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- Bergson Os Pengadorés Bergson “Ha uma realidade, ao menos, que todos agreendemas de dente, par | imuigae: © nae por simples anatise. £ nossa prdpria pessoa om sou fluir atra- vés do tempo. £ nossa eu que dura. Po- | demas nao simpatizer intelectualmen- te. ou melhor, espiritualmente, com | nenhuma outra coisa. Mas simpatiza- ‘mg§, seguramente, conosco mesmas, ” HENRI BERGSON; Invcoducio 2 sera fisiea. A intuigde metafisica, embora sé possamos chegar a cla pela forca dos conkecimentss materiais, ¢ coisa total. mente diferente de um reumo vu de uma sintese de conhecimecto. Deles se distingue como 9 impulso motriz distingue do caminho percaride pelo mevel, como a tensie do elistice se distingue dos mavimentos visiveis do. péndulc. Neste sentido, a metafisica nada tem em comum com uma gener, lizagac da experiéncia e¢, entretanto, ela se poderia defini come a experién- cla imegral.” | HENRI BERGSON: Jewedugda 3 Meta. Fisica. “Sob as palavras @ sob a frase ha algo de muito. mais simples que uma frase e mesmo que ums palavra: o sen- tid, que @ menos uma coisa pensada do qu2 um inovimenta de pensamen- 10, menos um movimento do que uma direcao.”” ENR! BERGSON: A intui¢do Mlosdit- ca lem © Fensamienio © 0 Moventel, “Somente no homem, sabretude nos meihores dentre nds, o movimen- te vital prossegue sem obstaéculo, lan~ gando através desta obra de arte que & © cafpa humano, e que ele cricu de passagem, a Corrente indefinidamente ciadora da vida moral. © homem, le- vado incessantemenke a se apoiar na tolalidade de seu passedo para avaliar rang mais penetrantemente © seu fulu- ro, & 0 grande éxito da vida.” HENRI BERGSON. A conscincia ea vida fem A Energia Espicituad, Os PensadoréS 83-1650 CIP-Driasil Catalogacia-na-Publicaga Cimart Brasileira do Livro, Bergson, Henri, (859-194) its, Conferénclas © outros weeritos / Henri Bergson | selecto de textos de Franklin Leopildo ¢ Silva; traduedes de Franklin Loopol- & Silva, Nthenc! Cascio, — 2. ed, — Sho Paula: een) Cultural, Joa (Gs pensadtores) dnclui vidi e obra de Berson, Bibliografia. 4. Filosofia religiao 2. Filosofia francesa 3, Intuigo 4. Mugunga (Fi ‘evolia) 3. Psicologia 1. Silva, Franklin Leopoldo e, I. Tiulo, Il. Senne eDD-143 194 “16 “130 200.1 Indices para caudlogo sistemiético: > Bergsonismo: filosufig 143 losofia ¢ teligiio 200.1 ‘losofia francesa 1d . FilGsnfos franceses 194 - Intuigho: Filosulie 13 - Mudanca: Filosofia 116 + Psicologia 150 Pe ene HENRI BERGSON CARTAS, CONFERENCIAS E OUTROS ESCRITOS Selegio de textos de Franklin Leopoldo ¢ Sitva ‘Tradugées cle Franklin Leopoldo ¢ Silva, Nathanael Caxeiro EDITOR: VICTOR CIVITA ‘Titolo aviginaist “Letwes a Willen Tames” (de Herts 42 Pardes) “Introduction & ia Metaphysique™,**L’cuition Pilesophique’’; “La Pensde et Te Mouvant — Introduction" (de Lo Pensde of le Moxa) ‘Lae Cervean ot In Pemsde": “La Conscience et la Vie", "L “Ame et ‘Comps (de L Gncrgle Spiriaette) ‘Les Direesions Diyergertes de la Evolution de Ia Vie — Torgeur, Intelligence ct Instinct (de Cvohaion Créatrice) “Remaques Finales Mechanique e: Mystique’ (de Les Deice Sources de ta Mdorate et ce fa Relégiou © Copyright des edigdo, Abril $.A, Cultunil, Sao Paulo, 1979, — 2." euigdo 1984 Textns publicados sob licenica de Pressex Universitaires le Prance, Bari (Cartas a Wilhaim James; feraduseo & Metafisice: © Cérehira co Pensamenta: A Intuigiio Filorefica: A Comeitneia £4 Vile: A Alma ¢-0 Corpo e 0 Pensamente ¢ 0 Misente — harudurdo) de Presses Universitaires de France, Paris ¢ Zahar Editorcs $.A., Rinde Janeiro 4A Fvolapair Criadiva e Ay Buns Ionten le Maral ses Relighicd, “Tradugtic publicadsy sob liceng de Zab Edilares 3.A,. Rio de Janets (A Broiagi Cradona © As Duss Fences ta Moral ¢ da Religidy), ireitos exchusivos sabe as