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GRODDECK : A 0 _LINGUAGEM MICHELE LALIVE d'EPINAY GRODDECK: A DOENCA COMO . LINGUAGEM Tito original em Groddech 04 Tae de © Edtions Universita Capo: Francis Rodrigue Tradusie- Grasiems. Pi Equipe de revise: Sa Fausto Alves Barre Filho Das de Catalogacio na Publicasdo (CIP) Internacional [Camara Brave do Livto, SP. Bras) Este ror pinay, Michele Lalve ‘Groddeck = » doenga como linguagem / Michéle Lave 'Bpinay : tralugio Graclema Pies Therezo, — Campi, SP" Papirs, 1988 Bibtiogratia 1, Groddeck, Georg Walther, 1866-1984 2. Medicis pricosiondtica 3. Pscanalne 1 Titulo, eDp.6i6.08 16.8917 NLMAWM 90, Indices para 0 stem 1 Medicina psicosomsticn 616.04 2. Paandlne + Medicina 616.8917 DIREITOS RESERVADOS PARA A LINGUA PORTUGUESA: © M. R, Cormicehia & Cin, It poprus EDITORA Av. Prancisco Gliero, 1314 - 2. and Fone: (0192) 32-7368 13013 - Campinas ~ SP Bes roibida a reprodusio total ou parcial por qualquer meio de impremin, em forma éntica, resumida ou modiicida. em lingua portuguesa Ov qualquer outa Moan OO INTRODUCAO CRONOLOGIA | — © PROJETO GRODDECKIANO Da desmesura visiondria © mundo humana Deus-Natureza: 0 conceito de id A moderacdo do aluno de Hipécrates © projeto groddeckiano © papel do medico © papel da. doeaca I — A OBRA LITERARIA Deixar-se seduzir pela morte ‘A propésito da linguagem Reflexdo sobre a arte Criagao Hteriria © pritica medi ara proteser a vida AAs Conferéneias psicanaliticas © tema das Conferéncias A forma © objetivo desejado © objetivo atingide A eficicia da cura A cura como tratamento do médico — A PRATICA MEDICA © imaginério sroddeckiano Do ventre humano © de sua alma © corpo como. linguagem A linguagem dé corpo vide da. alma ‘em socorre do veal: da doena © aluno de Schyweninger © sanatorio de Baden-Baden © emulo de Freud n 2 4 o7 AS indicagdes do tratamento analitico Os limites da andlise * ‘Uma grade para a interpretagio dos sintomas orgiticos Interpretacéo da transferéacia e queda das resisténclas IV — A PSICOSSOMATICA 99 Especulacdes sobre 0 simbalico... As cartas a Freud: nascimento da psicossomatica id groddeckiano e 0 id freudiano © consciente € 0 id 0 exo © Livro do id A psicossomatica groddeckiana: ‘= 8 descoberta do simbolo e suas consegiéncias — 0 sintoma como simbolo — 4 fuga diante do simbolo, obstéculo quase intransponivel para a an — 4 revisio de certos concsitos — & muliplicidade do individuo = 0 recurso a doenca — 4 propésito da psicossomatica © cura pelo verbo A cticécia simbélica — a encantagéo ou magia 0 recurso 20 mito e a0 simbolo V — FAZER ESCOLA: 0 ESPIRITO OU A LETRA ..... 133, Reconhecimento: — Groddeck — Ferenczi — Groddeck — Balint — Groddeck — Freud — Groddeck pré-lacaniano Censura’ = Groddeck proibido — Groddeck esquecido: a medicina psicossomitica Ressurgimento: Gl cen emcee BIBLIOGRAFIA ... ‘ I. Obras de Groddeck AL. Obras sobre Groddeck feeis7, ___ Introduzir o leitor & obra de Georg Groddeck, escri- tor e médico, consiste em familiariz4-lo com evidéncias que, por serem insustentAveis, so esquecidas logo que ‘oO homem as vé, __ Falar de Groddeck consiste em dizer 0 que muitos licos escondem de seus doentes: uma doenca ou um facidente néo sio, jamais, truto do acaso. A doenca tem um sentido. Inscreve-se, como todo acontecimento, no percurso da vida de cada ser humano. £ o sinal de sua lagao com o mundo e consigo mesmo, E uma solucio problematica, é claro — para os conflitos que pon- sua existéncia. & uma das maneiras de ocultar, mais ou menos sofrimento, o que ultrapassa 0 idividuo, embora seja parte integrante dele: a morte, monstruosidade, a loucura, a desumanidade. Desuma- também é a medicina, quando quer eliminar o mal qualquer preco; para negar o infernal, exorcizar a morte, mata a vida. Assim se depreende o que para Groddeck é a satide. fio é auséncia de doenga, nem libertaeso do mal, mas itegracdo deste mal & vida; o reconhecimento de que faz parte de si, em vez de negar esta evidéncia ou de atribui-la a outrem. A satide torna-se, assim, respon- 1 sabilidade de cada um e ao médico compete, ndo curar a doenga, mas traté-la, isto 6, criar, em colaboragao com © paciente, condigées de satide, Acreditar que esta pode ser comprada é uma ilusao. Médicos e psicanalistas sao considerados detentores de um poder que os torna aptos a definir saiide e doenga, segundo as necessidades do momento; a circunscrever o mal e a extermina-lo. Com isto, a satide é reduzida a um problema técnico,a uma questéo de verbas e também a um setor de mercado de consumo, Contra certezas deste género é que se insurge Grod- deck, instaurando o questionamento e a diivida, devol- vendo doenca sua verdadeira dimenséo, a saber, seu valor existencial e hermenéutico, Ela nao é um corpo estranho do qual 0 homem se possa desembaragar im- punemente. £ uma maneira de estar no mundo que ele pode modificar favoravelmente, se chegar a compreen- der seu sentido. Dentro desta perspectiva, péde chegar naturalmente a afirmagao de que toda doenca fisica é, também, psfqui- ca e de que toda doenca psiquica é, também, fisiea, Uma tal concepgéo contribui para restaurar a integridade do ser humano. Foi a arte de tratar que se dedicou, usando de seus préprios métodos e. .. tendo sucesso. Isto pareceu a pior das subversées & ordem médica e psicanalitica, que ndo reconheceu sua eficdcia terapéutica. Nesta obra, pretendemos retragar o projeto grod- deckiano, apoiando-nos sobre o duplo aspecto de sua obra, que constitui sua singularidade: de um lado, sua pratica de médico e psicanalista; de outro, sua atividade de escritor e romancista. x Com efeito, a importante e surpreendente obra lite- réria de Groddeck é indissocifvel de sua pratica médica, Porque se serviu da lingua falada e escrita de uma tal maneira que ela se tornou sua mais itil ferramenta de trabalho. Foi através de um uso adequado da fala, yefculo de simbolos, que operou mudangas e levou seus doentes & cura, Se ele foi téo eficaz como médico € porque manejava a lingua como artista. E curar é uma arte. © primeiro capitulo situa 0 campo de ago de Groddeck: sua visio do mundo, do mundo humano, da doenga, do médico. O desenvolvimento dos capitulos seguintes mostra como, para reforgar sua eficdcia, articula a prética médica sempre com um uso particular da lingua, quer se trate da palavra, como em certos textos literdrios, particularmente das Conferéncias psicanaliticas para uso dos doentes; da interpretagao, nos textos psicos- sométicos ou da “encantacao”; na relacdo shamanistica com a sua propria palavra e aquela dos seus doentes. © tiltimo capitulo, enfim, dé conta do encaminha- mento da sua obra: filiagdo, traducdo, olvido, reconhe- cimento, publicacao. 