Cabral) (UDESC) Luiz Fernando Ramos (USP) Sérgio Coelho Farias (UFBA) P-BRASIL CATALOGACAO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ M552 Metodologias de pesquisa em artes cénicas / organizagio André Carrcira.. fetal,]. - Rio de Janeiro : 7Letras, 2006 . -(Meméria ABRACE ; 9) Inclui bibliografia ISBN 85-7577-266-X 1. Artes cénicas - Metodologia 2, Artes cénicas - Pesquisa. 3. Teatro - Pesquisa. I. Carreira, Andié, II, Associasio Braslcira de Pesquisa ¢ Pés- graduagio em Artes Cénicas. III, Série 06-1113. CDD 790.001 CDU 792:001.891 2006 Viveitos de Castro E R. Jardim Botinico 600 sl. 307 Rio de Janeiro RJ cEP 22461-000 (21) 2540-0076 www. /letras.com.br / editora@7letras.com.br Diretoria da ABRACE, Gestio 2004-2006 Presidente - Maria de Lourdes Rabetti (Beti Raberti) (UNIRIO) 1a. Secretiria - Maria Helena Werneck (UNIRIO 2o. Secretirio - Ange! Palomero (UNIRIO) Tesoureira - Ana Maria de Bulhoes Carvalho (UNIRIO) Conselho Editorial André Luiz Antunes Netto Carreira (UDESC) Luiz Fernando Ramos (USP) Sérgio Coelho Farias (UFBA) Conselho Fiscal Tirulares: Alberto Ferreira Rocha Jiinior (UFS)) Femando Pinheiro Villar (UnB) Neyde Veneziano (UNICAMP) Suplentes: Dulce Aquino (UFBA) Edélcio Mostago (UDESC) Marta Isaacsson Souza e Silva (UFRGS) Coordenagio dos Grupos de Trabalho Dangas e Novas Tecnologiae Dulce Aquino (UFBA) Dramaturgia, Tradigio ¢ Contemporancidade Neyde Veneziano (UNICAMP) Estudos da Performance Zeca Ligitro (UNIRIO) Histéria das Artes do Espetéculo Alberto Ferreira Racha Jinior (UPSJ) Pedagogia do Teatro & Teatro ¢ Educagao Ingrid Dormien Koudela (USP) Pesquisa em Danga no Brasil: processos e investigagses Navas (USP) css08 de Criagio e Expresso Ci Marta laacsson Sousa ¢ Silva (UPRGS) Teatro Brasileiro Brundéo (UNIRIO) las do Espeticulo e da Recepgao Robion Corréa (UFG) os ¢ Frontciras Hernando Pinheiro Villar (UnB) ldncias anteriores sige Bitio (UFBA) - 1998 - 2000 / 2000 - 2002 André Luiz Antunes Netto Carreira (UDESC) 2002 - 2004 SUMARIO Inrropucko © teatro como conhecimento ......- André Carreira (UDESC) e Biange Cabral (UDESC, UFS' GT Dramarurcia, TRADIGAO F CON’ TEMPORANEIDADE Propostas para anilise do texto dramético nesnesnevcnnrnen Neyde Veneziano (UNICAMP) ¢ Claudia Braga (UFOP) Método Matricial ....-- . Rubens Brito e J. Guinsburg (USP) 26 Algumas consideragies sobre a arte de “interpretar” um texto teatral Martha Ribeiro (UFMG) GT Hisrowa pas ARTES Do EsPeTACULO Observagoes sobre a pratica historiogréfica nas artes do espetdculo ...... 32 Beti Rabetti (Maria de Lourdes Rabetti) (UNIRIO) GT PEDAGOGIA DO TEATRO & TEATRO E EpucagAo Abordagens Metodolégicas do Teatro na Educagio... Ingrid Dormien Koudela (USP) e Aréo Paranagud de Santana (UFMA) GT Processos DE CRIAGAO E ExrressAo CENICAS Pesquisando os processos de criagao ¢ expresso cénicas . Raspas e restos me interessam. Bya Braga (UFMG) © Desafio de Pesquisar 0 Processo Criador do Ator..... Marta kaaesson (UFRGS) Inquietagées sobre 0 Processo de Criagao do Intéxpret© vcs 89 natricia Gomes Pereira (UFRJ) ¢ Maria Inés Galvito Souce (UFRJ) © Proceso de Criagéo do Ator: Uma Perspectiva Semistica ... 192 Maria Angela De Ambrosis Pinheiro Machado (PUC-SP) GT Tearro BRASILEIRO 105 Artes Cénicas: por uma metodelogia da pesquisa histérica Tania Branddo (UNIRIO) GT Teorias £ RECEPGAO DO EsPETACULO Mapeandb a Teoria ¢ a Recepgao ..... Edélcio Mostago (UDESC) GT Terrirorios £ FRONTEIRAS Operando nas fronteiras: trés apontamentos sobre perspectivas metodolégicas .... eso 130 Fernando Pinheiro Villar (UNB) ¢ José Da Costa (UNIRIO) 120 INTRODUCAO O TEATRO COMO CONHECIMENTO André Luiz Antunes Netto Carreira Beatriz Angela Vieira Cabral Nosso principal objetivo com a organizacio deste livro foi contribuir para suprir a caréncia de material referente A meto- dologia de pesquisa em artes cénicas com freqiiéncia percebida no debate sobre procedimentos de trabalho. Este livro também representa uma oportunidade para que os pesquisadores da drea se debrucem sobre questdes de fundo referentes & pesquisa € reflitam sobre esta 4rea de conhecimento identificando particu- laridades de seus objetos de estudo. A idéia de tomar como ponto de partida as reflexes leva- das a cabo no interior dos Grupos de Trabalho da ABRACE? implica partir de uma diversificagao de olhares cujo fim tiltimo é abrir um espago de reflexdo que torne possfvel mais interagdes entre as diferentes sub-dreas das artes cénicas ¢ ao mesmo tempo aprofunde a investigacao sobre alternativas metodolégicas. O campo das artes cénicas — diverso e miltiplo — pede, no contex- to de um esforgo metodolégico, um olhar que reconhega esse objeto complexo a partir dos distintos fazeres que esto con- templados nos grupos de trabalho jé mencionados. A dificuldade de fixar este objeto de estudo se dé