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A SE CONTRADIZ. ELA E APENAS UMA HISTORIA DE FA iS AS RELIGIOES SAO BOAS @ A SUA CRENCA N/Mfingg/°O ORL UNMET IRON Ceo A( roan JLETA PARA OS FRACOS @ A IGREJA ESTA CHEin or, © NAO PRECISO DE RELIGIAO @ NAO HA DEUS ¢ SE HA fa resposta as objegdes comuns ao cristianismo. -4.C. SPROUL Os cristaos sabem responder as perguntas realmente dificeis? A ciéncia prova a inexisténcia de Deus? Quem nunca ouviu falar de Cristo vai para o inferno? Por que as pessoas precisam de Deus quando tudo vai bem na vida delas? S6 existe um caminho para Deus? O céu é uma realidade ou apenas uma ilusao? Por que existem o mal e o sofrimento? Todas as religides sao boas? O que ha depois da morte? * Por que sou culpado por algo que no fiz? I EDITORA MUNDO CRISTAD (ir Caixa Postal 21.257. 04698 — So Paulo, Est. SP. Sede: Rua Antonio Carlos Tacconi, 79 Tel: 520.5011 ini EE ———— R.C.SPROUL Sm) EDTORA MUNDO CRISTAO Cristao * “Caixa Pottal 21.257. 04698 — Sao Paulo, Est. SP. Sede: Rua Antonio Carlos Tacconi, 79 - Tel.: 520-5011 Titulo em inglés: REASON TO BELIEVE Copyright © 1978 por G/L Publications Copyright original transferido ao autor em 1981 Editado em 1982 por Zondervan Publishing House, Grand Rapids, Michigan, E-U.A. Tradugaéo de Neyd Siqueira 1* edicdo brasileira em maio de 1986 Impresso na Artes Grdficas Guaru S/A. Publicado no Brasil com a devida autorizagao e com todos os direitos reservados pela o ASSOCIAGAO RELIGIOSA EDITORA MUNDO CRISTAO Caixa Postal 21.257, 04698 — Sao Paulo, SP, Brasil ‘imdlice prefacio ... 7 intfodugao ... 9 Uma Peregrinagdo Pessoal capitulo um ... 15 “A Biblia Se Contradiz. Ela E Apenas Uma Histéria de Fadas.” A Biblia Contém Muitos Mitos? / A Biblia Esta em Conflito com a Ciéncia? / A Biblia Esté Cheia de Contradi¢ées? / A Biblia Contém Incorregées Histéricas? / Por Que Parte da Biblia Ofende? / As Es- crituras S4o Infaliveis? / Pontos-Chaves a Serem Lembrados Capitulo dois ... 26 “Todas as Religides S&o Boas. A Sua Crenga Nao Importa.’” Todas as Religides Nao Séo Basicamente a Mesma Coisa? / Por Que Deus £ Tao Exigente? / Por Que os Crist&os Dizem que Cristo E Deus Encarnado? / Pontos-Chaves a Serem Lembrados capitulo trés ... 34 “E 0 Indio Que Nunca Ouviu o Evangelho? Este Coitado Vai Para o Inferno?’ O Que Acontece 4 Pessoa Inocente Que Nunca Ouviu Falar de Cris- to? / O Que Dizer da Pessoa Que Ja Sabe a Respeito de Deus? / Como os Pagios Serdo Julgados? / Como o Indio Isolado Pode Ou- vir? / Pontos-Chaves a Serem Lembrados capitulo quatro ... 43 “O Cristianismo E Uma Muleta Para os Fracos.”” A Religiao Foi Inventada Para Domar as Forcas Naturais?/ A Reli- giao Foi Inventada Pelos Ricos? / Se Naéo Ha Deus, Por Que Existe Religido? / Por Que Tememos a Deus? / Pontos-Chaves a Serem Lembrados capitulo cinco ... 55 “A Igreja Esta Cheia de Hipécritas. A Igreja Esta Cheia de Pecadores? / Nao Existem Hipécritas na Igre- ja? / Os Ministros Sao Hipécritas? / Hipocrisia E um Pecado Grave? ! Pontos-Chaves a Serem Lembrados capitulo seis ... 63 ‘Nao Preciso de Religiao.‘’ O Que Ha de Errado com o Humanismo? / Nao Basta “"Tentar Fazer © Que E Certo? / Nao Temos de “Merecer” a Nossa Entrada no Céu? / De Que Vale Ter Livre-Arbftrio? / Por Que Sou Culpado por Algo Que N&o Fiz? / Por Que Preciso de Graga? / Pontos-Chaves a Se- rem Lembrados capitulo sete ... 75 “Nao Ha Deus.’ Vocé Pode Provar Que Deus Existe? / A Criagao Foi por Acaso? / O Que Significa a Teoria do “Mundo Eterno”? / Qual a Légica do Conceito de um Deus Auto-Existente? / Pontos-Chaves a Serem Lembrados capitulo oito ... 84 “Se H4 um Deus, Por Que Existe Tanta Maldade no Mundo?”’ O Mal E na Verdade um Bem Disfargado? / O Mal Tem Origem em Satanas? / O Mal Seré Sempre Necessario Para Apreciarmos o Bem? JO Mal Nao E Relevante? / Afinal de Contas, Sou Apenas Humano! / Por Que Devo Sofrer Pelo Feito de Addo? / O Que E Mal? / Pontos- Chaves a Serem Lembrados capitulo nove ... 93 “Por Que Deus Permite o Sofrimento?” Por Que E Necessério Sofrer? / O Que a Biblia Diz Sobre o Sofri- mento? / Pontos-Chaves a Serem Lembrados capitulo dez ... 