1826 Nascimento, em Dantzig, do pai de Georg Grod- deck, Carl Theodor, filho do primeiro magistra- do da cidade. Com a idade de 16 anos, Carl entra no Colégio de Pforte e passa a ser pensionista dos Koberstein, amigos de seu pai. Augusto Koberstein, primeiro historiador da literatura alema, era um personagem bastante conhecido nos meios literdrios da época, tendo ensinado no Colégio de Pforte, onde Nietzsche foi seu alu- no, Nesta época, Catl Theodor cai doente, acometido de grave’ afeceéo cardiaca, e fica muitos meses de cama. Carolina — filha de ‘August Koberstein — e sua mae é que cuidam dele, Dai nasce o amor entre os jovens, que ficam noivos em 1850 e se casam em 1852, Carl forma-se médico, Sua dissertagao inaugu- ral, intitulada De morbo democratic, nova insaniae forma (“A doenca democratica, nova forma de loucura”), segundo dizem, parece ter influenciado Nietzsche no seu antidemocra- tismo, A admiragdo ilimitada de Carolina Koberstein por seu pai e seu gosto pela literatura fazem-na subestimar nao s6 a profissio de seu marido, 1878 1881 1885 mas ele mesmo. Ela s6 se ocupa, realmente, de seu filho mais velho, Carl (1855-1909), que se tornaré filélogo, Em 13 de outubro, nasce em Bad Kiisen, onde onde seu pai possuia um estabelecimento de banhos salinos, Walter Georg Groddeck, quinto e Ultimo filho da familia, A mie descuida-se dele, e & o pai que se responsabilizaré, pela edu- cagio desse Ultimo filho e 0 orlentaré para a medicina. Georg Groddeck é enviado ao internato de Pforte. A crianga ressente-se brutalmente da separacao do meio familiar e cai doente, Duran- te sua “febre nervosa”, relatada em Détermina- tion psychique et traitement psychanalytique des affections organiques (Determinacdo psi- quica e tratamento psicanalitico das afeccoes orgénicas), em 1917, 0 menino transforma-se, torna-se sombrio, fechado e sonhador. A partir dai é considerado um aluno mediocre, nao em relac&o aos seus conhecimentos, mas por causa de sua atitude geral. Apés a faléncia de uma empresa de construcéo, na qual Catl Groddeck tinha investido muito dinheiro, a familia, arruinada, vende sua casa em Bad Kiisen e instala-se em Berlim. O pai de Georg consegue um dos primelros postos como médico da Previdéncia fundados na época e 0 ocupara até sua morte, em 1885. Georg Groddeck atinge sua maioridade e entra na Kaiser Wilhelm Universitit, de Berlim, seis meses mais tarde, Durante esse tempo, seu pai © faz assistir As suas consultas. Groddeck vé, sobretudo, “pacientes” sadios que vinham sub- meter-se a um exame médico prévio para se inscreverem nos beneficios-saiide. Ele diré em Souvenirs de vie (Lembrancas de vida) que comecar por conhecer seres humanos sadios Ihe foi muito ttil. Durante este periodo, Carl Theodor Groddeck sofre varios ataques de apoplexia de gravidade erescente: primeiro, paralisado, depois, afasico, morre dentro de alguns meses. A situacdo financeira da familia @ precaria, Carl, 0 filho mais velho, passa a assegurar a subsisténcia dos Groddeck tornando-se redator do Vossichen Zeitung, cargo criado para ele gracas a intervencdo de um amigo da familia, Lessing, descendente do poeta. 1885-89 Groddeck prossegue seus estudos de Medicina. 1889 Assimila com ardor as ligdes de Schweninger, 0 ‘inico médico admirado por seu pai, do qual ele se tornaré, mais tarde, assistente e amigo, Ernst Schweninger (1850-1924) se havia tor- nado eélebre tratando, com sucesso, do chance- ler Bismark, com um método muito pessoal, ba- seado na absohita autoridade do médico sobre © doente, que visava mobilizar, no paciente, os processos de cura, Groddeck publica sua dissertagao inaugural: Sur Uhydrozylamine et son application dans la thérapeutique des maladies cutanées (Sobre a hydrocilamina e sua aplicagdo nas doencas eutdneas). O resultado de suas observagdes 0 leva a coneluir pela sua inutilidade e nocivi- dade. 1892 1894 1900 1901 1903 14 Antes de tornar-se assistente de Schweninger, Groddeck serve oito anos ao exéreito, a fim de reembolsar as despesas de sua formacéo univer- sitdria, Publica, sozinho ou em colaboracéo com Schweninger, um certo niimero de artigos mé- dicos, entre outros: Art et science en médecine (“Arte e ciéncia em medicina”; 1892-93), Ecoles de médecins (‘“Bscolas de médicos”; 1898-94); Cure et cures (“‘Cura e curas”; 1893), Mécano- thérapie, diéte de malade (‘‘“Mecanoterapia, dieta do doente”; 1894), Constipation (‘‘Cons- tipagdio; 1896). Morre sua mae, enquanto ele se encontra no exército. Groddeck conhece Else von der Goltz-Neumann, sua futura esposa, entao casada com um oficial mée de duas criangas, Joachim e Ursula. Ela divoreia-se e casa-se com Groddeck em 1897. A familia instala-se em Baden-Baden, onde Grod- deck trabalha na casa de satide de Schweninger desde o més de marco de 1896. Com sua irmé Lina, Groddeck abre seu préprio sanatério em Baden-Baden. Nasce sua filha Barbara (1901-1957). O casal se entende mal e logo se separaré. Morte de sua irmé Lina, em 1906, seguida das de seu irméo Wolf, de Carl August, o mais velho, em 1909, e de Hans, em 1914. Groddeck sera 0 ‘inieo sobrevivente de sua familia. Exerce a me- dicina segundo uma prética baseada no regime, na hidroterapia e na massagem. Obtém sur- preendente sucesso, sobretudo com os doentes 1903 1905 1906 1909 1909 crénicos para os quais as terapias tradicionais se haviam revelado ineficazes, Sua clinica logo adquire grande renome e atrai pacientes do estrangeiro. E também tempo de intensa atividade literéria, Assim, Groddeck publica: Un probleme de femme (Um problema de mu- ther), ensaio de inspiracéo nietzschiana wagneriana. Un enfant de la terre (Um filho da terra), ro- mance em parte autobiografico. Les noces de Dionysos (Nipcias de Dionisio), um poema épico, Le pasteur de Langewiesche (O pastor de Lan- gewiesche), conto publicado em folhetim na Frankfurter Zeitung. Estas obras tém pouca repercussio no momen- to de sua publicacao, como Groddeck escreveré para seu irmao Carl, em 1905, a propésito de Um problema de mulher. Ele justifica esta aco- Ihida mediocre pelo fato de se ter expresso por enigmas, quer dizer, de uma linguagem incom- preensivel para seus leitores. Os escritos dos anos seguintes (1909-1919) cons- tituem a obra do periodo “pré-analitico” de Groddeck. Durante estes anos, igualmente, de- senvolve uma atividade social intensa: anima clubes de discusséo, faz conferéncias, funda mo- vimentos cooperatives de alimentagio e de construgao. Publica, pela Hirzel, em Leipzig Vers Dieu-Nature (Rumo ao Deus-Natureza), um ciclo de conferéneias. 