tanto pelo cardter processual de grande parte dos projetos de pesqui- sa, quanto pela efemeridade do espetéculo cénico. Como conse- » Surge a necessidade de encontrar pontos ou aspectos mais fixos para sustentar as possibilidades de leitura. qiiénc 10 * Metodologias de Pesquisa em Artes Cénicas ‘Tomando em consideracao as palavras de Hinstein, quan- do afirmou que “a formulagao de um problema € bem mais es- sencial do que a sua solucao (...) e que o estude de anitigos pro- blemas baseados em novos pontos de vista, requer wma imag nado fértil e traz real progresso para a ciéncia’ (1967)54), pode se dizer que aprofundar o exercicio da reflexio metodolégica a partir de referenciais dos diversos lugares ¢ faeries teutrais seria fundamental para a produgao de novos conhecimentos sobre este objeto de estudo comum. Quaisquer sejam os pontos de partida da pesquisa, o hori- zonte leva sempre ao espetdculo. A palavra teatro tray en si tan tas possibilidades que aquilo que parece a delimitagiio de um objeto de pesquisa claro, nada mais é que a abertura de um le- que de proposigGes. Ora, o esforgo retorna para a tentativa de formular o pro- blema de forma mais elegante possfvel, como seria © caso da fisica. Mas 0 teatro tenta sempre escapar de nossas milos dvidas que querem seguré-lo para caracterizé-lo ¢ destrinchi-lo, Parece perceber a ameaga que representa ser abordado como foco de pesquisa. Para toda entidade dindmica, receber nomes ¢ ser sub- metida a categorias pode significar uma iminente morte, ¢ a arte sobrevivente se escorre pelas frestas que 6 pensamento ana- Iftico nao consegue fechar. A pesquisa cientifica na rea das artes cénicas é uma des- cendente direta dos avan¢os tedricos no campo da literatura. Os instrumentos mais importantes que deram impulso & formali- zacao da pesquisa tedrica do teatro sio provenientes dos estudos literérios do ultimo século, pois, antes de ser tatado como uma arte da performance, o teatro foi estudado na esfera do texto escrito. Neste sentido, é possfvel identificar a semiologia teatral como uma das grandes alavancas tedricas que situou os estudos teatrais no terreno de sua especificidade: 0 texto espetacular, Os estudos semioldgicos deram a devida importancia discurso espetacular complementando 0 enfoque da sociologia ao Metodologias de Pesquisa em Artes Cénicas * 11 do teatro; se esta centrava sua atengio nas repercussdes sociais do objeto artfstico ou nos reflexos artisticos dos fenémenos so- ciais a semiologia buscava o desvendar de sentidos do espetdcu- lo sem desconhecer as inter-relages entre sociedade ¢ espetdculo. A semiologia teatral, a partir dos princfpios de Pierce (1978), Saussure (1971) e Greimas (1973), funcionou nos tltimos vin- te € cinco anos, como um dos principais referentes na aborda- gem teérica do espetdculo teatral. Roland Barthes, definiu o te- atro como “uma mdquina cibernética em funcionamento” (2003:339), estabelecendo uma referéncia definitiva para a abor- dagem do acontecimento cénico como fenémeno efémero que requer do pesquisador instrumentos que reconhegam a prépria dinamica do ato espetacular e de suas leis. O esforgo de sistema- tizacao de Patrice Pavis (1997) contribuiu para quea semiologia encontrasse uma ressonancia quase cotidiana nos estudos tea- trais, até que 0 préprio autor comecou a discutir a efetividade de sua aplicagao, pois observou que essa metodologia particulari- zava a abordagem da cena a ponto de destruir 0 objeto funcional do espetaculo. Entre outros enfoques que influenciaram a pesquisa teatral estao também aqueles que identificaram instrumentos tedricos com o fim de sentar as bases de uma ciéncia do teatro, por assim dizer, uma teatrologia. Entre estes, se encontra a sociologia da arte que causou impacto na pesquisa teatral a partir da década de 60. Autores de dreas do pensamento tio distintas, como Hebert Read, Pierre Francastel, Arnold Hauser e Jean Duvignaud ajudaram a estabelecer as bases para uma abordagem que valori- zasse 0 fator social no processo de leitura da obra de arte que também teve repercuss6es na andlise do espetdculo teatral. As praticas analiticas baseadas na sociologia da arte impul- sionaram, naquele contexto, uma considerdvel influéncia de al- gumas correntes do pensamento marxista nos estudos artisticos. No entanto, esta influéncia se traduziu na maioria dos casos, numa relacao de causa e efeito entre eventos sociais ea obra de 12 * Metodologias de Pesquisa em Artes Cénicas arte. Um exemplo interessante se encontra no livro Da investi- gasao socioldgica ao fenémeno teatral de Esther Sudrez Duran publicado em Havana em 1988, onde se afirma que: Tanto a arte como a ciéncia respondem sempre as condigées historico- concretas da vida da sociedade. Estao determinadas pelo Estado ¢ 0 cardter das relagées