demais traduties deste volun, ‘Abril §.A, Cultural, $80 Punts Dirsitos exelasivos sobre “Bergson — Vidu e Obru’*, Abril $.A. Cultural, Six) Paulo, BERGSON VIDA E OBRA ‘Consultorla; José Américo Motta Pessamlaa ih MA esséncia da filasofia ¢ © espirita de simplicidade. Quer enca- Femos 0 espitita filosética nele mesmo ou em suas obras, quer comparemos a filesofia 3 citncia ou uma filosofia as demais filo- sofias, sempre verificamos que a complicagao ¢ superficial, a constru- 40 um acessério, a sintese uma aparéncia: filosafar 6 um ato sim- ples.” Essa afirmativa de Henri Bergson, numa conteréncia proferida, em 1911, sobre a intuigSo filosdfica (inclulda depois numa de suas obras principais, La Pensée er lo Mouvant), encerra uma das teses con- trais do pensamento bergsoniano; a importincia © a peculiaridade da visdo filosdfica, Numa época em que o avango @ a éxito das investiga- g6es cientificas ditas positivas pareciam tornar absoletas as indaga- gGes © sobrotude a forma de resposta filoséficas, Bergson exalta ¢ ino- va a metatisica. Aa mesmo tempo, pretende ampliar o dominio da in- vestigacdo psicoldgica, propondo — para além das rotinas ¢ dos me= sanismos associativos do “eu superficial" — a sondagem do “eu pro- fundo", duracae pura ¢ irreversivel, permanente mudanca qualita va, itrepetic¢ao continua, Contrapendo-se as teses deterministas apoi das no clentificismo reinante em seu tempo, apresenta-se coma defer sore reformulader do livre-arhitrio humana, apantanda o herdi ¢ o mistico como modelos de abertura e de liberdade no campo da moral ¢ da religido. E ao evelucionismo materialista, que vigorava desde a segunda motade do século XIX, responde com’ uma cancep¢do espiri twalista de evolugsa: a “evolugae criadora”, “Cada pessoa ¢ uma especie de criagao” Henri-Louis Bergson nasceu em Paris, a 18 dé outubro de 1859. Iniciow seus estudos no Liceu Condorcet, reyelando-se aluno brilhan- te tanto nas letras como nas ciéncias. Em 1876, jd atraido pela filoso- fia, ingressa na Escola Normal Superior. Tr’s anus depois, ¢ designa- vill BERCSON do professor do Liceu de Angers. Em 1863, aceita o convite para Ie- cionar filosofia no Liceu de Clermont-Ferrand, onde permanece du- rante cinco anos. Nessa época publica uma selecao de textos de Lu- srécio (Extralts de Lucréce), livro destinado ao ensino secundério. Em 1888, conclui suas duas teses — uma francesa e outra latina — ¢ vai Para Paris, lecionar na Liceu Henri IV_A tose latina era sobre a nocdo de lugar em Arist6teles (Quid Aristoteles de Loco Senserit): a dutra te= se, denominada Essai sur les Données Immédiates de Iz Conscience (Ensaio sobre os Dados imediatos da Consciéncia), provocou admirae S80 nos meios filosdficas franceses ¢ garantiu desde logo 0 Drestigio de Bergson, Professor excepcionalmente brilhante, a dedicagao ao magistério ndo impediu que Bergson prosseguissé a construgdo de sua vasta obra. Assim, em 1897 publica Matiére et Mémoire, Essai sur Jz Reta ton der Corps et de l'Esprit (Matéria e Meméria, Ensaio sobre 2 Rela- gao entre 0 Como e 0 Espirito). No ano seguinte, torna-se “mestre de conferéncias” da Escola Normal Superior, onde permanece até 1900, quando passa 2 ocupar uma cétedra de filosafia no Colégio de Fran. ga. Nesse mesmo ano, publica Le Rire, Essair sur lo Signification du Comique (O Riso, Ensato sobre a Significagso do Cémica), Nos primeiras anos do século XX Bergson conhece William Ja- mes (1842-1910), célebre psicdlogo e filésefo de Harvard. Nasce en tre as dois uma solida amizade, apesar das diferengas entre a filosofia go pensador francés ¢ a do americano. Nessa época, Bergson publica uma de suas obras principais, L'Evolution Créatrice (A Evolucae Cria- dora). Seu prestigio cresce, levando-0 a participar de varios congres- Sos fa Franga # no exterior. Aa mesmo tempo, a