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Revista de Economia Politica, vol. 9, n° 4, outubro-dezembro/1989 Formagio econémica do Brasil: uma obra-prima do estruturalismo cepalino* RICARDO BIELSCHOWSKY** INTRODUCAO Formagéo Econémica do Brasil, de Celso Furtado, continua sendo, 30 anos apés seu lancamento, a mais fa- mosa e divulgada obra da literatura econémica brasileira, editada em nada menos que dez idiomas e um quarto de milhio de exemplares. O presente artigo faz um retorno ao contexto intelec- tual da época do seu langamento, quando foi imediatamen- te identificado como um marco na historiografia brasileira, exercendo marcante influéncia sobre a intelectualidade das ciéncias sociais do pais. Busca-se, aqui, identificar, no li- vro, as preocupagoes analiticas tipicas do quadro desen- volvimentista dos anos cingiienta e ressaltar sua funda- mentagio “estruturalista-cepalina”. O livro teve, como importante dimensdo, a de haver sido instrumento da militancia intelectual de Furtado no sentido da consolidagao da consciéncia desenvolvimentista * Este texto é uma versio ligeiramente modificada de uma segio do livro Pensamento Econémico Brasileiro — O Ciclo Ideolégico do Desenvolvimento (Bielschowsky, 1988). © liyro descreve e analisa as correntes de pensamento econémico do periodo 1930/1964, a obra de seus principais economistas — Celso Furtado, Eugénio Gudin, Roberto Simonsen, Roberto Campos, Igndcio Rangel ¢ outros — e o “movimento” desse pensamento, seu “ciclo ideolégico” (“Origens”, de 1930 a 1945; “Amadurecimento”; dai até 1955; “Auge”, durante 0 governo Kubitschek, ¢ “Crise”, entre 1961 © 1964). A referida segéo inclui-se no capitulo “Furtado e as Caracteristicas Distintivas do Pensamento Desenvolvimentista Nacionalista Brasileiro”. ** Do Instituto de Economia Industrial da Universidade Federal do Rio de Janeiro — TEI/UFRJ. 38 brasileira, que estava requerendo uma argumentagao histérica. O esforgo de elaboragdo dessa argumentagio, que ocupou o autor por muitos anos — a versio preliminar da obra fora publicada j4 em 1954, sob o titulo A Econo- mia Brasileira — resultou num avanco da propria abordagem estruturalista. Para entender o significado da inovacao analitica que a obra continha, é necessério ter em conta que, no inicio dos anos 50, a referida abordagem apresentava-se ainda duplamente vulnerdvel: em primeiro lugar, 0 quadro analitico estruturalista encontrava-se imperfeitamente delineado e a argumen- tagiio pecava por certa assistematicidade, o que tornava a proposta cepalina de anélise alternativa as teorias convencionais dificil de ser compreendida e aceita, e, em segundo, era indispensdvel a essa proposta a demonstraco de que a evolugdo histérica dos paises que em meados do século XX continuavam sub- desenvolvidos era, necessariamente, distinta daquela dos paises desenvolvidos. Apenas assim se podia legitimar a idéia de que suas estruturas econémicas € a problemética de sua transformacao eram também distintas, a ponto de exigir uma criteriosa adaptacdo da teoria corrente ¢ mesmo um esforco préprio de teorizagao. O livro de Furtado constituiu uma resposta a essa dupla vulnerabilidade: em primeiro lugar, porque, embora nao fosse seu objetivo teorizar sobre a abordagem estruturalista, a clareza do texto automaticamente reforgava a men- sagem teérica que a CEPAL vinha transmitindo aos economistas latino-america- nos; e, em segundo, e mais importante, porque Furtado fornecia um estudo hist6rico decisivo para a legitimagao da referida abordagem, pelo menos no que se refere ao caso brasileiro. Um bom exemplo de como a obra preenchia a lacuna basica da proposi- do estruturalista € dado pela dificuldade em responder adequadamente a uma inquietante pergunta, comum na época e sugerida pelos préprios elementos dispersos nos textos da fase pioneira da CEPAL ou seja: “Por que razdes ter- se-ia a estrutura econémica dos paises latino-americanos tornado tao distinta daquela que se observava em outros paises jovens, como os Estados Unidos?” ‘Ao aceitar o desafio de responder a esse tipo de questo, aprofundando- se no estudo da histéria econémica do Brasil. Furtado alcangou um resultado duplamente feliz: em primeiro lugar, deu uma resposta a essa e outras inda- gagdes bésicas, através de uma abrangente explicagdo estruturalista da for- macao econémica do pais; e, em segundo, ao fazé-lo, conferiu definitiva legi- timidade & abordagem no Brasil ¢, mais ainda, criou uma metodologia estru- turalista de andlise da histéria de paises periféricos, desvendando um alcance analitico da abordagem estruturalista que causou admiragao aos proprios eco- nomistas da escola cepalina. Nao foi outro o reconhecimento que a obra obteve de um dos mais des- tacados membros da CEPAL, Noyola Vasquez, ainda a partir de sua versio de 1954, isto é, de A Economia Brasileira: “Em muito poucos casos poder-se-4 apreciar melhor o grau de ma- dureza e de independéncia alcancado pelo pensamento econémico latino- americano, como nesse livro. A obra de Furtado nao é sé muito valiosa por sua penetrante andlise da histéria econdmica do Brasil, mas, sobretu- do, por sua contribuigéo metodoldgica. Trata-se de uma sintese feliz de I6gica cartesiana ¢ consciéncia histérica. O afd cartesiano da preciso e clareza leva o autor a reduzir a modelos de grande simplicidade a estru- tura e o funcionamento dos sistemas econémicos. Ao mesmo tempo, sua segura visio histérica o conduz a situar esses modelos em sua perspectiva adequada” [Vasquez (1955) ]. A obra deve ser vista, na verdade, muito mais como um ensaio de inter- pretagio histérico-analitica de orientagao estruturalista do que uma pesquisa hist6rica em grande profundidade. Como o préprio autor afirma na introdugdo, “o livro pretende ser tio- somente um esbogo do processo histérico de formagao da economia brasileira”, cuja preocupacdo central seria descortinar uma perspectiva a mais ampla pos- sivel ao leitor desejoso de “tomar um primeiro contato em forma ordenada com os problemas econdmicos do pais”. O objeto teria sido simplesmente