104 “Quando Vocé Morre, Est4 Morto! N&o Ha Mais Nada!” A Natureza Ensina que Existe Vida Apés a Morte? / Devemos Viver Como se Houvesse um Deus? / E se a Vida Nao Tiver Sentido? / Qual a Argumentacao Biblica Para a Vida Apos a Morte? / Pontos- Chaves a Serem Lembrados prefacio A fé crista sempre foi alvo de criticas. Censuras foram langadas de toda parte contra o cristianismo desde o seu inicio. E, de fato, notavel que depois de suportar quase 2.000 anos de ataques desse tipo a fé crista continue a manter-se como um estilo de vida e perspectiva ainda exeqiii- veis. As filosofias e sistemas religiosos alternativos que procuraram su- plantar o cristianismo vieram ¢ se foram. Os “ismos” filoséficos cor- rentes tendem a durar bem pouco. As objecées classicas ao cristianismo continuam porém a surgir. Algumas delas sao levantadas num espirito preconceituoso e agressivo, outras numa tentativa sincera de resolver ques- tées e mistérios bastante complexos. CO intento deste livro nao é fornecer um estudo técnico da ciéncia da apologética, ciéncia que se destina a oferecer uma defesa abrangente da credibilidade intelectual do cristianismo. Este livro, pelo contrario, édirigido aos leigos, a fim de oferecer respostas basicas as objecdes mais comuns e freqiientes langadas contra o cristianismo. Ele trata de assun- tos que variam desde questées filoséficas como o problema do mal até as frustragdes muito praticas e pessoais que as pessoas encontram ao defrontar-se com a hipocrisia. A esperanca do autor € que os estudiosos e os criticos da fé cristé dirijam sua ateng&o para as Escrituras do Velho e do Novo Testamentos numa tentativa séria de descobrir em suas paginas as respostas para as quest6es da vida. Espero que este livro sirva como introducao e estimulo para exa- mes mais profundos dos problemas discutidos. O cristo deve estar sem- pre preparado para dar respostas sinceras a perguntas feitas com since- ridade. As fugas para a crenga particular ou afirmagdes dogmaticas irracionais nao dao honra a Cristo. Nossa responsabilidade é “dar a ra- z&o da esperanca que hd em nds” ( 1 Ped. 3:15). RC. Sproul imtrodwmeaio Uma Peregrinacao Pessoal A busca do significado da vida foi um problema grave para mim desde cedo. Os ‘‘por qué”’ dominavam minha mente, nao tanto as in- dagacées fisicas, mas as metafisicas. Muitas criancas ficam fascinadas pela maneira ‘‘como”’ as coisas funcionam. Elas perseguem os pais com perguntas do tipo: ‘‘O que faz o carro andar? Como o reldégio funcio- na? Como a semente vira flor?’’ Tive amigos na infancia desse tipo, sempre mexendo em carros, maquinas de cortar grama e esqueletos. Al- guns se tornaram engenheiros, outros médicos, um deles gedlogo e ou- tro fisico. Mas eu me aborrecia com tais perguntas. Sabia que eram im- portantes, mas simplesmente nao me interessava por elas. Quando jovem, duas paixées me consumiam. Uma delas eram os esportes e a outra os ‘‘por qué’. Naquele tempo eu nao via qualquer relacdo entre ambas, mas ao refletir no assunto hoje posso ver como se ajustam as minhas circunstancias. Fui uma crianga no tempo de guerra. A primeira pergunta que me perseguiu foi a da guerra. Eu queria saber por que elas aconteciam, pois para mim, aos quatro anos de idade, pareciam bem tolas. Eu nao com- preendia por que Roosevelt e Hitler nao podiam sentar-se a uma mesa e resolver suas diferencas sem fazer uso de tanques, bombas e navios. 10 Introdugéo Meu interesse no assunto era bastante pessoal: a guerra significava pa- ra mim a auséncia de meu pai. Desde os dois até os seis anos, meu pai era uma fotografia de um homem de uniforme, aquele que nos escrevia cartas aéreas, de quem minha mae falava e a quem escrevia. Por algu- ma raz4o estranha, nenhum dos pais de meus amiguinhos tinha ido pa- ra a guerra. Eu ficava imaginando: ‘Por que todos tém o pai em casa eeu nao?” A pergunta sobre a guerra que me perseguia evaporou-se com um final feliz. Enquanto jogava bola nas ruas de Chicago surpreendi-me com 0 ruido de pessoas gritando e batendo em vasilhas e panelas. Eu as observei abracando-se umas as outras e se comportando de maneira bem estranha. Fiquei aborrecido com a interrup¢do do jogo por causa daquilo tudo, até que compreendi do que se tratava — o Dia da