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© FIM DO MUNDO ~ CLASSICO DE MARCO AURELIO A MAOME PETER BROWN Begg es ee: +1986 E vn oe an RETQR ‘ corona 7 z wp conte pros . “ | | | EDITORIAL VERBO * LISBOA a a“ PREFACIO ‘Ocupamo-nos, neste livro, da evolucio da sociedade © da ‘cultura. Quetemos que o leitor saiba como, quando e porque € que o ultimo perfodo do Munde Antigo (de 200 a 700, sensi- . velmente) difere da civitizaglo eclissicar, porque é que as grandes P wansformagdes deste periodo determinaram, por sua vez a évolugio da Europa do Ocidente 20-Levante. © estudo deste periodo obriga-nos a observar cmstantemente ‘as tensdes entre as mudangas e a continuidide no caracteristico mundo que cerca o Mediterrineo. Por um lado, & entdo que algu- ras velhas instituigtes (cuja mustncia pareceria quase. impossivel a umi homem, cerca de 250) desaparecem ixzevogivelmente. Em 476, cai o Império Romano do Ocidente; em 655, desaparece do Oriente o Império Perso, E fiicil esorever scerea do terma do Mundo Antigo como se.se tratasse da melancblica bistéria do sdeclinio e queda: do fim do Império Romano, visto do Ocidente; do fim do Império Persa, visto do Islio. Espantam-n0s, por outro lado, as novidades do comego deste periodo: por que se torna ctisté.a Europa, eo Oriente se tarna mugulmano; por que se mostra dotado de qualidades scontemporineas a nova ‘arte abstracta desta época; por que fos surpreendem os escritos de homens como Plotino ¢ Agostinho, quando verificamos que (Como se se tratasse de uma estrana sinfonia) tantos europeus sensiveis se consideram «modernos, Quando nos ocupames do iiltimo perfodo do Mundo Antigo, vemo-nos entre « contemplagdo saudosa das velhus ruinas ¢ as aclamagdes esperancosas de.um mundo novo. © que, nmuitas vveres, nfo conseguimos descobrit € 0 que tinha condigées de ‘vida, Como muitos dos que assistiram &s mudangee de que tra- ‘amos, ora nos sentimos extremamente conservadares, ore his- 2. Acte atatrecta. © tradicional cortejo do céamul, em Roma, rpresentado ‘segundo © move gosto artstico, Bibliotsea de Junius Haswus, Roms, téricamente radieais. Um senador romano pode escrever como se ainda vivesse no tempo de Augusto, ¢ ver, a0 acordar, como acontecex a muitos, no fim do século ¥, que ja nao ha imperadores romanos na Itélia. .Um bispo cristo, por sua vez, pode aplaudit ‘os desastres das invas8¢s. birbaras, por haverem desviado, icre- ‘Vogivelmente, os homens di‘ civilizagiio terrena para a’ Jerusalém cclestial, sétvido ainda por um latim ou um grego inconscien- semente modelado nos elissicss; e adoptar atitudes,. preconceitos ©, ptocedimentos que o mostram enraizado em 800 anos de vida imediterrinica, ‘Como aproveitar um grande pasado sem uma modificagio aniquiladora; como’ miudar sem destruir as ratzes; e, sobretudo, como proceder, com desconhecidos pelo meio, com homens postos de lado por uma sociedide aristocritica tradicional, pen- samemtos privados de expresso por uma cultura rotineira, neces- sidades alheadss de uma religiio convencional, estrangeizos de paragens distantes — tais stio os problemas que toda a sociedade civilizada se vé obrigada a defrontar, Ream particularmente ‘graves no titimo periodo da histéria antiga. Custa-me a conceber ‘um leitor to indiferente a0 classicismo grego on romano, tio indiferente & acgio do cristianismo, que niio deseje ter uma idcia do fim do Mundo Antigo, que nfo pretenda ver as transformagées radicais, de um lado, a vitéria sobre 0 paganisino, do outro. Devo, no entanto, esclarecer que,-atendo-me & realidade, con- siderci, especialmente, 2 maneira como os homens do fim da Antiguidade enfrentaram 0 problema da mudanca. ‘0 Império Romano absaugia um territério extenso e variado. As metamorfoses que experimentou neste periodo foram nume- rosas € complexas, Vio das classes e das modificagées claras, ‘bem documentadas, tais como as repercussGes da guerra e do aumento dos impostos sobre a sociedade dos séculos mt © 1, as actividades referentes a relagies do homem consigo proprio com o seu proximo. Creio que o leitor nfio deixard, pois, de concorder comigo se comegar a primeira parte deste livro com ‘tas capitulos destinados a tragar um esboro das modificages da vida piblica do Império, entre 200 ¢ 400, e a analisar, em seguida, as transformagdes religiosas, menos piblicas, mas igual mente decisivas, levadas a efeito durante 0 novo periodo, Fiz 0 possivel, sempre que me pareceu indicado, por relacioaara evoiugio social e econémica com 0 desenvolvimento religioso do tempo. Durante este periodo, o' Mediterrineo ¢'% Mesopotiinia sao os principais teatros da mudanga, O mundo dos bérbacos do Norte mantém-se periférics a estas reas. A Bretanhi, a Gaia Seteatrions] e as provincizs-danubianas, apés as invasdes edlavas do-fini do século v1, nfio sio abrangidas’pelo meu estudo. Trato especialmente do Mediterraneo Oriental. O meu relato tem, naturalmente, ‘mais em vista.a Bagdade de Hérune Arraxide do que. Aix-la-Chapelle do seu contemporineo Carlos Megno. Espero que 0 leitor especialmente’ 0 medievalista habituado & observar a formagio da sociedade’ocidental pés-rominica) me desculpe a eécolha desta drea. Pard 2 Europa: Ocidental tem jé guias sérids, aos quais todos estamos igualmente grates, Nio € licito negar 2 existéncia de laces estreitos entre a revalngio social ¢ » revolucio espiritual do wltime periodo da Antiguidade. T¥o fatimos sto que néo podem reduair-se a uma relagio superficial de scausa ¢ efeitos, B frequente 0 historiador dizer apenas que determinadas modificagies coincidem de cerva maneira, que determinads personalidade no pode compreender-se sem teferéncia a outra. A histéria do fim do. Mundo Antigo, isto é a bistécia dos imperadores ¢ birbaros, soldados, proprie~ térios, publicanos, dar-nos-ia apenas um quadro descoloride © mentiroso