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© ESPIRITO DO PROTESTANTISMO E A_ETICA DA REPRESSAOQ por Rubem A, Alves 1977 Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas- Depto. de Filosofia UNICAMP BIBLIOTECA CENTRAL "Falo de consiaténcia em apenas um sentido, Limitado eo correspondéncia entre comportamento e pensamento, harnonia intima entre princfpios gerais e a sua aplica gio. Portanto, considero como consistente aimplesmente um honem que, possuindo un certo nimero de conceitos gerais ¢ sbsolutos, esforga-se honestamente em tudo o que faz e em todas as suas opinises sobre o que deve ser feito, para manter-se na maior concordancia possi- vel com aqueles conceitos". "Por que deveria quelquer pessoa, inflexivelmente con vencida da verdade exclusiva dos seus conceitos relati, vos a qualquer e a todas as questoes, estar pronta a tolerar idéias opestas? Que bem pode ela esperar de uma situagio em que cada um 6 livre para expressar opinides que, segundo o seu julgamento, séo petentemen te falsas © portanto prejudicieis A sociedade? Por que direito deveria ela se abster de usar quaisquer meios para atingir o alvo que ea julga correto? Ex outras palavras: consistéveia teral equivale, na pritica, ao fanatiemo, enquanto que a inconsisténcia € a fonte da tolerancia". ",.. temos de notar que a humanidade tem sobrevivido somente gragas @ inconsisténcia. ...a raga des pessoas inconsistentes continua a ser usa das maiores fontes da esperanga de que a espécie humana conseguira, de al guma forma, sobroviver". Leszek Kolakowski : Contetide Una Mots Freliminar.. Prefacio: A Intengio Moral do Discurso Cientifico.. Introdugdo: Frotestantiemo da Reta Doutrina: Um Tipo Ideal.. capftulo I: 0 Pretestantismo:Medieval ou Moderno?.. Capitulo II: A Convers&o so Protestantismo-«.ssseey Como 0 Protestantismo ConstrSi + Co = Capitulo IT: nhece @ Realidade Capitulo IV: © Mundo que os Protestantesa Habita: "Os Crentes Sao Diferentes" - A fitica capitulo V: Protestantesss.. Capftulo Vi:"Converta-se o Individuo e a Sociedade se Transformaré" - A Etica Social Pro~ testante Capitulo VII: Os Inimigos do Protectantismo. Capitulo VIII: Verdade e Rogmatismo, Notassecne Bibliografiasssessess 18 ho 92 156 212 279 313 355 380 Bok As investigagSes a que dei o nome de O Esrfrito do Protestantione es Stica da Revressio foram provocadas pele comportarente rigorasamente conservador de un certo tipo de Pro testantiono brasileirc, O comportariento conservador al se ma- nifesta em dois niveis distintos e complementares. © primeiro deles § definido peios limites da ins- titnigde religiosa. Expressa-se internamente pela resisténcia @ quaisquer tentativas de inovagdo, resisténcia esta que se le~ gitima através da sacralizacio das formas de pensanento ¢ coz portamento herdadas do pessado, e que se torna efetiva pelo es- tabeiccizents de mecanismos institucionais de controle que se encarregam de elininar as formas desviantes de pensanento e com portamento. © segundo nfvel do comportamente conservador jf nfo & mais interno a instituigao, Ten a ver com a relag&o entre a instituigho e seus fiéis, de um lado, ea realidade poiftica de outro. ixpressa-ce pela legitinecSe das coudicSes éc insntes Se poder que sfo assim sacralizadas, © pele auséncia de qual~ quer crftica’ de tipo profético. Este fendmeno se conotitui nun problema basicamon- te por ducs razbes. Ao nivel interno, os flecanisues de controle de ven- secente ede repressiio do corportanento estio en evidento opo= qlio A tradigSe ideoléica eléssicn do Yrotestantismo, com sun Gufase na liberdsde de conseianeia, livre exeme e democracin Ao nivel externo, LA indfeios de que a Protestantis- sto de cou eatnbelecinents no Brasil, se anrecont: forcn renovedora, Wfo pretendia wi simsles ajustenento as condigées politico-sociais dominantes. A organizacglo democr&tica de suas igre jas, seu esforgs educacional 1li- beral, sua vooagie secularizante de separagio entre I- greja e Sstado, sua denfneia das conseauéncias economi- camente retrégradas ¢ politi¢amente totalitérias do do- ninio catélico no Brasil, so evidéncias de que, naque- lé momento, o Protestanticao desejava profundas trans- formagées politicas, sociais e econdmicas no pais, & situagdo da Igreje Catdlica era exatamente a oposta,Te- merosa de rupturas, colocava-se ao lado do tradiciona~ Lismo. Comprometida com o passado, inimiga da modernida~ de, inimiga ‘tandém da secvlarizagZo © do pragnatisme de- mocrAtiso que ninava os fun@amentos de uma orden social sacral, a Igreja Catélica acusou e Protestantismo econo us ma perigosa forga subversiva, 20 ponto de ser denunciado come ciirriice ( talvez inecente, no importa) do Comunismo, pelo entdo Kons, Agnello Rossi. No entento, a partir de neisios da década de 50, quanto surgirar tentatives pera se repensar o P> testantise mo, nos seus aspectes teolégicos, institucionais e sociais, foram deflagrados mecanisnos de controle e repressie que ter~ ninarem por eliminar totalmente as novas tendéncias. 