a and- lise dos processos econémicos e no a reconstituigao dos eventos hist6ricos que esto por trés desse processo”. As primeiras consideragées do autor sobre a histéria econdmica brasileira aparecem num artigo publicado na Revista Brasileira de Economia (1950), do qual jd constam algumas idéias mestras da andlise posterior, como a de “deslocamento do centro dinamico” e a de “concentragéo de renda nas fases de prosperidade e socializago das perdas nas fases de depressio”. Essa tltima é explicada como resultado da pressao baixista sobre os salé- tios reais em todas as fases do ciclo econédmico. Na alta, a abundancia de méao-de-obra permitiria a apropriagéo de um excedente crescente por uma re- duzida parcela da populagio. Na fase de depressao, o prejuizo causado ao setor exportador e ao Estado pela baixa de precos da exportacao seria transfe- rido & massa compradora, através da desvalorizagao cambial. £ curioso assinalar que, nesse texto de 1950, Furtado pés grande énfase numa conclusfo, a que chegou a partir dessa andlise, que deve ter feito o deleite de economistas conservadores como Eugénio Gudin. Afirmou o autor que tais caracteristicas da economia brasileira teriam feito surgir “um espirito de elevados lucros que passard da agricultura inddstria”. Explicou que pre- dominava na indéstria um espirito protecionista exagerado, que inclufa proi- bigdo de importagdo de equipamentos para enfrentar crises, em vez de um esforgo de elevagao de produtividade. J& no livro A Economia Brasileira, porém, Furtado abandonaria esse tipo de argumentagdo. Mais ainda, abandonaria toda a abordagem & qual a mesma estava associada no texto de 1950, ou seja, a de énfase na existéncia de um empresariado dinémico como obstéculo ao desenvolvimento, expressa, por exemplo, pela seguinte passagem: 40 “Os lucros excessivamente elevados, a socializagio das perdas, o controle parcial das atividades agroexportadoras por grupos financeiros estrangeiros, 0 elevado prego do dinheiro e a debilidade do mercado inter- no — todos esses fatores concorrerdo para retardar a formagao no pais de um auténtico espitito de empresa, con ica do desenvolvimento de uma economia capitalista” (1950, p. 25). ‘A mengdo & questao de inexisténcia de um empresariado nacional din’- mico persistiria a partir dai, na obra de Furtado, apenas como reforgo & sua sistemdtica defesa de uma participacao crescente do Estado nas tarefas desen- volvimentistas. Mas deixaria de figurar, nas andlises histéricas, como fator de realce na explicagdo da formagao da estrutura subdesenvolvida da economia brasileira. Esta passou a ser analisada pelo autor em torno dos mecanismos de determinacao da renda nacional nos “ciclos” da cana-de-agtcar, mineragio e café, e na fase mais recente da industrializagdo. E a incluir, em primeiro plano, as questées de composigio de emprego, distribuigio de renda e for- magéo de mercado interno. O livro A Economia Brasileira j4 contém o arranjo conceitual bdsico de anflise histérica que figuraria no trabalho final, isto é, Formagdo Econémica do Brasil. Contém também uma introdu¢ao metodolégica, nao incluida neste tiltimo, que corresponde a um exercicio de identificagao daquilo que o autor considera ‘as categorias fundamentais do processo histérico de crescimento”. Nesse exercicio encontra-se a base conceitual de um breve ensaio de caracte- tizagio da industrializagao classica, publicado em 1955 ¢ depois inclufdo no livro Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. E contém, finalmente, um capi- tulo sobre a “formulagao tedrica do problema do desenvolvimento econdmico”, que também viria a ser incluido nesse dltimo. Formagio Econémica do Brasil corresponde ao A Economia Brasileira, destituido desses capitulos mais abstratos, modificado em algumas partes e acrescido de alguns capitulos. Entre um e outro livros o autor publicou outro texto (1956), em que a unica modificagdo importante em relagdo ao pri- meiro, além da exclusio dos capitulos metodolégicos e tedricos, € a subs- tituigo do termo “economia colonial” por “economia dependente”, na carac- terizagao da economia subdesenvolvida especializada em exportagao de produtos primérios. O texto definitivo € aproximadamente 0 mesmo que os outros dois nos capitulos finais da Parte IV, referentes 4 “economia de transigio para o tra- balho assalariado”, e nos capitulos da Parte V, em que o autor analisa o colapso da economia cafeeira e a transigéo para a economia industrial. Mas é consideravelmente mais aprofundado em todos os capitulos anteriores, que so precisamente aqueles que dao suporte a caracterizagao da estrutura bra- sileira como subdesenvolvida e & andlise dos problemas que Ihe sio especificos. 4 A ANALISE DA FORMACAO DA ESTRUTURA SUBDESENVOLVIDA BRASILEIRA: 1500/1850 Para nossos propésitos e ndo obstante a perfeita validade da organizago que o préprio autor deu ao livro, é util di lo, de forma distinta & do autor, em duas grandes partes. Uma delas compée-se dos vinte e cinco pri- meiros capitulos, ou seja, aqueles que versam sobre ocupacao territorial e economias escravistas acucareira e mineira, e os dez primeiros capftulos da Parte IV, referentes & transic¢éo para o trabalho assalariado. O autor dedica-se, nesse ponto do livro, & andlise da formacao da estrutura subdesenvolvida bra- sileira, Na outra, composta dos capitulos subseqiientes, passa a andlise da problemética de crescimento que ocorrerd nessa estrutura especifica, na fase durea da expansao cafeeira e na fase de transigéo para a economia industrial. A argumentagdo ai apresentada a respeito da expansio da produgdo e da renda e dos desequilibrios gerados no processo pressupée a caracterizagio da formagio econémica até fins do século XIX, realizada na parte anterior. No restante dessa sego faz-se uma apreciagéo do contetido das duas par- tes da obra, com o objetivo de realgar a contribuicdo ao estruturalismo que a mesma contém. Observe-se, preliminarmente, que a interpretagao do autor assenta-se basi- camente sobre trés linhas de argumentago que se encontravam bastante