de producio (...) Isto determina a existéncia de uma estreita relacio entre o reflexo artistico que se traduz em imagens artisticas, e o pensamento cientifico, que o faz em conceitos, categoria cleis. Tanto o pensamento artistico como 0 cientifico refletem o mun- do objetivo e se desenvolvem com a pratica social. E evidente que esta visio é uma simplificagio da compl dade das relaces poss{veis entre arte e sociedade. Talvez pareca anacrénico dedicar atengao a este caso, mas, ¢ interessante notar que essa tendéncia ideolégica-metodolégica teve repercussdes no campo da pesquisa teatral no Bras’ No caso dos processos de pesquisa que trabalham com a experimentacao pratica do espetaculo, é interessante alertar para © risco de se especificar objetivos associados a expectativas de resultados — 0 risco em questo estaria no efeito restritivo que estes possam impor ao processo artistico. O desafio estaria em especificar objetivos que incorporassem as habilidades necess4- rias & criagdo artistica, evidenciando que uma boa forma é justa- mente aquela que inclua algum grau de imprecisao que permita © movimento ou deslocamento do contetido cada vez que o observador entre em contato com a obra. Isso estaria relaciona- do com a percepcao de que o teatro é um meio obliquo e nao um espelho. E esta qualidade, associada & impossibilidade de controlar o ponto de partida do criador, que reforga a imprevi- sibilidade dos significados apresentados. Assim, os significados artisticos mais profundos nao seriam os mais universais, mas os mais espectficos, uma vez que estes estado entrelagados com o contexto social. O contexto da ficco, ao permitir que a realida- de seja suspensa, mas permanega presente, constituiria a forga do teatro como ressonancia entre os dois contextos. Metodologias de Pesquisa em Artes Cénicas * 13 Perceber essa dindmica nao supée ver uma contradigéo na- tural e irremediavel entrea pesquisa e o teatro, mas sim tratar de compreendero “jogo” possivel entre o estudo cientifico e as ope- ragGes estruturais da linguagem artfstica. Acapacidade mais aguda do pesquisador reside justamente na possibilidade de encontrar os pontos de contato entre ambas as tenses, quando os significados produzidos pelos dois cam- pos alcangarao maior intensidade. O teatro pode ser pensado nao s6 como uma forma de arte que expressa diferentes circunstancias da experiéncia humana, mas também como seu elemento formador. Podemos ainda con- siderar o teatro um instrumento de interferéncia na vida social ¢ observar sua potencialidade como “fala” (Barthes: 2003) que constitui pega chave na construgao do Humano. A produgao de pesquisa na drea do teatro representa, pois, um esforgo no sentido de redimensionar o fendmeno do espetd- culo em suas mais variadas manifestagées, no contexto da con- temporancidade. Isto implica a reinvengo permanente de seus significados e abre o campo de pesquisa para novos lugares do fenédmeno teatral, considerado como elemento fundamental na definigéo dos processos de construgio cultural. Pensar a pesquisa como parte indissociavel do préprio tea- tro contemporaneo nos obriga refletir se essa pesquisa deve rea- firmar seu cardter filos6fico ou cientffico, ou buscar uma imbricag4o entre ambos. O cientificismo que algumas correntes tem advogado pa- rece tentar fazer do objeto do teatro — um fenémeno voldtil — algo mais consistente e durdvel. Identific4-lo através de instru- mentos da ciéncia e buscar encontrar semelhancas fenomeno- ldgicas entre o acontecimento de representacao e outros campos de conhecimento teria a virtude de ampliar as fronteiras do co- nhecimento do teatro ao redefinir zonas de trabalho antes pou- co transitadas pelos pesquisadores. Isso também nos traz ele- mentos que renovam nossa compreensio do espetaculo e de sua condigao de fala. Os elementos antropolégicos ¢ socioldgicos, 14 Metodologias de Pesquisa em Artes Cénicas que podem ser observados nas situagdes de representacao, po- dem ser melhor compreendidos a partir de uma perspectiva que toma instrumentos cientificos jd experimentados em outros cam- pos € os adapta ao objeto da cena. Um enfoque de cardter filosdfico nao parece ser excludente de um olhar que se arma com o instrumental cientifico. Propo- sigdes que buscam encontrar razées de ordem filoséfica para entio discutir os processos da cena tém a qualidade de propor uma aproximacao ao teatro que implica em uma ontologia do fend- meno. Neste sentido, reflexdes de ordem filoséfica criam uma forma de trabalho que propde uma classe de compromisso vinculante, estreitando a distancia entre objeto e pesquisador. Pensar as relacdes entre o saber e o fazer, que quase sempre parecem ser aspectos auto-cxcludentes, também é uma questao em permanente discussdo entre aqueles que se dedicam ao tea- tro. Os