Vitoria, o fim da guetra. O pleno significado da alegria que empolgava a todos nao me atin- giu até que me vi numa estacdo ferroviaria com milhares de homens de uniforme e uma porcdo de mulheres chorando. Foi entdo que as tropas chegaram. No meio daquela multidao de soldados praticamente iguais, um deles me chamou a atenco. A alguns passos de distancia ele deixou cair a mala, caiu de joelhos ¢ abriu os bragos com um sorriso radiante. Larguei da m&o de minha mae e voei para ele em tempo recorde. Des- viando dos soldados e correndo em volta das mochilas, me atirei nos bracos de meu pai. A guerra nao tinha mais importancia. Depois disso veio a escola. Desde o primeiro dia eu a detestei. Con- sidero ainda um mistério como acabei numa profissdo académica. Eu me lembro de ir para a aula na segunda-feira, sonhando com a sexta. A idéia que me obcecava era a raz4o de ir para a escola cinco dias por semana e so brincar dois. Isso nao fazia sentido para mim. O programa de meu pai parecia ainda pior. A meu ver estava sempre trabalhando. Eu ficava imaginando que vida era essa em que vocé passava tanto tem. po fazendo o que nao gostava, a fim de passar tao pouco tempo naqui- lo que o agradava. Eu era bom aluno, mas meu coracdo nao se apegava ao estudo. Oesporte era a minha paix4o, ele fazia sentido para mim. Eu tinha pra- zer sensual e intelectual nele. Gostava de sentir meu corpo respondendo aos movimentos de aco. Minha vida era 0 esporte. Eu li todos os livros na biblioteca da escola e da cidade sobre o assunto. Cheguei a transformar-me numa enciclopédia ambulante de conhecimento ‘esportivo. A pratica do esporte jamais foi considerada por mim como traba- Iho. Nunca ficava cansado a ponto de desejar que ela terminasse. Cada segundo era um prazer. Havia uma razio para isso. O jogo. A vitdria. CO jogo tinha um ponto de partida, um alvo e um final. A vitéria era uma possibilidade concreta, a derrota nunca me passava pela cabeca. Uma Peregrinagdo Pessoal 11 Quando estavamos perdendo, eu nao pensava: “‘E se perdermos?’’, mas, **Como podemos ganhar?’’ Os meus treinadores ocupavam 0 papel de idolos na vida real, sempre ensinando meios de ganhar. Nos morreria- mos alegremente por eles no campo, se necessdrio. Aconteceu, porém, algo que mudou tudo isso e me transformou t4o radicalmente que ainda nao superei o acontecimento. Tinha 16 anos quando minha mae veio procurar-me e me disse: ‘‘Filho, seu pai tem uma doenga incuravel. Os médicos nada podem fazer por ele. Vocé po- de continuar jogando, mas tera de conseguir um emprego de meio- periodo. Papai esta morrendo e vocé precisa ser 0 homem da casa’. Aceitei a idéia com heroismo estdico exteriormente, mas por dentro me sentia enraivecido. Nao podia acreditar que houvesse problemas inso- liveis. Nos ganhamos a guerra, nao foi? Sempre conseguiamos acabar vencendo um jogo. Por que nado podemos também superar isto? Deve haver uma cura. Os médicos esto errados. Mas nao havia cura. Os mé- dicos nao haviam errado. Papai no morreu logo. Morreu um dia de cada vez. Todas as noites eu arrastava seu corpo enfraquecido para a mesa do jantar. Continuei praticando esporte por algum tempo, mas as coisas ti- nham mudado. Comecei a achar aquilo uma tolice. O treinador me dis- se: “Sproul, quero que leve o futebol aonde quer que va. Quero que jante e durma com ele. Vocé vai ter de comer, beber e dormir pensando em futebol’’. Duas semanas antes se me tivesse dito isso seria a gloria, mas agora queria gritar: ‘‘Idiota! Vocé nao sabe que isso nao vale nada?’’ Prati- car-era um sacrificio. Os jogos se tornaram um pesadelo. Os esportes, como a vida, ndo passavam de futilidade. Meus herdis esportivos nao passavam de um mito e a vida de uma pilhéria amarga. Quando 0 juiz apitou uma infragaéo empurrei 0 apito em sua boca. Amargurado, con- fuso, frustrado, s6 obtive derrotas. Nao conseguia mais ganhar. Desisti. A ultima vez que meu pai caiu eu o carreguei para a cama, incons- ciente, Vinte e quatro horas mais tarde ele estava morto. Nao chorei — no senti qualquer emocao. Fiz os arranjos para o funeral apressa- damente e quando ele foi enterrado minha alma também ficou ali, de- baixo da terra. O ano