di- fusas nos textos anteriores, mas que se revezam de forma perfeitamente inte- grada no percurso do texto final. Uma delas consiste num feliz artificio de confronto do subdesenvolvimento brasileiro com o desenvolvimento norte-ame- ricano, a que o autor é levado por sua preocupagdo em esclarecer os determi- nantes histéricos da formagao de distintas estruturas econdmicas na “periferia do capitalismo europeu”. A segunda, reveladora da inclinagdo keynesiana do pensamento do autor, compreende a determinago dos obstéculos & expansio da renda, & formaco do mercado interno e a diversificagdo da estrutura pro- dutiva ao longo dos diversos periodos da histéria brasileira. A terceira delas € determinada pela preocupagao estruturalista com a questéo da heterogenei- dade da economia brasileira. Consiste na identificagaéo da formagao de uma ampla economia de subsisténcia, anterior ao ciclo do café, mas que sobre- viveria ao mesmo, O primeiro desses elementos expositivos est apresentado essencialmente ‘em dois momentos do livro. Nos seus primeiros capitulos, figura como parte integrante da andlise sobre os fundamentos econémicos da ocupagdo terri- torial. A explicagdo do éxito da colonizacao portuguesa baseada na explo- ragao comercial da cana-de-acucar, no século XVI e inicio do XVII, e de sua decadéncia posterior, é feita em conjunto com a anélise do tipo de coloniza- gao empreendida nas Antilhas e na América do Norte. Nessa explicagdo 0 autor oferece o ponto de partida para sua anélise posterior sobre os contrastres entre as economias norte-americana e brasileira no século XIX. Furtado argumenta que o tipo de atividade econémica prevalecente na América do Norte até o século XVII era compatfvel com a pequena proprie- 42 dade de base familiar e desvinculada do compromisso de remuneragao de vultosos capitais. O resultado teria sido a formagao de comunidades “com caracterfsticas totalmente distintas das que predominavam nas présperas cold- nias agricolas de exportagao: a produtividade média era inferior, mas também © eram a concentragao de renda e a parcela da renda revertida em beneficio de capitais foraneos”. O desfecho da comparagao entre os dois tipos de colo- nizagao é feito através do confronto entre as colénias inglesas das Antilhas eda América do Norte, ¢ consiste em dois argumentos: em primeiro lugar, 0 de que, “ao contrério do que ocorria nas colénias de grandes plantagées, em que parte substancial dos gastos de consumo estava concentrada numa redu- zida classe de proprietdrios e se satisfazia com importagées, nas colénias do Norte dos EUA os gastos de consumo se distribuiam pelo conjunto da popu- ago, sendo relativamente grande o mercado de objetos de uso comum” [Fur- tado (1979, p. 31)]; e em segundo, o de que “a essas diferencas de estrutura econdmica teriam necessariamente de corresponder grandes disparidades do comportamento dos grupos sociais dominantes nos dois tipos de coldnias”. Nas exportadoras, os grupos dominantes ligavam-se a grupos financeiros da metré- pole e consideravam a colénia como parte da grande empresa manejada na Inglaterra. Nas colnias setentrionais, as classes dirigentes guardavam ampla autonomia com relagdo A metrépole, o que “teria de ser um fator de funda- mental importancia para o desenvolvimento da colénia, pois significava que nela havia érgdos politicos capazes de interpretar seus verdadeiros interesses e nao apenas de refletir as concorréncias do centro econdmico dominante”. Essa linha de argumentagdo é retomada nos Capitulos 18 e 19, onde o autor contrasta as economias norte-americana e brasileira a época de suas independéncias: para a economia brasileira, essa teria sido uma fase excepcio- nalmente ruim, de contragéo mesmo da renda nacional; e, pata a norte-ame- ricana, uma fase de industrializagéo e de extraordindrio dinamismo. Segundo Furtado, constitui equivoco supor que uma causa bdsica para tio distintas performances tenha sido a auséncia de uma politica protecionista no Brasil, semelhante & norte-americana. Afirma que nao sé uma forte desva- lorizago cambial, ocorrida no inicio do século XIX, mais do que compensou a insuficiéncia de barreiras alfandegdrias no Brasil, como também, e muito mais importante ainda, nos Estados Unidos 0 protecionismo teria sido uma causa secundaria da industrializagao. Estariam faltando no Brasil, a época da independéncia, o mercado inter- no, a base técnica e empresarial e a indicagio das classes dirigentes de um seguro apoio A industrializagdo que caracterizavam a estrutura sécio-econémica norte-americana ao fim de sua etapa colonial. Esta contava, inclusive, com uma base industrial parcialmente fomentada pela prépria metrépole, base esta que chegava a proporcionar a produgao local de trés quartas partes de uma ampla frota de marinha mercante. O desenvolvimento norte-americano teria sido entio impulsionado por um conjunto de fatores, como, por exemplo: o estimulo @ expansio da produ- do doméstica que vinha da guerra da independéncia e das guerras napoleéni- 43 cas; e, ainda mais importante, a posigdo ‘de vanguarda” que a economia nor- te-americana logrou ocupar na propria revolugao industrial européia, através da exportagdo de algodio. O sucesso da economia norte-americana devia-se ainda, segundo o autor, & formagao de uma corrente de capitais advindos da Inglaterra. Ao mesmo tempo em que ampliava a acumulagao de capital, esse afluxo de recursos compensava os déficits externos que nem mesmo © sucesso das exportagdes permitia evitar. Em resumo, de acordo com Furtado, “o de- senvolvimento dos EUA, em fins do século XVIII ¢ primeira metade do XIX, constitui um capitulo integrante do desenvolvimento da prépria economia européia”. Ao Brasil, além da auséncia de mercado interno, de base técnica e em- presarial e de uma classe de dirigentes dindmica, faltavam esses estimulos ‘externos bésicos. Bem ao contrétio, o que se registra na primeira metade do século XIX é um estancamento nas exportagdes brasileiras. Resultava dai que © proprio nivel interno de consumo entrava em declinio, o