que trabalham na cena quase sempre encontram dificul- dades de compreender o exercicio daqueles que se preocupam em estudé-la, e, em geral, percebem uma distancia muito gran- de entre o fazer e o estudar. Enfrentar esse dilema parece ser um elemento chave para refletir sobre pesquisa. Quais as relacoes entre o ato da producao do objeto artistico ea acao investigativa do pesquisador que pretende compreender o processo do artista ¢ 0 objeto resultante desse processo? O que surge de forma imediata a partir dessa questo é a certeza de que a vivéncia da arte parece, & primeira vista, ser um elemento exclusivo do artista. No entanto, como afirma Marco De Marinis, no campo do teatro a idéia do fazer deve ser esten- dida além dos limites do trabalho da interpretagdo ou diregao; ‘fazer’ teatro é também tomar parte no funcionamento do espe- téculo como acontecimento que envolve a platéia. Assim, deve- mos considerar a pratica teatral como algo que incorpora os dois lados do fendmeno. A produgio de conhecimento no teatro é conseqiiéncia das trocas nas quais participam artistas, espectadores ¢ estudiosos. Entao poderemos pensd-lo em sua complexidade, que é exata- Metodologias de Pesquisa em Artes Cénicas * 15 mente o que atrai o olhar dos pesquisadores. A diversidade de possibilidades e a idéia de que o teatro é uma maquina ciberné- tica em funcionamento animam esse desejo de correr atrds de algo que tanto escapa como seduz. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BARTHES, Roland. Las dos criticas. Trad. Carlos Pujol. Barcelona: Seix Barral, 2003. DE MARINIS, Marco. “Tener experiencia del arte (Hacia una revision de las relaciones teoria/practica en el marco de la nueva teatrologia”. In La puesta en escena en Latinoamérica: teorda y practica teatral. (org. Osvaldo Pelleticri ¢ Eduardo Rovner). Buenos Aires: Ed. Galerna/Getea/CITI, 1997, DURAN, Esther Suarez. Da investigagdo socioligica ao fendmeno tea tral, Havana: s/e, 1988. DUVIGNAUD, Jean. Sociologia del Teatro. Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica, 1979. EINSTEIN, Albert e INFIELD, Leopold. Evolution of Physics. New York: Simon & Schiuster, 1967. GREIMAS, A. Semdntica estrutural. Trad. Haquira Osakabe e Isidoro Blikstein. $40 Paulo: Cultrix, 1973. HAUSER, Arnold. Histéria social da literatura eda Arte. Tead. Alvaro Cabral. $40 Paulo: Martins Fontes, 1995. PAVIS, Patrice. “Que teorfas para que puestas en escena?”. In La puesta en escena en Latinoameérica: teorta y practica teatral. (org, Osval- do Pelletieri e Eduardo Rovner). Buenos Aires: Ed. Galerna/ Getea/CITI, 1997. PIERCE, C. Eerits sur le signe. Trad. © org. G. Deledalle. Paris: Seuil, 1978. READ, Herbert. Arte y alienacidn. 2 ed. Bucnos Aires: Proyeccién, 1976. 16 * Metodologias de Pesquisa em Artes Cénicas SAUSURRE, Ferdinand de. Cours de Linguistique Générale, 7° ed. Paris: Payot, 1971. Noras 'Danga e Novas Tecnologias, Dramaturgia Tradicao ¢ Contemporaneidade, Estudos da Performance, Histéria das Artes do Espetéculo, Pedagogia do Teatro ¢ Teatro na Educacio, Pesquisa em Danga, Teatro Brasileiro, Teorias do Espetdculo ¢ da Recepgio, Territérios ¢ Frontciras. ? Foi referida a obra desses autores em sua totalidade. A selegao de titulo na bibliografia tem carater meramente pedagdgico ¢ nio restritivo. GT DRAMATURGIA, TRADICAO E CONTEMPORANEIDADE PROPOSTAS PARA ANALISE DO TEXTO DRAMATICO Neyde Veneziano e Claudia Braga O GT Dramaturgia decidiu, por maioria, apresentar como colaboragao 4 publicacdo sobre metodologia de pesquisa em Ar- tes Cénicas da ABRACE os trabalhos desenvolvidos por dois de seus membros a respeito do tema. O de Rubens Brito (UNICAMP) desenvolvido em parceria com o Prof. Jacé Guinsburg, e cha- mado por ele “Método Matricial”, trabalha o tema da possibili- dade de aplicagao de uma metodologia analftica que determina- ria matriz ou matrizes de criacao do texto ou da obra de um autor, ¢ pode ser, segundo seus experimentos posteriores, apli- cado a outros segmentos da pesquisa em Artes Cénicas. O de Martha Ribeiro (UFMG) traz as reflexdes da autora sobre 0 ato da “interpretagao” do texto teatral, a partir dos mais recentes escritos de Umberto Eco a propésito do tema. Apresentados individualmente por seus autores, a partir de diferenciados pontos de vista ou de abordagem do texto drama- tico, ambos trabalhos constituem a contribuigao de nosso Gru- po de Trabalho a esta publicagao. 