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NORBERTO BOBBIO LIBERALISMO E DEMOCRACIA Traduca: ‘Marco Aurélio Nogueira editora brasiliense Copyright© by race Ang Lib. «1, Pale Monza 106 ii, ilo orga: Lateral e democrats Copyright © da ado Bras: Ear Brasense SA Nenduma parte desta publica pode ser grave ‘amasenas em sea lero, price por eos ecco elon ue” sem ator privindeeitor ator beset Satan ie, 22— Tae EPO; IDI SHo Palo SP ne Fx (ec) 218.88 asin con “ev dorstrasiert com br Indice @ Democracia ¢ igualdade , vo. a 2. 1s. M4. 15. 16, v7. Bibliografia ‘A liberdade dos antigos ¢ dos modernos ..-..+. 7 ‘Os direitos do homem . Osiimites do poder do Estado « Liberdade contra poder antagonismo ¢ fecundo « Deimocracia dos antigs e dos modemos « O encuntro entre liberalism e democracia Individualismo e organicismo -..-« Liberais e democratas no século XIX Atirania da maioria .....+ Liberalismo e utilitarismo ‘A democracia representative .....e++ Liberalismo e democracia na Italia .. ‘A democracia diante do socislismo - O novo liberalismo Democracia e ingoverabilidade 1. A liberdade dos antigos e dos modernos A caisténci atual de regimes denominados liberal skenoeritios ou de demoeraca ibera eva a eer que li Ulsoe democraciasejam interdependentes, No en lan, o problema das relaghes entre eles €extremamente Copies, ewido menos linear: Na acepyao mais eomumn th is termos, por Miberalismo” entende-se uma de tersinada eoacepgao de Estado, na qual 0 Estado tem panleresefungde imitadas,e como tal se contrapetan- trav Estado absoluto guanto ao Estado que hoje cha- sats de social po a entende-se uma das ‘ois Formas de governo, em particular aquelas em que Crowder no estas mgs de um s6 ou de poueos, mas ck tos, os melhor, da maior parte, como tal se contr two as formas autoerateas, como'a monarauia€ a ai aria Um Estado liberal no € neessariamente demo critico: ao contrério, realiza-se historicamente em socie- ules ns quais a participagdo no governo € bastante res tit, lmitada is classes possuidoras. Um governo demo- critic ndo dé vida necessariamente a um Estado liberal: ‘sw conttiio, o Estado liberal elisic foi posto em ese * NORBERTO BOBBIO pelo progressive processo de democratizagio produzido pela gradual ampliagao do sufragio até o sufrégio uni- versal ‘Sob a forma da contraposiglo entre liberdade dos ‘modernos ¢ liberdade dos antigos, a antitese entre libera- lismo e democracia foi enunciada e sutilmente defendida por Benjamin Constant (1767-1830) no eélebre discurso pronunciado no Ateneu Real de Paris em 1818, do qual € possivel fazer comegar a historia das dificeis e controver- tidas relagies entre as duas exigncias fundamentais de que naseeram os Estados contemporineos nos paises ‘econdmica esocialmente mais desenvolvidos: a exigéncia, deur: fado, delimitar o poder e, de outro, de distribui-lo. © objetivo dos antigos — escreve cle — era a distri- ‘buigdo do poder politico entre todos os cidados de ‘uma mesma patria: era isso que eles chamavam de liberdade, O objetivo dos modernos é a seguranca nas fruigies privadas: eles chamam de liberdade is garantias acordadas pelas instituigdes para aquelas fruigbes.' Como liberal sincero, Constant considerava que es- ‘ses dois objetivos estavam em contraste entre si. A parti- cipacio direta nas decisies coletivas termina por subme- ter oindividuo & autoridade do todo e por torna-lo nao li ‘yre como privado;¢ isso enquanto aliberdade do privadoé precisamente aquilo que o cidadio exige hoje do poder pliblico. Conelufa: (0) Beinn Conse, De le Liberé des Anions Comparde celle sry Mores I618 in Collect Compe des Outages, vl, past 7 Pri Bechet Libri, 1820, 258 (ad. I B. Constant, inode ¢ ttadoco de Unto Cron, Roms, amon eave 195, p. 25D, LIBERALISMO E DEMOCRACIA ° Nao podemos mais usufrir da liberdade dos antigos, ‘que era constituida pela participagao ativa e cons- tante no poder coletive, A nossa liberdade deve, a0 contrario, ser constituida pela fruigdo pacifica da dependéncia privada.? Constant eitava os antigos, mas tinha diante de si inv alvo bem mais préximo: Jean-Jacques Rousseau. De fato, 0 autor do Contrato Social havia inventado, nao sem fortes sugestes dos pensadores cléssicos, uma re- ppiblica na qual © poder soberano, uma ver instituido pela concordada vontade de todos, torna-se infalivel € “ido precisa dar garantias aos stiditos, pois é impossivel ‘que © corpe queira ofender a todos os seus membros”. Nao «jue Rousseau tenha levado 0 prinefpio da vontade teeral ao ponto de deseonhecer a necessidade de limitar 0 vor do Estado: atribuir @ ele a paternidade da “demo- crivin totalitéria” € uma polémica tio generalizada ‘quanto errénea, Embora sustentando que 0 pacto social «lio corpo politico um poder absoluto, Rousseau tam: Iném sustenta.queo corpo soberano, da sua parte, no ode sobrecasregar 0s siditos com nenhuma cadeia que Sef initil & comunidade’’* Mas & certo que esses li mites" nie sho pré-constituides ao nascimento do Es ado, como quer a doutrina dos direitos naturais, que tevresenta o niicleo doutrinal do Estado liberal. De fato cembora admitindo que “tudo aquilo que, com 0 pacto social, cada um aliena de seu poder... € unicamente a tmirle de tudo aquilo cujo uso é importante para a co- 2) Trad cp 282 (G)Ied- Rowse, Du Cotrat Soci 1. (ras itn 3.. Rovssen, sin’ ag Pe Aang) Ta, Ute 1970, p73. (2) Trad. sep © NORBERTO BOBEIO munidade", Rousseau conelui que "o nico corpo sobe- amo 6 juiz dessa importanc (Trad cop. 744 2. Os direitos do homem {0 pressuposto filosbfico do Estado liberal, entend dio Gomo Estado limitado em contraposigio ao Estado lbsoluto, €4 doutrina dos direitos do homem elaborada pela escola do direito natural (ou jusnaturalismo): dow trina segundo a qual © homem, todos os homens, indis- criminadamente, tem por naturera.e, portanto, indepen tientemente de sua propria vontade, e menos ainda da ventade de alguns poucos ou de apenas um, certs di moo direito& vids A liberdade, & seiaeanca, &leicidade — direitos esses que o Estado, ou Ihais