1s 1910 1913, 1915 Tragédie ou comédie, une question aux lecteurs @Tosen (Tragédia ou comédia, uma questdo para os leitores de Tbsen), ciclo de quatro con- feréncias nas quais analisa diferentes obras de Ibsen. Por esta época, descobre a psicanilise através de uma noticia publicada na Tiigliche Runds- chau a propésito da obra de Freud. Publicagdo de Nasamecu (NAtura SAnat ME- dicus CUrat), coletanea de doze palestras pro- nuneiadas em um de seus clubes de discussao, tratando do ser humano sadio e doente. Neste livro, Groddeck, ainda muito influenciado pelas teses de Schweninger, prende-se medicina tradicional e alerta o leitor contra os perigos da psicandlise, sobretudo quando esta é prati- cada por pessoas que nada entendem desta arte. Na sua primeira carta a Freud, em 1917, Grod- deck interpretaré esta reacdo inicial contra a psicandlise como a expresso de sua inveja do descobridor desta nova terapéutica. Ele mesmo, esse meio-tempo, veio a descobrir a importén- cla dos simbolos e do inconsciente — que ele chama de id — na vida humana, por uma outra via: a das doeneas orginicas. Groddeck pde-se a ler, sem restrigdes, A psic patologia da vida quotidiana e A interpretacdo dos sonhos, de Freud. Groddeck conhece Emmy von Voigt (1874-1961), uma vitiva sueca, que se tornaré sua assistente, e, apés seu divéreio em 1923, sua esposa, Emmy von Voigt traduziré em sueco A psicopatologia da vida quotidiana, de Freud 1916-19 1917 1917-18, Durante trés anos, Groddeck mantém, em seu sanatorio, conferéncias semanais integradas ao tratamento de seus pacientes. Blas so reunidas sob 0 titulo de Conférences psychanalytiques @ Pusage des malades (Conferéncias psicanaliti- cas para uso dos pacientes) Estes textos contém 0 esboco de todas as obras literdrias ulteriores e de sua psicossomatica, que seré divulgada no Livre du ¢a (Livro do id) Estas conferéncias, ainda inéditas em alemo, sao acessiveis em francés gracas ao trabalho de Roger Lewinter, que as traduziu e co-editou, tendo 0 cuidado de restituir a palavra a fora que a linguagem escrita arriscava perder: seu tom encantatorio. Blas so essenciais para a compreensio da obra groddeckiana, pois que nos do a chave da eficdcia do seu método: uma transformacao tealizada a partir da andlise dos simbolos, Primeira carta a Freud. B 0 infeio de uma rela- co singular com Freud — a quem Groddeck devotara profunda admiracao, embora afirme desde 0 inicio sua independéncia de espirito — € de uma correspondéncia que se estenderd até a morte de Groddeck em 1934. E este também o inicio do periodo “analitico” de sua obra escrita, que se abre com a publica- so, aprovada por Freud, de Determinacao psi- quica e tratamento psicanalitico das afeccoes orgénicas, texto que se pode considerar como ato de fundacdo da medicina psleossomatica, Publicagao do Satanarium, revista semanal in- terna do sanatério de Groddeck igualmente 1919 1920 1921 1922 fundida por assinaturas, na qual Groddeck ¢ seus pacientes escrevem. Candidatura 4 associacdo psicanalitica de Ber- lim, onde Groddeck é admitido. Encontro com Freud no sexto Congreso Inter- nacional de La Haye. Groddeck, ai, pronuncia uma conferénefa intitulada Sur la psychanalyse de Vorganique en Vétre humain (Sobre a psica- ndlise do orgénico no ser humano). Seu audité- rio néo fica indiferente, Certos analistas se in- teressam por sua obra, como Otto Rank, Ernst Simmel, Karen Horney, Lou Andréas-Salomé e Sandor Ferenczi. Os outros 0 criticam mais ou menos violentamente, Publicagéo, pelo Psychoanalytischer Verlag, de Le chercheur @ame (O investigador da alma), 1m “romance psicanalitico”. A obra, muito apre- ciada por Freud, que a compara ao D. Quixote de Cervantes, suscita uma nota de protest da parte do pastor Pfister, chocado pelo aspecto rabelaisiano da obra. Este romance, no qual Groddeck trabalhou durante uma boa quinzena de anos, constitui a realizacdo mais completa de sua obra poética. Encontro com Ferenczi. Entre os dois nasce uma grande amizade, e Groddeck seré seu médico durante muitos anos, Na obra de Ferenczi, viva- mente impressionado pelo pensamento grod- deckiano, pode-se notar a influéncia deste, principalmente em Thalassa, essai sur la theérie de la génitalité (Thalassa, ensaios sobre a teoria da genitalidade). 1923 Aparecimento do Livro do id na Psychoanaly- tischer Verlag. Groddeck, que propunha a Freud divulgar a teoria psicanalitiea, expoe, de fato, com a ajuda de conceitos freudianos, os seus: sua psicossomética, Durante dez anos de sua vida néo produz mais obras maiores. Escreve artigos, ensaios e faz conferéncias. 1925-27 Publicagao de Die arche (O arco), revista bi- 1926 1927 1929 1930 1933 mensal de difusio interna, contendo seus arti- gos e também os de seus pacientes Ciclos de conferéncias realizadas na Berliner Lessinghochschule sobre o id Conferéncias, em Lessinghochschule sobre Ring, de Wagner, Peer Gynt, de Ibsen, Faust, de Goe- the, 0 Struwwelpeter (Pedro desgrenhado)', um livro para criangas, célebre na época, do doutor Heinrich Hoffmann, Estes dois ciclos de Conferéncias serao publica- dos no Arche. Souvenirs de vie (Lembrancas de vida). Este texto nio seré publicado em vida. Ensaio sobre Schweninger. Nesta época, Grod- deck sofre de insuficiéncia cardiaca e dores em uma perna, Aparecimento da ‘iltima obra de Groddeck, no Psychoanalytischer Verlag, L’étre humain com- me symbole (O ser humano como simbolo), consideragées despretensiosas sobre a lingua- gem e a arte 1 Publicado pels feitions Universitaires, stor juvenil » ew ee ee 1934 © estado de satide de Groddeck se deteriora, Apesar de sua fraqueza, mostra-se muito ativo € desenvolve projetos mais ou menos irrealiza- veis. Aliés, suas criticas abertas ao regime de Hitler colocam-no em perigo. Sua amiga Frieda Fromm-Reichmann o faz convidar pela Socie- dade Suica de Psicandtise para uma série de conferéncias. Ble faré uma, no més de maio, em Zurich, sobre o tema Les yeuz, la vision et la vision sans yeux (Os olhos, a visio e a visdo sem othos) © doutor Médard Boss o assiste em seus dltimos dias, Groddeck falece em 11 de junho, em Knonau, perto de Zurich Capitulo 1 O PROJETO GRODDECKIANO Da desmesura visionaria Para tentar reproduzir o essencial do pensamento de Groddeck, isto é, sua compreensao do sentido do mun- do sobre o qual repousa toda a sua atividade médica e literéria, ¢ preciso destacar duas nocdes centrais. A primeira é a do mundo da infancia, paradigma da satide Consistiria em reencontrar o vinculo com a natureza primeira do ser humano: a natureza infantil. A segunda @ 8 nocdo daquilo que religa o homem A natureza, ao mundo, e que, emprestando a expresséo de Goethe, Groddeck intitula Deus-Natureza, antecipago do con- ceito do id. O mundo humano Se existe um mundo ao qual Groddeck se prendeu durante toda a sua vida, este foi o mundo da infancia, reino perdido, universo mitico em torno do qual gira toda a existéncia humana. Para ele, os privilégios con- feridos pela inféncia déo ao homem a inocéncia, a espontaneidade, o sentimento de ser 0 centro de tudo, de reinar harmoniosamente sobre a mae e sobre a na- ‘tureza como partes de si mesmo; de se tornar “um” com ‘© universo que o envolve, de ter todos os direitos. Desta primeira impressio, que nao dura, o ser humano jamais poderd se desprender. E é ai que a in- fancia aparece como um paraiso, porque a crianga sente pertenger ao mundo eircunjacente. Os objetos que a ro- deiam, animados ou inanimados, ela os trata como seus amigos, pois que pode viver conforme as leis de sua na- tureza. Pelo contrario, a vida adulta, pelos seus compro- missos, marca o declinio da felicidade, Entrar na vida adulta 6, antes de tudo, sair da infancia, renunciar a reinar sobre o mundo, renuneiar a si mesmo, @ sua “di- vindade”. ser expulso do paraiso e morrer para si. “Divina era tua infancia, crianga do sul, crian- ca do outono de Brigitte. Mas jé a divindade morre em ti. Tu sais para a vida, e em mil fogos ela te queimard, antes que sejas 0 que tu 63.” (Ein Kind der Erde (Un enfant de la terre], Hirzel, Leipzig, 1905, vol. I, p. 15.) Para Groddeck, a vida adulta, pelas suas pressdes, transforma a crianca em um ser limitado, afastado do mundo que acreditava. seu; em um ser dominado, que néo tem direitos, mas deveres. A vida adulta nfo é outra coisa sendo um palido reflexo do brilho da infancia, E ele atribuird os males da sua juventude, da sua existén- cia e, mais tarde, da de seus pacientes, a esta perda, a esta inevitdvel perversao de uma natureza inicialmente espontanea. ‘Tudo se passa como se a vida adulta fosse 0 nega- tivo da infancia: o ser humano, no inicio saciado, agora 6 faminto e vido; antes acarinhado no regago mater- no, agora é expulso e nunca mais encontra igual refigio; se se acreditava amado por uma mae amante, agora vé nela — e em cada um — um traidor; se cria em seu poder ilimitado, agora encontra limites € sua vontade é inoperante; se inocente era, vai tornar-se um monstro de maldade. 