18 * Metodologias de Pesquisa em Artes Cénicas MEropo MatriciAL Rubens Brito e J. Guinsburg FORMULAGAO DO CONCEITO DE METopo MarriciaL! Introdugao A experiéncia e os resultados obtidos com a investigacao do processo criativo de Luis Alberto de Abreu, autor utilizado como base para aplicagao do método de andlise ora apresenta- do, levantam a possibilidade de estarmos diante de uma meto- dologia de pesquisa em dramaturgia e de que esta pode ser es- tendida a outras dreas das Artes Cénicas. Ao se esclarecer cada etapa deste trabalho chega-se A siste- matizacio do que pretendemos denominar Método Matricial. O exame realizado principiou com a reuniao dos textos do dramaturgo mencionado, com o objetivo de, a partir deles, in- vestigar o processo de criagao efetivado pelo escritor. O primei- ro passo, portanto, do Método Matricial, é precisar a fonte pri- méria do trabalho; esta, em se tratando de dramaturgia, consis- te nas pegas de um autor. Uma vez disposto esse acervo, deter- minam-se os elementos, cuja reuniao constituird a matriz, e faz- se o levantamento dos procedimentos, objetivando esclarecer os modos pelos quais o autor configura esses elementos; estas agdes, por sua vez, definem os elementos/procedimentos, os quais apre- sentam, cada um deles, uma relagao precisa entre um elemento € um procedimento. Devemos salientar que nesta fase 0 objeto estético é visto por dentro, isto é, examina-se a obra de arte nao com quaisquer modelos exteriores a cla € sim, busca-se averi- guar no proprio ser os padrées de criagao que ele apresenta. Este, Metodologias de Pesquisa em Artes Cénicas* 19 talvez, seja o momento mais delicado exigido pelo Método Matricial, pois o examinador enfrenta a dificil rarefa de, aparen- temente, investigar sem nenhum instrumental de pesquisa pree- xistente e preestabelecido e, ainda, porque esses instrumentos, inseridos na obra, estao “ocultos”. Em contraposicao, esse ins- tante pode ser um dos mais prazerosos do trabalho, pois, geral- mente, 0 ineditismo da descoberta propicia uma indescritivel satisfagao. Estabelecido, portanto, o conjunto de obras a ser estudado (fonte primdria), parte-se para o conhecimento minucioso de cada uma delas. Em se tratando da Andlise Matricial* de textos, um autor dramitico, por exemplo, deve ser lido ¢ relido até que se conhegam dcetalhadamente todos os seus textos. Inevitavelmente, comegam a surgir elementos que se encon- tram em varios desses trabalhos; outros, no entanto, apresen- tam-se poucas vezes, ou até mesmo isoladamente. Em outras palavras, ao se conhecer em detalhes cada uma das obras, entra naturalmente em curso 0 método comparativo, o qual revela, de imediato, os recursos criativos comuns € os contrastantes do objeto examinado. Destacados e reunidos esses elementos, procede-se, em se- guida, a um outro tipo de estudo, com 0 objetivo de se precisar se cada deles ¢ ou nao um elemento da matriz criativa do autor. O principal critério a ser utilizado aqui é0 de questionar se este elemento € ou nado um dos determinantes da estrutura da obra. Sea resposta for positiva, entao, sem dtivida, se esté dian- te de um elemento matricial. Estende-se esse processo a cada uma das produgoes. Tome-se, como exemplo, um texto teatral escrito em versos. Nesse caso, 0 verso deve ser considerado como um dos elementos da matriz dramatirgica; isso porque, em pri- meiro lugar, o dramaturgo decide escrever uma pega em versos antes mesmo de iniciar sua escrita; e, porque, num segundo momento, o verso, ao moldar a pega, acaba por caracterizar a estrutura do proprio texto. 20 * Mctodologias de Pesquisa em Artes Cénicas Com a reuniao dos elementos definidores da estrutura da obra tem-se, portanto, a matriz de criagao. A partir dela, dando continuidade ao Método Matricial, verificam-se, um a um, quais sio 0s procedimentos que corres- pondem a cada um dos elementos especificados, chegando-se, portanto, 4 determinacao dos elementos/procedimentos. Estas ope- ragées exigem um estudo cuidadoso ¢ detalhado das combina- Ges e interagGes possiveis entre os elementos / procedimentos, para que se ilumine, ao mesmo tempo, os modos de composicao da obra, a qualificagao desta, ¢ como esta produgao dialoga com a realidade artistica, cultural e social nas quais esta obra se insere, e, ainda, como 0 autor incorpora em seu processo criativo no- vos meios inspirados por essa conjuntura. Se, num primeiro momento, a busca e a determinagao da matriz criativa sc ancora no método comparativo, o processo do Método Matricial, como um todo, parece embasar-se no méto- do abdutivo. De fato, a pesquisa dos elementos, dos procedi- mentos ¢ dos elementos/procedimentos, ao partir da obra con- creta, coloca em pr4tica o pensamento retrospectivo, um dos fundamentos da abdugao: “a abdugao se inicia a partir dos fatos, sem que, nesse comego, haja qualquer teoria particular em vista, embora seja motivada pelo sentimento de que a teoria é neces- sdria para explicar os fatos surpreendentes” (Eco, U., Sebeok, T. 1991:48). Em se tratando do Método Matricial, os “fatos” correspondem as obras, e a “teoria”, ao processo de criagao des- vendado a partir da matriz criativa. Conceito de Método