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MATHEUS, Zilda Maria. A Idéia de uma Cidade Hospitaleira. Páginas 57/67. In: DIAS,
Célia Maria de Moraes (Org.). Hospitalidade, Reflexões e Perspectivas. 1ª Edição.
Manole. Barueri, 2002.
Introdução
A cidade sempre foi o lugar de liberdade1, comunicação, criatividade e progresso. Para
que continuem a desempenhar esse papel, as cidades devem ser capazes de receber e
integrar seus moradores, sejam eles temporários ou não, desenvolvendo sentimentos
de identidade, orgulho e cidadania, garantindo assim o bem-estar social, apoiado na
segurança, na integração social, no desenvolvimento do emprego e no acesso
diversificado a bens culturais e econômicos.
É principalmente na acentuação das desigualdades que se fundamenta a exclusão
social, pois também é por falta de urbanidade2 e inexistência de políticas adequadas de
habitação e transportes – setores decisivos no ordenamento do território – que os
fenômenos negativos da vida urbana se acentuam. A urbanidade e a cidadania estão
histórica, etimológica e culturalmente ligadas à cidade e, portanto, à essência da
hospitalidade também.
O presente artigo procura apresentar uma visão histórica da formação das cidades,
levantando algumas preocupações sobre qualidade de vida e iniciando uma discussão
ainda embrionária a respeito da hospitalidade e de seu papel no âmbito urbano.
1
Diz o provérbio alemão que o ar das cidades é livre e torna os homens livres (Die Stadlufi machi frei).
2
Segundo Jane Jacobs, o grau de urbanidade de uma cidade, de uma metrópole ou de um bairro depende
inteiramente do grau de vitalidade urbana. A autora, portanto, entende urbanidade como a relação
dinâmica que se estabelece entre as atividades urbanas cotidianas, que são maiores que as “funções
urbanas”, sempre renováveis e ampliáveis, e o espaço público adequado à sua realização. Segundo Borja
(1994), a cidade em que se vive e se projeta deverá ser sempre uma cidade em que tudo seja, pelo
menos teoricamente, possível: máxima informação e mobilidade, múltiplas ofertas culturais e de consumo,
infinitas possibilidades de relações sociais, grande diversidade de atividades e de oportunidades de
trabalho.
3
Aristóteles. Política, Livro III, Cap. 1.
Essa é uma definição que corresponde a um conceito político da cidade, e que se
adapta ao tipo de cidade-estado da Grécia. Porém, a cidade também foi definida com
todo lugar encerrado por muralhas. Trata-se da cidade medieval, que não se concebe
sem muros que a defendam de ameaças exteriores. Já Cantillon4, no século XVIII,
imagina a origem de uma cidade baseada no seguinte pressuposto: “Se um príncipe ou
um senhor fixa residência num lugar agradável, e se outros senhores aí acorrem para
se verem e conviverem em agradável sociedade, esse lugar converter-se-á numa
cidade” (apud Goitia, 1996:7). Observamos aqui o conceito da cidade barroca, de
caráter senhorial e eminentemente consumidora.
Em 1921, Max Weber vê a cidade no sentido econômico, quando a população local
satisfaz uma parte, economicamente essencial, de sua demanda diária do mercado
local e outra parte, também essencial, mediante produtos que os habitantes da
localidade e a população dos arredores produzem ou adquirem para colocá-los no
mercado. A cidade, para Weber, é um local de mercado; portanto, ela pode ser
entendida como sede do poder (Serra, 1987:11).
Para Ortega & Gasset (apud Goitia, 1996:9), “a cidade é uma tentativa de secessão
feita pelo homem para viver fora e frente ao cosmo, do qual aproveita porções
escolhidas e delimitadas”.5 Percebe-se uma diferenciação radical entre natureza e
cidade, considerando a cidade com uma criação abstrata do homem, o espaço natural
transformado.
Hoje a cidade contemporânea é caracterizada pela sua desintegração. É uma cidade
fragmentária, caótica, dispersa, constituída por áreas congestionadas, com zonas
diluídas pelo campo circundante. A dinâmica da integração social se ressente, pois o
homem em sua vida diária sofre estímulos tão contraditórios que ele próprio, à
semelhança da cidade em que habita, se desintegra e se desconstrói.
A Cidade na História
A cidade na Idade Média, surge como uma organização comunal. Uma das muitas
causas que influíram precisamente no nascimento das comunidades foi a necessidade
de organizar um sistema de contribuições voluntárias para as obras prementes de
construção e conservação das muralhas. O estatuto jurídico da casa e a terra que os
burgueses possuíam era determinado pela obrigação de vigiar e defender a fortaleza. A
cidade defendia não só os seus próprios habitantes, como geralmente também
constituía refúgio para as pessoas e gados dos campos circunvizinhos (Goitia, 1996:7).