seguinte me fez romper todas as cadeias, entregando-me a completa degeneragao. (A ira pode ter grande influéncia sobre um jovem.) Tornei-me o modelo do jovem zangado. Tirei 0 se- gundo lugar no gindsio, mas a partir do colegial sé passei raspando. O futebol americano me fez ganhar uma bolsa de estudos para a faculdade. Veio entado a mudanca numero dois. Depois de uma semana no campus minha vida sofreu nova reviravolta. O campeao do time de futebol me chamou de lado e me falou sobre Jesus. Eu nao podia acre- ditar nele. A meus olhos os ministros eram uns fracos e ‘‘cristao”’ nao passava de um sinénimo de ‘‘afeminado’’. Nao me lembro o que foi 12 Introdugéo que ele me disse, mas levou-me ao Novo Testamento. A verdade respi- rava em cada pagina. Foi a minha primeira experiéncia com a Biblia. Uma experiéncia de revolucao espiritual. Eu sempre soubera que havia um Deus, embora O odiasse. Naquela semana minha raiva e amargura se dissolveram em arrependimento. O resultado foi perdao e vida. Seria talvez apropriado contar uma histéria de aproximacao a Cristo através da indagacdo intelectual. Isso porém nao aconteceu comigo. O impulso intelectual veio mais tarde. Durante um ano aprender as Escri: turas era a minha paix&o consumidora. Eu nao podia compreender co- mo alguém podia deixar de crer nelas. A maior parte de meus professo- res se compunha de céticos. A atmosfera do campus era praticamente secular. Logo tive de enfrentar toda objecdo intelectual concebivel ao cristianismo. Eu me sentia mais vulnerdvel, em vista de meu passado, 4 acusagao de que minha fé tinha como base meu trauma emocional e minha necessidade psicoldgica de que Jesus fosse meu ‘‘Pai’”’ e me con- cedesse esperanca em minha amargura e desespero. Nao fazia muito tempo que me convertera ao cristianismo quando tive de enfrentar diretamente a questao: Minha conversdo estava arrai- gada na realidade objetiva ou representava simplesmente uma expres- sao de minhas necessidades subjetivas? Comecei a sentir 0 que Santo Agostinho chamou de “‘Fé a busca de compreensio”’. Voltei-me entao para o estudo da filosofia como prioridade académica. O estudo da historia da filosofia me fez conhecer virtualmente to- da alternativa séria ao cristianismo gerada pelo mundo. Comecei a apre- ciar a faléncia das perspectivas seculares. Encontrei opinides valiosas em Spinoza,’ Kant,? Sartre? e outros, mas nenhum deles parecia ter uma visdo coerente da vida e do mundo. Os préprios filésofos eram seus melhores criticos. Humet criticou Locke’; Kant criticou Hume; Hegelé criticou Kant, e assim por diante. Nao surgiram quaisquer ‘“‘re- sultados seguros” mediante as especulagGes intelectuais. O estudo da filosofia forneceu porém elementos de grande valor para uma andlise critica que foram de enorme utilidade para mim. Quanto mais eu estu- dava filosofia tanto mais confidvel e satisfatério se tornava o cristianismo. Depois da faculdade veio o semindrio. Eu pensava ingenuamente que o semindrio fosse uma cidadela de interpretacdo erudita e defesa do cristianismo. Em lugar disso, descobri que se tratava de uma forta- leza de ceticismo e incredulidade. Prevalecia ali uma atitude negativa em relagdo ao cristianismo classico que me expés a inumeras teorias cri- ticas contempor4neas as quais rejeitavam a doutrina crista ortodoxa. O seminario serviu assim para influenciar-me através de diversos ata- ques eruditos 4 Biblia. Isto levou-me a enfrentar a questiio da validade das Escrituras. Fui poréim, felizmente, abencoado por dois sistemas es- senciais de apoio. Uma Peregrinagao Pessoal 13 De um lado, eu conhecia suficientemente a filosofia analitica para perceber as suposic6es filoséficas empregadas pelos criticos negativis- tas. Mediante instrumentos filos6ficos pude criticar os criticos até cer- to ponto. As frageis conjeturas filoséficas dos professores “‘liberais’’ nao conseguiam impressionar-me intelectualmente. Por outro lado, ti- ve a felicidade de estudar com um professor que confirmava o cristia- nismo classico. Ele era o nosso professor mais severo e que mais exigia de nds no terreno académico. Sua mente sempre pronta a nos preparar armadilhas e sua singular habilidade de raciocinio légico e conclusivo me impressionavam. Ele parecia pairar sobre o restante dos professo- res tanto em conhecimento como brilhantismo analitico. Terminado o seminario fiz meu doutorado na Europa. Foi uma experiéncia dificil mas estimulante. Quase todo o meu trabalho tinha de ser preparado em linguas estrangeiras, o que exigiu de mim um novo tipo de disciplina intelectual. O fato de estudar na classe de G. C. Ber- kouwer, da Universidade Livre de Amsterda, me abriu as portas para conhecer todas as ultimas teorias sobre teologia e estudos biblicos. 