coneretamente aqueles que num determinado mo- iucuio histérico detém o poder legitimo de exercer a for- si para obter a obedigncia a seus comandos devem res- pwilar,e portanto nfo inva, e a0 mesmo tempo prote contra toda possivel invasio por parte dos outros) ‘trbuir a alguém um direito significa reconhecer que cle ten a faculdade de fazer ou nfo fazer algo conforme ‘cu desejoe também o poder de resisir,reeorrendo, em Siltima instaneia,&forga (pr6pria ou dos outros), contra o ‘eventual transgressor, 0 qual tem em conseqiéncia o de- reilos funclamente b NORHERTO BOBBIO ver (ow a obrigagdo) de se abster de qualquer ato que possa de algum modo interferir naquela faculdade de fa- zet o ni fazer. “Direito” e "dever" so duas nogies pertencentes a linguagem prescritiva, ¢ enquanto tais pressuptem a existéncia de uma norma ou regra de con- duta que atribui a um sujeito a faculdade de fazer ou no fazer alguma coisa ao mesmo tempo em que impoe ‘quem quer que seja a abstengdo de toda ago capaz. de impedir, seia por que modo for, o exercicio daquela fa- ceuldade. Pode-se definir 0 jusnaturalismo como a dou- trina segundo a qual existem ieis nao postas pela vontade humana — que por isso mesmo precedem a formagao de todo grupo social e sfo reconheciveis através da pesquisa racional — das quais derivam, como em toda e qualquer lei moral ou juridica, direitos e deveres que sio, pelo proprio fato de serem derivados de uma lei natural, direi- tos e deveres naturais, Falou-se do jusnaturalismo como pressuposto “filos6fico” do liberalismo porque ele serve para fundar os limites do poder & base de uma coneepeao geral e hipotética da natureza do homem que prescinde de toda verificagio empirica e de toda prova hist6rica. No capitulo II do Segundo Tratado sobre o Governo, Lo- eke, um dos pais do liberalismo moderno, parte do esta- ido de natureza deserito como um estado de perfeita li- berdade e igualdade, governado por uma lei da natureza que ‘ensina a todos os homens, desde que desejem con- sulla, que, sendo todos iguais ¢ independentes, rninguém deve provocar danos aos demais no que se refere A vida, A saiide, dliberdade ou is posses." (0) John Locke, Two Treaties of Government (169), 6 (a8 1 Parson org) Trim, Let, 3 SAD, p23 LIMERALISMO E DEMOCRACTA Bw Essa deserigdo é fruto da reconstrugao fantastica de uum presumivel estado originario do homem, cujo ti ‘objetivo € 0 de aduzir uma boa razio para justificar os limites do poder do Estado. A doutrina dos direitos natu- tis, de fato, esti na base das Declaragdes dos Direitos ‘prvclamadas nos Estados Unidos da América do Norte(a ‘comegar de 1776) e na Franca revolucionéria (a comecar tle 1769), através das quais se afirma o principio funda- wal co Estado liberal como Estado limita 0 objetivo de toda associagio politica & a conserva: io dos direitos naturais € no prescritiveis do ho- ‘mom (art, 2° da Declaragao dos Direitos do Homem ceil Cidadao, 1789). Enquanto teoria diversificadamente elaborada por Ilisofos, te6logos e juristas, a doutrina dos direitos do Inmet pode ser eonsiderada como a racionalizacdo pos- tuna do estado de coisas a que conduziu, especialmente tun Inglaterra e muitos séculos antes, a luta entre a mo- tunraviia¢ as outras forgas sociais, que se concluiu com a ceaneessao da Magna Carta por parte de Joao Sem Terra (5), quando as faculdades e os poderes que nos sécu- fw futuros sero chamados de ‘direitos do homem" sto jyvouhecidos sob o nome de “liberdade" (libertares, Inunchives. freedom), ow seja, como esieras individuais He aan de posse de bens protegidos perante © poder ‘nutes cei, Embora esta e as sucessivas cartas tenham ‘forma juriliea de concessbes soberanas, elas sao de fa- Juve resultado de um verdadeiro pacto entre partes con: apstas no que-diz. respeito aos direitos © deveres reci: proves ua relagdo politica, isto é, na relagdo entre dever te pratugao (por parte do soberano) e dever de obedién- ‘4a (no qual consiste a assim chamada “obrigacao polit «par parte do sidito), comumente chamado de pac- “ NORRERTO BOBBIO tum subiectionis. Noma carta das “liberdades" 0 objeto principal do acordo so as formas e os limites da obe- ‘igneia, ou seja, a obrigacKo politica, e correlativamente as formas e os limites do direito de comandar. Essas an- figas eartas, como de resto as cartas constitucionais ve~ ° jroyées* das monarquias constitucionais da idade da res- {auragio e depois (entre as qua 0 estatuto albertino de 1848), tem a figura juridica da concessio, que é um ato unilateral, embora sejam de fato resultado de um acor- {do bilateral. Sto por isso uma tipiea forma de fice ju- ridica, que tem por objetivo salvaguardar o principio da fuperioridade do rei, e portanto assegurar a perma: Ga da forma de governo mondrguica, nao obstante a ‘corrida limitagio dos poderes tradicionais do detentor do poder supremo. Naturalmente, mesmo nesse caso, 0 curso hist6rico ‘que di origem & urna determinada ordenagio juridica ea sua jusfiieagio racional apresentam:se com os termes invertidos{ historicamente, 0 Estado liberal nasce de time coutnia e progressiva erosio do poder absoluto do tele, efi eFiodos histricos de crise mais agud, de uma fuptura revolucionéria (exemplares os casos da Inglater- “Fa do steulo XVI e da Franca do fim do séeulo XVID: racionalmente, 0 Estado liberal éjustificado como 0 re- resultado de um acordo entre individvosinicialmente fi ‘res que cowereionam estabelecer os vinculos estrita- Tnente siecessarios uma convivéncia pacifiea e dura: dloura:JEnquanto 0 curso historico procede de um estado iniial'de servidio a estados sucessivos de conquista de ‘espagos de liberdade por parte dos sujeitos, através de tim processo de gradual liberalizaglo, a doutrina percor- Teo-eaminho inverso, na medida em que parte da hipbte- Sede um estado inicial de liberdade, e apenas enquanto (2) Em fans origo ators (NT) LIBERALISMO E DEMOCRACTA 8 cconcebe o homem como naturalmente livre € que conse- ue construir a sociedade politica como uma sociedade ‘cam soberania limitada. Em