Ainda segundo Goitia (1996), a necessidade de manutenção das muralhas, que
caracterizavam a cidade medieval, foi uma das causas da origem das finanças, pois,
4
Richard Cantillon, economista de origem irlandesa, nasceu em 1680 e morreu em Londres em 1734. Seu
trabalho mais relevante foi Essai sur la nature du commerce, publicado postumamente em 1755.
5
A monarquia de “Direito Divino”. No reinado de Luís XIII (1610/1643), o Estado absolutista francês
consolidou-se. Seu ministro, o cardeal Richelieu, adotou uma política interna que tinha por objetivo reduzir
a autonomia dos nobres e acabar com todas as limitações à autoridade do rei. Ele perseguiu os
protestantes, derrotando-os definitivamente; reforçou o exército e criou o cargo de intendente para
supervisionar e controlar os governadores das províncias. Do ponto de vista econômico incrementou as
práticas mercantilistas, com o objetivo de transformar a França na maior potência européia.
para preservar tais muralhas, houve a necessidade de contribuições dos citadinos que,
inicialmente voluntárias, adquiriram rapidamente um caráter obrigatório, Quem não se
submetia a essa contribuição era expulso da comunidade e perdia seus direitos. A
cidade, por conseguinte, acabou por adquirir uma personalidade legal que estava
acima de seus membros, Conservando desde então esse clima livre e independente
que constitui um dos aspectos de atração do homem por ela.
A muralha teve um papel psicológico muito importante, pois, quando a ponte elevadiça
era erguida e os portões fechados ao pôr-do-sol, a cidade ficava desligada do mundo.
O fato de se achar assim fechada ajudava a criar um sentimento de unidade, bem
como de segurança. O portão era muito mais que uma abertura: era também um
ponto de encontro entre dois mundos, o mundo rural e o mundo urbano, o mundo
interior e o mundo exterior. O portão principal apresentava as primeiras saudações ao
negociante, ao peregrino ou ao andarilho comum (Munford, 1998:331).
Na cidade medieval, as classes superiores e inferiores tinham se amontoado juntas, na
rua ou no mercado, tal como faziam na catedral: os ricos podiam andar a cavalo, mas
tinham de esperar que o pobre, com a sua trouxa, ou o mendigo cego, arrastando-se
com a bengala, saísse do cominho. Com o desenvolvimento da larga avenida do século
XVI, a dissociação entre as classes superiores e inferiores tomou forma na própria
cidade. O luxo se propagou, do vestuário e da diversão para a culinária. A demanda de
fundos ilimitados contagiou todas as camadas da sociedade e foi o princípio da política
econômica do Estado absolutista.
Portanto, a cidade barroca, no sentido formal, constituía uma personificação do drama
e do ritual; o prazer era um dever, o ócio, um serviço e o trabalho honesto, a mais
mesquinha forma de degradação. As próprias distrações da corte antecipavam o ritual
e a reação psíquica das metrópoles do século XX. “Opressão semelhante; tédio
semelhante; igual tentativa de busca de refúgio nas distrações da opressão tirânica,
que se transformara em rotina, e da rotina, que se tornara uma opressão insuportável”
(Munford, 1998:409).
A cidade como a conhecemos nasceu no século XVIII, quando passou definitivamente
a ser um território de intervenção sobre as possibilidades humanas. O grande
desenvolvimento das cidades e das formas de vida urbana é um fenômeno que melhor
caracteriza nossa civilização contemporânea. A cidade, como já vimos, não é um fato
novo; o fato novo é sua transformação, verificada ao longo do século passado. O que
“ontem” era uma população predominantemente rural, “hoje” está se convertendo em
outra predominantemente urbana.
Qual a origem dessa crescente urbanização que se dá em todo o planeta e mais
intensamente entre países em desenvolvimento? Para o filósofo alemão Jürgen
Habermas6, as estruturas tradicionais se submetem cada vez mais às condições da
chamada racionalidade instrumental ou estratégica: organização do trabalho e do
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Jürgen Habermas, filósofo e teórico social alemão nascido em 1929, é o principal representante
contemporâneo da Escola de Frankfurt. O cerne do trabalho de Habermas é o conhecimento, com ênfase
na crítica das práticas e dos sistemas de crenças e valores capitalistas. Em seu livro Conhecimento e
interesse (1968), ele diz existir três formas fundamentais de conhecimento que correspondem aos três
interesses humanos centrais, o controle técnico da natureza, a comunicação e compreensão dos outros
seres humanos e a libertação do domínio alheio.
comércio, rede de transportes, informações e comunicações, instituições de direito
privado e burocracia estatal. Assim nasce a infra-estrutura de uma cidade obrigada à
modernização, em que o alcance de uma qualidade de vida passa a ser considerada
por alguns autores uma utopia.