Matricial O Método Maitricial € um método que visa desvendar ¢ analisar a matriz criativa do artista ¢ que tem como objetivo o esclarecimento de seu processo de criagao. Maitriz é um quadro formado pelos elementos de criacao que o artista escolhe para gerar sua obra. Cada elemento indica, necessariamente, um procedimento; chama-se de elemento/proce- Metodologias de Pesquisa em Artes Cénicas * 21 dimento a interceptagéo de um elemento por um procedimento. As operacoes entre os elementos/procedimentos permitem a qualifica~ cao da obra artistica tomada em seu todo. O elemento, em geral, € de natureza estrutural, ou seja, cons- titui uma das bases sobre a qual se erige a producao do criador. Da mesma forma que se ergue um edificio sobre diversas colu- nas, um objeto de arte se estrutura a partir de varios elementos. O carder do elemento é genérico, isto ¢, varios artifices podem empregar os mesmos elementos na geragao de obras, as quais, invariavelmente, apresentam resultados distintos entre si. Obtém-se a matriz dispondo-se os elementos de criagao encontrados em um quadro dividido em linhas ¢ colunas; este tipo de resolugao se inspira na formagao da matriz segundo con- ceitos da Matematica. Para o Método Matricial interessa ressaltar, primeiramen- te, a distribuicao dos elementos em forma de quadro (aqui nao importa o lugar que cada elemento ocupa, seja na coluna ou na linha,). Essa agao, ao permitir que se visualize, de um sé relance, os principais elementos de criacio, contribui de imediato para que se tenha a nogao precisa do instrumental que estd sendo manipulado pelo artista. O procedimento é a acio do artista no uso dos elementos eleitos; esta agdo personaliza o ato criativo; conseqiientemente, o caréter do procedimento € especffico: somente um determi- nado autor produz daquele modo ¢ nao de outro. As operagées compreendem 0 estudo das combinagdes que 0 autor faz a0 usar os elementos/procedimentos que escolhe pata cri- ar sua obra. As combinag6es podem se apresentar de varias ma- neiras. Uma delas é a da justaposiga@o. Neste modo, o artista tra- balha com os elementos/procedimentos de forma a preservar a identidade de cada um deles. A fusdo de elementos/procedimen- tos é outra possibilidade combinatéria. Nesse caso, a fusio dos clementos/procedimentos gera um novo clemento/procedimen- to. A inclusdo/exclusao de elemento(s)/procedimento(s) também —_ 22+ Metodologias de Pesquisa em Artes Cénicas ocorre freqiientemente. Ao incluir ou excluir um elemento/pro- cedimento o artista diferencia esta obra em relagio as suas de- mais produgoes. As combinacoes, além de contemplarem estas interagGes bdsicas, adquirem também um papel de natureza fun- cional. As relag6es entre os elementos/procedimentos podem dimensionar, por exemplo, a intensidade e 0 modo com que esses componentes sao utilizados. Na obra do dramaturgo que nos ser- viu de modelo, por exemplo, 0 uso do quadro é¢ tio intenso que acaba atribuindo ao seu teatro um cardter eminentemente épico. O estudo das operacies revela os signos de uma linguagem artistica que se compée e se articula. E importante salientar que cada novo clemento que 0 artista insere em sua matriz criativa, a transforma em uma nova matriz, j4 que a esse elemento se liga um outro procedimento, formando um clemento/procedimen- to impar, o qual, por sua vez, estabelece com os demais elemen- tos/procedimentos uma série de combinagoes inéditas; esse fe- némeno mostra o potencial, praticamente infinito, de transfor- magio da matriz criativa. A titulo ilustrativo, podemos imagi- nar um autor incorporando em sua matriz dramatirgica ele- mentos/procedimentos sugeridos pelo diretor de um espeticu- lo; ou, ao contrario, um encenador introduzir em seu processo de criagao elementos/procedimentos do dramaturgo. Finalmente, com a resolugao das operages, chega-se & elucidagao do processo criativo do artista € 4 qualificacio de sua obra. O Método Matricial em processo Para se efetuar 0 Método Matricial sugerimos o seguinte encaminhamento: - Apés a escolha do artista, cujo processo de criagao serd investi- gado, eleger a fonte primaria (a obra artistica). : Estudar minuciosamente cada uma das obras componentes da fonte priméria. Metodologias de Pesquisa em Artes Cénicas * 23 - Utilizando-se 0 método comparativo, destacar os elementos que o artista usa para criar sua obra. Formar a matriz criativa com os elementos destacados. - Determinar os procedimentos relativos a cada um dos elementos. - Interceptar cada elemento com seu respectivo procedimento, estabelecendo os elementos/procedimentos. - Fazer as operag6es entre os elementos/procedimentos, esclare- cendo o processo de criagao do artista ¢ qualificando sua obra. F evidente que esses sete passos basicos sugeridos refletem apenas uma das formas possiveis