da importincia da época; o mesmo sucederia se vis- semos apenas os humildes, os monges, os: misticos, os teblogos do tempo. Quero que o leitor‘decida por si mesmo se 2 minha exposigio 0 levou a compreender como tants’ ¢ variadas mudangas vierain a moldar um periodo distinto da civilizagio europeia—o fim do Munds Antigo. © rigor deste livro deve muito a Filipe Rousseau, cujo cuidado ulrapassou, como de costume, a simples rerifeagio das datas © citagdes. Para a sua conclusio contribuiu grandemente minha mulher, cuja curiosidade.e coBhecimentos histéricos tive a felicidade de compartilhar longamente, PARTE I: A ULTIMA REVOLUCAO ROMANA I A SOCIEDADE 4, ade barre, Arcos owsadose pets rcamentelvradas mostra o abanano do goto clisico. © etlotetralagrada b melioy que apeess su cepnsenapéee ter cere 4 sistons cerimtnias publica. Um autéoico mnagaic oeal, x iuperaier‘Sedine Serco (20.211), manda levanar nasa cidade natal, Lépts Magna (Tunisigy ene outros eiioe, AS FRONTEIRAS DO MUNDO CLASSICO: C. 200 eVivemos volta do mar como o nevoeiro & volta de um Iagos, dizia Sécrates aos seus amigos de Atenas. Sete sécvlos depois, por alturas do ano 200, 0 mundo clissico mantinha-se fixado & volta do «lagos, continuava preso as castas do Mediter- rineo. Os centros da Europa moderna ficaram muito para Norte ¢ Ocidente do mundo dos homens antigos. Para estes, aleangar o Reno era chegar a sineio caminko dos birbarosy; um homem tipico do Sul transporta a esposa, que falecera, de Tréveros para Pavia, a fim de poder sepulté-la junto dos antepassados. Um senador grego da Asia Menor, nomeado governador nas mazgene do Dantibio, queixa-se, nestes termos: «Os habitantes ... levam a vida mais miserdvel da humanidade; nfo sabem cultivar a oliveira nem bebem vinhow O Inipério Romano havig-se estendido até onde Ihe parecera necessirio, no tempo da Repitblica e durante o Principado, paca amparar ¢ enriquecer o mundo cléssico, erguido a volta das costas do Mediterrtneo havia mais de quatro séculos. O que nes espanta € a extraordinéria maré de vida mediterrdnica deste império, durante o sew apogeu, no século 1x. Avanga pela terra dentro mé uma distincia nunca até entfo atingida, especialmente na Africa do Norte e no Préximo Oriente. Por algum tempo ¢ igual © rancho militar preparado na Itdlia e em frente dos Grimpios, na Fscécia. Junto dos montes Hodna, onde hoje sto os exmos territérios do Sul da Argélia, levamtam-sé grandes cidades, como ‘Timgad, com o seu anfiteatro, biblioxeca, estétuas dos filésofos clissicos. Na cidade de Dura-Europos, nas margens do Eufkates, 2 guatnigio observa o mesmo calendério das festividades de Roma, O derradeiro Mundo Antigo herda este sxtraordinario u 2 46. Nesta pigina: 0 lago cercedo de nevosiro, Neste ‘mapa de Albi (sécuto via), 0 Meditetaineo figura no centro slo Mundo. A Bretanka (parte supecior, t esquerds) uma pequena nesga da Terra}.o delia do.Nilo eo Butrotes (parte Inferior do centro e lado), pelo contrévio, garam mais ormenociradamente, Na pagina a0 lado: a esquerds, tar Sjgnifica alimentos navio carregando trigo no porto de Ortia “Géculos Tv}. Segundo um obsczvador do. sé culo v, Constantinopla nia tinh rexio de queika: sApesae a sua vaste populagio, hi sempre abundincia de viveres, orgue toda a8 provisGes, ainda as mais variedas, podem ser tezidas directamente por mars A direlta, a alternstiva, TncOmoda viagem por terra. nossa cidade—esereve um hnabieane da Asia Menor, no século W—estd longe do ‘mar; nde pods, por isso, nem exporter o aupécfiuo nem, Smmporrax aquilo de que necessita em tempo de crises Relevo de Adamidiss! CTropaeum Tsxianiy de’ 108-105, Jegado, Como manter, através ‘de téo vasto império, um estilo de vida e de cultura, originiviamente baseado numa estreita linha costeira de cidades-estados, eis um dos problemas prin- cipais do perfodo compreendido entre 200 e 700. © Mediterraneo classico havia sido sempre um mundo con- denado & indigéncia. EF um mar cercado por altas montanhas; ‘as suas planicies férteis e vales fluviais siio como remendos de uma sarapilheira. Muitas das maiores cidades dos tempos clis- sicos ficavam em pobres lugares alcantilados. Os seus habitantes viam-se obrigados a descer constantemente as regides vizinhas, em busca de alimento. Descrevendo os sintomas da falta de alimentaco das populages destes Ingares 20 meado do século 1, © Dr. Galen observa: «Os habitantes das cidades costumavam colher e enceleirar cereais suficiemes para 0 ano imediato a colheita, Recolhiam todo o trigo, cevada, feijées c lentilhas, € deisavam os restos aos camponeses.» Vista a esta luz, a histGria do Império Romano ¢ a histéria da maneira como dez por cento da populagio (que vivia nas cidades e deixou a sua marca na civilizagio curopeia) se alimemtava da forma suméria indicada Por Galen, 4 custa do trabalho dos restantes noventa por cento que trabathavam 2 terra, alimento era a riqueza mais preciosa do mundo mediter- rinico. Implicava transporte. Poucas das grandes cidades do Impétio Romano dispunham, nos arredores, de terras que pudes- sem satisfazer as suas necessidades alimentares, "Roma dependen, durante muitos anos, da grande frota anual da Africa. Durante © século v1, Constantinopla recebia, anualmente, 175200 tone- Jadas de cereais do Egipto. A Agua foi, nos primeitos sistemas de transporte, que foram os caminhos de ferra nos transpories moclernos — a artéria indispensavel dos transportes pesados. Logo que um carrega- mento deixa as éguas do Mediterrineo ou de um grande rio, a0 movimento rdpido ¢ seguro sucede a morosidade ruinosa. Fica mais barato levar um carregamento de trigo de uma extre- midade do Mediterrineo & outra do que transporti-lo por terra até a distancia de 275 quilémetros. © Impéio Romano foi sempre formado por dois mundos. Até 700, as grandes cidades maritiias nao estio