0 dis- curso sobre a Liberdade de consciéncia deu lugar so @iseurso nto heréado do sobre a obediéneia e a conformidade 20 pensan pessado, Tais mecanismos encontraran um paderoso aliado nas transformacbes politico~ideolégicas que se seguiran, de sorte que o reformisne relicioso passou a ser identificado con contestagao politica. Em consequéncia, todas as possibilida~ des de pregagie proféticn foran eliminadas., 0 Protentantisne tem se notabilizade pelo silgncio neste setor e, concoqacn- tomente nfo tem sofrido quaisquer tipos de presséos politicas, fais fendmenos se tornam extremamente intri, quando se faz um estudo comparativo com o quo ocorreu na «2 dik + Igreja Catélica, que seguiu um desenvolvimento inverso, extrema mente surpreendente. Internemente, a estrutura hierfrquica, ver- tical, centralizeda, legitinade pelo dogma da infalibilidade pa~ pal, t#o frequentemente acusada pelo Protestanticre cono respon~ sfvel por sua unidade que, neste caso, é anterpretada como re sultado de mecanisnos de controle extremamente eficientes, per- nitiu, surpreendentemente, o surgimento de una enorme diversida- de de posigées teoldgicas dvergentes © de formas de vida distin- tas, f curioso que uma estrutura deste tipo, aparentemente mono litica, tenha tamanha elasticidede e apresente tal capacidade de acolher o "Livre exane", sem que iste implique cisnas, Por outre lado, externanente, uma igreja que se caracterizod ne passade por sua posigao tradicionalista, conservadora e sacra= Lizadera dos poderes constituides, passou a exibir um compor~ tamente eritico-profético, o que lhe tem custado uma série de problenes polfticos. A andlise que se segue pretende elucidar os elencn~ tos que, ao nivel ideoldr co, contriduen para o conporteuente conservader do tipo de Protestantisno que analisamos, Os rater risis enplriées que analisarios nie nos permitem fazer extrapo~ iagSes para além do tipo em questao, que denoninanos de ?ro- testantisne de Reta Doutrina. Yossas conclusdes, entretanto, pe- dem cervir de hinétese inicial de investigagiio dos outros iretes~ tantionos, porque eles do um conportanentd con- servador. Deixanos ec] sustenso a questSo da relagdo entre ideo- joria e closse social. No porque a consideronos irreloviatey mas porque ela dove ser exqninada nunc fase posterior, do Pretestantisno terlames entio So annliseds a ideolegi porguntart ay Esta ideologin 6 esnecifics de +* 4 classe social ou a encontranos presente ans distintas classes que com: Sexo Protestantisno ef questéo? by0s mov: ntos de contestag%o interna a que nos re~ ferimoc, e que foram eliminados, poden ser caracterizades como un movimento de classe? De que classe? Os dedos de que aisnonos sugerem que tais movimentos nfo surgiren nex de classos rurais, nem do proletariado e nem da classe média, cowo um bleco, mas antes de um grupo intelectual extraido da classe aédia. ce. 5, finalmente, a andjise exigiria dados compara- tives com outros grupos religiosos, Seria interessante investi- gar que classes sociais estfo ligadas, respectivanente, as ten- dancias tradicionalicta e profética da Igreja Catélica. Podem tais tendéncias ser explicadas como fendmenos de clatce? Se nfo, que outros fatores deven ser invocedes como explicstivos? 0 caminho longo e esperanes do leitor a mesma pa- cignoia que tivenos de ter. © Autor PREFACLO A INTENGKO MORAL DO DISCURSO CIENTIFICO "Pilosofia... @ uma luta contra 2 feiti ge que certas formas de expresso exer cem sobre nds." Wittgenstein "A critica da religiao destroi as ilu- sdes do homen a fim de leva-lo a pen- sar, agir e moldar a sua realidade co~ mo um homem que perdeu as ilusces e re cuperou a razao. A critica arrancou a flores imagindrias da corrente, nao pa ta que o homem suporte a corrente sem fantasias e consolo, mas para que ele se liberte da corrente e colha a flor viva.” Marx Os imprevistos de minha biografia fizeram com que eu ne interessasse profundamente pelo Protestantismo.Interesse am bivalente, caracterizado por uma mistura de S¢io e amor. Esta @ uma confissao inicial que pede ser usada para impugnar as conclusdes que apresento neste trabalho. Quem esta emocionalmente envolvido com o seu objeto, ufirma-se, nao pode ter a serenidade, a imparcialidade e a objetividade que carac~ tetizan a cigncia. 