substancia, a doutrina, es- evialmente a doutrina dos direitos naturais, inverte 0 iandamento do curso histérieo, colocando no inicio como Tundamento, e portanto como prius, aguilo que ¢ histori- niente 0 resultado, o posterius. ‘Afirmagio dos direitos naturais ¢ teoria do contrato social, ou contratualismo, estao estreitamente figados. A igia de que 0 exercicio do poder politico apenas é lest finw se fundado sobre © consenso daqueles. sobre os ‘auais deve ser exercido (também esta é uma tese lockea- ana), © portanto sobre um acordo entre aqueles que deci lon submeter-se a um poder supetior e com aqueles a syuem esse poder & confiado, é uma idéia que deriva da inessuposigao de que os individuos tém direitos que nao slepnudem da instituigdo de um soberano e que a institui- ‘gto «lo soberano tem a principal fungo de permitir a Janina explicitagao desses direitos compativel com a srnuranca social{ O que une a doutrina dos dirsitos do contratualismo € a eomum concepgao indivi 30 segundo a qual pri- ividuo singular com seus interesses € ws eardneias, que tomam a forma de direitos em Ja assungao de uma hipotética lei da natureza, € soviedade, e nfo vice-versa como sustenta 0 of- fem todas as suas formas, segundo 0 qual a noelevlade € anterior aos individuos ou, conforme a for- mila aristotslica destinada a ter éxito ao longo dos séeu- lis, ela 6 anterior as partes.YO contratualismo moder: hus tepresenta uma yerdadeira feviravolta na hist6ria do ppensaimento politico dominado pelo organicismo na me- sida em que, subvertendo as relagées entre individuo scivdkide, faz da sociedade nfo mais um fato natural, a evistir independentemente da vontade dos individuos, rs NORBERTO BOBBIO mas um corpo artifical, eriado pelos individuos & sua imagem esemethanea e para a satisfac de seus interes: ses carénciase 0 mais amplo exercici de seus dieit Por sua ver, 0 acordo que dé origem ao Estado & possivel porque, segundo a teoria do direito natural, existe na naturera uma lei que atribu a todos os individuos alguns direitos fundamentais de que oindividuo apenas pode se ddespir vluntariamente, dentro dos limites em ave esta renincla, concordada com a anéloga renGincie de todos os outros, permita a composicio de uma lire e ordenada Sem essa verdadeirarevolugo copernicana, & base da qual © problema do Estado passou a ser visto nto ‘mais da parte do poder soberano mas da parte dos sid- tos, ni seria possivel a doutrina do Estado liberal, ave & inprimis a doutrina dos limits juridicos do poder esta- {allSem individualism ndo ha liberaismo, 3. Os limites do poder do Estado Valow-se até aqui genericamente de Estado limitado nde limites do Estado, Deve-se agora precisar que essa ‘reso compreende dois aspectos diversos do proble- tit axpectos que nem sempre slo bem distinguidos: a) th limites dos poderes;b) os limites das funcdes do Esta- tio, A outrina liberal compreende a ambos, embora Immun cles ser tratados Separadamente, um excluindo © tiutrn{O iberalisma uma dovtrina do Estado limitado tants von respite aos seus poderes quanto as suas fun- joes Wo nosy corrente que serve para representar © pric tiwtité Fstado de direito; @ nogio corrente para repre- tur sexundo € Estado muiximo |Embora o liberal inweeneeba o Estado tanto como Esiado de direito quan- team Estado minimo, pode oeorrer um Estado de di teil que no seia mimo (por exemplo, o Estado social ‘tempordineo) e pode-se também conceber um Estado iniinwe que no seja um Estado de direto (tal como, com respeito & esfera econémica, o Leviatd hobbesiano, ‘ea mesmo tempo absoluto no mais pleno sentido da thalayra e fiberal em economia). Enguanto 0 Estado de * [NORBERTO BORBIO iteto se contrapie ao Estado absoluto entendido como Tegibues solutws, 0 Estado minimo se contrapée a0 Esta~ doméximo: deve-se, entio, dizer que o Estado liberal se fafirma na luta contra o Estado absoluto em defesa do Estado de direitoe contra 0 Estado méximo em defesa do Estado minimo, ainda que nem sempre os dois movimen- tos de emancipaczo coineidam historia epraticamente: ’Por Estado de direto entende-se geralmente um Es tado.em que os poderes puiblicos sio reguiados por nor sas gerais (as leis fundamentais ov constitucionsis) ¢ ddever ser exercidos no Ambito das leis que 0s regula, Salvo o diteito do cidadao de revorrer a win juz indepen- dente para fazer'com que seia reconhecido e refutado 0 abuso ou excesso de poder. Assim entendido, o Esta 4 de direto reflte a velha dovtrina — associnds aos Wssicos e transmitida através das dovtrinas_politicas tmedievais — da superioridade do governo das leis sobre 6 governo dos homens, segundo a formule lex facit re~ gem,’ douttina essa sobrevivente inclusive na idade do fbsolutismo, quandoa méxima princeps legibus solurus* éentendida no sentido de que o soberano no estava su- Jelto as leis positivas que ele proprio emanava, mas esta- ‘a sujeito as leis divinas ou naturais¢ as leis fundamen. {ais do reino, Por outro lado, quando se fala de Estado td dreito no ambito da doutrina liberal do Estado, deve- se actescentar & definic2o tradicional uma determinacio Ulterior: a constitucionalizagto dos direitos naturals, ou seia, a transformagio desses direitos em direitos juridi- camente protegidos, isto 6, em verdadeiros direitos posi- fivos. Na doutrina iberal, Estado de diteito significa nto 56 subordinagio dos poderes piblicos de qualquer grau (7H. Bratn, De Legis ot Comucadiibus Angle, B, Woo bin one), Cambridge, Mass Hararé Users Pros, 1968, v2 p39. (8) Ubpiano, Dig. 13.3 LIBERALISMO E DEMOCRACIA 8 as leis gerais do pais, limite que ¢ puramente formal, ‘mas também subordinagio das leis ao limite material do reconhecimento de alguns direitos fundamentais con derados constitucionalmente, e portanto em linha de principio “invioléveis” (esse adjetivo se encontra no art. 2° da constituicio italiana), Desse ponto de vista pode-se falar de Estado de direito em sentido forte para disti tauislo do Estado de direito em sentido fraco, que é 0 Es- ado nio-despético, isto