a grandes dis- ‘incias umas das outras; cm vinte diss de boa navegacio, uma viajante vai de um canto a outro do Mediterraneo, o centro do mundo romano, Em terra, porém, a vidi romana tende sempre 8 concentrar-se em pequenos ofsis, serielhantes a gocas de 4gua numa planicie ressequida. ram famosas as estraas romanas que corriam através do Império;.mas atravessavam cidades cujos Ihabirantes obtinham tudo 0 qite comiams € a. maior parte do que usavam, dentro de um raio de uns 130 quilémetres. Era no interior, nas terres que lideavam as grandes vias, que as enormes despesas do Império se tornavam. mais pesadas, 1B “4 © Impétio Romano fazia um esforgo considerével para manter unidade. Soldados, administradores, correfos, auxiliares, visitavam constantemente as provincias. Visto pelos imperadores em 200, o mundo romano parece uma rede de caminhos, inter- rompidos por postos, ocupados por pequenas comunidades, que ccobram os impostos em alimentos, vestudrio, animais, ¢ recrutam a mio-de-obra exigida pelas necessidades da corte e do exército. Eota rude maquina cra servida, obrigatdtiamente, por muitos homens. A violéncia nfo representava uma novidade, Era tio velha como a civilizagéo, em certos lugares, Na Palestina, por exemplo, Cristo ensinara aos scus ouvintes como deviam proceder quando um funcionatio tos requisitasse para o acompankar (car~ regando a sua bagagem) durante uma milha». A palavra «equi- sigor nfo era, originariamente, uma palavra grega; derivava do persa, tinha mais de 500 anos de idade, remontava ao tempo fem que os Aqueménidas haviam aberto as famosas estradas do seu vasto império, empregando os mesmos duros mérodos. © Império Romano, que, perigosamente, se estendera até “to longe do Mediterrneo 20 ano 200, conservava-se unido devido a ilustio de que era ainda muito pequeno. Raramente se vi um império tio dependente como este da delicada pericia dos gover- nantes. Neste momento, preside aos seus destinos uma estranha aristocraciz, unida pela mesma cultura, gosto ¢ linguagem, No Ocidense, a classe senatorial continua a ser um escol tenaz.¢ absorvente, que domina na Itilia, Africa, Franga do. Sul, vales do Ebro ¢ do Guadalquivir. No Oriente, a cultura e.6 poder local concentram-se nas méos das orgulhosas oligarquias das Gidades. Awavés do mundo helénico, diferenca.alguma, no voca- bulrio © ma prontincia, demuncia o Tugar de nascimento dos ‘habitants. No mundo ocidental, os aristocratas bilingues passam, inconscientemente, do latim para o grego. Um natural da Africa sente-se A vontede num salon literdrio de Esmirna, frequcntado Por gregos educados, Esta espantosa uniformidade era mantide por homens que sentiam obscuramente que a sua cultura clissica se destinava a excluir as alternativas do seu proprio mundo. Como muitas aris 7,9. Em baixo, o stro rico. O seu Jengo nome grego e romanio—Mar~ ‘cus Julius Maxionus Aristides — scompanhado de uma longa ins ‘0 em arsmaico. O esculsor em eo shave fee ase Ee sipto. Século tv; em bsixo, cam- Be Shs cies dels, € 0 barrete das classes info -tlores!do Ocidence eontingam. @ ‘user-se. durante a Tdade Médie, ‘Sobravivem no hébito en9 capes do frade, Tumulo do século i, 16 tocracias cosmopolitas’— como as dinastias do fim da Europa Feudal ou os atistocratas do Império Austro-Hiingaro — os homens da mesma classe ¢ cultura sentiam-se, em qualquer parte do mundo: romano, mais-unidos uns aos outros do que com a maioria dos camponeses ssubdesenvolvidoss, seus vizinhos. Os ebirbaross exercem uma pressio silenciosa ¢ persistente sobre a cultura do Império Romano, sBarbarose mio eram apenas os primitives de além-fronteiras; cerca de 200, estes ebirbaros» haviam-se juntado 208 habitantes do intetior do Império. Os aristocratas passam de “um lugar para outro, administram a justica, falam a mesma Ingua, observam 0s mesmos ritos, desempenham os modos de vida de todes os homens cducados. A estes costumes s6 se mantém alheios os territ6rios habitados por certas tribes aliades da Ger- minia ou da Pérsia. Na Gélia, os camponeses ainda filam 0 céltico; na Africa do Norte, 0 pinico ou o Iibio; na Asia Menor, antigos dialectos, come 0 licasnio, 0 frigio, o capadécio on 0 sitfaco e o aramaico, na Siria, ‘Vivendo lado a lado com 0 imenso mundo sbérbarot, as classes governamentais do Império Romano haviam-se libertado dos mais virulentos exctusivismos dos regimes coloniais modernos. Eram bastante tolerantes quanto a raga ¢ religides locais. Mas © prego que exigiam pela inclusio no seu proprio mundo era conformidade —a adopeio do seu estilo de vida, das suas tra- digdes, da sua educacio, ¢, tinda, das suas duas Knguas dis sicas — 0 lati, no: Ocidente, 0 grego, no Oriente. Os que no cstayam em condigdes de cumprit cram. corridos, francamente desprezados como seisticos» e ebirbaros. Os que podiam par ticipar mas nfo queriam — especialmente os Judeus— cram tratados ora com ddio ora com desprezo, sentinientes 86 ocasio- nalmente suavizados por certa curiosidade respeitosa pelos repre- sentantes da antiga civilizagio do Préximo Oriente, Os que Participavam uma vez mas sdesertavam? ostensivamente — os cistios, sobretde — podiom ser. execwiados sumiriamente. Por alcuras de 200, muitos governadores das provincias, acompanhados elas turbas, assinalam, em diversos Iugares, com histérica cer- teza as fronteires do mundo clissico, mediante perseguigies ‘contra of cristios. «No hi coisa que mais mie incomode do que ouvir as pessoas dizerem mal da religiio romana», declarave um ‘magistrado aos cristios. ‘Avsociedade clissica de cerca de 200 era uma sociedade de fronteiras firmes, ras nfo estagnante. No mundo grego, @ wa digo clissica jé tinka mais de 700 anos. A sua primeira erupeio criadora, em Atenas, jé nfo seduizia de maneira to forte como nos tempos das conquistas de Alexandre Magno; adoptara um