2 Se a desilusdo, ao sair da infancia, ¢ infinita, a ne- cessiade de vinganca também o 6. Bm Um filho da terra, romance em parte autobiografico, Groddeck nos mostra como Wolfgang, o jovem heréi, péde, gragas ao amor sem limites que dedicava & sua mae e & veneracdo pelo pai, escapar a estes perigos e ao de, mais particularmente, tornar-se um ser humano perigoso. Neste romance, dé- nos uma viséo embelezada do mundo da infancia, da limpidex ¢ da felicidade que nela reinam em oposicao ao negrume e & cegueira do mundo adulto. Entretanto, ele bem sabe que esta infincia maravilhosa jamais existiu, que ela brilhou pela sua auséncia. Que, em realidade, sua mae negligenciou os seus e em particular ele, ultimo filho da familia. Alids, ele conservaré pela vida inteira a penosa lembranea da frieza de sua mae. Em suas Lem- brancas de vida (Lebenserrinerungen) mostra-se bem consciente de que ela nunca se considerou esposa de um Groddeck, mas filha de um Koberstein, quer dizer, her- deira da grande cultura germanica. “Malgrado todo 0 amor por seu marido, mal- grado os seis filhos que the dew, ela continuow @ ser Lina Koberstein, esposa de Groddeck [...]. 0 sentido da honra era sua estrela con- dutora; ela tinha sua: propria honra, ela nao vivia pela honra do marido.” (Lebenserriner- ungen, in Der Mensch und sein Es, Limes Verlag, Wiesbaden, 1970, p. 396.) Se a infancia 6 nao somente louvada por Groddeck mas transfigurada, é porque ela é para ele nao apenas © paraiso na terra, mas o simbolo e o lugar de plenitude do ser, de sua integridade, de sua harmonia com a natu- teza e de sua reconciliaeao com a natureza humane. Porque o adulto, preocupado com as conveneées, coloca- se em desacordo com ela e oculta a infancia dentro de si, esconde-a. Assim, ela lhe parece fabulosa, mitice. 23 “Lembre-se de sua vida. Houve instantes em que vocé se encontrava trangiiilo, sereno e lim pido como o azul do céu; instantes em que es- tava unido a natureza, e tudo ao redor de vocé € em vocé estava em harmonia; instantes em que a lenda da harmonia das esferas tornava~ se verdade, Na vida de cada ser humano, hd sempre um momento de calma profunda, de verdadeira unidade com 0 Deus-Natureza. E a infancia parece um Paraiso porque @ crianga se sente, ainda, unida ao mundo; porque 0 edozinho ou a boneca de pano sdo seus amigos, ‘assim como a mie € 0 amiguinho sdo seus ami- gos; porque o homem € sew amigo. E a mulher revive, certamente, este momento quando, com o sorriso inefdvel que € 56 sew, satida seu debe- 2inho recém-nascido. E 0 homem o vive quan- do conquista sua amada, ou doma um cavalo selvagem, ou realiza uma agao ou domina um pensamento. Mas raros sdo aqueles que sabem © que significa este repouso que ultrapassa a alegria e a dor, que a morte ndo assusta ¢ que nem 0 ouro nem o amor seduzem; esta aber- tura para o céu, sem temor nem desejo. E 0 ser — um com 0 Deus-Natureza, a consciéncia de pertencer inteiramente ao todo criador, a dissolugdo e a fusdo da personatidade do ho- mem, do eu, no Deus-Natureca.” (“Caractare et type", in La maladie, Vart et le symbole, Gallimard, Paris, 1969, p. 257.) Entretanto, a integridade implica um reconheci- mento de tudo 0 que, em si, é desumano, como a neces- sidade de destruir o que impede a satisfacdo, de cortar lagos, os desejos de morte, o édio, a inveja, ete. E a infan- cia é 0 lugar do desabrochar destes sentimentos. A vio- 24 léncia é tanto mais familiar & crianga quanto menos ela pode empregar a forca fisica para agir sobre o seu meio. As mudancas bruscas de humor, a passagem freqiiente e sem transigio do riso as lgrimas ou aos acessos de raiva, a intensidade das doencas desta fase testemunham este clima de violéncia no qual vive a crianca. E a vio- léncia atrai a morte. A crianga 6, para Groddeck, uma transfiguracdo da morte. Reencontrar o espirito da in- fancia é ousar afrontar tudo o que, em si, é monstruoso, quer dizer, portador de morte e do qual a doenga é um reflexo. Se a infancia é o lugar da integridade do homem, a vida constitui uma aspiracdo a esta integridade. “O objetivo da vida é ser crianea”: este leitmotiv da obra de Groddeck da sentido & volta & infancia pregada por ele. Retornar a ela é um trabalho de integragao de si; 6 desmascaramento de tudo que em si mesmo foi adulte- rado para algum proveito, Mas o preco a pagar por este reencontro com a harmonia é alto: consiste em lancar um olhar licido para dentro de seu mundo interior e de sua propria desumanidade sem camuflar o que per- turba e envergonha, Esta é a condigdo necesséria para toda mudanga, todo progresso, todo crescimento. Refa~ zer os lacos com o ser-crianga opera transformagdes no ser-adulto, desliga-o de sua natureza pervertida, livra-o do seu ser desnaturado, Reencontrar 0 menino no homem libera-o de seu infantilismo. Ser crianca é, como diz Groddeck, ser-um com o Deus-Natureza. Deste es- tado é que surge a forea transformadora no interior do ser humano que lhe permite ser criador “E 6 neste ser-um que desabrocha o esptrito humano, a forca, 0 mais profundo contetido da vida, uma obra da natureza-homem, o divino em si: 0 canto do poeta.” (“Caractere et type”, in La maladie, Vart et le symbole, p. 258.) Deus-natureza: 0 conceito de id Groddeck familiarizou-se desce muito cedo, com a literatura e mais particularmente com a obra de Goethe, autor preferido de sua mae. Mais tarde, no colégio de Pforte, onde havia lecionado seu avo materno, estudou as literaturas grega ¢ latina. Mas parece ter sido, sobre- tudo, a influéncia materna o determinante de seu gran- de interesse pela literatura e pela poesia. Encontra-se uma alusio a isto em Um filho da terra, onde Wolfgang, © jovem herdi, mostra grande admiragao pelo avé ma- terno, germanista famoso, de grandes qualidades huma- nas, sobre o qual sua mae Ihe falava com deslumbra- mento, quando era pequeno. “Brigitte estava ligada pelo amor e pela admi- racdo ¢ meméria de seu pai. Ele havia sido ger- manista e, com infatigdvel dedicagéo, acumu- lado uma abundéncia de saber que transmi- tiu @ talentosa filha |...]