intensa atividade in- telectual traduz-se em diversos trabalhos que redige para a Revue de- Métaphysique et de Morale, para a Revue Philosophique, para 0 Vo- cabulaire Philosophique, de André Lalande (1866-1964), e para ou- twas publicacoes especializadas, da Franca e de outros paises, Em 1912, Bergson viaja aos Estados Unidos para proferir um cur- 50 sobre “Espiritualidade e Liberdade", na Universidade do Colimbia (Nova York). Em 1914, com a saide j4 abalada, afasta-se temporaria- mente de sua cétedra no Colégio de Franca, sendo substituido por Edouard Le Roy (1870-1954). © mesmo Le Roy ira substitui-la defi vamente, quando Bergson, em 1921, renunciar ) edtedra, devido ao agravamento de suas condicées fisicas. Apesar da intensa atividade intelectual, Bergson ndo se deixou fi- car a margem dos acontecimentas ligados 4 guerra de 1914/18. Colo- oust a servigo de seu pals © recebeu diversas missdes na Espanha e fos Estados Unidos, © ano de 1914 assinalou também sua admissio a Academia Francesa, A criagdo da Sociedade das Nacdes, em 1919, amplia o campo de interesses © de atividades de Bergson. Passando a calaborar nessa Organizagao, velo a presidir a Comissio de Cooperacdo intelectual. Ainda em 1919, publica L’Energic Spirituelle (A Energia Espivituall, cov letanea de escritos que focalizam, entre outros, 05 temas da conscians cia @ da vida, 4 relacao corpo © alma, o sonho, a relagso entre eéro- bro ¢ pensamento, Anos mais tarde, em 1922, publica Durée vt SI- multaneité (Duragao e Simultaneidade!, obra que revela a repercus- Sho em seu espirita das revolucianarias teses de Einstein (1879-1955). VIDAEOBRA IX Apesar de enfraquecido pela doenga, Bergson nav abandona o trabalho intelectual. Fm 1932, publica Les Deux Sources de la Mora- le et de la Religian (As Duas Fontes dz Moral e da Religido) c, dois anas mais tarde, Le Pensée et le Mouvant (O Pensamenta e a Maven- te}, nova coletanea de textos, alguns inéditas. Esses dois livros contir- maram a. prestigio filoséfico de Bergson. Mas a reconhecimenta de sua grandeza como fildsofo e escritor jd havia sido expresso, desde 1928, pelo Prémi Nobel de Literatura que lhe foi conterido. Na fase final de sua vida e de sua cbra, Bergson manifestou cres- cente aproximacde da doutrina crista. Sua origem judaica, entretanto, parece télo impedido de converter-se oublicamente aa catolicismo, nao desejande abandonar seu pave num momento em que este vivia entre ameagas & perseguicdes. Bergson morreu em 1941. Os fundamentos de um novo espiritualismo © pensamenio filoséfice das Gitimas décadas do século XIX e do camego do século XX esteve em grande parte daminado pela tendén- cia positivista e cientificista: somente seria legilime o conhecimento canstruitto 4 semethanga das ciéncias consideradas positivas; cientili- ‘cas seriam apenas os dacos empirica e diretamente observiveis, passi- veis de mensuragao © capazes de serem situades numa cadeia rigoro- sa de causas ¢ efeitos. O edificio todo da ciéncia aparecia regido por férta0 determinism, nao dando margem a qualquer arbitrio (divine ‘au humano} ou a0 impenderdvel, Tambgm os fendmenos psiquicos passaram a receber esse tratas mento objetivista e foram submetidos 4 medigdo. Pierro Paul Broca (1824-1880), cirurgiéo francés, anunciara a descoberta, no cérebro, da centro da linguagem articulada. Por outro lado, a psicélogo ale. mao Gustav Theodor Fechner (1801-1887) publicou, em 1860, sous Elementos de Psicofisica, onde propunha a quantilicagag dos fendme- nos ipsicolégicos. Fechner, desenvolvenco uma linha de investigagio id _explorada por outro psicélogo alemao, Ermst Heinrich Weber (1795-1878), formutou a lei Weber-Fechner, segundo a qual qual- quer sensacao seria ditetamente proporcional ao legaritma de seu est mulo, A descoberta de localizagées cerebrais