rituno de sobrevivéncia, rico de cambiantes. delicades, de repe- tigSes pacientes, como n0 cantéchio. Deia-se um’ prometedor renascimento no século 11. Coincidira com a. revivescéncia da vida econémica ¢ a iniciativa politica das classes superiores das cidades helénicas. Na época dos Antoninos assiste-se.ao apogeu dos sofistas gregos. Estes homens, -apaixonados pela ret6rica, cram, ao mesmo tempo, ledes literarios do tempo e grandes rieagos Ww 18 ‘urbanos. Dispunham de enorme influéncia e popularidade. Um deles, Polemo de Esmirna, considerava sreles todas as cidades, 0 imperadores como ndv sendo mais do que ele, ¢ os detises ... como iguaiss. Atrés destes homens estavam as florescentes cidades do mar Egeu. As principais lembrangas classicas em Efeso e Esmirna (¢, semelhantemente, as cidades e templos contempo- rineos em Léptis Magna, na Tunisia, e Bealbeck, no Libano) arecem-nos hoje um resumo do mundo de entio, Ndo passavam, no entanto, de simples amostras de algumas gerages de magni- ficfncia barroca do’ pericdo que vai de Adriano (117-138) @ Sétimo Severo (193-211), E justamente no fim do século m ¢ comegos do mt que a cultura grega sc apresenta senhors do que forma o' lastro da tnadigdo cléssica através da Iduile Média. Sto compilados nesta altura as enciclopédias e os manuais de medicina, ciéncias natu- ” rajs e astronomia que todos os homens cultos (latinos, bizamtinos, Srabes) manejam durante os mil e quinhentos anos seguintes. Os textos literirios e as atitudes politieas que se canservam na mundo grego até ao fim da Idade Média surgem, primeiramente, nna época dos Antoninos. Os senhores bizantinos do século xv ainda empregam um grego ético secreto, usado pelos sofistas do tempo de Adriano. Nesta altura, 0 mundo grego absorve 0 Império Romano. Podemos apreciar a identificagio com o Estado Romano e as subtis modificacdes realizadas, observando um grego da Bitinia, enquadrado, como senador, na classe governamental — Dion Cassio, que escreve a sua Histéria de Roma por alturas de 229, Apesar da maneira entusifstica como vé o Senado Romano, lera- bbra-nos constantemente que o Império se estendera aos Gregos, hubituados, havia séculos, a um despotismo esclarecido, O impe- rador romano era um autocrata. O decoro vulgar e algumas atengdes para com as altas classes educadas eram 28 suas tinicas Preocupagies — nflo 0 delicado maquinismo da constituiglo de Augusto. Limitagies frigeis, como sabia. Assistira a uma reunifio do Senado, na qual um astrélogo acusara certos «calvoss de cons- pitarem contra © imperador, levando, instintivamente, a mio a0 11. A sombea da Péssia. Represonta-se o itnperadar romana Vaeriano, ajoclhado persnte ‘Shaper I, figurado como succssor de Dario e Xerxes, mostranco os us Cireitoe de Provinelae orientale do Império Romane. Relevo do rocked de Bi alto da cabega, Mas aceitava a rude lei de um homem destinado a dar-the um mundo ordenado. S60 finperador podia suprimie a guerra civil; s6 cle podia pOr termio As contendas, das facgBes, nas cidades gregas; s6 ele podia tornar asia classe firme e res- peitada, Os escolares bizantinios que, séculos depsis, procuram conhecer a hist6ria de Roma através de Dion, véemse sem espe- ranga, frente ao mar, quando. Iéeri os feitos dos herdis da epoca da Repiiblicas mias compreendem perfeitamente os fortes ¢ sézios imperadores do tempo de Dion, porque a histéria de Roma é 4 a historia de uma Grécia do fim’ do século 1 ¢ comegos do século 111, isto & a sua histéria, . 19 Di-se uma mudanga do centro de gravidade do Império Romano para as cidades gregas da Asia Menor; desabrocha um mandarinato grego. A propria época dos Antoninos inclina-se Pera Bizincio. Os homens do tempo de Dion Céssio enfientam, porém, outros destinos: sio fortemente conservadores; devem 05 seus maiores sucessos a uma reaccdo cultural; as fronteiras do mundo clissico so, para eles, claras e rigidas, Mesmo Bizincio, mesmo a civilizagio que esta cidade poderia erguer sobre a sua velba tradigéo, mesmo as novidades revoluciondrias, como o estabelecimento do ctistianismo ¢ a transformagio de Constanti- nopla em Nova Roma» — tudo isto era inconcebivel paca homens como Dion. Esta civilizagio s6 pode surgir com a utima revo- Iugo romana, nos séculos Itt ¢ 1¥. Este livro tem por assunto a mudanca e definigo das fron teiras do mundo cléssico depois de 200. Ponco se relaciona com 98 problemas convencionais do declinio e queda do Império Romano. O declinio e queda afectam tmicamente a estrutura politica das provincias romanas do Ocidente; deixam inclume © centto cultural do fim da Antiguidade—o Mediterraneo Oriental © 0 Préximo Oriente. Mesmo nos estados birbaros da Europa Ocidental, o Império Romano, tal como sobrevive em ‘Constantinopla, é considerado, nos séculos vt ¢ Vit, como o maior estado civilizado do Mundo, e continua a ser chamado Respublica. O problema que preocupa entio os homens é, sobretudo, a penosa modificagio dos antigos limites. Geogrificamente, 0 fmbito do Mediterraneo diminuiv. Depois de 410, foi abandonada a Bretanha; depois de 480, a Gilia passou a ser firmemente ditigida do Notte, No Oriente, Paradoxalmente, © recuo do Mediterrineo comegou mais cedo ‘mais imperceptivelmente, mas de maneira decisiva, Até ao século 1, ‘uma aparéncia de civilizagio grega cobre ainda uma grande érea do planalto iraniano. Uma arte greco-budista floresce no Afega- nistio, ¢ as leis de um governante budista sio acatadas fora de Cabul, traduzidas num impecivel grego floséfico, Em 224, tods- via, uma familia de Fars, 0 staciturno Subs do intacto patriotismo iraniano, apodera-se do governo do Império Persa. Este rejuve- nesce, e a dinastia dos Sasstinidas depressa sacode do corpo 0 vestuirio grego, Um império cficiente e agressive, dontinado por uma classe superior alheia a influéacia ocidental, defronta 