que impedia a expansao de uma indiistria téxtil, em si j4 dificultada pela queda nos pregos dos produtos ingleses e pelo boicote inglés & exportacdo de méquinas. Além disso, a capacidade para importar tornava-se minima, com 0 que um fomento a industrializagdo significaria simplesmente “tentar o impossivel num pais totalmente carente de base técnica”. A comparacao entre as histérias das economias norte-americana e brasi- leira constitui um artificio expositivo habilmente empregado pelo autor para reforcar a caracterizagao da formagéo da estrutura econémica subdesenvolvi- da no Brasil. Mas a caracterizagao repousa, essencialmente, sobre os dois outros procedimentos metodolégicos a que nos referimos, ou seja, a descri¢ao dos determinantes da expansdo e contraco da renda monetéria a partir dos seto- res exportadores do pais e, intimamente associada, a identificagéo da forma- gao do seu setor de subsisténcia. Com efeito, os capitulos referentes & economia escravista “de agricultura tropical” e “‘mineira” e a economia “de transigio ao trabalho assalariado”, com os quais Furtado cobre mais de trés séculos da evolugao histérica brasi- leira, esto, no essencial, orientados exatamente por uma combinagio dessas duas questées. Vejamos, resumidamente, como é feita a apresentagao dessas dis- tintas partes do livro, comegando por aquela referente & economia agucarcira. Um dos pontos destacados na andlise do setor escravista agucareiro é o de que este reunia algumas das condigdes necessérias 4 geragdo de um desen- volvimento econémico dinamico. Contava, essencialmente, com ampla dispo- nibilidade de terras e com uma elevada rentabilidade exportadora. No entanto, a renda da exportaco encontra-se fortemente concentrada na classe de pro- prietérios de engenho e, além disso, revertia inteiramente para o exterior, seja através de importagées, seja através de retenc&o de parte dessa renda fora do pais por empresdrios nao-residentes, que controlavam parcela da produgdo interna. Era, segundo o autor, praticamente nula a renda monetéria interna criada na economia de trabalho escravo. Nao haveria, conseqiientemente, “ne- “4 nhuma possibilidade de que o crescimento com base no impulso externo ori- ginasse um processo de desenvolvimento de autopropulséo”. Apesar de se observar um répido crescimento populacional, através de um processo de ocupa- go de vasta area territorial, promovido pelo crescimento em extensio da ativi- dade acucareira, “o mecanismo da economia, que nao permitia uma articula- a0 direta entre os sistemas de producao e de consumo”, anulava as vanta- gens desse crescimento demogréfico como elemento dindmico do desenvolvi- mento econdmico (1979, p. 52). ‘A anilise nao se esgota nessa idéia de limitagdo A geragdo de um fluxo cumulativo de renda. Ela é estendida para explicar a forma particular com que a economia nordestina acomodava as crises do setor exportador. A idéia basica apresentada é a de que a economia escravista reagia as crises de forma distinta das economias capitalistas de trabalho assalariado, Na primeira, diante de uma redugdo da demanda externa, nao valia a pena ao empresério reduzir a utiliza- 80 da capacidade produtiva, j4 que os seus custos consistiam quase unicamente em gastos fixos. A queda na capacidade produtiva ocorria de forma apenas muito lenta, em decorréncia do fato de que, com a queda no prego das exporta- ges, 0 empresdrio via-se impedido de enfrentar os gastos de reposigio da fora de trabalho e de equipamentos importados. A concluséo a que o autor € levado é a de que a unidade exportadora tinha condigdes de preservar a sua estrutura, mesmo diante de uma crise das proporgdes daquela que atingiu a economia acucareira ao se desorganizar o mercado de agiicar, no século XVII, com a concorréncia antilhana. Salienta ele entéo que “a economia agucareira do Nordeste brasileiro, com efeito, resistiu mais de trés séculos as mais prolon- gadas depressées, logrando recuperar-se sempre que 0 permitiam as condigées do mercado externo, sem sofrer nenhuma modificagao estrutural significativa” (1979, p. 53). ‘A explicagao sobre a preservacdo da estrutura do setor acucareiro € um dos elementos empregados por Furtado para descrever o que denomina de “complexo econdmico nordestino”, o qual é composto pela economia agucareira e por uma “projegio” da mesma, ou seja, a pecuéria. Essa atividade, formada para atender 4 demanda de carne ¢ animais de tragao e de transporte para o setor agucareiro, cedo seria deslocada da érea das plantagSes de cana-de-agicar para o interior. Ter-se-ia constituido, assim, como atividade dependente da economia acucareira, mas especialmente separada da mesma. Teria, também, caracteristicas totalmente distintas. Essencialmente, caracterizava-se por um nivel de produtividade muito inferior, ao que correspondiam um grau de espe- cializagdo e comercializagio muito reduzido e uma infima renda monetéria. Predominava, na “economia criatéria em seu conjunto”, a produgao ligada & propria subsisténcia da populago, que crescia rapidamente, ocupando o interior nordestino. O lento processo de retragdo da atividade agucareira e 0 préprio cresci- mento demogréfico faziam crescer a importancia relativa da atividade de menor produtividade do complexo econdmico nordestino. A redugao da demanda pelos produtos da pecudria, por parte do setor exportador em retragao, implicava redug&o na rentabilidade da atividade criatéria, mas nao afetava significativa- ci} mente sua expansdo. Ao contrério do caso das plantagSes de agticar, a reposi¢ao e ampliagéo de “capital” fazia-se simplesmente através da incorporagao de novas terras e da mao-de-obra livre, isto é, dispensava os gastos monetérios com aquisigo de escravos e equipamentos importados. A conseqiiéncia da retrago da demanda pelo setor agucareiro foi que esse processo de ampliagao da economia criatéria fez-se com elevagéo da parcela da forga de trabalho ocupada em atividades de mera subsisténcia e redugdo da produtividade média do sistema em seu conjunto: “Tudo indica que, no longo periodo que se