para fungdes psiquicas ¢ 95 avancos da psicofisica pareciam definitivamente objetivar o mun- do. subjetive @ materializar as atividades tradicionalmente consider: das espirituais. O determinisma eo materialisme pareciam ter venci- do © velho combate com o espiritualisma; cléssicas questées metafisi- €25, como a da relagia entre compo c alma, pareciam agora supera- das. As reacdes a0 cientificismo triunfante ou assumiram feicdes irra Clonalistas — tejeicdo da razdo ¢ da ciéncia, exaltado fideismo otc, =, au insistiram, Coma em Emile Boutroux (1845-1921), na impossi- bilidade de se fazer da psicologia uma ciéncia da natureza, uma vez que a introspeccaa, a experiéncia interna, revelaria a liberdade inc- rented vida psicoldgica, E em presseguimento ao “positivisme espiri- tualista’’ de Jules Lachelier (1832-1918) e de Boutraux que pode ser si- tuado © pensamente bergsoniano, Sua grande originalidade esti, de x BERCSON saida, em reabrir o debate com matetialisias @ deterministas a partir das nogdes mesmas que, na época, pareciam dar farga As posigdes que eles defendiam: a de medida em psicologia ¢ a de redugao do mental ou do espititual ac cerebral. Desde sua obra Os Dados Imediatos da Consciéneia, Borgsan mostra que, se desembaracamas os dados de nossa experiéncia inter- na de todas as construcoes através das quais os exprimimos tanto na linguagem corrente quanto na linguagem cientitica, eles aparecem co- mo aquilo que verdadeiramente a0 enquanto dados imediatos, ou se- ja. como pura qualidade e nao como quantidade, no mais como jus. taposigao de unidades homogéneas ¢ quantificaveis, mas com o pro- gressa na heterogeneidade © mutagdo continua. Na verdade, Bergson faz muito mais do que repetir 0 apelo do espiritualisme tradicional & consciéncia interior: na linhagemy de Berkeley (1665-1753), prega o fetorna ao “imediato”, Reconhece os obstéculos que esse retomo tem de enfrentar, mas nao identifica as dificuldades dessa valta a vida interior com entraves de natureza moral, como geralmente faz a espi- fitwalisma corriquelro @ simplérie. Para Bergson — ¢ ¢ 0 que da con- sistencia e profundidade 4 sua posigdo —, a dificuldade om se apreen- der a consciéncia interna enquanto imediata ¢ enquanto pura qualidas de mutante reside na prépria natureza da inteligéncia. O que a inteli- gincia faz é medir, mas medir supde a existéncia de unidades homo. géneas © comparaveis, coma as do espaco geométrico. Buscando apreender ¢ explicar os estades de consciéncia, a inteligéncia leva- da entio a espacializar © que puro fluxo qualitativo, puta duragao, A propria linguagem, ao nomear os estados de consciéncia, permite que eles sojam figurados como separados. representadns coma numa sucesso espacial, seriadas ou adicionados como unidades homoge- peas. A psicofisica de Fechner, mostra Bergson, depende da elimina: a0 do aspect qualitative dos fendmenos psicologicos; samente as. sim a igualdade, a adigéo e a medida desses fendmenos tarnam-se possiveis. O eu superficial eo cu profundo Bergson afirma que a inteligéncia, a elaborat conceitos @ ao tra- balhar analiticamente, fragmenta, espacializa e fixa a realidade que, nela mesma, & continua mudanga qualitativa, puro tornarso. Mas, por outro lado, reconhece que essa forma de atividade intelectual, ti pica do “ou superficial”, € aquela que possibilita a ciencia © a pro- pria sobrevivéncia do homem: esta voltada, portanto, para o dtil eo comodo, permitinde nao apenas a construgia de simbolos © calcu los, como também a criago de mdquinas ¢ utensilios. A atividade do intelecta gerador de cenceitos @ de indole pragmatica, fazenda com que © homem seja 6 home faber que damina a natureza e a poe a seu servigo. Em contrapartida, a conceite deixa escapar a nalureza mesma do objeto concreto. O conceito — come mostra Bergson na Int