0 Império Romano, na fronteita oriental. Em 252, 257 ¢, de novo, em 260, 0 grande Shahnshah, 0 rei dos reis Shapur I, refere-se assim aos triuafos dos seus cavaleiros: eValeriano César veio contra nés a frente de um exército de 700.000 Lomens ... tra~ vou-se uni grande batalha, e Valerisno César caiu-nos nas mos B incendidmos, devastémos, conquistimos, as provincias da Siria, Cilicia, Capadécia, ¢ tomamos eativos os seus habitantes.» © medo de repetir a experiéncia inclinow a balanga do domi- nio.imperial do Jado do Reno ¢ muito mais do fado do Eufiates. Pior ainda, 0 chogue com a Pérsia sassinida modificon as fron- teiras do mundo cléssico no Préximo Oriente; a preeminéacia Passou para a Mcsopotimia, ¢ 9 mundo romano ficor sujeito & influéncia da arte € da religito daquela imensa, exética aca. ‘Nem sempre as datas convencionais so as mais decisivas. ‘Todos sabemos que os Godos saquearam Roma em 410, mas as, provincias perdidas do Ocidente contimaram a manter uma esubcivilizagio romana» durante séculos. Contririamente, quando as provincias orientais do Império passaram ao poder do Islio, ‘om 640, deixaram de ser sociedades ssub-bizantinase ¢ corieatali- zaram-se> rapidamemte. O préptio Islfo foi arrastaco para oriente das suas primeiras conguistas devido A submissio do vasto Império Persa, No século vist, 6 Mediterrdneo ¢ governado de Bagdade; torna-se um lago para os homens que estavam habi- tuados a navegar através do golfo Pérsico, ¢ a corte de Haérune Arraxide (788-809), com os seus pesados enfeites de subcul- tura persai, éra uma prova de que a irreversivel vitéria do Préximo Oriente scbre os Gregos comicgara fentamente; mas com segu- range, por alturas da revolta de Fais, em 224. A medida que 0 Mediterraneo recua, um mundo mais antigo passa a revelar-se. Os homens da Bretanha adoptam os padrdes artisticos da idade de La Téne. © servo da diltima Gélia ressuse ita com © nome céhico de vasus. Os Arbitros da piedade do mundo romano, os eremitas coptas do Bgipto, restairam a lingua au dos faraés. Os himnélogos cantam a realeza de Cristo, servidos por expressées que fazem lembrar a época suméria, A volta do Mediterrineo tecoam mesmo as fronteiras mais afastadas do interior. Uma outra face do mundo romano, que vivia desde hd muito na obscuridide, vem A superficie, como as terras de cores diferentes, revolvides pela charrus. Trés geragBes apés Dion Cassio, o cristianismo torna-se a religiio dos imperadores. As pequenas coisas assinalam, muitas veres, mais fielmente as mudangas, porque inconscienfemente. Junto de Roma, uma oficina de escultores do século 1 continua a fornecer estétuas impe- ccivelmente vestidas de toga, mas os aristocratas que encomendam estas. obras. usam vestudrio 4 moda dos sbdrbaros» nfo mediter- rinicos —a winica de la do Damibio, a capa da Gilia do Norte, presa nos ombros por uma fibula de filigrana da Germinia, mesmo as calcas ssaxénicass, Em todas as zonas do Meiiterrinco, cade vez mais profundamenté, a filosofia groga deixa-se impregnar — de novos sentimentos religiosos. ‘Estas transformagées representam op principais temas: da evolugio do derradeiro mundo antigo. Nos dois préximos capi tulos veremos os aspectos sociais ¢ politicos da revolugéo come ada com estas metamorfoses no fim do século 1 € no século Iv. ‘05 NOVOS GOVERNANTES: 240-350 22 Dion. Cissio deixa. de escrever em 229, sem pressentir 0 que se vai pasar. Os seus neto ¢ bisneto ainda assistem & acesslio de Diocieciano (284) ¢ 4 conversio de Constantino a0 cristiae nismo (312). Outro exemplo bem comhecido: © martitio de S. Cipriano, em 258.0 secretirio de Cipriano podia dizer « um vyelho amigo de S. Jerénimo (nascido por alturas de 342) que livros preferia ler © grande bispo. Nio devemos por de lado ‘os lagos humildes entre as geragies. O império romano pagio Heuer ete fuse eucotnme toon soson Beto ele atiedade. Este grupo militar, de grande simplicidade, ea to medieval 29 ‘pecto que os scum figurantes foram considerados, durante muito tempo, como ‘qnuzados ¢ até addrauos como imagens de S. Jorge, Eseultura de pértro, Tgreja de ‘S. Marcos, Venezs. de Cipriano, no século mi, pode parecer-nos infinitamente dis- tante do «iltimos império romano cristio de Jerénimo, no sé~ culo 1¥, O Império Romano era, porém, uma vasta sociedade em moviniento, A sua principal riqueza derivava da agriculrara, ¢ 2 maior parte da sui populagSo vivia da cultura da terra. Estava, desta maneira, bem protegido contra os efeitos da instubilidade politica de duas geragies © contra as invasées bérbaras posterio- res a 240. Depois desta dara, o Império, decadente, tem de fazer frente as invasbes barbaras ¢ A instabilidade politica numa escala para a qual nao estava preparado. Os meios de que Inaga mio para vencer a crise, que vai de 240 aré 300, marcam as caractezisticas da forura evolugo da tltima sociedade antiga, A crise pie a nu o contraste entre 0 coragio do velho inapério mediterrinico ¢ o mundo mais primitivo e frigil das fronteiras. © dominio absorventé da aristocracia tradicfonal na vida cultural e politica do Império dependia de uma paz duradoira. No Norte 0 Tonge das fronteiras orientais virinhas das montanhas da Amménia ¢ do Irio, a paz era, claramente, uma pausa momen- ‘tdnea nas leis da Naturcra, O Império Romano era, como a China, tum dos raros grandes éstades do Mundo Antigo que tentaram criar um odsis de pacifico governo civil entre sociedades que hhaviam sempre vivido em guerra, Com a ressurrei¢éo da Pérsia, em 224, 0 estabelecimento da confedcrago gética na bacia do Dantibio, depois de 248, ¢ os movimentos de bandos guerreiros 20 longo do Reno, depois de 260, 0 Império vé-se obrigado a sustentar 2 guerra em todas as fronteiras. Estava mal preparado para esta tatefa, Entre 245 ¢ 270, as fronteitas desmoronam-sc. Em 251, 0 imperador Décio € ani- quilado com o seu exército nas margens do Dobruja, em luta com os Godos, Em 260, Shapur I eprisions o imperador Valeriano, com muitos dos seus soldadas. No estuatio do Reno e na Crimeia, 0 barcos dos Birbaros antecipam os feitos dos Vikings, Devas- tam as costas da Bretanha e da Galia e assaltam as cidades inde- fesas do mar Egeu. Em 271, 0 imperador Aureliano vé-se mesmo na necessidade de cercar Roma de muralhas militares. 