0 sistema europeu aplicava o método de abordar a teologia e os estudos biblicos como uma ciéncia técnica. O estudo das fontes primdrias nas linguas originais como o holandés, o alemfo ¢ 0 latim forneceu-me no- vos conhecimentos de alto nivel. Ao voltar da Europa para a América comecei minha carreira como professor. Pelo fato de ensinar tanto na faculdade como no seminario, meu campo de ensino era bastante diversificado. Numa faculdade eu dava aulas quase que exclusivamente na area de filosofia. Em outra mi- nha responsabilidade era ensinar teologia ¢ estudos biblicos. Meu pri- meiro cargo no seminario inclufa a teologia filoséfica, combinando am- bas: filosofia e teologia. Por mais estranho que parega, fui também con- vidado a ensinar a teologia do Novo Testamento. Numa era de especia- lizago, vi-me forcado a exercer o papel de ‘‘clinico geral’’, trabalhan- do em campos diferentes mas relacionados. Aciéncia da apologética, que oferece defesa intelectual da credibi- lidade do cristianismo, tornou-se finalmente minha ‘‘especialidade’’. Isso acontece quase sempre com os ‘‘clinicos gerais’’. Minha pratica nao ocorreu numa “‘estufa”’ conservadora. Percor- ri a escala completa dos conhecimentos liberais. Sou um conservador da primeira gerag4o convicto, e nao por heranga ou educagao. Ocampo do ensino serviu para formar meus pensamentos. Quan- to mais estudo, ensino e me envolvo em didlogo com os incrédulos e criticos tanto mais confio na sélida integridade e verdade intelectual do cristianismo. Sinto-me de fato dominado pela profundidade, coeréncia e complexa consisténcia interna do cristianismo. A majestade e radian- cia das Escrituras me inspiram reveréncia, mesmo sem levar em conta © seu poder. Se pusermos de lado as Escrituras, removemos também 14 Introdugéo Cristo, e quando removemos Cristo, anulamos simplesmente a vida. A minha convicgao é a mesma de Martinho Lutero: Spiritus Sanctus non est scepticus: ‘*O Espirito Santo nado é cético e as Suas declaragées sao mais seguras e certas que a razio e a propria vida’. Notas 1. Espinosa. Bento ou Benedito Espinosa, tradugdo portuguesa do nome hebreu Baruch Spinoza, nasceu em Amsterda, na Holanda, filho de judeus portugueses (1632-1677). In- fluenciado pela Jeitura de Descartes, chocou os de sua religido, acabando expulso da co- munidade e proibido de professar a crenga em que fora educado. Duas obras de Espinosa foram publicadas durante sua vida: a exposigao dos Principios da filosofia cartesiana, junto com os Pensamentos metafisicos ¢ 0 Tratado teoldgico-politico, Espinosa procura na filosofia o bem supremo que Ihe proporcione tranqiiila paz de espirito, 0 que sé se atinge pelo conhecimento de Deus, como unidade do cosmos. 2. Immanuel Kant (1724-1804) nasceu em Kénisberg, cidade isolada no extremo da Prissia oriental, de familia extremamente humilde, exercendo 0 pai 0 oficio de fabricante de selas. ‘Com a sua obra Critica da razao pura aleanga 0 ponto maximo entre os pensadores de todos os tempos, provocando no mundo da filosofia uma verdadeira revolugdo ou “‘giro copernicano”, a tal ponto que, em nossos dias, € possivel estar com Kant, estar contra Kant, nunca, porém, sem Kant. © problema central da filosofia de Kant é 0 problema do conhecimento, podendo-se afirmar que sua filosofia é uma gnoseologia ou teoria do conhecimento. Do estudo do ser passamos ao estudo do conhecer. 3. Jean-Paul Sartre, escritor ¢ filsofo franeés (1905-1980) nascido em Paris, principal figura do existencialismo francés, filiado a Heidegger, por um lado, distanciando-se do mestre, por outro, autor de obras de filosofia, de teatro e de literatura, contos € novelas. 