estende do tltimo quartel do século XVII aos comegos do século XIX, a economia nordestina sofreu um lento processo de atrofiamento, no sentido de que a renda real per capita da sua populagio declinou secularmente” (1979, p. 63). “A expansao da economia nordestina, durante esse longo periodo, consistiu, em ultima instancia, num processo de involugéo econémica: o setor de alta produtividade ia perdendo importancia relativa e a produti- vidade do setor pecudrio declinou & medida que este crescia” (1979, p. 64). E importante observar que Furtado extraiu dai uma conclusio bdsica para sua caracterizagio do subdesenvolvimento brasileiro. Segundo o autor, as formas que assumiam os dois sistemas da economia nordestina — o acucareiro € 0 criatério —, no lento processo de decadéncia que se iniciou na segunda metade do século XVII, constituiram elementos fundamentais na formagdo do que no século XX viria a ser a economia brasileira [Furtado (1979, p. 61)]. A identificagéo da formagio do subdesenvolvimento prossegue, no livro, através do exame da economia escravista mineira. O procedimento analitico € idéntico ao adotado nos capitulos referentes & economia acucareira. O autor explica os determinantes da ocupagdo territorial e da formag&o de uma ampla economia de subsisténcia no Centro-Sul do pais, vinculando essa explicagdo & da formagao e declinio do que foi seu centro dindmico na era colonial, ou seja, a economia mineira. Argumenta que, diferentemente do caso da economia agucareira, preexistia & atividade mineradora uma pecuéria rudimentar, espalhada por diferentes regides do Centro-Sul. A populagao nessas areas teria sido extremamente escas- sa. O advento da mineracao no século XVIII teria tido dois importantes efeitos sobre a estrutura econémica da colénia: primeiro, lograva-se decuplicar, nesse século, a populagao de origem européia; ¢ segundo, as caracteristicas do empre- endimento mineiro seriam tais que, logo apés sua implantago numa determinada regio, gerava-se grande dificuldade de abastecimento. Elevava-se 0 preco dos alimentos ¢ dos animais de transporte nas regiGes vizinhas, o que constitufa um “mecanismo de irradiagao dos beneficios econémicos da mineragéo”. Além disso, a procura de gado de corte e de transporte, muito superior & que se observara na economia acucareira, teria aberto um ciclo de prosperidade para regides criatérias mais longinquas. A mineracio teria promovido, por esse efeito sobre a pecudria, toda uma rede de integracao econémica no Centro-Sul do pais. 46 © mercado formado na regido escravista mineira teria sido superior, em termos absolutos, ao da regido acucareira. Isto porque, embora a renda média fosse inferior, era, também, menos concentrada, porque a parcela de populagao livre era muito maior e, ademais, estava reunida em grupos urbanos. Apesar disso, o “desenvolvimento endégeno” teria sido “praticamente nulo”. O autor argumenta que isso néo pode ser explicado apenas através da rentabilidade superior do investimento em mineracao, que tendia a atrair o capital disponfvel, nem tampouco através da proibicéo, pela metrdpole, da atividade manufatu- reira. A causa principal teria sido, possivelmente, “a propria incapacidade técnica dos imigrantes para iniciar atividades manufatureiras em escala apre- cidvel” (1979, p. 79). O declinio da produgao de ouro teria de trazer, a essa regio desprovida de formas permanentes de atividade econémica que ndo a agricultura de sub- sisténcia, uma “rapida e geral decadéncia”: “Uns poucos decénios foi o suficiente. para que se desarticulasse toda a economia da mineracdo, decaindo os nticleos urbanos e dispersando-se grande parte de seus elementos numa economia de subsisténcia, espalhados por sua vasta regido em que eram dificeis as comunicacées, isolando-se os pequenos grupos uns dos outros. Essa populacao relativamente numerosa encontraré espaco para expandir-se dentro de um regime de subsisténcia e viré a constituir um dos principais nécleos demogréficos do pais. Nesse caso, como no da economia pecudria do Nordeste, a expansio demogréfica se prolongaré num processo de atrofiamento da economia monetéria” (1979, p, 85). A estagnacdo teria sido 0 aspecto marcante da histéria brasileira desde 0 final do ciclo da mineragao até meados do século XIX. A safda viria, entéo, com o surto cafeeiro: “Ao concluir-se 0 terceiro quartel do século XIX os termos do proble- ma econémico brasileiro se haviam modificado basicamente. Surgira o produto que permitiria ao pais reintegrar-se nas correntes em expansio do comércio mundial; concluida sua etapa de gestagfo, a economia cafeeira encontrava-se em condiges de autofinanciar sua extraordindria expansio subseqiiente; estavam formados os quadros da nova classe diri- gente que lideraria a grande expansio cafeeira. Restava por resolver, entre- tanto, 0 problema da mao-de-obra” (1979, p. 116). Como nas partes dedicadas as economias escravistas agucareira e mineira, © estudo da economia cafecira concentra-se na andlise da distribuigdo da populagio em expansio entre atividades de subsisténcia e a atividade expor- tadora, bem como no exame do fluxo de renda gerado a partir do setor dinémico do periodo. ‘A primeira dessas linhas de andlise € examinada em conjunto com o problema que “restava por resolver” para viabilizar a expansio cafeeira, o da av mio-de-obra. A solugo teria sido dada pela corrente imigratéria européia, que se dirigiu especialmente lavoura cafeeira paulista, num fluxo organizado pela nova classe dirigente do pais, o empresariado do setor cafeeiro. Duas importantes questdes so abertas pela verificagao dessa imigracao: primeiro, ela poderia ser interpretada como sinal de escassez de mio-de-obra no pats, pondo por terra a tese da existéncia de ampla economia de subsisténcia, fundamental & conceituagio estruturalista do subdesenvolvimento; e, segundo, ela induz & pergunta sobre 0 que teria ocorrido com a mao-de-obra escrava tornada livre com a extingao do trabalho servil. Teria a abolig&o da escravidio acirrado o “problema da mao-de-obra”? ‘A resposta de