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Liliam Cristina da Silva Barros | Paulo Murilo Guerreiro do Amaral Orgerizadores : CADERNDS D0 GRUPO DE PESOS MUSICA EIDENTIDADE NA AMAZONIA - GFMIA met EDITOR: Projeto Editorial Editora Paka-Tatu Editoragao Eletrénica lone Sena Ilustragdo da Capa Joao Bento Capa lone Sena Revisao Rodrigo Gerdulli Ficha Catalografica ‘Ana Negrio do Espirito Santo Todos os direitos reservados aos Autores Editora Paka-Tatu Rua Oliveira Belo, 386, salas 8 e 9 Umarizal, CEP: 66050-380, Belém-PA Fone-fax: (91) 3242-5403 contato@paka-tatu.com.br www.editorapakatatu.com.br C122¢ Cademnos do Grupo de Pesquisa: lisica e identidade na Amaz6nia — GPMIA/ Liliam Cristina da Silva Barros, Paulo Murilo Guerreiro do Amaral, organizadores. _ Belém: Paka-Tatu ; Programa de P6s-Graduacio em Artes, 2011. v2° ISBN: 978-85-63189-09-7 1, Misica — Belém(PA) 2, Etnomusicologia I. Barros, Liliam Cristina da Silva, org. II. Amaral, Paulo Murilo Guerreiro do, org. II. Titulo CDD: 792.098115 Caminhos e fronteiras da Etnomusicologia Sonia Chada' Aspectos histéricas No final do século XIX, enquanto os poderes europeus repartiam o continente africano, Londres inaugurava 0 primeiro metré, inventava-se 0 fonégrafo e a medicina descobria novas vacinas, um estudante chamado Guido Adler (1885) publicou na Revista Quadrimestral de Musicologia (Vierteljahrsschrift fiir Musikwissenschaft) 0 artigo “Delimitagao, método e finalidade da Musicologia” (“Umfang, Methode und Ziel der Musikwissenschaft”). Guido Adler (1855-1941) era licenciado e doutor em Direito pela Universidade de Viena. Graduou-se no conservatorio musical local, sendo discipulo de Anton Bruckner, Estimulado por Eduard Hanslich, jurista € responsével pela catedra de Histéria e Estética da Muisica na Universidade de Viena, a qual Adler veio a ‘ocupar, dedicou-se inteiramente ao estudo da misica, obtendo, em 1880, 0 grau de Doutor em Filosofia. Em seu artigo, Adler parte da dicotomia cléssica eritre ciéncia historica e ciéncia sistematica, em voga naquela época. O artigo, sem precedentes, amplia o campo da Musicologia e propde a seguinte subdivisao a) Musicologia Histérica — compreendia a historia da miisica “segundo as épocas, povos, impé nagdes, regides, escolas artisticas e artistas", subdividida em: * Paleografia musical — notagdes; * Taxonomia musical -classificagao das formas musicais; * Sucessao histérica das normas ou cdnones: como se apresentam nas obras de arte de cada épox como sao ensinados pelos tedricos da época em questdo; como se manifestam na pratica artistica; * Organologia — hist ¢ classificagao dos instrumentos musicai b) Musicologia Sistematica ~ definida como o “estabelecimento das leis supremas que regem os ramos singulares da arte dos sons”, subdividida em: * Investigagao e fundamentacao da arte dos sons na harmonia; na ritmica; na mélica; + Estética da Arte * Pedagogia e Didiitica Musical: teoria musical, harmonia, contraponto, composicao, instrumentacio, métodos de ensino e execugio instrumental, ©) Musicologia Comparada ~ “investigagdo e comparacdo para fins etnograficos”. A sistematizacdo proposta seria impossivel, sem 0 contexto sociocultural em que vivia Adler. O mundo musical era aquele que conhecemos hoje da musica germanica, especialmente a vienense, com particular relevo para a Escola de Viena. Naquele final do século XIX, a Europa dominava uma grande parte do mundo, politica e culturalmente, ¢ a musicologia comecava como uma ciéncia holistica que seguia ‘08 modelos em uso. As estruturas que pretendiam abarcar todos os fendmenos e todos os elementos da cultura influenciaram de maneira definitiva a posterior Emomusicologia. ‘Tanto o desafio da Eufopa perante 0 mundo que se descobria quanto a revalorizacao do conceito de nagio criaram o interesse pela compreensao do mundo conquistado, assim como a interpretacao de todas. as culturas (Cf. Nettl, 1995). ' Professora do Instituto de Ciéncia da Arte da Universidade Federal do Pars. ee Ao utilizar, para a Musicologia Sistemédtica, a expressio “arte dos sons", Adler utilizava uma designacao estabelecida pela tradicio alema na virada do século XVIII para o XIX. Hi, na sistematizacdo de Adler, uma distincao entre o objeto da Musicologia Histérica e o da Musicologia Sistemética — no primeiro caso, a “miisica”; no segundo, a “arte dos sons". 