é, dirigido no pelos homens, ‘mas pelas leis, e do Estado de direito em sentido fraquis- simo, tal como o Estado kelseniano segundo o qual, uma ver resolvido o Estado no seu ordenamento juridico, todo Estado é Estado de direito (e a propria nogio de Estado de direito perde toda forca qualificadora), Do Estado de direito em sentido forte, que é aquele préptio da doutrina liberal, so parte integrante todos ‘0s mecanismos constitucionais que impedem ou obstacu- lizam 0 exercicio arbitrario e ilegitimo do poder e impe- ddem ou desencorajam 0 abuso ou o exercicio ilegal do poder. Desses mecanismos os mais importantes sao: 1) 0 ‘controle do Poder Executivo por parte do Poder Lexisla- tivo: ou, mais exatamente, do governo, a quem cabe 0 Poder Executivo, por parte do parlamento, a quem cabe ‘em titima instancia o Poder Legislative e a orientagio politica; 2) o eventual controle do parlamento no exeret- civ do Poder Legislativo ordinario por parte de uma corte iutisdicional a quem se pede @ averiguagio da const ‘ucionalidade das leis; 3) uma relativa autonomia do go- verno local em todas as suas formas e em seus graus com respeito ao governo central; 4) uma magistratura inde- pendente do poder politico. | 4. Liberdade contra poder oe a na adr rio Gos abusos do poder Em outras palavras, sho garantias Sin te de era a Se date rae tna or avcmana oe med te ate ae me TaD a ora, a ae De fos manos anid go enti ta il poo nbee eT LIBERALISMO 1: DEMOCRACTA a internacional,|No pensamento liberal, teoria do controle ddo poder e teoria da limitagao das tarefas do Estado pro- teedem no mesmo passo: pode-se até mesmo dizer que a segunda é a conditio sine qua non da primeira, no senti- do de que o controle dos abusos do poder 6 tanto mais fé- cil quanto mais restrito € o Ambito em que o Estado pode cestender @ propria interveng30, ou mais breve e simples tniente no sentido de que o Estado minimo & mais contro- tivel do que o Estado maximo: Do ponto de vista do indi- viduo, do qual se poe 0 liberatismo, o Estado & conce- hide como um mal necessério; e enquanto mal, embora nevessario (e nisso o liberalismo se distingue do anar- ‘guismo), 0 Estado deve se intrometer o menos possivel na tesfera de ago dos individuos. As vésperas da revolugto americana, Thomas Paine (1737-1809), autor de um en- Ssaio em defesa dos direitos do homem, expressou cor ‘grande clareza tal pensamento: [A sociedade & produzida por nossas caréncias ¢ 0 governo por nossa perversidade; a primeira promove ‘a nossa felicidade positivamente mantendo juntos 08 tnossos afetos, 0 segundo negativamente mantendo sob freio os nossos vicios. Uma encoraja as relacdes, ‘outro cria as distingSes. A primeira protege, 0 se gundo pune. A sociedade é sob qualquer condicio tuma bénedo; o governo, inclusive na sua melhor for- ‘ma, nada mais & do que um mal necessério, e na sua piot forma é insuportavel.* Uma ver definida a liberdade no sentido predomi- ‘ante da doutrina liberal como liberdade em relaea0 a0 (9) Tomas Paine, Common Sens (1778 (ait in Thoms Pie ir elt Cora Mag org) Er Riv, 178. 2 NORBERTO BOBBIO Estado, 0 processo de formagio do Estado liberal pode ser identifieado com o progressivo alargamento da esfera de liberdade do individuo, diante dos poderes piblicos (para usar os termos de Paine), com a progressiva eman- cipacdo da sociedade ou da sociedade civil, no sentido hegeliano e marxiano, em relaglo ao Estado. As duas principais esferas nas quais ocorre essa emancipagio sao ‘aesfera religiosa ou em geral espiritual ¢ a esfera econ- mica ou dos interesses materiais, Segundo a conhecida tese weberiana sobre as relagdes entre ética calvinista © espirito do eapitalismo, os dois processos estio estreita: ‘mente ligados. Mas, independentemente dessa discutida conexio, é um fato que a historia do Estado liberal coin- cide, de um lado, com o fim dos Estados confessionais ¢ ccom a formagio do Estado neutro ou agnéstico quanto ‘us erengas religiosas de seus cidadaos, e, de outro lado, com o fim dos privilégios e dos vineulos feudais ¢ com ‘aexigéncia de livre disposigio dos bens e da liberdade de troca, que assinala o nascimento e 0 desenvolvimento da sociedade mercantil burguesa. Sob esse aspecto, a concepsio liberal do Estado con: trapde-se as varias formas de paternalismo, segundo as quais 0 Estado deve tomar conta de seus séditos tal ‘como 0 pai de seus fillos, posto que os siditos sio consi- dlorados como perenemente menores de idade. Um dos fins a que se prope Locke com os seus Dois Ensaios s0- bre o Governo 60 de demonstrar que o poder civil, nas- ‘ido para garantir a liberdade c a propriedade dos indivi ‘duos que se associam com o propésito de se autogover- nar 6 distinto do governo paterno e mais ainda do patro- nal. O paternalismo também é um dos alvos methor de- finidos e golpeados por Kant (1724-1804), para quem ‘um governo fundado sobre o principio da benevo- Iéneia para com 0 povo, como o governo de um pai sobre os fos, isto é, um governo paternalista (im- erium paternale), no qual 0s siditos, tal como fi- thos menores incapazes de distinguir o itil do preju dicial, estio obrigados a se comportar apenas passi- vamente, para esperar que o chefe do Estado julgue de que modo devem eles ser felizes e para aguardar apenas da sua bondade que ele 0 queira, um gover: ‘no assim 60 pior despotismo que se possa imaginar.” Kant preocupa-se, sobretudo, com a liberdade mo- ral.dos individuos. Sob o aspecto da liberdade econdmica ‘ou da methor maneira de prover aos proprios interesses materiais, nao menos clara e conhecida é a preocupagaio de Adam Smith, para quem, “segundo o sistema da li- berdade natural”, 0 soberano tem apenas trés deveres de grande importincia, vale dizer, a defesa da sociedade contra os inimigos externos, a protegio de todo individuo das ofensas que a ele possam dirigir os outros individuos, 0 provimento das obras piblicas que nao poderiam ser executadas se confiadas a iniciativa privada. Embora, possam ser distantes os pontos de partida de cada um ddcles{ tanto em Kant quanto em Smith a doutrina dos limites das tarefas do Estado funda-se sobre o primado «la liberdade do individuo com respeito ao poder sobera- nove, em conseqiiéncia, sobre a subordinagio dos deveres «losoberano aos direitos ou interesses do individuo.? ‘Ao final do século das Declaragaes dos Direitos, de Kant e de Smith, Wilhelm von Humboldt (1767-1835) escreve a sintese mais perfeita do ideal liberal do Estado, ‘com as Idéias para um “Ensaio sobre os Limites da Ati- (10) E. Kan, Uber de Gemeinpruc: Des mag in der hei richie ssi, tug abor ike fre Pras (183) ra. Sop dat comune ‘Questo vere pata tea mn ve pt la ra. Ka, Ser Pai ea soi della Stra del Dito, Tai, Ue, 1586, p88, ay NORBERTO HOBBIO vidade do Estado"*(1792). Como se nao bastasse o titulo, ppara compreender a intengio do autor podemos reconres Pindsima inserida no primeiro capitulo, extraida de Mi rabeau pait © sificil € promulgar apenas as leis necessirias € permanecer sempre fil a principio verdadelramen- Pe constitucional da sociedade, o de se proteger do furor de governar, a mais funesta doenga dos gover- nos modernos. ‘Sobre o ponto de partida do individuo em sua inetd: vel singularidade e variedade, 0 pensamento de Hum- Boldt é seco e conciso, O verdadeiro objetivo do homem, firma, € 0 maximo desenvolvimento de suas faculdades. Em vista do alcance desse fim, a méxima fundamental ‘que deve guiar 0 Estado ideal &a seguinte: ‘© homiem verdadeiramente razodvel no pode dese~ jar outro Estado que ndo aquele no qual cada indi’ ‘gue possa gozar da mais ilimitada liberdade de de Senvelver a si meso, em sua singularidade incon- fundivel, e a natureza fisica nao receba das miios do homem outra forma que nfo a que cada indivi: Guo. na medida de suas caréncias ¢ inclinagdes, @ fla pode dar por seu livre-arbitrio, com as Gnicas entrigdes que derivam dos limites de suas Forgas © de seu direito." ‘Aconseqiéncia que Humboldt extrai dessa premis: sa é que o Estado nio deve se imiscuir “na esfera dos (an) W. von Haribo, en 2 cine “Vere die Green de uate bein (1792) ad Hee rer “Sagi sl Lit del it rE Seta org) Babs 1 Mio, 196 P62) LUIBERALISMO E DEMOCRACIA B negécios privados dos cidados, salvo se esses neg6cios traduzirem imediatamente numa ofensa ao direito de um por parte de outro”. Ao lado da subversio das relagbes| tradicionais entre individuos e Estado, proprio da con- cepgio orginica, ocorre também, com respeito @ essas proprias relagdes, @ subversio dos nexos entre meio € fim:(segundo Humboldt, o Estado nao € um fim em si ‘mesmo, mas apenas um meio “para a formagio do ho: ‘mem’, Se o Estado tem um fim dltimo, esse & 0 de “‘ele- var 0s Gidadios ao ponto de poderem cles perseguir es pnlaneamente o fim do Estado, movidos pela Gnica ideia da vantagem que a organizacdo estatal a eles ofere- ce para o alcance dos préprios objtivos individuais”* Repetidas vezes se afirma no ensaio que fim do Estado é apenas a “seguranga”, entendida como a “certeza da I bberdade no ambito da lei. Un Trae. p. 6, (13) Trad p98. (09) rad tp 1. 5. O antagonismo é fecundo ‘Ao lado do tema da liberdade individual como fim Ainico do Estado e do tema do Estado como meio ¢ nao ‘como fim em si mesmo, o escrito de Humboldt apresenta ‘um outro motivo de grande interesse para a reconstrugio da doutrina liberal: 0 elogio da “variedade". Numa cer- rada eritiea ao Estado providencial, ao Estado que de- monstra excessiva solicitude para com o “bem-estar” dos cidadiios (uma eritica que prefigura a andloga denGncia dos presumiveis equivocos do Estado assistencial por parte do neoliberalismo contemporaneo), Humboldt ex plea que a intervengio do governo para além das tarefas {que le eabem — relativas & ordem externa e & ordem interna — termina por eriar na sociedade comportamer tos uniformes que sufocam a natural variedade dos caré teres e das disposigaes. Aquilo a que os governos tendem, 1 despeito dos individuos, sio 0 bem-estar e a calma: “Mas o que o homem persegue e deve perseguir & algo completamente diverso, évariedade e atividade"* Quem (9) Trad cp. 6 LIBERALISMO E DEMOCRACIA pensa diversamente suscita a fundada suspeita de consi- derar os homens como autématos. "De decénio em decé: rio” — anota (mas 0 que nao teria afirmado diante da “cela de ago” do Estado burocritico de hoje?) — “au- mentam, na maior parte dos Estados, o pessoal dos fun- cionarios e os arquivos, enquanto diminui a liberdade ‘dos siditos”.* Conclui: "Desconsideram-se assim 08 bo- mens... para ocuparem-se das coisas; as energias para interessarem-se pelos resultados”."” esse modo, a defesa do individuo contra a tentagao «lo Estado de prover ao seu bem-estar golpeia no apenas a esfera dos interesses, mas também a esfera moral; hoje estamos demasiadamente influenciados pela critica ex- lusivamente econdmica ao Welfare State para nos dar- mos conta de que o primeiro liberalismo nasce com uma forte carga ética, com a eritiea do paternalismo, tendo a sua principal razao de ser na defesa da autonomia da ‘pessoa humana, Sob esse aspecto, Humboldt vincula-se 1 Kant, este e Humboldt a Constant. Mesmo em Smith, aque de resto antes de ser um economista foi um moralis- ta, a liberdade tem um valor moral ‘Ao tema da variedade individual contraposta a uni fonnvidade estatal vincula-se o outro tema caracteristico & inovador do pensamento liberal: a fecundidade do anta- twonismo, A tradicional concepcao orgiinica da sociedade ‘stima a harmonia, a concérdia mesmo que forgada, a ‘subordinagio segulada e controlada das partes ao todo, ‘tdenando 0 conflito como elemento de desordem e de tlesagregagdo social. Ao contraio disso, em todas as eor- inles de pensamento que se contrapdem ao organicismo finmarse a idéia de que o contraste entre individuos € ‘:rupos em concorréncia entre si (inclusive entre Estados, (09) Fra. 9.73, * NORBERTO BOBBIO donde o elogio da guerra como formadora da virtude dos povos) & benéfico e & uma condicao necessiria do pro- ‘resto téenico e moral da humanidade, o qual apenas se explicita na