Furtado a primeira questéio é a de que, com algumas exce- oes, ‘‘a economia de subsisténcia de maneira geral estava de tal forma dispersa que o recrutamento de mao-de-obra dentro da seria tarefa bastante dificil e exigiria grande mobilizagao de recursos” (1979, p. 121). Além disso, esse tipo de recrutamento teria de contar com o apoio dos grandes proprieté- rios das terras nessas regides onde predominava a economia de subsisténcia, cooperagio essa que “dificilmente podia ser conseguida pois era todo um estilo de vida, de organizagao social e de estruturagéo de poder politico o que entrava em jogo” (1979, p. 121). ‘Assim, quando surgia a possibilidade de significativa expansio da produgao cafeeira, na segunda metade do século XIX, coexistia no pais, segundo o autor, uma grande reserva potencial de mao-de-obra na economia de subsis- téncia — ao que se somava uma populag&o desocupada urbana pouco apta a regressar ao campo — e uma escassez de bragos na lavoura cafeeira. A abolicao da escravidao contribuiria para acirrar o problema. Ja na primeira metade do século, nao obstante uma continuidade de importagdo de escravos, a mio-de-obra servil ter-se-ia reduzido, em fungéo de sua elevada casa de mortalidade. A aboligio do regime de trabalho escravo teria tido efeitos diversos, no Nordeste e no Centro-Sul. Na regido acucareira nordestina, a escassez de terras, combinada a uma reduzida pressio da demanda por trabalho resultante da queda nas exportag6es de agticar, teria provocado a conservacao do trabalhador recém-liberado no interior do proprio complexo canavieiro. No Sul, os escravos estavam concentrados principalmente nas regides cafeeiras pioneiras, nos atuais Estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. A abolicdo se deu mais ou menos ao mesmo tempo em que a produgdo se deslocava para terras mais férteis, de Séo Paulo. No entanto, ao invés de deslocar-se para a nova regiao, a forga de trabalho recém-liberada voltou-se essencialmente para atividades de subsisténcia, o que teria sido possivel em fungdo da abundancia de terras. Quando permanecia na lavoura cafeeira, sob © regime de salérios, foi capaz de auferir remuneragao mais elevada por seu trabalho, dada a situacao de escassez ocasionada pela desorganizacao do regime de trabalho preexistente. A elevagao salarial teria acarretado, no entanto, uma queda na produtividade, porque teria induzido o ex-escravo a reduzir suas horas de trabalho. Em outras palavras, a abolico do trabalho escravo teria resultado, por um lado, em ampliagio da economia de subsisténcia e redugao da produtividade 48 do trabalho e, por outro, em acirramento da escassez relativa de mao-de-obra. Esta seria contornada, entao, pelo recrutamento do trabalho europeu por parte de uma nova oligarquia cafeeira perfeitamente mobilizada em fungao de seus interesses. Sua op¢o consciente pela linha de menor resistencia, a da imigragio européia, em lugar de migracées internas — como a que ocorreu no trdgico translado de nordestinos 4 Amazénia —, deixava intacta e economia de subsis- téncia, que sobreviveria ao surto cafeeiro. Essa interpretago tem um peso decisivo na formulagéo de Furtado sobre © problema do subdesenvolvimento brasileiro. Sua anélise sugere mesmo que, se o surto cafeeiro tivesse se iniciado no momento em que a mineragdo entrava em decadéncia, em fins do século XVII, a economia brasileira teria conseguido evitar 0 atraso relativo e o proprio subdesenvolvimento: “Esse atraso tem sua causa ndo no ritmo de desenvolvimento dos {iltimos cem anos, 0 qual parece haver sido razoavelmente intenso, mas no retrocesso ocorrido nos trés quartos de século anteriores. Nao conse- guindo o Brasil integrar-se nas correntes em expansio do comércio mun- dial durante essa etapa de répida transformagdo das estruturas econémicas dos paises mais avangados, criaram-se profundas dissimilitudes entre seu sistema econdmico e os daqueles paises. A essas dissimilitudes teremos que voltar ao analisar os problemas especificos de subdesenvolvimento com que se confronta a economia brasi- leira no presente” (1979, p. 150). No sistema de pensamento de Furtado, as caracterfsticas do subdesenvolvi- mento que descrevem essa “‘dissimilitude” e permitem identificar “problemas especificos do subdesenvolvimento” séo, como em toda a escola estruturalista, a dualidade tecnolégica (ou seja, a coexisténcia de setores modernos e de subsisténcia) e uma escassa diversificagéo no aparelho produtivo. O que a anélise de Furtado sugere € que, nao fosse a defasagem de trés quartos de século, € provavel que nao se tivesse formado no pais a economia de subsis- téncia e seu exército de mao-de-obra subempregada. E que, conseqiientemente, a elevacio de produtividade acarretada pelo surto exportador cafeeiro teria implicado elevagao salarial e formago de um mercado interno, daf resultando, entdo, uma estrutura produtiva diversificada e a disseminagao de um elevado padro tecnoldgico em toda a estrutura econémica, semelhante ao que ocorreu nos Estados Unidos. ‘A passagem reproduzida acima conclui a parte do livro que descreve os determinantes histéricos da formagao da estrutura subdesenvolvida brasileira, Significativamente, essa mesma passagem retine, implicitamente, os trés elemen- tos que compéem a metodologia do estudo do autor sobre essa formacao. O atraso relativo do Brasil em relagéo aos Estados Unidos deve-se a sua “nao integragio”, no momento apropriado, nas “correntes em expansio do comércio mundial”, Suas profundas “dissimilitudes” em relago aos paises adiantados compreendem a dualidade tecnolégica, dada pela formagao de uma ampla eco- nomia de subsisténcia, e a pequena diversificagao do aparelho produtivo, dada 4 pela inexisténcia de condigdes propfcias & geragdo de um processo cumulativo interno de produgo e consumo. ANALISE DA EXPANSAO INTERNA E DA TRANSICAO. PARA A INDUSTRIA NA ESTRUTURA SUBDESENVOLVIDA BRASILEIRA: 1850/1950 A segunda parte do livro examina o proceso de crescimento que ocorrerd, nesse quadro estrutural, entre meados do século XIX e meados do século