13, No mundo das feoateimast ‘vo de Adams, 108-108. A unidade do Império ¢ ameagada por impérios locais de semer- génciay: Postimio governa a Gilia, a Bretanha ¢ a Espanka, de 260 a 268; Zcndbia, rainha de Palmira, domina parte das provincias do Oriente, de 267 a 270. © Império Romano desconjunta-se. Diferentes. grupos ¢ diferentes provincias perdem a disciplina. Ao longo das frontciras, idades ¢ lugatcs ficam descrtos. Os soldados derrubam 25 impe- radores, e, em 47 anos, s6 um miorre no Ieito. No entanto, & volta do Mediterréneo, uma sociedade mais resistente nfo perde a esperanga © procura progredir. Nas suas grandes herdades, os senadores romanos continuam a cultivar a filosofia grega e adop- tam, nos seus bustos, a moda barroca dos Antoninos. Em Roma, na Africa, no Mediterrdneo, os bispos cristios gozam de um sossego € liberdade de movimentos que contrastam profunda- mente com a dura vida dos seuis governiantes pagios. Nas décadas de crise, muitos dos prineipais dirigexites das cidades do Medi- terrineo continuam a desempenhar pacientemenie os deveres rotinciros da administragio, como os de Oxirinco, no Alto 25 Egipto, esperancados em que a eboa divina fortuna» do imperador recomponha em breve a situago. © sélido assento da vida civil mantém-se firmemente, mas a crise tem um resultado imediato: o mundo romano nunca mais volta a ser governado por um grupo nevével de homens prudentes, como ne tempo de Marco Aurélio. O Império Romano é salvo por uma revolugio mailitar. Reras vvezes a sociedade chegara a cortar 0 podre das classes: supe- lores com tanta cofagem. A aristocracia senatorial & excluida os. comandos, militares, em 260. Os atistocratas véem-se obri- gados a servir como os soldados profissionais, que haviam subiio ‘4 pouco € pouco. O exército é refundido por estes profissionais, A pesada legido ¢ dividida em pequenos destacamentos, .para poder opor defesa mais flexivel em profundidade, nas incutstes dos Barbaros. As guarnigSes fronteicicas so protegidas por uma impressionante fora de chogue, formada por cavelaria pesada— os ecompanheiross do imperador, 0 comitatus. Estas modifica- gSes duplicam 0 tamanho do exército e aumentam em mais do dobro o seu custo, Uma forga de 600 000 homens era o exército, ‘mais vasto reunide durante 0 Mundo Antigo. As necessidades My 15. A esquerda, o soldado Constincio Cloro, pl de Constantino, Medalha de cure do ‘Fesouro Beautains, Musen de Arras, A diceta, s reisurreigao imperial, Cotstincio. Clore heen a Londtes cin 290: sTraz-ros de sve a crema luz de Roma Nas provincias oxigen tals, @ salvagio das cidsdes depend: de chegada do imperador a fceate dow seus EarO030 egimentos de cavalaria pesads, Cépia de um medaihdo de onto, de Tstvezo: 16. 0 sdétary da dade Média: “solidus de ‘Ouro de Constantino (306-237). Em deliberado ‘concrarte com © rude Diodeciana, Consteatine . € feurado como hersi civil —com fs olhos erguides para 0 alta persl assico. Moe- ‘da de Nicomedia. levara as imperadores a0 auinento da burocracia. Por alruras de 300, queixavam-se os cidadfos de que ché mais colectores do que pagadoresi, devido as reformas do imperador Diodecisno (284 -305). Como veremos no préximo capitulo, o peso do aumento dos impostos molda inexoravelmente a estrutura da sociedade romana dos séculos Iv e v. A revolug&o militar do fim do século ur ¢ vista com irredu- tHvel hostilidade pelos civis conservadores do tempo, ¢ por isso mal estudada por alguns historiadores modernos, Fei, no encanto, um dos mais belos feitos do Estado Romano. Com 0 novo exér- cito, Galiano vence os Bérbaros na Jugoslivia e na Itélia do Norte, em.258 2 268; Claudio pacifica a frontcira do Daniibio, em 269; Aureliano avanga através das provifcias do Oriente, em 273; Galério esmaga a ameaga dos Persas, em 296. Qs soldados ¢ oficzis des provineias do Dantbio, que haviam parecido ig mudes aos aristoeratis do Mediterrinzo durante « época precedente, so os hevéis da ressurreicio imperial do firm do século it e comego do séeulo rv, Diz um deles: Servi durante 17-20. 0 novo romano. ‘Um oficial das provineias snubjanas, do século wv. Os seas excravos trazcm- lhe as calgas 18), 0 manta com uma fibula (19), 0 into enfeitado com jéias @0). Fresooe de um tie saulo da Silttria (Dal irks). lo por indiscipline uu rouby, Andei de um lado para o outre durante sete anos. Nunca me escondi atrés de outro, nunca deixei de ser 0 primeiro na luta, O capitio ‘munca me viu hesitar.s O exércite era um viveiro de talentos. Em fins do. século 11, os seus oficiais ¢ administradores tiram & autocracia tradicional o governo do Império. O grande reformador deste periodo, Diocleciane, era filho de um liberto da Dalmécias © seu adjunto, Gelério (305-311), guardara gado nos Cérpatos sum dos seus colegas, Constantino Cloro (305-306), no pussava de obscuro senhor rural dos arredores de Naissus (Nish). Eram homens cuja subida ao poder era tio espectaculosa ¢ bem mere- cida como a dos marechais de Napolefo. Eles ¢ os seus sucessores escolhem auxiliares de pasado idéntico. Os filhos de um car- niceiro, de um pequeno notério provinciano, de um porteiro de balnedrio piblico, tornam-se prefeitos do pretério quando # pros petidade e a seguranca das provincias otientais do Império depen- dem de Constantino e de Constfincio II, » 0 reinado de Constantino, especialmente 0 petiodo que vai de 324 a 337, viu uma nova saristocracia