contraposi¢ao de opinides e de interesses di vversos, desde que desenvolvida essa contraposigio no de- bate das idéias para a busca da verdade, na competigto ‘econémica para o aleance do maior bem-estar social, na Iuta politica para a selegdo dos melhores governantes, Compreende-se assim como é que, partindo dessa con- cepedo geral do homem e da sua histéria, a liberdade individual entendida como emancipagio dos vinculos que a tradieao, 0 costume, as autotidades sacras e pro- fanas impuseram aos individuos no decorrer dos séculos, tome-se uma condigdo necessaria para permitir (junta mente com a expresso da “variedade” dos cardteres in: viduais) 0 contlito e, no conflito, 0 aperfeicoamento reci proco. No ensaio Idéia de uma Hist6ria Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita (1784), Kant expressou com ‘6 maximo despreendimento a convicgao de que 0 anta- sgonismo é “o meio de que se serve a natureza para reali zar 0 desenvolvimento de todas as suas disposigoes”,™ entendendo por “antagonismo” a tendéncia do homem de satisfazer os proprios interesses em coneorréncia com fs interesses de todos os demais: uma tendéncia que exci- ta todas as suas energias, 0 induz a veneer a inclinagio & reguiga e a conquistar um posto entre os seus consécios. Sobre o significado nao apenas econ6mico mas moral da sociedade antag6nica contraposta & sociedade harmdni- cca, Kant formula um juizo que pode muito bem ser con- siderado como o nticleo essencial do pensamento liberal: (18) E.Kant, ees cine llgemeinn Geachche in webirseicher Asch, 1784 eet, Lena a Storia Unverle dal Pt di Vt Co. LIBERALISMO E DEMOCRACIA » ‘Sem a insocialidade, todos os talentos permanece- riam fechados numa vida pastoral arcddica...; sem ela 08 hhomens, tal como as boas ovelhas conduzidas ao pasto- twin, nao dariam valor algum a existéncia”. E do enun- lo desse juizo categ6rico extrai o seguinte hino a sa- piiéneia da eriagao: Devemos, entlo, dar gragas & natureza pela intra- labilidade que gera, pela invejosa emulagao da vai dade, pela eupidez jamais satisfeira de possuir e de dominar! Sem isso, todas as excelentes disposigdes naturais intrinsecas & humanidade permaneceriam elernamente adormecidas sem qualquer desenvol- vimento.” ‘Como teoria do Estado limitado, o liberalismo con- Iuupoe o Estado de direito ao Estado absoluto ¢ o Estado mo ao Estado maximo. Através da teoria do pro- iuresso mediante o antagonismo, entra em campo a con- Lraposigdo entre os livres Estados europeus e 0 despotis- inv oriental. A categoria do despotismo é antiga e sempre ove, além do seu significado analitico, um forte valor ico, Com a expanstio do pensamento liberal, a ela se acrescenta tima ulterior conotagdo negativa: precisa- cate en decorséncia da submissio geral — pela qual, ‘com jf havia dito Maquiavel, o principado do Turco & novernado “por um prineipe e todos os outros so ser- vas", ou eno, como did Hegel (1770-1831), nos rei- tins despticos do Oriente “apenas um é livre" —, os a (0) NeMachorli If Principe 9p. 4, in Pte le Oper, lara one eli, Mondads, 199, yop 1 ) GW Hep, Vrsungen er de Phibsophie der Geschichte i econ sla Pf dle Sera, Flere, La Nao Talla, 1947, p88" %” NORBERTO BOBBIO Estados despaticos sto estaciondrios ¢ iméveis, nao es: tando sujeitos & lei do progresso indefinido que vale ape- nas para a Europa civil. Desse ponto de vista, o Estado liberal converte-se, mais que numa categoria politi ral, também num critério de interpretagao historica, 6. Democracia dos antigos e dos modernos Como teoria do Estado (e também como chave de interpretagao da histéria), 0 liberalismo & moderno, en- quanto a democracia, como forma de governo, é antiga. crsamento politico grego nos transmitiu uma eélebre Aipotogia das formas de governo das quais uma é a demo: racia, definida como governo dos muitos, dos mais, da iniotia, ow dos pobres (mas onde os pobres tomam a slinnteira & sinal de que poder pertence ao pléthos, & ‘uuassa), em suma, segundo a propria composic’o da pa- Invra, como governo do povo, em contraposigio a0 g0- sen le uns poweos. Seja o que for que se diga, a verda- tle & que, nao obstante o transcorrer dos séculos ¢ todas ns diseussdes que se travaram em torno da diversidade da ioeracia dos antigos com respeito & demoeracia dos lernos, 0 significado descritivo geral do termo nao se lterou, embora se altere, conforme os tempos ¢ as dou- {tinas, 0 seu significado valorativo, segundo 0 qual 0 g0- ‘yemnw do povo pode ser preferivel ao governo de um ou de ppoucos e vice-versa. O que se considera que foi alterado tna passagem da democracia dos antigos a democracia NORBERTO ROBBIO dos modernos, ao menos no julgamento dos que véem como itil tal contraposigao, nao & 0 titular do poder poli tico, que é sempre 0 “povo”, entendido como 0 conjunto dos cidadios a que cabe em tiltima instAncia o direito de tomar as decisdes coletivas, mas © modo (mais ou menos amplo) de exercer esse direito: nos mesmos anos em que, através das Declaragdes dos Direitos, nasce o Estado constitucional moderno, os autores do Federalista con: trapdem a democracia direta dos antigos e das cidades medievais A democracia representativa, que € © ‘nico ‘governo popular possivel num grande Estado, Hamilton se exprime do seguinte modo: E impossivel ler a respeito das pequenas repiiblicas dda Grécia e da Italia sem provar sentimentos de hor- ror ¢ desgosto pelas agitagdes a que estavam elas submetidas, e pela répida sucesso de revolugoes ue as mantinham num estado de perpétua incerte- 2a entre os estidios extremos da tirania e da anar- quia ‘Madison the faz eco: defensor de governos populares jamais se encon- traré to embaragado em considerar 0 cardter € 0 destino deles como quando apreciar a facilidade ‘com que degeneram aquelas formas corruptas do vi- ver politico.” (22) A Humilon, Jaye, Mason, The Federal (1738) (edit 4 Federale, MAA ©. Neg (rs). Boone, tt Maino, 1980 P89. (23) Tra. le 9.8 LIBERALISMO E DEMOCRACTA a Afirmar que 0 defeito da democracia citadina fosse o asitar-se das facgdes