de se realizar 0 Método Matricial. Afinal, a cada trabalho o pesquisador se defronta com circunstancias imprevistas, seja em rela¢ao ao artista, 4 sua obra, As condigdes em que esta se encontra, seja, até mesmo, em rela- Gao as dificuldades impostas pela realidade externa a pesquisa. De qualquer maneira, essa flexibilidade na organizagio e con- dugao do processo nao contradiz o Método Matwicial, mas, ao contrario, o afirma. Vale lembrar também que 0 Método Matricial se resolve plenamente com 0 olhar tinico e exclusivo do pesquisador ¢ que este, se assim o desejar, pode ampliar o resultado de seu trabalho ao contemplar outros pontos de vista sobre o processo de cria- c&o, incluindo-se af o olhar da critica especializada e, mais inte- ressante ainda, o do préprio artista. O Método Matricial aplicado a outras dreas das artes cénicas No primeiro semestre de 2001 alunos do curso de Pés- Graduagao em Artes da Universidade Estadual de Campinas em- pregaram 0 Método Matricial para investigar 0 processo criati- vo de varios dramaturgos, entre eles Jos¢ de Anchicta, Roberto Gomes, Pedro Bandeira ¢ Carlos Alberto Soffredini. No consenso dos participantes, um dos beneficios desse tipo de andlise é 0 de alargar os horizontes da pesquisa, na medi- da em que o observador se volta para 0 processo de criagio em si 24 * Mctodologias de Pesquisa em Artes Cénicas e nao para obra. Fssa alterndncia de olhar mostra que 0 objeto estético pode ser visto ainda em edificagao, ao menos naquilo que ele apresenta de visivel, revelando os alicerces e os modos pelos quais eles se relacionam entre si, sugerindo a mente do ctiador em exercicio e ainda, nao menos relevante, detectando, aqui e ali, a alma o idedrio do artista. Além do mais, o Método Matricial, aliado ao exame intrinseco da obra, perfaz um uni- verso cognitivo definido com maior amplitude e precisao. A partir de 2002 0 Método Matricial comegou a ser utili. zado em varios trabalhos discentes no Curso de Pés-Graduacao em Artes da Unicamp, na investigagao de processos criativos em outras dreas das artes cénicas. Na academia, a pesquisa da cria- ao artistica contemporanea jd é uma tendéncia manifesta. Nes- se sentido, o Método Matricial pode dar sua contribuigao para 0 esclarecimento dos principais procedimentos utilizados pelo artista cénico. O exame das matrizes criativas do dramaturgo, do encenador, do ator, do cendgrafo e do iluminador, coloca-se, desde j4, como prioridade para elucidar a diversidade de alter- nativas da instituigdo da cena atual. O Método Matricial aplicado a outras artes No mesmo curso anteriormente referido, uma das alunas realizou um estudo extremamente preciso sobre a matriz criati- va do compositor Noel Rosa. Esse trabalho abre a perspectiva do uso do Método Matricial em outras artes, tanto nas que s40 produzidas colctivamente quanto nas que se concretizam a par- tir de um s6 individuo. Cinema, artes plasticas e visuais, musica, multimidia, es- cultura, poesia e literatura, entre outras, oferecem um ilimitado campo de investiga¢ao na drea de criagdo, cujos estudos podem contribuir para o desenvolvimento do Método Matricial, pois, seguramente, surgirao novos elementos e procedimentos de na- tureza diversa das ja estabelecidas na dramaturgia Metodologias de Pesquisa em Artes C2nicas * 25 O Método Matricial como método de criagiio A partir do primeiro semestre de 2004, alunos da Gradua- go em Artes Cénicas ¢ da Pés-Graduagao em Artes da Unicamp, além de utilizarem 0 Método Matricial como método de inves- tigagao de processos criativos, atribufram-lhe uma outra fun- Gao: a de método de criagao. Em outras palavras, descobriram que, 4 natureza analitica do Método Matricial, pode-se somar outra, a criativa. O dominio do estudo matricial e da conse- qiiente determinagao de matrizes criativas gera a possibilidade da busca, pelo pesquisador-artista, da propria matriz criativa. Para os artistas que consideram vital a consci¢ncia do processo criati- vo, o Método Matricial pode contribuir para amplia-lo e desenvolvé- lo; em contraposigio, o conhecimento se coloca como fator inibidor e bloqueador da criagao. Em sintese, ao se propor como método de investigacao e, igualmente, de criagio, o Método Matricial passa a fazer parte do universo das questdes que envol- vem 0 artista e suas relagdes com a obra em processo e em ato. Notas ' O presente ensaio resulta das alteragGes realizadas no artigo Andlise Matricial: uma metodologia para a investigagao de processos criativos em artes cénicas, publicado, em 2002, pela Editora da Universidade de Sao Paulo, no livro /. Guinsburg: Didlogos sobre teatro, organizado por Armando Sérgio da Silva, 2 ed., pp 277-286. Os autores agradecem a colaboracio ¢ a revisio dos conceitos matematicos utilizados neste artigo efetuada pela