. Wolfgang nao se cansava de ouvir falar neste homem a partir do qual se formavam suas idéias e seus pensa- ‘mentos. Era muito pequeno ainda para avaliar @ importéncia de um tal ser, mas suficiente- mente grande para perceber como o rosto de sua mée se iluminava ao falar do av6 [...| Reinava por todo lado 0 espirito do tempo de Goethe, e, nao sem razo, a senhora Brigitte chamava 0 pequeno volume de poemas de Goe- the, que ornava sua mesa de costura, de biblia.” (Un enfant de la terre, vol. 1, p. 8-9.) Pode-se constatar, neste texto, o trabalho de trans- formagdo — induzido pela evocaco — que a me sofre ao cultuar a lembranga de um pai tio admirado, o que dard a Groddeck a intuicdo de que a palavra pode modi- 26 ficar a concepgao do mundo. a mola que ele vai utili- zar durante toda a sua pratica médica. Mas, nao nos esquecamos de que esta visio do mun- do era goethiana, pelo menos a que Groddeck trouxe de suas lembrangas de infancia. E, desta contemplacao do mundo, ele conservou uma grande compaixio pela na- tureza e um grande interesse pelo “physis”, quer dizer, crescimento esponténeo, o cumprimento efetivo de um vir a ser, tanto na natureza como no homem. ¥, igual- mente, a partir de uma tal visio do mundo que se pode compreender sua construgao de uma cosmogonia huma- na como teoria da formacao do individuo, como psicos- somatica. Estas constantes transformagées, estes movimentos continuos, estas formas miltiplas e transitérias de vida so para Goethe manifestagdes de um prinefpio de vida, de uma forca que rege o universo, que religa o ser huma- no & natureza. Somente quem com ela vive em harmonia pode senti-la: o artista, o poeta, a crianga. A este prin- cipio organizador da vida Goethe chama de Deus-Na- tureza: “Que pode o homem ganhar mais na vida Sendo que a ele se revele 0 Deus-Natureea: Como liquefaz em espirito, 0 que é sélido, Como conserva em solidez o que 0 espirito cria.” (Citado por R. Lewinter, in La maladie, Vart et le symbole, p. 24-25.) Em torno deste princfpio que anima a vida, Grod- deck articularé os diferentes temas médicos e literérios de sua obra. O Deus-Natureza é que dé coesio ao Uni- verso; que une a parte ao todo e 0 todo & parte; que forma 0 ser humano e 0 governa; que o faz viver e morrer e que, também, o transforma. 7 Na temética groddeckiana, 0 Deus-Natureza tor- nar-se-4 0 id, termo encontrado em Nietzsche, e escolhi- do pela sua imprecisio, seu caréter impessoal, seu rigor. Para Groddeck, o id no é, com efeito, nem um conceito nem uma hipétese, mas uma experiéncia, um projeto no qual se inscreve a existéncia, E uma forga que age sobre todos os fendmenos humanos e naturais. Ela 6 quem rege nossa vida e ndo o “ego”, como se poderia crer. Porque 0 ego nao é sendo um artificio, um instrumento a servigo do id. Acredita governar a existéncia, dirigi-la, mas nao tem poder sobre o id, que é matreiro e desvia, em seu proveito, onipresente e inapreensivel ao mesmo tempo, as intengGes do ego. “Trata-se do que se segue, 0 que ndo é uma hipétese, pois que eu, cientificamente, experi- ‘mentei e observe, como médico. Hd uma pro- fundeza inacessivel que age sobre tudo 0 que se produz em nds, que rege tudo em nds. Bati- zei-a de id e vou tentar fazer com que enten- dam o que significa. Nao se trata de uma uni- dade, de um individuo. Nao se pode comparar a nada, Tudo 0 que pode ser, a rigor, invocado a este propésito, é a comparagéo que a Idade Média estabelecia entre 0 macrocosmo € 0 mi- erocosmo: assim como aquele é 0 universo no todo, este é 0 universo no ser humano; mas também esta afirmagdo ndo é rigorosamente certa, pois que 0 ser humano nao é fechado. Ele é uma redugdo do universo. Este no pode ser nele sendio isto. Ndo se pode dizer: 0 sol rege 0 mundo, ou o éter é 0 elemento da vida. Nao se sabe, absolutamente, quem rege o mun- do, Assim também o cérebro néo é 0 centro do ser humano. Querer descobrir um tal centro é um empreendimento sem esperanca, Para suspeitar do id no ser humano é preciso, antes de tudo, aceitar que nao se pode confun- di-lo com 0 ego. O ego é um produto artificial que comeca a existir somente no terceiro ano de vida, E wma seccao importante que aparece neste estdgio. Se considerarmos o problema do ego, deveremos eliminar o pensamento de que seria wma unidade; esta representacdo é falsa e induz a crer que serfamos mestres de nossas acées, que haveria um livre arbitrio, que co- mandariamos os gestos de nossas mdos, bra- 08, pernas, olhos, E uma ilusdo supor uma unidade de personatidade que ndo existe.” (Nonagésima conferéncia, in Conférences psy- chanalytiques é Vusage des malades, tomo III, p. 102-103, Edicées Champ Libre et Roger Lewinter, Paris, 1980.) Enfim, o id é um caminho, uma via tragada para a existéncia de cada um, que deveria ser encontrado. “O essencial para vocés é afastar do ego adquirir a compreensio do id. Significativo, neste sentido, é que Fausto, no momento em que aspira a inteligéncia do fato universal, recebe de Mefistofeles a chave com a qual pode descer ao reino das mées; dat ser preciso com- preender 0 caminho que a ele conduz” (Nonagésima conferéncia, in Conférences psy- chanalytiques @ Vusage des malades, tomo II, 1979, p. 103.) A moderacio do aluno de Hipécrates 0 projeto groddeckiano © sonho de Groddeck, cuja inffincia e juventude foram impregnadas de leitura de Goethe e Nietzsche, era tornar-se um poeta, um grande pensador. Em Um filho da terra, Wolfgang, 0 her6i, torna-se médico. Entretanto, levado pela sua natureza desejosa de conquistar 0 mundo, explorar todas as formas de expresso da vida, tocar os limites do humano, ele abandona sua profissao e sua familia para seguir seu caminho até o fim. Retira-se do mundo. Sua irradiagéo, no momento de sua morte, tera atingido o universo. Se o heréi exerce uma influéncia benéfica sobre aqueles que dele se aproximam, ¢ gragas ao seu dom extraordindrio de viver em harmonia consigo mesmo e ‘com a natureza. A forca deste her6i, que lembra o super- hhomem de Nietzsche, no reside no uso desregrado dos impulsos préprios & sua natureza, mas na sua integra- co ao proprio ser, na sua espiritualizacdo, pela qual a natureza torna-se obra de arte; 0 heréi é um artista. E, se 0 artista possui esse dom, tem o poder de restaurar 0 acordo entre o homem e sua natureza pura, que foi alte- ada pela doenca. Este dom é, também, aquele que todo médico deveria possuir. Groddeck, cujos primeiros romances trazem uma desmesura de tom que reflete 0 acento profético de Nietzsche, realizaré seu projeto artfstico em sua obra poética, mais particularmente em O investigador da alma, e, sobretudo, em sua pratica médica. Sem entrar no estudo da Iingua do poeta, podemos situar assim sua obra: o her6i de O investigador da alma um ser que observa o mundo atrs da mascara da lou- cura, loucura esta que Ihe dé impunidade mas que o expée a zombarias, Thomas Welthein, matador de per- cevejos, lanca, com ousadia e timidez, um olhar infantil e inocente sobre 0 mundo exterior, assim como sobre seu mundo interior. Neste