do a Metafisica (om O Pensamento eo Movente) — "56 pode simbolizar uma prapriedade especial tornando-a comum a uma infinidade de coisas”; assim, cada conceito “retém do objeto apenas a que ¢ co- VIDA EOBRA x mum a esse © a outros objetos’. A inteligéncia que se move no plano das absiracties esté fadada, portanto, 2 permanecer no nivel das refa- gdes entre os objetos, sende incapaz de apreender o que cada objeto tem de essencial ¢ de prdprin. Esse essencial © esse proprio é que inte- fessariam aquilo que Bergson entende por metafisica: ndo a tessitura de abstracdes, mas.o mergulho — para além da teia dos simbolismos da linguagem — na intimidade do real concreto, 9 reina da durag3o pura. Para isso tora-se necessario utilizar outra forma de aborcagem © apreensio do real, que comunique diretemente a intimidade do su- jeito, 0 “eu profundo”” — duragaa pura — com a intimidate do obje- to concreto @ singular, também pura duragao. Essa forma de contalo cu de “simpatia”, sem mediagées, entre sujeito « objelo é o que Bergson entende por intuigde, visao que mal se distingue do objeto vista, conhecimento que chega A coincidéncia, Ac contritio da andli- 88, que multiplica indefinidamente os pontos de vista temiande. com- pletar a representagao do objeto, a intuigda. colaca-se no prdprio obie- to. E, a contririo do concelto que espacializa a duragio real ¢ estag- fa 9 movimento (reduzindo-o ao espace, 2 trajelérial, a intui¢ao, des- tituida de motivos utilitaries, permitiria a apreensdo do que 6 vida, di- hamismo, mudanga qualitativa, duragio, criagdo. Por isso, a metafi ca — que nio deve ser vista come mera jogo de idéias abstratas, mas como “ocupacde séria do espirito” — teria na intuigéo seu método adequado. Bergson recanhece que os conccitas séo indispensdveis metafisica, na medida em que esta nio pode dispensar as outras cién- sias, que todas trabalham com conceitos; mas reconhece também que a metafisica sé é propriamente ela enquanto se liberta dos concei- tos jd prontos © cansagrados pelo habito, para criar “representacoes flexiveis, moveis, quase fluidas, sempre prontas a se moldar pelas for- mas fugidias da intuigio’. Assim, a linguagem da metalisica — como © préprio Bergson exemplificou de modo admirdvel — ndo pode ser construfda com conceitos que espacializam a duracao, coagulam o devir, matam o que é vivo: a linguagem da metafisica tem de apelar hecessariamente para o poder sugestive das metaforas, utilizando o “literdrio” cle moda a que os jogos e a convergéncia'de imagens pre- parem e suscitom a intuicao. ‘A meméria-habito e a meméria-recordacao Por tras das cristalizagdes ¢ das aperentes situacées descontinuas do eu superficial, © eu profunda flul como uma unidade em perpétua mudanga. Mas esse progresso na continuidade supée uma atividade unificadora: a meméria. Bergson chega a dizer que “a duragao inte flor é a vida continua de uma memdria que prolonga o~passada no presente”. Considera entretanto fundamental distinguir entre dais ti- pos de memiria: a memiria-hdblta @ a meméria-recordacdo. A pri- meira repete e toma presente o efcito pratico de experiancias passa- das (como quando se repete de cor um texte anteriormenté lida); a se gunda, a mémoire souvenir, reproduz o passado enquanto pasado, revivendo-o (como quando se recorda das circunstancias em que sc leu aquele texto pela primeira vez). A meméria-recordacéa "registra, sob a forma de imagens-lembrancas, todos os acontecimentos de nos- xt BERGSON sa vida cotidiana, 8 medida que cles se desenrolam’’, sem negligen- iar nenhum pormenor, ao contririo, doixando ““a cada fato, a cada pesto, seu lugar ¢ sua data”. Essa seria a memoria verdadeira, que re upera 9 proprio passado, sem intencdo utilitaria, Para evocar deseo modo © passado, sob a forma de imagens, € necessario, todavia, abs- trair-se