0 conceito de arte dos sons contraposto ao de miisica Pressupunha uma hierarquia entre ambos. A distingo nao era casual. Estava implicito 0 postulado de que 0 objeto da musicolo; histérica seria esmiuar diacronicamente a “arte dos sons” dos fenémenos musicais em geral e-de que o enunciado das “leis suprémas”, que competia & Musicologia Sistematica, s6 podia recair sobre a arte dos sons (Cf. Carvalho). * : t Aiideia de que a misica como arte dos sons, apenas nessa época, tinha alcangado a maturidade era reforcada pela comparagao com a Antiguidade grega, que nao deixara “obras musicais” como testemunhos artisticos comparaveis aos das-outras artes, isto é, onde ainda nao havia um grande nome, como na Filosofia. A contradicao entre uma ideia de misica largamente documentada nos textos teéricos da Antiguidade e uma ideia de obra musical relativamente recente tornava-a a “mais antiga das belas-artes” e, ao mesmo tempo, a “mais jovem de todas”, pelo fato dela nao ter ainda atrés de si a sua época classica (Cf. Carvalho). Nesse clita, nasce a Etnomusicologia, no final do século XIX, sob o nome de Musicologia comparada (Vergleichende Musikwissenschaft}, esbogando algumas diretrizes que se tornariam posteriormente paradigmaticas na disciplina: estudos interculturais, ‘trabalho de campo, estudo da miisica na cultura, organologia comparada, problemas analiticos, tudo isso na atmosfera de uma visio holistica da Musicologia. Guido Adler a define como o ramo da Musicologia que teria como tarefa a “comparacao das obras musicais, especialmente as cangées folcléricas dos varios povos da terra, para propésitos etnogrificos e classificagao de acordo com suas varias formas” (Cf. Nettl, 1995). Ahist6ria da Musicologia comparativa pode ser interpretada por meio da interrelacao de trés temas na hist6ria politica e cultural desse period: 1. No final do século XIX, a sociedade europeia apoderava-se totalmente do mundo de forma politica, cultural e artistica. Era uma época em que se tendia a pensar grande e o pensamento de conquista refletia- se na cultura musical. Muitos dos trabalhos musicolégicos com a concepgio de uma ciéncia holistica datam desse perfodo, Sao dessa época os primeiros catélogos de instrumento, a produgio de trabalhos completos sobre um tinico compositor e as primeiras etnografias sobre as culturas musicais; 2. 0 desenvolvimento de uma conscigncia nacional e 0 interesse no entendimento da cultura de sua propria nacao, A literatura musicolégica dessa época manifestava entre os seus valores principais: 0 amor a admiracao pela prdpria nagao. Sd dessa época as colecdes e ampla literatura sobre miisica folclérica; 3. A revalorizacao do conceito de nacao ¢ o interesse da Europa perante 0 mundo que descobria despertaram o interesse pela compreenso do mundo conquistado, pela interpretacao da sua cultura e, por extensio, pelos componentes dessa cultura. Ocorre o interesse nas relagdes entre as culturas e a Europa, conquistando o mundo, teve que digerir essa variedade. Era encorajada a Goleta de miisicas populares € de transmissdo oral, com interesse em tudo que pudesse servir para estabelecer caracteristicas nacionais.. O esquema de Adler, entretanto, de investigagio cientifica de miisica nao ocidental, s6 foi'possivel pela invengio do fondgrafo, o precursor do gramofone, em 1877, por Thomas Edison, tornando possivel tanto a fixago quanto a reprodugao do som. Nessa época, houve o interesse por documentos sonoros distintos. A primeira fase da Etnomusicologia até cerca de 1940 foi marcada pela tentativa de compreensao das primeiras gravagdes existentes. Era comum que pesquisadores, como Erich von Hornbostel, ficassem em seus escritérios, realizando transcrigdes e escrevendo sobre culturas musicais, as quais eles nunca conheceram pessoalmente, gracas as gravages realizadas por curiosos, turistas ou pesquisadores de outras reas. Posteriormente, sob forte influéncia antropolégica, a pesquisa de campo tornou-se uma exigéncia da disciplina. 