romance, em que a verdade — que setia insustentavel na sua violéncia — é expressa de um modo lidico, Groddeck da sua viséo do mundo e 30 do ser humano. Um mundo em que o génio e a Ioucura Jevam em conta todas as experiéncias vividas pelo heréi: os nobres furores — éxtases poéticos, misticos, magné- ticos — eas mortificagdes da carne. Mas o olhar do heréi € também Iticido: sob a mascara da loucura, esconde-se uma inteligéncia critica que revela a profunda irrisio de todo projeto humano. A existéncia humana, em tudo que comporta de tragico, 6 uma comédia, e é preciso vivé-la sabendo que é um jogo. Como médico, Groddeck associara, gragas A sua forea criadora, 6 bem e 0 mal, o negativo e o positivo, 0 instintivo ¢ o racional no ser humano, Cuidar de seus pacientes, amé-los, sera para ele devolver-Ihes a forma humana, tanto a doenca a deforma; sera retrabalhar a matéria humana para que ela irradie de novo o brilho da infanci A via a seguir lhe seré indicada por seu pai. Inician- do o filho na arte de curar, ele Ihe ensinara, antes de tudo, a paciéncia e a humildade. Estas qualidades, que quando crianca considerava uma marca de fraqueza em seu pai, logo the parecerdo indispensaveis para co- nhecer seus pacientes a fim de poder encaminhé-los & cura. Tanto é verdade que a doenca, desvelando aspectos ocultos do ser humano, constitui o modo de acesso por exceléncia ao conhecimento deste. O papel do médico Na faculdade, enquanto estudante, seu primeiro contato com 0 mundo médico o faz recuar. Surpreende- se com a falta de continuidade que reina no interior da medicina onde os diferentes impérios — e seus manda- tins — no tém relacdo entre si, Cada uma das areas € considerada disciplina auténoma, cada uma das dis- ciplinas € considerada um todo sem ligacéo com os 31 demais. Podemos constatar que suas observagdes conser- vam hoje, mais do que nunca, toda a sua atualidade “A primeira coisa que fez recuar Wolfgang foi 4 falta de coesdo da medicina |... |. Seus dife- rentes impérios colocavam-se uns ao lado dos outros como partes independentes: aqui havia uma clinica médica, Ié um auditério de cirur- gia, mais adiante, cursos sobre doencas infan- tis, sobre obstetricia e medicina psiquica |... | A ligagdo entre as diferentes dreas, que jus- tifica realmente a profissio de médico, néo existia. Cada um dos diferentes ramos se tinha arrogado seus proprios direitos, seus préprios fins, esquecendo-se de que deveria haver um objetivo comum |...|. Nao se formavam mé- dicos para seres humanos, apenas se ensinava um trabalho fragmentado, e 0 pobre discipulo, inexperiente, devia juntar o todo. Wolfgang estava desencantado. Ele queria ser ‘médico de verdade, um mestre do sofrimento e da morte, um conhecedor da vida, um ser humano superior.” (Un enjant de la terre, vol. I, p. 286-7.) Groddeck deploraré, durante toda a sua existéncia, © enclausuramento da medicina em especialidades de campos de investigacao cada vez mais estreitos, as quais, se permitem novos conhecimentos e progresso, compor- tam o risco de perder de vista o ser humano em sua totalidade. Sua posiedo é categérica. Sua preocupago nao € acumular conhecimentos, pois que estes serio sempre fragmentérios, mas utiliza-los a servigo da tera~ péutica: seu principal objetivo 6 conseguir eficdcia real junto de seus doentes. 2 “Se consideramos a ciéncia como wma ativida- de que cria saber, podemos utilizd-la no domi- nio médico. A ciéncia é uma aspiragdo, uma atividade laboriosa @ procura do saber. Mas se @ entendemos como uma posse do saber, uma soma de conhecimentos de que dispomos atual- mente, devemos, logo, nos convencer de que ela orienta pouco o tratamento dos doentes e, se formos mais longe, compreenderemos que tal ciéncia nao existe, nem em medicina nem em outro lugar qualquer. E valerd 0 velho addgio: nosso saber é uma obra descosida.” (Nasamecu, Hirzel, Leipzig, 1913, p. 32.) Esta fragmentagio, néo apenas do saber mas, também, do campo médico, seria o resultado de um outro fenémeno que se pode observar em uma certa ten- déncia da medicina: ela faz do esquecimento das tradi- G0es a sua tradigdo, na medida em que s6 retém o que é atual. Enguanto, de fato, é 0 produto cultural de uma eivilizagao, repousa sobre creneas e sobre um sistema de valores nesta progressivamente desenvolvidos. Cabe, aqui, lembrar a viséo groddeckiana da medi- cina de seu tempo como uma metdfora de um mundo adulto amputado de suas raizes infantis, de um mundo fragmentado, privado de sua continuidade, desprovido de sentido. Em Nasamecu ‘, escrito em 1913 em memoria de seu mestre Schweninger, onde expée sua doutrina, Groddeck redefine o papel do médico. Situa-se, de fato, firmemen- te, na linha da tradigéo de Hipécrates, que baseava a terapéutica em dois prineipios gerais: proibir tudo o gue pudesse prejudicar o paciente e ajudar, em todas 1 Nawamecn (Natura $Anat MEdicur CUrst) = a natureza cura. 0 médco ci 38 as circunstdncias, a agdo espontaneamente favordvel da natureza, © papel do médico € cuidar, e nao curar. Ele nao tem poder para isto, pois os processos de cura estéio em cada ser humano, doente ou so, assim como se encon- tram na natureza. A agio do médico deve, portanto, limitar-se a acompanhar a natureza, a servi-la, imitan- do seus processos de cura, retirando os entraves que a impedem de agir, liberando forcas vitais naquilo que toma um compasso de morte, Porque as tendéncias & cura esto inchusas na prépria doenca. “Consideremos o resfriado, doenca que todo mundo conhece. O que é, sendo wma tentativa de cura, um esforco empreendido pelo corpo com o fim de livrar as mucosas de substdncias nocivas? Quando uma ferida lacerou a pele, a vida a fecha ou a tampona com uma prolifera- do de células, um codgulo de sangue ou de pus ‘quando ndo pode fazer de outra manetra.” (Op. cit., p. 234.) ‘Assim, uma das qualidades essenciais ao médico deve ser sua discricio. Ele nao deve dizer muito ao doente, para no assusta-lo com um saber que este ndo saberia manusear e ndo fazé-lo perder a confianca em suas proprias forgas. Groddeck alerta contra a tendén- cia de fazer diagnésticos que nada informam sobre a etiologia, a evolucdo, nem sobre o estado atual da doenca. e, sobretudo, nao fornecem qualquer indicaciio de valor terapéutico, diagnéstico deveria, segundo ele, “abranger o ser humano como um todo assim como suas condigdes de existéneia”. (Wasamecu, p. 48.) Apenas o conhecimento total dos elementos que entram em jogo na doenca per- a4 mite propor o tratamento adequado, o que quer dizer que, para nao fazer mal ao paciente, o médico deve tratar ndo os seus érgdos mas o seu ser humano; néo deve tratar a doenga, mas o doente, Esta afirmacdo desemboca em uma outra contradi- do, inerente a pratica médica, cujos termos sio atua- lizados na posigéo respectiva de Hipécrates e Galien em relacio ao “mal”. Para Hipdcrates no hé doencas, apenas doentes. Infelizmente, constatamos que a medi- cina de hoje nada tem de hipocratica, além do juramen- to que os jovens formandos fazem. Considera 0 doente como uma soma de doeneas, em vez de enxergar nele um ser em sofrimento. Groddeck resolve esta contradicao considerando a doenca como um sintoma que remete ao ser humano (a0 doente). Doenca e doente nao sao termos opostos, na medida em que, revelando o conflito humano mas- earado pelos sintomas, ele integra e enfermidade ao ser humano, como uma de suas qualidades. Insiste na cren- ga inquebrantavel de que o médico deve ter nas capaci- dades de cura do seu doente, mesmo quando a situagio parece desesperadora. Enquanto ha vida, ha esperanga 5 quando nao ha mais esperanga, resta o dever. “A tarefa sagrada, nobre e grande do médico comeca justamente quando néo hé mais espe- ranea: entre os incurdveis e os moribundos.” (Wasameeu, p. 191.) Sele teme a morte e nfo domina sua angiistia, nao jode livrar o homem de seu maior mal, que é, justa- jente, 0 medo. O médico nao deveria temer a morte, , mesmo nas piores condigées, a vida procura criar melhor existéncia possivel: ela embota a sensibilida- do moribundo para amenizar os sofrimentos da hora rradeira. 