de servigo» alcangar 0 oder mais alto da sociedade romana. Fram oficiais acaslatiados, Pagos em nova moeda de ouro ‘estabilizada —o solidus. No século 1, esta mocda de ouro, o «délar da Idade Médias, goza do poder de compra do délar moderno, numa socedade ainda a bragos com ume inflaclo perturbante. A sua posisio no o) ito e no funcionalismo dew aos servidores imperiais vastas opor- tunidades alimentares, Escrevia im contemporineo: sConstamino foi o primeiro 3 abrir as provincias nos seus amigos; Consténcio 11 fartou-os até néo poderem mais.» ApGs a conyersio de Constantino, em 312, os imperadores © majoria dos seus familiares sfo cristios. A facilidade com que © eristianismo se impie as altas classes do Império Romano, no séeulo 1v, € devida 4 revolugio que coloca a corie imperial 20 centro da sociedade do chomem novos, o qual acha comparati- vamenite ficil abandonar as crengas conservadoras pela nova £8 dos dominadores. As novis classes superiores trazem com efas restos das suas activa’ origens militares, Todos os oficiais usam uniforme; mesmo ‘03 imperadores abandonam a toga, e aparecem, nas suas estétuas, 29 vestidos de guerreiros, Estas vestes so o simples ¢ grosseiro ‘uniforme da fronteira danubiana um pequeno elmo redondo, ‘uma capa-com uma fibula de ombros, trabalho bérbaro, ¢ um pesado cinturio. © latim ristico das provincias fazia irremedid- velmente parte do seu vocabulitio oficial. ra assim que um romano clissico denominava aurexs a nova moeda de ouro; na prética, porém, todos Ihe chamavam solidus, ou seja, ccoisa s6liday, digna de crédito, ‘Um elemento novo, de origem alheia 4 aristocracia tradi- cional do Império, veio, desta forma, a formar a classe governa- mental. A fluidez social que levara estes homens ao alto nem era indiscriminada nem abragava toda a sociedade romana. No Oriente, por exemplo, Constantinapla € remoinko isolado de modificages cujas correntes $6 gradualmente afectam as classes superiores’ da seciedade, nas provincias. Libinio (314-393), um ‘grego retbrico, posto cm 341-342 perante os soldados de lingua latina que esperam 0 seu discirso, procede como se alesse por mimices, porque nfo podiam compreender © seu grego clissico. Na cidade de Nicomedia, para onde retira, encontra melhor ‘companhia —chomens de bom nascimento#, ramantes das musas>. Estranhos a0 animado’mundo da corie e do exército, sobre- vivem os lentos movimentos tradicionalistas, Os proprietécios ricos contisiuam a coleccionar grandes estétuas e o sistema clas sico de educago continua a ministrar aos. jovens ideias conser- vadoras. Como os arcos opostos da mesma abbada, a mova» sociedade dos sibdites ‘imperiais vem a encostar-se & segura sociedade tradicional das educadas classes superiores. O poder absorvente e ctiador destas clases € extaordindrio, Em fins do século 1¥, por exemplo, ricos romanos, cujos avés haviam per- petuado as violentas inovagdes do Arco de Constantino, apreciam os belos trabalhos neoclissicos de marfim ¢ sabem mais de Titeratura latina do que muitos dos seus predecessores. A antiga educacio cléssica fornecia os elementos de ligagao entre of dois mundos. Esta cultura, avidamente absorvida, era ‘um trompe Poeuil ao.qual 0 homem novo podia encostar-se. Um govetnador de provincia confessava: «O meu pai era um pobre 24420. Reniastiento cléssico. He. cies hein, Bhacea Rettcnone dtrc, ta ca, getin Sirco, seaudor pagio so his Uo-sésala te Bea aio, caamento eu camponés; 0 meu amor pelas letras conquistou-me a vida de senor» A maior parte da cultura clissica do século 1v era uma sculcura-sucessov; a obra mais importante que se Ihe deve € um eresumoo (breviarium), de trinta piginas, da historia de Roma, destinado 20s governantes do Império, Um dos aspectos requintados e deleitosos do mundo do fim da Antiguidade é 0 esforgo consciente da fluida classe superior, no sentido do regresso as raizes do passado, o desejo de asséntar firmemente as bases da coes4. Os novos senadores protegem a produgio de objectos de huxo, de. belo lavor artesanal, para for~ talccer a situagio da classe e a sua solidariedade. Celebram os aniversirios dos casamentos mandando lavrar cofres nupciais de prata (como o coffe esquilino do Museu Britinico); anunciam essas datas a0s amigos por meio de belas tabuinhas de marfim, de puro estilo neoclissico (como 6 diptico Nicomachi, do Museu Vitéria ¢ Alberto}. Estes dipticos servem também para lembrar a posse do lugar de cOnsul, numa complicada herildica, que representa mais a gléria e antiguidade do ritulo do que os meritos do novo possuidor. Os trabalhos mais polides que Provém destes homens so, porém, as suas cartas, tfo minuciosas e insfpidas como os cartes de visita dos mandarins da Ching imperial. Durante os séculos rv ¢ v circula uma vasta coleegio de cartas, # maior parte das quais ndo passa de relatos pre~ tensiosos da classe governante do mundo romano, relativos as perdas ¢ ganhos de uma lute continua pela conquista de privi- ggios € influéneia, ‘As novas classes governamentais precisavam de mestres, ¢ estes, por sua vez, vémm a formar o estado-maior de uma buro- racia que, em certos momentos, domina a corte. Ausénio (¢. 