era, na realidade, um pretexto € refletia o antigo e sempre recorrente desprezo pelo povo por parte dos grupos oligarquicos: as divisBes entre par- {es contrapostas itiam se reproduzir sob a forma de par- tidos nas assembléias dos representantes. O que, a0 con Iririo, constituia a Gnica e sélida razio da democracia ropresentativa eram objetivamente as grandes dimensbes dos Estados modernos, a comecar da propria unio das troze coldnias inglesas, a respeito de cuja constitui¢zo ts esctitores do Federalista estavam discutindo. Havia econhecido isso 0 proprio Rousseau, admirador apai- onado dos antigos que tinha tomado a defesa da de- hncraeia direta sustentando que “a soberania nfo pode sr representada” ¢, portanto, “o povo inglés cré ser livre, mas se equivoca redondamente; s6 0 € durante clvigaio dos membros do parlamento; tio logo sio esses ‘lito, ele volta a ser eseravo, ndo é mais nada’” Rous- tein, entretanto, também estava convencido de que “inna verdadeira demoeracia jamais existiv nem existi- i", pois exige, aeima de tudo, um Estado muito peque- tno, “ho qual seja féeil ao povo se reunir"; em segundo lugar, “una grande simplicidade de costumes”; além do inais, “uma grande igualdade de condighes e fortunas"; vor fin, “pouco ow nada de lux0", Donde era levado a ccaneluis: “Se existisse um povo de deuses, seria gover: slo democraticamente. Mas um govern assim perfeito thio é feito para os homens".® Tanto os autores do Fede rulista quanto os constituintes franceses estavam conven- witlos de que o nico governo democratico adequado a tum povo de homens era a democracia representativa, ayuela forma de governo em que © povo mio toma ele (26) 2.3. Rowueun, trv Comaret Soot, 1, 15 trad cit, p. 802). o NORBERTO BOBBIO ‘mesmo as decisdes que Ihe dizem respeito, mas elege seus, préprios representantes, que devem por ele decidir. Mas flo pensavam realmente que instituindo uma democ ‘ia representativa acabariam por enfraquecer o principio do governo popular. Prova disso & que a primeira consti tuigo eserita dos estados da América do Norte, a da Vir- ‘inia (1776) — mas a mesma formula se encontra tam. bbém nas constituigies sucessivas —, diz: “Todo o poder repousa no povo e, em conseqiiéncia, dele deriva; os ma- sistrados slo os seus fiducidrios e servidores, e durante todo o tempo responséveis perante ele"; 0 artigo 3° da Declaragto de 1789 repete: “O principio de toda sobera- nia reside essencialmente na nacio. Nenhum corpo, ne- hum individuo pode exercer uma autoridade que no ‘emane expressamente da nagao". A parte o fato de que 0 exereicio direto do poder de decisio por parte dos cida- «ios no € incompativel com o exer ircto através de representantes eleitos, como demonstra a existéncia de constituigbes. como a italiana vigente (que previu © instituto do referendum popular, embora apenas com cficécia ab-rogativa), tanto a democracia direta quanto a indireta descendem do mesmo principio da soberania popular, apesar de se distinguirem pelas modalidades © pelas formas com que essa soberania é exercida, De resto, a democracia representativa também nas da conviegio de que os representantes eleitos pelos cidadios estariam em condigdes de avaliar quais seriam 0s interesses gerais melhor do que os proprios cidadaos, fechados demais na contemplagio de seus proprios inte resses particulares; portanto, a democracia indireta seria mais adequada precisamente para o aleance dos fins a que fora predisposta a soberania popular. Também sob esse aspecto a contraposicao entre democracia dos anti- ‘gos e democracia dos modernos termina por ser desviat ‘e,na medida em que a segunda se apresenta, ou & apre- LIBERALISMO H DEMOCRACTA 3s sentada, como mais perfeita, com respeito ao fim, do que primeira, Para Madison, a delegagio da acto do g0- vyerno a um pequeno nimero de cidadios de provada se bedoria tornaria “menos provavel 0 sacrificio do bem do paisa consideragdes particularistas ¢transitérias” 2 Mas isso desde que o deputado, uma ver eleito, se comportas- se ndo como um homem de confianga dos eleitores que 0 linham posto no parlamento, mas como um representan- eda nacao inteira, Para que a democracia fosse em sen tido proprio representativa, era necessério que fosse ex- ‘luido mandato vinculatério do eleitor para com 0 elei- to, earacteristico do Estado de estamentos, no qual os cestamentos, as corporagies, os corpos coletivos transmi tiam ao soberano, através de seus delegados, as suas T vindicagbes particulares. Também nessa matéri nnamento vinha da Inglaterra. Burke havia dito: Exprimir uma opiniao € um direito de todo homem; ‘dos eleitores é uma opinido que pesa e deve ser res- peitada, e um representante precisa estar sempre pronto a escuticla... Mas instrugdes imperativas ‘mandatos aos quais 0 membro das Assembléias deve cexpressa e cegamente obedecer, tais coisas sio com: pletamente estranhas as leis dessa terra.” Para tornar inclusive formalmente vinculatoria @ svparagio entre representante e representado, os consti- Iuintes franceses, seguindo a opiniao efieazmente expos li por Sigyés (1748-1836), introduziram na constituigio ile 1791 a proibigdode mandatoimperativo com 0 art.72, tla sec. IIL, do eap. 1, do titulo IL, que prescreve: representantes nomeados nos departamentos no sero (26) The Fert. 8-96. (Em Elman Burkes pete che Concason of the Pallonhis Being hand Dab Elec Te Works 3. Doe, 1922p 1, % NoRBERTO HOBBIO representantes de um departamento particular, mas da nagio inteira, ¢ no podera ser dado a eles nenhum mat dato’ Desde entio, a proibigdo feita aos representantes: de receber umm mandato vinculatério da parte de seus eleitores tornar-se-4 um principio essencial ao funciona mento do sistema parlamentar, 0 qual, exatamente em virtude desse prineipio, distingue-se do vetho Estado de ‘estamentos em que vigora 0 prineipio oposto da repre- sentago corporativa fundada sobre o vineulo de manda- to do delegado que ¢ institucionalmente chamado a de- fender os interesses da corporagdo, disso nao se podendo