0 inicio da Etnomusilogia, como estudo das relagdes culturais, é marcado por trés publicagoes importantes (Cf. Nettl, 1995): 1. 0 trabalho de A. J. Ellis (1885) “On the musical scales of various nations, frequentemente descrito como o primeiro grande estudo comparativo. Na opiniao de Jaap Kunst, Ellis teria precedentes Por consideragdes metodolégicas, como a evoluca6 do “sistema de cents", com a qual.se poderia fazer uma descricao objetiva das escalas musicais; 2. O artigo de Carl Stumpf (1886) sobre a miisica dos indios Bella Coola, apontado como o primeiro artigo sobre miisica no ocidental. Stumpf estudou essas cangdes grafadas sem meios técnicos, com énfase nas estruturas da escala e da melodia; 3.As primeiras gravacdes sobre as misicas dos indios americanos — as cangdes dos Passamagaudy., de Maine, e dos Zuni-do Arizona, misica nao ocidental, por Walter Fewkes (1889), 0 estudo de A. J, Ellis e 0 trabalho de Guido Adler representam a compreensio da miisica como fendmeno universal. O estudo baseava-se em perspectivas relativistas e em concepsdes plurais da cultura, A implantacio da pesquisa de campo na Antropologia, por volta dos anos 1920, vai sendo utilizada 0s poucos pela Etnomusicologia, permitindo uma mudanca significativa para o estudo contextual da Miisica. O termo “pesquisa de campo”, criado por Bronislaw Malinowsky®, vem fazer frente a atividade do “antropdlogo de gabinete” e tem, por base, o contato intersubjetivo entre o pesquisador e o seu objeto, seja ele qualquer grupo social, sob qual o recorte analitico seja feitd. Na introducdo de seu clissico estudo, Os argonautas do Pacifico Ocidental (1922), Malinowsky marcou a histéria da Antropologia moderna ao Propor uma nova forma de etnografia, envolvendo detalhada ¢ atenta observagdo participante, apesar de Malinowski nunca ter utilizado esse termo para aquela atividade. Terminolgia . : © termo “etno-musicologia’, ainda com hifen, s6 aparece apés a Segunda Guerra Mundial, em 1950, na publicacio do holandés Jaap Kunst ~ um dos primeiros estudiosos da misica balinesa e Javanesa -, “Musicology: A study of the nature of ethno-musicology, its problems, methods and representative personalities”, tomando o lugar da Musicologia comparada, apoiado pela visio expressada Por varios pesquisadores de que aquele estudo no era mais comparativo do que os de outros campos de conhecimento. Em 1956, surge, nos Estados'Unidos, a Society for Ethnomusicology, que retira oficialmente o hifen da palavra etnomusicologia, enquanto que a Associasdo Brasileira de Etnomusicologia velo a frmar-se apenas em 2001. Nos anos seguintes, etnomusicélogos foram di ido-se em dois campos: um com treinamento antropol6gico, encabecado por Alan Merriam, e outro com treinamento musicolégico, encabesado por Mantle Hood, vertentes explicadas pela prépria histéria da Etnomusicologia. A tendéncia etnomusicoldgica das décadas posteriores tem sido a do estudo da miisica em uma sociedade, assim como a interagao da miisica com 0 seu contexto cultural, histérico e social, Para Nett! (1964:224),“Talvez a tarefa mais importante que a etnomusicologia tenha colocado para si prépra, sea 0 estudo € a descoberta do papel que a miisica desempenha em cada cultura do homem, passado-e presente, © 0 conhecimento do que a miisica significa para o homem". > Antropélogo inglés de origem polonesa (1884-1942) Definigaa A Etnomusicologia é, geralmente, definida como 0 estudo da miisica na cultura (Merriam, 1964:7}. E a ciéncia que objetiva o estudo da mtisica em seu contexto cultural. Assim, os dados sao coletados, considerando-se os possiveis aspectos relacionados ao comportamento humano. Essa evidéncia é usada, entdo, para tentar explicar por que uma miisica é como é e de que forma é usada. A énfase é no papel da miisica como comportamento social humano. A misica ocorre num contexto cultural e pode, por isso, ser influenciada nao sé por consideragdes artisticas, mas também por consideragées sociais, religiosas, econémicas, politicas ou pelo préprio confronto com outras formas de expressao artistica. A relagio miisica x cultura é uma das crencas basicas da Etnomusicologia, seja como “miisica vista em seu contexto cultural” (Mantle Hood); como