4, David Hume (1711-1776), fitésofo ¢ historiador inglés, nascido em Edimburgo, na Escdcia, € 0 criador da filosofia fenomenista, tornando-se famoso pela repercussdo de seu livro Ensaio sobre o entendimento humano, além do Tratado sobre a natureza huma- na (1739), Ensaios morais e politicos (1741), Didlogos sobre a religido natural (1779). Hume aprofunda os estudos de Locke ¢ Berkeley sobre a origem, o tipo e a validez das represen- tagdes, opondo-se abertamente ao racionalismo do século anterior, erigindo-se, pois, em empirista, mas empirista “sui generis”, que ndo despreza, mas que compreende a andlise racional das nogdes da experiéncia. 5. John Locke (1632-1704), filésofo sensualista inglés, nasceu nas proximidades de Bris- tol. A obra maxima de Locke é 0 Ensaio sobre o entendimento humano (1690), sendo consideradas de importancia secundaria os Pensamentos sobre a educacdo (1963), as Cartas sobre a tolerdncia (1689), 0 Tratado do governo civil e 0 Cristianismo racional. Psicdlogo do empisismo, apresenta-se como o protétipo do investigador sensualista, Ele desenvolve em suas obras idéias sobre a psicologia do conhecimento, sustentando que a experiéncia é a fonte tinica de nossas idéias, 6. Georg Withelm Friedrich Hegel, filésofo alemao (1770-1831), cuja filosofia defende 0 idealismo absoluto que identifica a realidade com a razao (“*todo real é raciona!”), com- preendida esta através do desenvolvimento histérico da conscigneia, do que resultou a criagdo do método dialético, (As notas sobre 0s filésofos acima foram extraidas do livro Novissima Historia da Filoso- fia de José Cretella Junior.) Wim _ “ABiblia se Contradiz, Ela E Apenas Uma Historia de Fadas.” Os cristdos, a fim de apoiar sua afirmacao da verdade revelada, apelam para um livro escrito ha centenas de anos. Este livro — a Biblia — tem sido objeto de muito estudo e criticas, 0 que veio tornar a sua confiabilidade bastante suspeita. Se a Biblia fosse universalmente con- siderada como uma fonte autorizada de verdade religiosa, muitas das questdes tratadas nesta obra seriam facilmente solucionadas. Mas a au- toridade e confiabilidade da Biblia acham-se presentemente em diivida. Fazer uma defesa abrangente das Escrituras é algo que esta muito além do escopo deste livro, visto que a mesma envolveria um grande numero de assuntos complexos, exigindo assim um tratamento em se- parado. Intmeras obras nesse sentido foram publicadas em anos recentes. Todavia, varias questées comuns sobre a integridade das Escritu- ras serao tratadas brevemente aqui. A Biblia Contém Muitos Mitos? Uma acusacao freqiiente por parte dos criticos é de a Biblia ser um livro de mitos. Em vista de estes ndo terem qualquer correspondéncia na verdade histérica, sao considerados imiteis como fontes veridicas. Razéo Para Crer trés razdes servem com és raz6 v 0 uma base substanci: feeoetee a literatura biblica en idéia de milagre nao é sin vistas ea cemilagre nao ¢€ simplesmente uma questo de estilo litera- feeeeag en aoe importantes de historia e filosofia. Caso omi ¢)a rejeitado como um mito em vista de 0 critico supor que mila. Aon desprezados como Mitos. admiti; sa 5 tae aerate que ha Possibilidade de ocorrerem milagres, isso nao earn a Hat . ene quanto aos mesmos seja valida Uina coisa condicées de ocorrer; out: i + ce ; Outra muito diferente é afir- que realmente aconteceram. Ao tratarmos da questdo de aaa eer penne coma verdade como coisa sagrada. Pedro, Por exem- re — aunt 7 Porque nao vos demos a conhecer 0 poder ea vinda io fae bari seguindo fdbulas engenhosamente inven. das, m ‘smos fomos testi jesta- der Genel rie femunhas oculares da sua Majesta- O ae fato de haver descrigdes Paralelas de eventos antigos na Biblia “A Biblia Se Contradiz. Ela E Apenas Uma Historia de Fadas.” 