distanciar sob pena de perder o dieito de representacao, ‘A dissolugao do Estado de estamento liberta o individuo na sua singularidade e na sua autonomia: é ao individuo enquanto tal, no a0 membro de uma corporacdo, que ccabe o direito de eleger 0s representantes da nagio — 0s quais sio chamados pelos individuos singulares para re presentar @ nagdo em seu conjunto e devem, portanto, desenvolver su agi e tomar suas decisdes sem qualquer vineulo de mandato, Se por democracia moderna enten de-se a democracia representativa, e se a demoeracia re presentativa é inerente a desvinculagdo do representante {da nagio com respeito a0 singular individuo representa: ‘do € a0s seus interesses particularistas, entio a democra: cia moderna pressupde a atomizagio da nacio e @ sua recomposigio num nivel mais elevado e ao mesmo tempo mais restrito que & 0 das assembléias parlamentares. Mas tal processo de atomizagio é 0 mesmo processo do ‘qual nasceu a concepetio do Estado liberal, cujo funda- ‘mento deve ser buscado, como se disse, na afirmagao dos direitos naturais einviolaveis do individuo. (28) Paraum coment sre tema, ser P. Wome Lopez deta SS Ee ee ee re 7. Democracia e igualdade © fiberalismo dos modernos e a democracia dos an tins foram freqllentemente considerados antitéticos, no sentido de que os democratas da antigiidade nio conhe- nn nem a doulvina dos direitos naturais nem o dever siado de limitar « propria atividade ao minimo ne- ‘cessirio para a sobrevivéneia da comunidade. De outra parte os moderns Uberais nasceram exprimindo uma tprafunda deseonfianga para com toda forma de governo ponular, tendo sustentado e defendido 0 surgi restrito thurauite todo 0 arco do século XIX e também posterior inte, 34 a democracia moderna no s6 no é incompa- Hivel cai © liberatismo como pode dele ser considerada, sul nnuitos aspeetos e 20 menos até um certo ponto, um natural prosseguimento, ‘Com uma eondiggo: que se tome 0 termo “demo- * em seu significado juridico-institucional e nto no ‘ico, ou seja, num significado mais procedimental do ‘que substancial, E inegivel que historicamente “demo: ‘cracia teve dois significados prevalecentes, 20 menos na ‘origem, conforme se ponha em maior evidéncia o conjun- to das regras cuja observincia é necesséria para que o * [NORBERTO BOBBIO poder politico seja efetivamente distribuido entre a maior parte dos cidadiis, as assim chamadas regras do jogo, fou o ideal em que um governo democritico deveria sé inspirar, que é o da igualdade. A base dessa distingao ccostuma-se distinguir a democracia formal da substan: cial, ou, através de uma outra conhecida formulagio, ‘democracia como governo do povo da democracia como ‘governo para o povo. No &o caso, aqui, de repetir aind: uma vez que nessas duas acepgies a palavra ““democra- cia” 6 usada em dois significados diversos:o sufi para produzirem inGteis e interminéveis discussées, ‘como a dedicada a saber se ¢ mais democritico um regi- ‘me em que a democracia formal nfo se faz acompanhar de uma ampla igualdade ou o regime em que uma ampla igualdade 6 obtida através de um governo despético. Desde que na longa historia da teoria democritica se combinam elementos de método e motivos ideais, que apenas se encontram fundidos na teoria rousseauniana, nna qual o ideal fortemente igualitario que a move s6 en- contra realizagao na formagio da vontade geral, ambos (05 signifieados so historicamente legitimos. Mas a legi- timidade hist6rica de seu uso ndo permite nenhuma ila clo sobre a eventual presenca de elementos conotatives Dos dois significados, € o primeiro que esta histori- ‘camente ligado 3 formagio do Estado liberal. No caso de se assumir o segundo, o problema das relagbes entre libe- ralismo e demoeracia torna-se muito complexo, tendo jé dado lugar, ¢ hd motivos para erer que continuard a dar lugar, a debates inconclusivos. De fato, nesse modo 0 problema das relagbes entre liberalismo e democracia se resolve no dificil problema das relagbes entre liberdade e igualdade, um problema que pressupde uma resposta uunivoea a essas duas perguntas: “Qual liberdade? Qual igualdade?”. JeMOCRACIA » \Em seus significados mais amplos, quando se esten: dam a esfera econdmica respectivamente o direito a li herdade co direito aigualdade, como ocorre nas doutrinas, ‘opostasdoliberismo* e doigualitarismo, iberdade eigual- Alade sio valores antitéticos, no sentido de que nfo se pode realizar plenamente um sem limitar fortemente 0 ‘outro: uma sociedade liberal-liberista € inevitavelmente ‘fo-igualitéria, assim como uma sociedade igualitaria é inevitavelmente ndo-liberal. Libertarismo e igualitarismo {undam suas raizes em concepgtes do homem e da socie- dlade profundamente diversas: individualista, conflitua- lista € pluralista a liberal; totalizante, harménica © mo- hista aigualitéria.’Para o liberal, o fim principal & a ex- ppansto da perscinalidade individual, mesmo se o desen- volvimento da personalidade mais rica e dotada puder se afirmar em detrimento do desenvolvimento da persona- lidavle mais pobre e menos dotada; para o igualitario, 0 mi principal 60 desenvolvimento da comunidade em seu conjunto, mesmo que ao custo de diminuir a esfera de Ibersade dos singulares.. | A tinica forma de igualdade que nao s6 é compativel ‘oom a liberdade tal como entendida pela doutrina libe- ral, ns que é inclusive por essa solicitada, & a igualdade i liberdade: © que signifies que cada um deve gozar de ‘nua fiberdade quanto compativel com a Tiberdade dos ‘mutts, podendo fazer tudo o que ndo ofenda a igual li- hheriade dos outros.\Praticament desde as origens do studo liberal essa forma de igualdade inspira dois prin- lpios fundamentais, que sio enunciades em normas cvonstitucionais: a) a igualdade perante a lei; >) (©) Como ler claro so longo do texto, ¢parilarmente no cap ub 1, af malian false em "eri para desgar sored © ‘lw do iberatsmo eeonimio, do ve-carbae,feando otro “be io” reseed pats ouninese do Halen poles. (8. 7)

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