miisica “na cultura” ou “como cultura” (Alan Merriam); ou, ainda, de forma um pouco mais restrita, “misica em seu contexto cultural mais imediato (J. H. Kwabena Nketia). Em cada uma dessas énfases, fazendo-se necessédria a definico ou o conceito de miisica e de cultura, © nivel em que essa associagio se revela, se de superficie ou de estruturas profundas (John Blacking), € um ponto a ser considerado em qualquer investigacao. A abordagem mais utilizada tem sido a do estudo de miisica em seu contexto cultural Grengas Etnomusicologia: jungio da musicologia com a antropologia - etnologia. Interesses em como as pessoas geram, produzem e consomem misica, Acredita-se que mii homens. Busca entender o homem por meio da sua misica Estuda a “mtisica viva”. Cultura e mtisica formam um fendmeno unitério. Interesse na forma com a qual a cultura se define musicalmente. Faz comparagdes historicas para entender uma prética musical que existe € seus processos de mudanga, : Nao est somente preocupada em preservar ¢ registrar. : Miisica deve ser entendida em seus préprios termos — sem julgamento de valor. } trabalho de campo ¢ indispensavel nao somente pela veracidade das informacdes obtidas, mas também por validar a pesquisa. $6.pode ser entendida como parte da cultura; é feita por homens, para 0 etnomusicélogo aiua como um “observador participante” e, dessa forma, pode contribuir com 0 ‘grupo com o qual trabalha. 0 campo de atuacao se expan iu e ele nio atua somente como professor e pesquisador. Campa de estudo ‘Apesar de estar relacionada com o campo maior de estudos sobre misica (Musicologia) e de alguns | programas de pés-graduacao evitarem a divisio dos campos da Etnomusicologia e da Musicologia, alguns | autores e pesquisadores preferem manter essa divisdo. O motivo esté baseado na crenga de que a principal diferenca entre a Musicologia (ou, mais especificamente, a Musicologia Historica) e a Etnomusicologia eiramente como texto musical, a Etnomusicologia ia, como forma de compreender o porqué daquela estaria no foco. Enquanto a Musicologia se preocupa pi da énfase ao contexto no qual a mtisica esté inse miisica ser da forma como é. E ‘comum que leigos pensem a Etnomusicologia como 0 estudo da “miisica dos povos Essa é uma confusdo normal, por associarem o prefixo “etno” com “etnia”, remetendo ao ‘estudo de miisicas étnicas. Considera-se a impropriedade contemporinea do termo “etnomusicologia’s Krader, Barbara, 1980. “Ethnomusicology”. The New Grove Dictionary of Music and Musicians. v. 6. Londres: Macmillan, pp. 275-82 Kunst, Jaap. 1969. Ethnomusicology: A Study of Its Nature, Its Problems, Methods and Représentative Personalities to Which Is Added a Bibliography. The Hague: M. Nijhoff Langness,L. L. 1997. The Study of Culture. Novato, California: Chandler & Sharp Publishers Lemos, André. 1996. As Estruturas Antropolégicas do Cyberespaco". Disponivelem: 3 Malinowski, Bronislaw. 1976. Argonautas do Pacifico ocidental: um relato do empreendintento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia, Sa0 Paulo: Abril Cultural. Colegao Os Pensadores. Vol. 43 Merriam, Alan P, 1964. The Anthropology of Music. Evanston: Northwestern University Press Nattiez, Jean-Jacques. 1990, Music and Discourse: Toward a Semiology of Music. Princeton: Princeton University Press z Nettl, Bruno. 2005. The Study of Ethnomusicology: thirty-one issues and concepts. Urbana e Chicago: University of Illinois Press -2003. "Reflexiones sobreel siglo XX:el estudio delos Otros’ y de nosotros como etnomusicdlogos”. Revista Transcultural de Mdsica 7. Disponivel em 1995, “The Seminal Eighties: A North American Perspective of the Beginnings of Musicology and Ethnomusicology”. Revista Transcultural de Miisica 1. Disponivel em - 1964. Theory and Method in Ethnomusicology. New York: Free Press the Spirits of Modernity: The Temiars of Peninsular Malaysia”. Abstiacts, Roseman, Marina, 2001. “Engagit International Council for Traditional Music. Rio de Janeiro. pp. 89-90 Sandroni, Carlos. 2008. ‘Apontamentos sobre a historia e o perfil institucional da etnomusicologia no "Revista da USP. pp. 66-75. Brasi

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