3 © médico que, como todo ser humano, atravessa periodos em que sua confianga em si mesmo ¢ abalada, deve saber controlar-se. Néo pode ser bom médico a ndo ser para ur numero limitado de pacientes, e ele o sabe. ‘Uma de suas maiores dificuldades 6 saber reconhecer os doentes pelos quais pode fazer alguma coisa e aqueles pelos quais nada pode fazer. Se, entre médico e paciente, faltam a compreensio e a simpatia indispensdveis ao sucesso do tratamento, é melhor que renuncie a cuidar do seu doente. Hé um nitmero suficiente de médicos para que cada um possa encontrar o que lhe convém. Porque, se a existéncia do ser humano inscreve-se em, um projeto e participa da marcha do universo, esta existéncia deve inspirar respeito, Esta concepgao ética do ser humano leva Groddeck a insistir sobre a enorme responsabilidade deste profissional que, se se propde a tratar homens, deve praticar sua arte com grande rigor, em total humildade e respeito diante da pessoa humana. Isto esté na prépria origem da palavra: Medicus signi- fica “modesto”, 0 que lembra equilibrio e moderacao. Para Groddeck, a responsabilidade do médico é muito grande. Independente do fracasso ou do sucesso obtido, deve, a cada momento, perguntar-se o seguinte serd que, verdadeiramente, fiz tudo o que pude? E, ‘mesmo diante dos mais brilhantes sucessos, para 0 mé- dico honesto e Iiicido a resposta seré, sempre, negativa, © primeiro ser que deve tratar 6, evidentemente, ele mesmo, néo s6 porque Ihe acontece também ficat doen- te, mas pelo fato de que é ilusério querer cuidar dos outros se evita cuidar de si mesmo, quer dizer, se tem medo de explorar os abismos de sua propria alma, © papel da doenca Muito cedo, Groddeck percebeu que a doenca nao € um fim, mas wm meio. O ser humano recorre a ela. com 36 freqiténcia para que possamos considerd-la completa mente intitil ou supérflua, Parece mais fazer parte das alegrias e dores inerentes A existéncia. Durante sua inféneia, tinha citimes dos cuidados dispensados & sua irma Lina, doente do coragao. Proi- biam-Ihe mago4-la ou fazé-la chorar. Como se tratava de uma evidéncia para todos, a razao era sempre a mesma: sua irma era doente. Assim, crianca ainda, compreendeu o espantoso poder da doenca. Lina nao Precisava nem de fora nem de inteligéncia, Sua satide frégil lhe bastava para obter tudo o que desejava, Grod- deck aprendeu, com isto, que a fraqueza é uma forca a doenca, uma arma poderosa. Ele mesmo caiu grave- mente doente quando foi colocado no internato. Mas, apesar da necessidade infantil de ter os pais perto de si, a vida venceu e ele superou suficientemente a doenca € a separacao para continuar seu caminho. Durante toda sua existéncia interrogou suas enfermidades — que eram freqiientes — a fim de se conhecer melhor e ter mais facilmente acesso &s doencas de seus pacientes. Estas consideragées colocam em evidéncia a posi- Go original de Groddeck em relagao & enfermidade e & ide. Estas nao se excluem, nao se separam por uma fronteira bem delimitada, & muito dificil precisar onde termina uma e onde comeca outra. Bo doente, e no o médico, quem sabe se est doente. E Groddeck delimita- é 0 campo da enfermidade ndo em funeao de normas estabelecidas, como, por exemplo, a auséncia de sinto- mas, mas em funcao do estado subjetivo do paciente. “Quando alguém se sente doente, deve ser tratado como doente, mesmo que nao apresen- te nada de patolégico. & facil jalar de imagi- nagdo, histeria, vontade de chamar oloncao, i mas é wma imprudéncia. Se se quer tratar um ser humano como ‘doente imagindrio., nao se deve esquecer que, agindo assim, se estd des- truindo a ategria de uma existéncia.” (Op. cit. pit) A doenga aparece como um meio necessério ao orga nismo para manter-se sadio, Sao as reagées de defesa ‘como a febre, a inflamacio, o vomito, a diarréia que fazem com que a pessoa se sinta mal. A doenca, em si, nao deve ser temida, Constitui um recurso, por vezes doloroso, 20 organismo — jé que est intimamente liga- da a existéncia humana — para atingir certos fins como, por exemplo, a morte, quando esta se torna mais atraen- te do que a vida. B tem um sentido oculto para aquele que a sofre e para o médico, A tarefa deste consiste, por isso, em, ao mesmo tempo em que dispensa cuidados, descobrir seu significado, a fim de livrar o paciente, pois, que a doenga pode, também, ser uma cilada na qual aquele que é atingido arrisca deixar sua vida. ‘Apesar das aparéneias, a doenca surge, por vezes, como um mal menor, na medida em que evita um mais grave. A crianga que cai doente evita separar-se de sua mie, 0 soldado que adoece no momento de partir para © front evita o risco de morrer na guerra. Mas também 6 correr riscos cair doente e o dever do médico é tentar limité-los. Esta visio levou Groddeck a questionar-se sobre a utilidade da prevencio das doencas. De um lado, 0 mé- dico nfo tem poder para isso e, de outro, privaria 0 hhomem de um meio de expresso a que freqiientemente recorre. Querer curar, a todo prego, os seres humanos, é violenté-los, O ideal seria, cuidando do doente, ajudé-lo a mudar sua visio da doenga, ou seja, integra-lo a sua 38 existéncia, em lugar de procurar desembaragar-se dela. Isto permitiria ao ser humano langar um outro olhar sobre si mesmo, Groddeck confere a doenga um papel iniciatico: 6 um dos meios de aceder ao conhecimento de si mesmo, é uma linguagem, um caminho através do qual o hhomem descobre, em si, a infancia e a violéncia de suas paixaes. Capitulo IT A OBRA LITERARIA Deixarse seduzir pela morte. Embora considerada por Groddeck como uma das expressées privilegiadas da singularidade do ser huma- no, a doenea nao constitui para ele a tinica linguagem. Serviu-se da escrita e da fala nfo somente como meios de expressiio mas como instrumentos de trabalho, A propésito da tinguagem Durante toda sua vida, Groddeck interessou-se pela linguagem, o que o levou a interrogar sua lingua matérna, o alemao. Uma parte de suas reflexdes aparece uma coletanea de conferéncias teéricas publicadas n 1909 pela Hirzel, em Leipzig, intitulada Hin Zu Got- atur (Rumo ao Deus-Natureza)’. Suas reflexées ulte- ores estao no seu iiltimo livro, Der Mensch als Symbol, Unmassgebliche Meinungen tiber Sprache und Kunst ‘0 ser humano como simbolo, consideragdes despreten- osas sobre a linguagem e a arte)” [AS as primeiras conferncas.imuladas Du langage © Caractire et spe foram traduzdas em francs. em La mola, Vat et le symbole, p. 239-295 Pablicado pela. Iniernatonaler Psychouaalytacher Verlag, Vieos, 1933; 6 timo capitulo, intiuindo "Do viver e do morte". fl tradurido em francés “em La maladie Par fe sembole, p. 290-309. 