da agdo presente, “6 preciso atribuir valor ao indtil, & preciso querer sonhar’", afirma Bergson. © tema da meméria vincula-se a-outras questocs centrais da psi- cologia & da metafisica bergsoniana, como a da inconsciente ¢ a do relacionamento entre corpo ¢ alma (esta, sob a forma de relagao-en- tre o mental e 6 cerebral), Bergson discute a questa das localizagées cerebrais em fungdo das distiirbios da memoria, particularmente da afasia, E Conclui que esses distirbios nio so devidos a lesaes no cdr tex corebral: a lesio pode prejudicar 9 mecanismo de ativagao das lembrangas, mas nao atinge as proprias recordacdes; © espiritual ou o mental ultrapassa 0 fisico ou 6 cerebral, embora nele se apoir ¢ dele dependa para se manifestar, A agjo do inconsciente é representada por Bergson através da imagem do cone: a base do cone — o inconsciente — creseeria sem- pre pela aquisi¢io de novas experi¢nicias; j4 a vértice representaria 0 momento presente, de insercao do psiquismo na vida, No interior do cone os elementos psiquicos. apresentam duplo movimento: do vérti- ce para a base (experiéacias presentes que passam ao inconsciente} da base para o yértice (0 inconsciente que emerge, atuande sobre o plano da consciéncia), © crescimenta incessante do cone significa que cada qual cartoga atrds de si todo 0 seu pasado, que ¢ conserva. do integralmente. E, mostra Bergson, o verdadeira problema relatives & mem@ria nao ¢ 0 da conservagdo de lembrancas, mas o do esquec!- mento daquila que se conserva por inteiro, Explica entio: justamente Porque o cérebro € Grado de atengao a vida, ele seleciona as lembran- Gas, recaleanda aquelas que so desnecessérias a0 momento. presen- te. Orgio de integragio do individuo 4 vida, 0 cerebro é assim, tam- bém, Ordo de esquecimenta, Quando a atenejo a vida se afrouxa, coma fo sono, & que o inconsciente pode aflorar, gerando entéo os sonhos, © contraste entre 0 eu de superficie — automatizade, Pragmati- £9, espacializado, preso ds injuncées da sobrevivéncia ¢ da vida so- cial — ¢ 0 eu profundo marca toda 0 bergsonismo. E permite a Bergson retamar a questio do livre-arbitrio, formulande-a de forma completamente diferente da concepgio classica. Para Bergson o li- vre-arbitrio nde se cncontra ne eu superficial, que ¢ de [ato totalmen- te determinado. A liberdade encontrar-se-ia no eu profunda, no eu Aue quer, que se apaixona, que amadurece, que evolut, qué cresce sem cessar, que € puro dinamismo e constitui a verdadeira personal. dade do individuo. Bergson recanhece, porém, que a matoria dos ho- Mens vive apenas no eu de superficie, atravessando a existéncia sem jamais experimentar a verdadeira liberdade, Essa liberdade é que transparece na acto criadora dos refermadores, dos-santos, dos misti- 08, que rompem as barreiras da moral © da religido fechadas, para Criarem, além dos preceitos cristalizadas ¢ dos comportamentos roti- neiros, os horizontes abertas de time religiosidade @ de uma moral que brotam das vivéncias profundas do eu. VIDAEOBRA —XIIL Cronologia 1859 — Bergson nasce em Parts, 1878 — Ingressa na Escola Noval Superior, 1883 — Vai lecionar filosofia po Liceu de Clermont-Ferrand, 1889 — Dpfende 4 tese latina, sobre Arisidteles, @ a francesa, Esai sur los Oonndes Immédiates de la Conscience. 1897 — Publica Matiore et Mémoin 1898 — Toma-se mestre de canicréncias ma Escola Normal Superior (Paris). 1900 — Ocupa unra catedia de filosofia no Colégia de Franca. Publica Le Rire. 1901 — Passa a pertencer ¢ Academia das Cidncias Morais @ Politicas da Franga. 1907 — Publica 1910 — Morre Williarn Jarses 1912 — aes Fstades Uniclus para proferin cannes av Universidade ake Co Jimbia (Nowa Yah. 1914 — Comeca a Primeira Guerra Mundial, Bergson enia para a Acade- mia Francesa 1918 — Termina a Primeira Guerra Mundial 1919 — Bergson publica L’Energie Spirituelle. 