professora de Fi- sica e Matemitica Gita Guinsburg. ? Por sua natureza analftica, pode-se denominar de Andlise Matricial 0 desen- volvimento do Método Matricial. ) Elementos teméticos podem, ocasionalmente, ser considerados como ele- mento da matriz. Evidentemente, qualquer obra transita por pdo menos um tema; dessa maneira, ele seria um recurso matricial comum a todas as produ- goes: e, em sendo assim, seria desnecessério ¢ sem sentido considerar o tema como componente da matriz, Esta tiltima situagio geralmente ocorre por circunstincias externas 4 produgio, Em teatro, por exemplo, um espericulo pode se tornar alvo especial da atencao do piiblico pela tematica apresentada que ganha relevo dada a situagao politica ow social do momento. 26 + Metodologias de Pesquisa em Artes Cénicas ALGUMAS CONSIDERAGOES SOBRE A ARTE DE “INTERPRETAR” UM TEXTO TEATRAL Martha Ribeiro A afirmagao, j4 banalizada em nossos dias, de que 0 texto teatral deveria ser visto enquanto uma obra em processo traz importantes questées epistemoldgicas que necessitam de uma maior sistematizago por parte daqueles que se interessam pelo fendmeno teatral. Entre outras coisas, esta mudanga de olhar sobre o objeto propée, como perspectiva metodolégica, aban- donar o paradigma do texto enquanto obra fechada para em seguida criar um outro, isto é, do texto enquanto obra aberta. Umberto Eco em seu livro Obra aberta, de 1962, debate exaus- tiva e calorosamente o tema da pluralidade de significados de uma obra de arte, sendo esta pluralidade, afirma 0 autor, caracterfstica de uma obra que quer ser reconhecida como Arte. “A obra de arte é uma mensagem fundamentalmente ambigua. Esta condicao constitui caracteristica de toda obra de arte” (Eco, 1991: 22). Esta afirmagao, de forte tom revoluciondrio, possui seu lu- gar na hist6ria da arte e da cultura ocidental. O projeto de Eco vinha de encontro aos questionamentos e desejos de uma época de grande efervescéncia cultural, artstica e ideolégica. A van- guarda pedia passagem a todos os setores da sociedade: social- politico-cultural-artfstico,' qualquer limite era considerado um atraso, uma forma de exclusdo e de opressao, A arte tinha como obrigacao ¢ finalidade ultima apresentar coisas novas, sempre de uma forma aberta, ambigua. Jamais seu discurso poderia ser univoco ou persuasivo. O artista da vanguarda deveria provocar com suas obras a imaginacao ea inteligéncia dos seus leitores ¢ ou espectadores, logo, nfo poderia exigir do intérprete uma fi- delidade 4 prépria obra, pois dizer que uma obra é aberta é di- Metodologias de Pesquisa em Artes Cénicas * 27 zer, em suma, que sua interpretagao é potencialmente ilimitada. A liberdade de interpretagao sobre as obras era celebrada com grande entusiasmo por Eco. Mas, ser4 o préprio autor de Obra aberta que ird rever esta posigao algumas décadas, mais tarde em um novo livro chamado Os limites da interpretacdo (um titulo tanto ou mais revoluciondrio ¢ direto que 0 outro), provocando assim uma nova discuss4o no campo da estética. A tese principal do livro de Eco é a seguinte: “Dizer que um texto é potencial- mente sem fim nao significa que todo’ ato de interpretagdo pos- sa ter um final feliz. [...], o texto interpretado impGe restrigdes a seus intérpretes. Os limites da interpretagao coincidem com os direitos do texto” (1999: XXII). Ea partir desta constatagao de Eco que iremos refletir sobre possiveis caminhos metodoldgicos para se interpretar e analisar um texto teatral. A teoria da interpretag4o infinita, preconizada por nume- rosos estudiosos da arte nos anos 60, refuta a idéia de que os enunciados, as palavras, possuem um sentido literal, ou seja, um sentido comum anterior a qualquer ato de liberdade do lei- tor sobre as formas lexicais. Esta questo do “sentido literal” do texto significa, por si sé, uma restrigéo & idéia do texto como um universo aberto a espera de infinitas descobertas e de hipé- teses interpretativas por parte do leitor. E claro que toda leitura éum ato de desconstrugao e que é possivel dentro de uma obra observar hipoteses de leituras contrastantes entre si, mas ha cer- tas regras gramaticais (a lingua) ¢ lingiifsticas (o uso da lingua/ a fala) legitimadas por nossa histéria cultural. Eco (1999) nos su- gere, como exercicio de interpretagao, certos critérios de econo- mia a serem seguidos durante a leitura que podem nos auxiliar a rejeitar certas interpretagdes desviantes, provocadas por um deslizamento irrefredvel do sentido: “os limites da interpretagao coincidem com os limites do texto”. Ha interpretag6es que sao totalmente inaceitaveis e é 0 proprio texto que ird impor restri- gOcs a scus intérpretes. Eco ird tratar cm seu livro Os limites da interpretacao sobre 0 Intentio do texto.

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