17 ena literatura mitologica da antigiiidade, nao é justificativa para refu- tar os escritores:biblicos com base na falsidade por associacao. Se su- Ppusermos, por exemplo, que houve uma catastrofe natural como o di- hivio no mundo antigo, no deveria surpreender-nos que esse aconteci- mento se reflita nos escritos de outros povos antigos. O cristao aceita bem um estudo comparativo detalhado entre o relato biblico do dilivio e aquele encontrado, por exemplo, no Epico de Gilgamés.! O fato de a narrativa biblica jA ter passado por um processo de desmitologizacao parece dispensar explicagdes. A acusacao de que 0 Novo Testamento cerca a pessoa de Cristo de mitologia é freqiientemente inferida através de semelhancas com deu- ses que morrem e se levantam na mitologia grega, tais como os constan- tes da obra ‘‘Metamorfose“‘ de Ovidio (‘‘Metamorphoses’’). Todavia, num exame comparativo de qualquer objeto ou acontecimento a ser ana- lisado, 0 método cientifico exige que notemos nao sé as semelhancas mas também as diferencas. As criaturas miticas, meio homem meio ani- mal, por exemplo, acham-se notavelmente ausentes nas Escrituras. His- térias extravagantes sobre a criacdo do universo também nao sao en- contradas nelas. Em lugar nenhum, outrossim, o mundo é€ descrito co- mo sendo uma parte acesséria de um deus; nem vemos contidas nelas nogées sobre o aparecimento do mundo como resultado de atos sexuais de procriagado entre os deuses. Embora Jesus tivesse um nascimento vir- gem, Ele nao ressurge da cabeca de Zeus. O ponto central da diferenga entre a mitologia grega e a literatura biblica é uma perspectiva radicalmente diversa da relevancia da hist6- ria. No mundo grego nao existe uma tentativa auténtica de situar o mi- to dentro da estrutura historica. De fato, a idéia de os deuses se encar- narem realmente no 4mbito do espaco e do tempo é absolutamente re- pulsiva a mente grega. Por outro lado, tudo o que é nao-histérico ou anti-histérico fica relegado ao nivel de falsidade pelo hebreu. Esta vi- sdo radicalmente oposta da histdéria é essencial para compreender a an- titese greco-judaica com respeito a questao do mito. A Biblia Esta em Conflito com a Ciéncia? Os conflitos entre a religido e a ciéncia devidos a revolugao cienti- fica ¢ tecnolégica talvez tenham sido o principal fator para a perda de credibilidade das Escrituras. Quase todos nés estudamos na escola a res- peito da condenacdo de Galileu. Esse astr6nomo e fisico italiano foi con- denado por ensinar que o Sol era o centro de nosso sistema solar (helio- céntrico), contrariando a nogao aceita de que a Terra era 0 centro do mesmo (sistema geocéntrico). Os bispos da igreja nos dias de Galileu recusaram-se a olhar em seu telescépio e examinar a evidéncia de que a Terra nado é na verdade o centro de nosso sistema solar. A igreja sente ainda 0 impacto constrangedor desse episddio. 18 Razdo Para Crer Alguns afirmam que a Biblia ensina uma visdo da realidade confli- tante com os resultados obtidos pela pesquisa cientifica moderna. Ou- tros alegam que ela transmite uma nogdo primitiva, pré-cientifica do universo que nao pode mais ser aceita pelo homem contemporaneo. A Biblia descreve o universo como tendo ‘“‘trés pavimentos”’: o céu em cima, a terra no meio, ¢ o inferno debaixo desta. Ela descreve um mun- do de deménios ¢ anjos considerado em conflito com as teorias moder- nas da fisica e biologia. Como 0 crist&o responde a declaragées desse tipo? Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que a igreja cometeu de fato erros graves ao extrair inferéncias cientificas das Escrituras, sem que houvesse justi- ficagdo para as mesmas. A Biblia nao ensina em ponto algum quea Terra seja o centro do universo. Ela descreve a natureza de uma perspectiva fenomenoldgica. Isto é, 0 mundo da natureza € descrito como aparece a olho nu. O Sol é descrito como se movendo através dos céus. A Biblia fala de alvoradas e ocasos e na linguagem popular os cientistas moder- nos continuam se expressando desse modo. Basta observar as previsdes diarias do tempo para chegar a essa conclusdo. O boletim meteoroldgi- co €apresentado em linguagem técnica e cientffica, falando de sistemas de alta presso, pressdo atmosférica, probabilidades de precipitacao, etc. Todavia, no final do boletim é-nos dito que o Sol nasceré numa determinada hora e se pord em outra. Nao telefonamos a estacdo de radio e exigimos imperiosamente que tais nocées antiquadas de geocen- tricidade sejam omitidas da previsdo do tempo. Nao acusamos 0s cien- tistas de nao estarem sendo