XX, ou seja, nos periodos de expansio da economia cafecira e de transigéo para a economia industrial. Essa parte contrasta com a primeira em dois aspectos analiticos. Em primeiro lugar, no se trata mais, af, de comprovar que a evolugio histérica da economia brasileira conduziu & formaco de uma estrutura econd- mica subdesenvolvida, e sim de proceder a anélise econémica adequada ao quadro estrutural descrito, Por isso, é nessa parte do livro que a abordagem torna-se mais propriamente estruturalista, O proceso de industrializagao é vis- to, entio, como problemético porque efetuado com grande rapidez, sobre uma estrutura econémica atrasada, Em segundo lugar, também nao se trata mais de descrever as condigdes que impediram a formagao de um mercado interno, ou seja, de fazer uma anélise keynesiana “pela negativa”. Ao contrério, 0 problema passa a set o de mostrar quais as condigdes que determinaram a modalidade de expanséo da renda que viabilizaria 0 proceso de industrializagéo posterior. Em resumo, fica mais 6bvio o enfoque “keynesiano-estruturalista” da obra. A andlise est centrada na identificago dos mecanismos de expanséo do nivel de renda e dos desequilfbrios estruturais gerados no processo. De for- ma a no alongar ainda mais a presente exposigdo, passemos a um brevissimo resumo dos principais aspectos constitutivos da anélise. © ponto de partida dessa segunda parte do livro é a caracterizagdo do significado do advento do trabalho assalariado, “fato de maior relevancia ocor- tido na economia brasileira ¢ no ultimo quartel do século XIX” (1979, p. 151). A partir dai, a dindmica do sistema econémico tornar-se-ia distinta da que ocorria no passado. Dada a abundancia de mao-de-obra e de terras subutili- zadas, 0 fluxo de renda criado pelo setor exportador passava a propagar-se para o restante da economia, provocando a produgdo e comercializacao local de uma série de bens de consumo e uma melhor utilizagao dos fatores de produgdo dispontveis. Nas novas condigdes, a massa de salérios paga no setor exportador torna- se “‘o nticleo de uma economia de mercado interno”. O aumento de produti- vidade do sistema econémico nao se limitaria mais a transferéncia da mio-de- obra do setor de subsisténcia para setor exportador, mas incluiria também a absorg¢éo da mesma nas novas atividades ligadas ao mercado interno. Essa 50 elevagdo da produtividade nao se refletia, no entanto, numa elevagdo nos salé- rios reais, em virtude da existéncia de mao-de-obra em excesso no setor de subsisténcia. Mas implicava uma elevagéo na remuneragdo média, porque crescia a populacio ocupada nos setores monetétios — de exportagdo e mer- cado interno — relativamente economia de subsisténcia, de tal forma que a “massa de salérios monetérios — base do mercado interno — aumentava mais rapidamente do que o produto global” (1979, p. 153). No livro A Economia Brasileira, Furtado enfatizou a idéia de que a pres- sio baixista sobre saldrios reais, advinda da economia de subsisténcia, atuava como fator de limitagao do mercado interno. No livro definitivo, o autor aban- donou essa linha de argumentago e manteve apenas duas outras considera- ges associadas A nao elevacao de salérios: a primeira consistiu na observacio de que a situagdo favoravel & apropriagdo, pelos empresdrios, da totalidade dos beneficios da elevagio de precos dos produtos de exportagao acarretava uma acumulacdo de capital mais répida e, conseqiientemente, uma maior absorgdo de mio-de-obra do setor de subsisténcia;"a segunda consistiu na ava- liagéo prebischiana dos efeitos da abundancia da mao-de-obra sobre as rela- goes de intercambio do pais, ou seja, na idéia de que, se os salérios absor- vessem parte da elevacdo da rentabilidade auferida na alta ciclica, have- ria maior capacidade de defesa contra a queda de pregos e a deterioragio dos termos de intercimbio na fase de baixa. Como os salérios podem oferecer maior resisténcia & compressdo do que os luctos, na fase depressiva, ter-se-iam meios para evitar a deterioragao secular das relagdes de troca. © ponto seguinte da andlise do autor é que, como a pressio da queda ciclica recai sobre os lucros, seria de esperar que a concentragao de renda produzida na alta ciclica se reduzisse na fase de baixa. No entanto, os empre- sérios brasileiros teriam conseguido transferir essa pressio para os demais setores da coletividade, através do mecanismo de depreciagéo cambial. Esse seria, segundo Furtado, o mecanismo de ajuste & contragdo cfclica tipica de economias dependentes. Nas economias maduras, a baixa’ ciclica caracteriza-se pela contragao das inversdes, que acarreta redugio no nivel de renda simulténea 4 reduco no nivel de importagdes. Nas economias depen- dentes, ao contrério, ocorreria- uma defasagem entre a contragdo no volume das exportagdes e a redugio das importacdes. Além disso, ocorreriam, ao mesmo tempo, uma deterioracaio dos termos de troca e uma fuga de capitais. O resul- tado inevitavel seria um agudo desequilibrio no balanco de pagamentos, tor- nando-se facil prever “‘as imensas reservas metélicas que exigiria o pleno fun- cionamento do padrao-ouro numa economia como a do apogeu do café no Brasil” (1979, p. 159). Ao invés, nao restava outra alternativa senio a de desvalorizagio cambial. A desvalorizagéo cambial corresponderia, segundo Furtado, a um meca- nismo de “‘socializagfio das perdas”, resultantes da contragdo cfclica das expor- tagdes, O resultado final, além da manutengo do grau de concentragio da renda, teria sido uma maior capacidade de resisténcia a crise por parte da economia como um todo. Através da desvalorizagao cambial, os empresdrios podiam preservar o nivel da produco, apesar da crise. Dessa forma, “evitava- se a queda do nivel do emprego e limitavam-se os efeitos secundérios da crise” (1979, p. 167). Um outro mecanismo de defesa bsico do setor cafeeiro seriam os esque- mas de valorizagao do café, postos em pratica a partir do Convénio de Tau- baté, em 1907, como forma de suavizar o efeito da crise de superprodugio sobre os precos do produto. Essa