Os homens não trabalham sozinhos; pelo contrário, cooperam para atingir um objetivo
comum, e durante esse processo de interação o homem introduz modificações fixas no
ambiente natural, destinadas ao atendimento das necessidades básicas de abrigo ou à
produção de outras coisas destinadas à satisfação das necessidades humanas.
À medida que o conjunto geral dos instrumentos se desenvolve, paralelamente ao
desenvolvimento da tecnologia e da cultura, durante o processo de acumulação e de
complexidade crescente na divisão do trabalho, maior é a capacidade do homem de
introduzir modificações no meio ambiente, construindo adaptações do espaço
conscientes e dirigidas para determinada finalidade; entretanto, tais modificações
resultantes dessas adaptações implicam, com freqüência, aspectos negativos
imprevistos (Serra, 1989:51).
Para Milton Santos, citado por Silva (1991:13), o espaço, portanto,
se define como um conjunto de formas representativas de relações sociais do passado
e do presente, e por uma estrutura representada por relações sociais que estão
acontecendo diante dos nossos olhos e que se manifestam através de processos e
funções. O espaço é um verdadeiro campo de forças cuja aceleração é desigual. Daí
porque a evolução espacial não se faz de forma idêntica em todos os lugares.
Considerações Finais
O quadro caótico de violência nas metrópoles tem gerado um alto nível de medo e
tensão nos seus habitantes, restringindo a utilização dos ambientes domésticos e
outros produtos locais mais reservados em detrimento de outros espaços também
públicos. A carência de vida cultural e de atividades sociais e coletivas diminui o que se
entende por laço social, levando dessa forma à castração das forças de mobilização,
ação e reivindicação da coletividade em geral, além de causar a perda da
hospitalidade.
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A obra de M. Foucault (1926-1984) se dirige para um esgotamento dos valores estabelecidos até o
século XX. Ela é destruidora de convicções problematizando o passado e perguntando pela atualidade,
segundo Eribon.
A hospitalidade representa, eminentemente, o sustentáculo do laço social pois ela tem
como princípio fundamental atar o indivíduo a um coletivo, contrapondo-se
inteiramente ao ato de exclusão. A qualidade de vida insere e reconstitui o tecido
social, em uma sociedade de “justos” cada um trabalha para incluir os outros (Lévy,
1998:58).
Sendo assim, entendemos que toda a identidade requer a existência do outro, “o outro
não existe enquanto existe apenas nós, o que significa que uma forma de
relacionamento – identificação, amor, solidariedade, hospitalidade – é indispensável
para construir o que quer que seja com o outro” (Enriquez, 1983 apud Torres, 1992).
O conceito de hospitalidade cuja qualidade pode ser entendida como categoria da
identidade, não pode ser estudada apenas no seu nível normativo; deve-se levar em
consideração as percepções influenciadas pela cultura e educação dos indivíduos.
Referências
BORJA, J. A cidade conquistada. Manifesto, n. especial compacto, Lisboa, Ed. Rogério
Moreira e Patrícia Vieira (mimeo).
ERIBON, D. Michael Foucault, de 1926-1984. São Paulo, Companhia das Letras,
1990.
GOITIA, E. C. Breve história do urbanismo. Tradução de Emílio Campos Lima. Lisboa,
Editorial Presença, 1996.
JACOBS, J. Morte e vida das grandes cidades. São Paulo, Martins Fontes, 2000.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo, Editora 34, 1999,
260p.
MUNFORD, L. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectiva.
Tradução de Neil R. da Silva. 4ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 1988.
SEMINÁRIO SOBRE DESENHO URBANO NO BRASIL, DF - DESENHO URBANO. Anais
do II SEDUR - Seminário sobre Desenho Urbano no Brasil. Editores Bernamy
Turkienicz, Maurício Mata - São Paulo, Pini. CNPA, Rio de Janeiro, FINEP, 1986.
SERRA. G. O espaço natural e a forma urbana. São Paulo, Nobel, 1987.
SILVA, L. R. da. A natureza contraditória do espaço geográfico. São Paulo, Contexto,
1991.
TORRES, O. L. S. (org.). O indivíduo na organização: dimensões esquecidas.
Tradução e adaptação de Arakcy Martins Rodrigues. Revisão técnica de Carlos A.
Bertero. São Paulo, Atlas, 1992.