cientificos quando descrevem as coisas de modo fenomenoldgico. Os escritores biblicos também nao merecem tal acusac¢ao. A Biblia fala evidentemente de um mundo demoniaco, mas ela nao ensina que as doengas e outras enfermidades misteriosas sejam causa- das por atividades demoniacas. As Escrituras reconhecem e endossam a pratica da medicina. Eu poderia acrescentar que a nogiio da existén- cia de um mundo demoniaco no entra em conflito com qualquer lei cientifica natural conhecida. A Biblia nao é um manual cientifico. Elanao pretende instruir-nos a respeito de matematica, fisica ou quimica, Existem, no entanto, oca- sides em que surgem sérios conflitos entre teorias inferidas de ensinos cientificos e biblicos. Por exemplo, se um cientista concluir que um aci- dente césmico deu origem ao homem, sua colocacao contraria entéo frontalmente os ensinos das Escrituras. Mas a origem do homem ja- mais poderd ser determinada pelo estudo da biologia, pois trata-se de uma questio de histéria. O bidlogo tem condi¢Ges para descrever como as coisas poderiam ter acontecido, contudo, nunca poder dizer-nos co- mo elas realmente ocorreram. “A Biblia Se Contradiz. Ela E Apenas Uma Historia de Fadas.”” 19 A Biblia Esta Cheia de Contradigées? As pessoas aceitam sem vacilar a acusacdo de que a Biblia contém inumeras contradigdes. Todavia, esse ataque ¢é completamente inexato. Se ele é assim injusto, por que o ouvimos repetido com tamanha fre- qiiéncia? Em separado do problema do preconceito, existem outras ra- z6es para a divulgacao desta idéia errada. O que percebemos nao é ape- nas um problema de ignor4ncia quanto ao que a Biblia diz; mas, talvez, mais ainda, um problema de ignorAncia das leis da légica. A palavra “‘contradigao”’ é empregada levianamente em relacdo ao contetido bi- blico. Nao queremos pér em duvida a existéncia de divergéncias entre os relatos biblicos, nem a idéia de que os escritores biblicos descrevem as mesmas coisas de perspectivas diferentes; mas, sim, de haver contra- dicdo entre essas diversas narrativas. Seria um exagero afirmar que todas as discrep4ncias no texto bi- blico foram resolvidas com facilidade e satisfatoriamente. Algumas di- vergéncias sérias nado puderam ser completamente solucionadas a con- tento. Mas tais problemas sao poucos. Afirmar que a Biblia esta cheia de contradigdes é um exagero radical e reflete desconhecimento da lei da contradig&o. Por exemplo, os criticos tém alegado repetidamente que os escritores dos evangelhos contradizem uns aos outros com respeito ao numero de anjos presentes no timulo de Jesus. Um escritor mencio- na um anjo e o outro dois anjos. Todavia, o que menciona um anjo nao diz que havia sé um anjo. Ele apenas fala de um anjo. Se, porém, havia de fato dois anjos, é matematicamente certo de que também ha- via um anjo. N&o existe contradicdo nisso. Agora, se um escritor afir- masse que sé havia um anjo € o outro que havia dois, ao mesmo tempo eno mesmo relacionamento, terf{amos entao uma contradi¢ao de boa fé. O problema do uso superficial do termo ‘‘contradi¢ao”’ destacou- se para mim numa conversa que tive com um seminarista. Ele repetiu aacusacdo: ‘‘A Biblia esta cheia de contradigées’’. Eu lhe respondi: “A Biblia é um livro grande. Se estiver cheio de contradi¢des vocé nao tera problema em encontrar 50 violagdes claras da lei da contradicZo nas préximas 24 horas. Por que nao vai para casa e faz uma lista de 50 con- tradigdes para discuti-las comigo amanha a mesma hora?’’ Ele aceitou o desafio. No dia seguinte voltou com um ar cansado e uma lista de 30 con- tradicdes, admitindo que passara trabalhando grande parte da noite e s6 conseguira aquelas 30. Apresentou-me porém uma lista das contra- digdes mais gritantes que péde encontrar. (Ele fez uso de livros criticos que mencionavam tais contradigdes.) Fizemos uma revisdo da lista, um item de cada vez, aplicando o teste da légica formal a cada uma das supostas contradigdes. Fizemos uso de silogismos, das leis da inferén- cin imediata e até mesmo dos diagramas de Venn para descobrir qual- quer inconsisténcia légica e contradi¢des. Em cada um dos casos pro-

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