politica de defesa da rentabilidade da ativi- dade tetia trazido, porém, duas conseqiiéncias negativas: em primeiro lugar, por nao ter sido acompanhada de esquemas de desestimulo as inversdes no setor, permitia que continuasse a crescer o plantio, ampliando e transferindo para o futuro o problema da superprodugao: e, em segundo, esse problema acirrava-se ainda mais porque a politica de precos elevados acabava fomen- tando a produgao do café em outras regides do mundo. © autor argumentou entdo que, ao irromper a Crise de 1929, o setor ca- feeiro enconttava-se debilitado por uma crise de superprodugZo sem prece- dentes, que acarretou drdstica reduc&o no prego do produto. No, entanto, o nivel da produgao e a renda do setor cafeeiro ndo chegaram a ser profunda- mente afetados. Em primeiro lugar, porque ocorreu uma forte desvalorizagio cambial, que permitiu socializar as perdas provenientes da queda no prego internacional do produto; e, em segundo, porque pés-se em marcha uma polf- tica de retengdo e destruigéo de parte da produgao cafeeira. A conseqiiéncia fundamental desse duplo mecanismo de defesa da renda do setor cafeeiro teria sido nao apenas a preservacao do nivel de emprego no setor exportador, mas também naqueles setores produtivos ligados ao mercado interno. Em especial, a politica de destruigéo dos excedentes do café teria correspondido “‘a um verdadeiro programa de fomento nacional”, a uma pré- tica inconsciente de uma “politica anticiclica de maior amplitude que a que se tenha sequer preconizado em qualquer dos paises industrializados” (1979, p. 192). Através dessa andlise, Furtado chegou, finalmente, & sua cldssica expli- cago sobre a transformagao da economia primério-exportadora brasileira em economia industrial, cujo momento critico teria ocorrido nos anos 30. A inter- pretagdo repousa basicamente sobre a idéia de que, simultaneamente & manu- tengo do nivel de renda e da procura interna, cafa basicamente o valor das exportacdes, acarretando forte desvalorizacio cambial e brusca queda no coefi- ciente de importagdes, reduzindo-o de 14 para 8% da renda territorial bruta. Isso teria ent&o acarretado uma forte expansao da oferta interna substi- tutiva das importagdes, tornadas proibitivas pela queda na capacidade para importar. Furtado identifica esse momento como de “deslocamento do centro dinamico” da agricultura de exportagao para as atividades de mercado interno, Estas cresciam, segundo o autor, impulsionadas nfo somente pela maior ren- tabilidade, mas igualmente por atrairem “capitais que se formavam ou desin- vertiam no setor de exportagéo”. E cresciam, inicialmente, com base num aproveitamento mais intensivo da capacidade previamente instalada, acrescida 52 de importagGes, a precos reduzidos, de equipamentos tornados supérfluos nos paises desenvolvidos em crise. A expansao industrial dos anos 30 teria, inclu- sive, logrado alcangar a produgao interna de uma parcela dos bens de capital de que necessitava. O processo de industrializagao retomaria um ritmo acele- rado alguns anos apés o final da 11 Guerra Mundial. Um importante fator de estimulo teria sido a dupla protegdo proporcionada pela politica de cambio fixo, acoplada ao controle seletivo de importagdes, posta em pratica a partir de 1947 como resultado de uma decisio que se seguiria ao desequilibrio externo promovido por forte evasio de divisas no imediato pés-guerra. Em primeiro lugar, protegia-se a industria de bens de consumo nacional da concor- réncia externa; e, em segundo, e mais importante, o efeito conjunto da inflagfo interna, que barateava as importagdes, e da considerdvel melhoria nos termos de intercdmbio, que ocorreu nesses anos, possibilitou forte ampliagéo na im- portagao de bens de capital e matérias-primas industriais. Dessa forma, a elevagio da produtividade associada & melhoria nos termos de troca, ao invés de traduzir-se em maior renda para a classe exportadora, estaria sendo capita- lizada no setor industrial. ° Uma caracteristica distintiva desse processo de industrializagdo deslan- chado pela crise externa nos anos 30 teria sido sua tendéncia estrutural ao desequilibrio externo € & inflagdo. O estimulo inicial 4 expansio industrial, ou seja, a insuficiéncia de capacidade para importar, transformar-se-ia em seu obstéculo basico. Em 1947, a capacidade para importar seria aproximadamente a mesma que em 1929, nao obstante a renda nacional houvesse aumentado em cerca de 50%. Seria de esperar, assim, que a expansio industrial que se processava sobre a estrutura produtiva pouco diversificada, que caracterizava o subdesenvolvimento brasileiro, conduzisse necessariamente a desequilibrios no balango de pagamento e a fortes presses inflacionarias. £ essa a interpre- taco fundamental do autor sobre o recorrente desequilibrio externo e a con- tinua inflago observada no periodo de aceleragao da industrializacao, a partir do final da década de 40. Jé no periodo da guerra ter-se-iam observado altas taxas de inflagio. O autor supde que uma das raz6es para isto deve ter sido a incapacidade de esterilizar a renda de exportagéo, que crescia em ritmo acelerado e que nao podia reverter-se em importagdes, dadas as condigdes especiais de comércio internacional naqueles anos. A essa renda somavam-se grandes déficits publi- cos, pressionando uma oferta interna que j4 se mostrava fortemente ineléstica ao final dos anos 30. Alguns anos apés o final do conflito mundial, no periodo em que melho- ravam os termos de troca para a economia nacional, a renda acrescida do setor exportador mais uma vez deparou-se com escassez da oferta, desta feita tor- nada ineléstica pela politica seletiva de importagdes. O autor argumenta que, nessa situagdo, seria erréneo supor que o sistema bancério constituia o fator ptimério da inflagio. O que tio-somente ocorre, segundo ele, & que, “ao re- presar-se, no setor interno, o aumento da renda monetéria, pressionando sobre os precos de artigos manufaturados, géneros alimenticios e servigos, o sistema 53

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