310- -395), poeta de Bordéus, torna-se a éminence grise do Imapério do Ocidente. E possivel a Agostinho, pertencente a uma pobre familia de Tagaste (sul de Aras), na Africa, ocupar, aos 30 anos, o lugar de professor de Retérica em Milo (384) econquistar, seguidamente, a consideragio do governador da provincia e da nobreza local. Nas cidades helénicas do Império di-se a fusio dos senhores wadicionais com os novos burocratas. Os homens 23,24, A csquerda, 0 letsado ocupa t sue ca dira de professor (p:o- téuipo da cdtedra epis- coal) tendo em frente luna estente epleta de tntigos roioe de ides ger, Rete romano. ‘dieita, 0 evangetisra S. Mates. Do Evan kllrio de Carlos Mage ‘noyAix-le-Chapelle, am tes de B00, que apreciam a antiga cultura tradicional sio os tinicos membros estiveis de uma maquina burocritica que absorve os talentos como uma esponja, O influxo constant: das necessidades dos provinciais, cuidadosamente abafadas pela literatura clissica grega de Constantinopla, di & classe governante de Bizancio a iluséria tranquilidade das diquas superficiis da presa de um moinho. Nomeiam 0 pessoal civil permanente ¢ os governadares das pro- vineiass slo cles que vém a narrar a histéria de Bizincio nos mil ‘anos seguintes. Tio uniforme é a sua cultura que 0, seu ultimo sepresentante continua a escrever, sob 0 dominio dos sultGes otomanos, no fim do séeulo xv, uma histéria do tempo & maneira de Tueidides, ‘Nesta nova classe superior ha duas feigies que importa con~ siderar. Em primeiro lugar, procurava criar-se um escol através de -uma activa carreira publica, A cultura clissica do fim a Antiguidade assemelhava-se a uma alta pirimide; forgava a uma saristocrarizagior, a formagio de homens eelevados pela wradigdo habitual acima da massa comum da humanidades, Absorvendo, ‘gragas a0 estudo, os modelos clissicos da literatura ¢ moldundo © procedimento pelo dos herdis antigos, aspiravam a uma certeza que sé a participacéo consciente do modo de vida tradicional thes poderii dar. Apenas uma meticutosa dedicagéc a0 aperiei- goamento dos Amigos poderia salvé-los, assim litertados das sangics tradicionais ¢ de si mesmos. Juliano, o Apéstara 61+ 33 ~363), pensava sinceramente que 0 seu itmio Galo se «oroara selvagemo, mas que ele fora wsalvor pelos deuses, que The haviama dado uma educacio universitiria, Nio surpreende, nestas con~ digges, que pagios ¢ cristios Iutem to violentamente, através do século 1, por saber qual devia ser a verdadeira paideia, a verdadeira eduicagio, se a literatura, se 0 cristianismos ambos ‘os partidos esperavam salvar-se mediante a educagio, © homem que se cinzelara e polira como uma estitua, através da devogio pelos antigos classicos, era o homem ideal. Representam-no, no seu sarcéfago, fixando sossegadamente um fivro aberto—um shomem das musase, um santo da cultura clissica. Em breve se torna um santo: © bispo cristo com a sua Biblia aberta, o inspi- rado evangelista, curvado sobre uma pagina, so descendentes directos do retrato do homem de letras do fim da Antiguidade. Em segundo lugar, no se sabia até que altura devia chegar a pirdmide, sempre aberta na base. Até ao século 1v, a profisso docente é extraordinariamente fluida. O ideal de cultura clissica constantemente alimentado pelos reoém-chegados. A revolu- ciondtia «conversdos ce Constantino a0 ctistiamismo nfo é a tinica naquela época de modificagdes; hi muitas outras, mais silen- ciosas, mas igualmente fanéticas, & cultura tradicional e & velha religiio. O imperador Diccleciano defende 0 tradicionalismo romano com fervor religioso; o mesmo faz Juliano, o Apdstata, esse rioweeau riche da cultura grega. No Baixo Império, porém, dé-se repentinamente uma exploséo de talento e génio criador, como sucede muitas vezes quando um ancien régime 6 sacudido, ‘Uma notivel corrente de homens hibeis, isentos dos preconceitos da atistocracia ¢ amantes do saber, empregam um estilo vigoroso © inguieto, que distingue o clima intelectual do fim da Anti- guidade de qualquer outro periodo da histéria antiga, Vem todos de cidades obscuras: Plotino (¢. 205-270) do Alto Egipto; Agos- tinho (354430) de Tageste; Jecénimo (342-419) de Stridon, para onde, por fim, desejava voltar; Jodo Cziséstomo (¢. 347-407) de um escritério de amanuense, em Antioquia. Onde termina esta fluidez? Instituigdes menos conservadoras do que o sistema ‘burocritico e educative do Império fortalect-lo-iam mais eficaz~ AS ues oT SAE TREES mente? Ea que pervurbantes ideias, 4 muito om gestacio nas cidades do Mediterrineo, deixatia isto aberto 9 camiaho? Por agora, vejamos apenas como a sociedade erestaurads» do Império Romano, com a sua mistura de novos e velhos elementos, se estabilizou ¢ disp6s de telativa seguranga durante um século. RESTAURACKO DE UM MUNDO: A SOCIEDADE ROMANA NO SECULO IV A nova classe governamental romana, que alsstrara através do Império cerca de 350, julgava viver num mundo que resta- belecera a ordem: Reparatio Sasculi. A cldade da Resteuracios cra o seu mote favorito, em moedae ¢ inscrigdes. Logo que os imperadores pacificaram a regio do Reno, uma nova aristocracia se espalhou pela Gilia, como os cogumelos apds 2 chuve: homens como Ausénio, que lembrava como seu avd, fugido a invasio barbara de 270, encomtrare grandes proprictirios eujas fortunas se haviam mantido durante o3 dois séculos seguiies. Nu Africa € na Sicilia, uma série de espténdidos mosaicos ilusttam a dolce vita dos grandes proprietitios, cuja existéncia nfo & perturbada entre 08 séculos M1 ¢ Wy. 5 importante este renzscimento do séeulo 1v. As profundas modificages religioses ¢ culturais do fim da Amiguidade néo xm por teatro um mundo aterrado pela sombra de uma catés- trofe. Longe disso; os homens cesta época formam uma sociedade. rica © surpreendentemente compreensiva, que sc estabiliza e conquista uma estrutura significativamente diferenté da classe romana do perfodo cléssico. Otago mais caractecistico desta Sociedade, tanto para os contemporancos como para o historiador, € 0 vasto fosso entre os ricos ¢ os pobres. No Império do Ocidente, 2 sociedade ¢ a cultura sfio dominadas por uma aristocracia sena- torial cinco veves mais rica, em média, do que 0s senadores do séeulo 1, No ttmulo de um destes senadores encoatrou-se uma meada de fiado de ouros —~ tudo 0 que restava de um verdadeivo miliondrio romano do século rv: «Petr6nio Probo, cxjas proprie~ dacles se espalhavam por todo o Império, adquiridas onesta-

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