1922 — Publica Durée et Simultandité 1928 — Recebe o Frémio Nobel de Literatura, 1932 — Publica Les Deux Sources de la Morale et de la Religion 1934 — Publica La Pensée et le Mouwant. 1939 — Comeca a Segunda Guerra Mundial. 1941 — Benjsun morro, Bibliografia Li Row, E.; Une Philosophie Nouvelle: Henri Berson, Ateat, Paris, 1912 Bisua: Le Bensonime ou une Phitosophie de la Mobilité, Mercure de Fran- ce, Paris, 1913, Marian. |: Ca Philosophie Bensenienne, Riviere, Paris, 1913. Howie, H.: ba Philosophie de Bergson, Alvan, Paris, 1916, ‘Chivaure. J Bergson, Plon, Paris, 19.26. Jposettewsicn, Vit Bergsan, Alean, Paris, 1930. hchiien Vx Henei Bergson, Presses Univershtaires dé France, Paris, 1959, Fico M, T. Ls Lar Méthode intuitive de Bergson, Paris, 1918. Poabo,M, T. L.: Diew dans le Bengsonisme, Paris, 1934. Surwances, RP. Henri Bergson et lo Catholicisme, Flammarion, Parts, rat. Brow an, Gs Ly Divkwetique do la Rurde, Presses Universitaires de France, Paris, 1936, CARTAS A WILLIAM JAMES’ Tradugio de Franklin Leopoldo ¢ Silva * ‘Tradurida do Mosse Bastide. inal francés Levite et Paroles, |—11. PLU... 1957, textos reunidos por Rase Marie Carta de Bergson a William James, de 6 de janciro de 1903 Caro Confrade Acabo de ler o liveo que tivestes a bondade de me enviar — The Varieties of Religious Experience — e quero dizer-vos da profunda impressao que esta leitura me causou. Eu a comecei ha uma devena de dias ¢, desde entdo, nio posso pensar em outra coisa, to cativante 0 livro e, permiti-me dizer-vos, apaixonante de ponta a ponta. Lograstes, creio, extraira propria quintesséneia da emosao religio- sa, Sem davida sentiamos ja que esta emogiio é ao mesmo tempo uma alegria sui generis © a eonsciéncia de uma uniio com uma poténcia superior: mas qual é a natureza desta alegria ¢ o que ¢ esta unido, & o que nao parecia nem analisavel nem exprimivel, © ¢ entretanto © que vis soubestes analisar ¢ exprimir. gragas a um procedimento novo que consiste em fornecer ao leitor, pouce a pouco. uma série de impressdes de conjunco que interferem ¢ ao mesmo tempo se fundem entre si. no espitito, Acabais dé abrir um caminho no qual sereis certamente seguido por muitos outros, mas onde j@ fostes imediatamente tio longe, que se terd bastante dificuldade para vos ultrapassar ¢ mesmo para vos aleangar, Se tivestes ocasido, nestes dez ou doze iltimos anos, de conversar com estu. dantes franceses de passagem por Cambridge, eles certamente vos terdo dito que eu fui um de vossos primeiros admiradores e que jamais perdi ocasise de exprimir diante de meu auditério a grande simpatia que tenho por vossas idéias. Quando escrevi meu Ensaio sobre ox Dados Imediatos de Consciéncia sb conhecia 0 vosso artigo sobre o £sforge, mas tinha sido conduzido, através da analise da idéia de tempo ¢ de uma reflexdo acerca da fungao desta idéia na mecénica, a uma certa eoncepgio da vida psicologica que é bastante conciliavel com a de vossa psicologia (exeeto, todavia, pelo fato de que vejo nas proprias resting- places os places of flight aos quais o olhar fixe da consciéncia confere uma imobilidade aparente). Isto significa dizer que nenhuma aprovagaio me poderia ser ldo preciosa quanto a que tivestes a bondade de dar ay eonclusdes de meu livro Matéria e Memoria. Tentei neste livra sem sacrificar nenhum dos resultados da fisiologia gerebral — mostrar como a relagiio de consciéncia com a atividade cerebral é coisa bem diferente do que supéem 05 fisidlogas e 0s filésofos: e vejo que, ainda Aeste ponto, seguimos caminhos bem proximos ¢ provavelmente convergentes, Ao menos @ 0 que se me depreende da leitura da interessantissima conferéncia sobre Human fmmortality que tivestes a bondade dé me enviar. Quanto mais

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