41 Na conferéncia de 1909 sobre a linguagem, Groddeck comeca por passar em revista as suas diversas fungdes, prevenindo o leitor de que aquilo que vai dizer sio evi- déncias, “O que ew tenho a dizer corre nas ruas, ¢ todos véem... Entretanto, vale a pena olhar uma vez coisas conhecidas com olhos de estranho.”” (Da tinguagem, op. cit., p. 239.) Lembremos que este projeto, que se apéia sobre a banalidade e a “quotidianidade” do objeto de estudo, & © projeto fundamental do artista, no sentido de que funda sua retérica no enfoque ndo-dirigido ao objeto de estudo mas & maneira pela qual é tratado. Assim, a linguagem tem uma funcao aparentemen- te tdo natural que, geralmente, ninguém se interroga sobre ela. & a “condicao fundamental das relagoes hu- manas” (op. cit,, p. 239), € um meto de comunicagéo entre 0s homens. E também vefculo de cultura, quer dizer, fonte de todas as produgGes proprias do ser huma- no e de todas as aquisigoes da civilizacdo: a moral, a religiao, a estética, a ciéncia e as técnicas. A linguagem é criadora no seu poder de induzir atos ou novos pensa- mentos: “é, em verdade, 0 meio de transpor pensamen- tos em atos.” (Op. cit., p. 239.) ‘Ocupa, no campo humano, uma posi¢ao fundamen- tal, porque dela dependem todos os pensamentos, todos os sentimentos, todos os atos, posicéo fundamental a que se acrescenta aquela do simbélico, da qual é supor- te: a linguagem veicula os simbolos. Groddeck, em seguida, chama a atencéo do leitor para uma propriedade complementar da linguagem, que se opée a sua fungao de comunicagao: a linguagem € um meio de dissimulagdo do pensamento. Nao somen- te mascara, fingindo revelar, mas pode também dizer nGo importa o qué: linguagem oca, pobre, esvaziada do seu sentido, interrompida no que pretende veicular, en- velhecida, irrefletida; linguagem cujas palavras nao ex- primem mais 0 que significam, linguagem castica, En- contra-se, aqui, a propésito dos sinais de senilidade da linguagem, o alerta de Groddeck contra um perigo ine- rente mesmo ao seu uso: a propriedade inelutavel que a linguagem tem de se afastar do seu sentido primeiro, assim como o ser adulto se distancia do seu ser primeiro: sua natureza infantil Se a linguagem falsifica, torna-se um freio & cultu- ra, um obsticulo & expresso dos conhecimentos hu- manos, Na sua dupla fungdo, a de expressio dos pen- samentos e sua falsificgéio, a linguagem coloca a ques- tao da verdade. Para Grodeck, a palavra néo torna, absolutamente, o ser humano capaz de traduzir seu eu profundo, de dizer a verdade, Ela Ihe permite, ao con- trdrio, nao trair sua verdade. Porque a verdade, quer dizer, o que é profundamente intimo do ser humano, Ihe pertence: é 0 indizivel. & a fala consigo mesmo, a refle- xii. & o sagrado do ser humano, que ele nao deve revelar. “E bem conhecido 0 ditado segundo o qual 0 homem teria recebido a palavra para dissimular seus pensamentos, Cada um é livre para pen- sar sobre isso 0 que quiser. Mas a linguagem é capaz de exprimir o pensamento? Todos nés sabemos, por experiéncia propria, que néo, que é totalmente incapaz de expor os pensa~ ‘mentos mais preciosos e profundos. A natu- reza agiu sabiamente, porque 0 que € profun- damente intimo 36 ao homem pertence. A re- flexdo do homem que Ihe € verdadeiramente 6 propria néo tem palavras, é subterrénea e in- consciente; ¢ a luta da energia formadora com esta natureza muda constitui a vida interior do homem. O que é propriamente humano, aqui, €00 interior mudo, aquilo que se chara alma, espirito ou como se queira. £ comum a todos, é geral, é 0 que faz o homem. Mas é 0 poder for- mator que faz 0 seu valor. O que 0 homem. chega a comunicar do seu interior ¢ a tornar ativo, vivo, 0 valor do que ele formou assim, é © que diferencia o grande do pequeno, 0 poe- ta, que é 0 maior dentre os mortais, do povo. Entretanto, mesmo o mais sublime dos poetas ndo pode traduzir em palavras a parte mais intima de sua reflexdo: sua methor parte per- manece, como para todo mundo, muda, e ele comete um pecado se a revela. £ impudico. Perder-se-ia e cessaria de existir como ser in- dividual se chegasse a dizer-se, a revelar-se completamente, Ainda uma vez, a linguagem impoe wm entrave, um freio salutar.” (Op. cit, p. 240.) { __ Sea linguagem serve para esconder os pensamentos, } da, entretanto, acesso & revelagdo de si: enquanto su- { porte do pensamento simbélico, remete ao aspecto oculto \ ao simboto \ Esta articulacdo, ambivaléncia da lingua, deve-se, segundo Groddeck, nao somente a ela mas, também, a0 ser humano. Este é ambivalente ndo somente na sua expresso, onde os gestos contradizem as palavras, mas | na sua natureza, que é dupla. B simultaneamente indi- \viduo e sexo: indivisivel e “sexionado”, todo e parte, “A este propésito, é notdvel 0 parentesco da palavra ‘falar’ (sprechen) com o tatim spargo “4 = dispersar, espathar, notado por Walde. Ele lembra, nesta ocasido, a palavra sperma = se- mente humana, Faz lusdo, aqui, ao vincuto da lingua com o problema do sexo, com o indivi- duo (ser humano particular, indivisivel en- quanto unidade homem-muther-crianca). Por que 0 adulto fala com palavras? A este propésito, vdrias opinides poderiam ser evoca- das mais tarde, Agui, eu quero simplesmente fazer notar 0 que 0 inconsciente quer dizer a propésito da ambivaléncia da tinguagem falada. As palavras siio, muito fregiientemente, acom- panhadas de gestos que dizem exatamente 0 contrério do que aquilo que os ldbios pronun- ciam (0 gaguejar, mudanca de registro, rou- quiddo, altura da voz, postura do corpo e dos membros — particularmente das méos —, desvio do olhar, balancear de cabega, etc.). A opinido de Tayllerand de que a lingua foi dada ao ser humano para esconder seus pensamen- tos, é desacreditada; entretanto, continua ver- dadeira no fato da ambivaléncia. Do mesmo modo, 0 provérbio ‘a palavra € prata, o silén- cio é curo’ prova qual a forca da palavra e do siléncio. Que aiguma coisa seja dita pelo si- lencio, o latim tacere 0 mostra, De acordo com Walde, 0 verbo & aparentado ds palavras ativas air. taihtan = sufocar e cymr. tagn = estrangular. (Aquele que se cala estrangula apalavra, mas ndo a expressio.)” (Der Mensch als Symbol [0 ser humano como simbolo|, p. 91-92.) Pela sua funedo de revelar ao ser humano seu inti- ‘mo, escondendo-o, a linguagem testemunha sua capaci- dade de operar transformag6es, fazer surgir uma outra 45

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