83 pode eseréver com objetividade sobre Protestantismo quem nunca 0 amou e nunca o odiou. Conclusdo muito estranha. Levada até as suas iltimas consequéncias, ela implicaria que s6 podemos ser objetivos fren te aquilo que,para nds, & destituido de interesse, Se sou apai xonado por flores, tal paixao me impede de conhecé-las cienti- flicamente. Ser3 melhor dedicar-me is pedras. Se detesto & po- luigdo, de forna idéntica, os resultados do meu trabalho serao prejudicados por minhas condigaes emotivas, Sera melhor que me dedique & Arqueologia. No creio que uma cigncia sem emogo seja possivel. £ a relagao afetiva para com um objeto, que me atrai ov ameaga, que cria as condicgoes para a concentragdo de minha atengao. 0 objeto que provocou meu interesse sé turna no ponto focal de meus olhos e inteligéncia, enquanto que o resto do mundo passa a ter importancia secundaria. Foi s enogao que fez com que objeto se constituisse em meio 4 wultiplicidade indefinida de objetos possiveis, como o objeto do meu conhecimento. Concorde com Gunnar Myrdal: "uma ciéncia social 'de~ sinteressada' nunca existiu, e por razoes légicas, nao pode nunca existir."1$ uma ilus’o pensar-se que o conhecimento cien tifico, por oposigao ao conhecimento do senso comum, & objeti~ vo, enquanto que este ditimo @ distorcido por emogdes. “Os so~ cidlogos", observa Alvin Gouldner, "devem abandonar a pressupo sigdo humana, mas elitista, de que os outros eréem movidos por necessidades, enquanto que eles eréem em decorréncia dos dita- mes da légic: 2 da razdo!*"Quer o queiramos, quer nado, as valo. Fagoes estao presentes tanto no pensamento cientifico quanto no senso comum. Se, “por séculos, a tradigao da ciéncia social tem sido a de esconder as valoragées que determinam a aborda-— gen cientSfica", @ necessario agora reconhecer que, “num nivel elementar, o mecanisno da pesquisa 'interessada' nao se distin gue daquele que opera no pensamento popular.”* (Que nos resta fazer? "A Gnica forma pela qual podemos nos esforgar ‘pela ‘objetividade' na anilise tedrica", diz-nos ainda Myrdal, "é pelp proczsso de expor as valoracées 4 luz, tornando-as consci entes, especificas e explicitas, e permitindo assim que elas determinem a investigagio tedrica.” £ 0 que desejo fazer. Parto de uma decisac, que pode ser enunciada de for- ma muito simples: & necessario que o falar sobre o fato social se transforme, ele mesmo, em fato social. Sera esta uma inten Go por demais pretenciosa? Nao penso assim, Aceito, como meu programa, aquele que se encontra implicito em nosso falar coti diano. Falamos movidos por uma esperanga: a esperanga de que o falar, de alguma forma, incida de forma eficaz sobre a situa~ ga0, de sorte que ela se modifique. Nada garante que minha in~ tengdo seja bem sucedida. 0 seu possivel fracasso, entretanto, nado a anula como intengao. Nao desejo apenas falar sobre un certo fato social. Quero que o meu falar seja inteligivel aque les que participan da situagdo que investige, ou seja, aqueles Sobre quem falo. Berger e Luckmann observam que o mundo humano % sustentado pelo ténue fic da conversagao que o articula. De~ sejo tornar-ne um interlocutor nesta conversagao, para que ¢s- te mundo seja alterado. } \ Rejeito um falar desinteresssco.Na verdade nao creio "J... nem a ciéneia e nem nenhun dos que ele seja possivel. - \ seus ramos particulares pode ter a pretengio de ser 'auorai! ou tapolitico’. ) A pesquisa & sempre, e por uma necessida de légica, baseada ex valoragdes morais e politicas® Toda teo ria, toda pesquisa, esconde uma intengao pritica. Klas desejan fazer algo com o real. No entanto, o pensar e o falar desinteressados cliega ram a ser tidos como o ideal da linguagem cientifica. Como se ~ : : ih nao lhe importasse o futuro do objeto sobre que ela fala/E con tra este tipo de cientista que Nietzsche dirige um dos © seus mais ferozes ataques. } "Assim diz, para si mesme, o vosso espirito mentitoso: ‘Este deveria ser o mais alto ideal para a winha men- te, olhar para a vida sem desejo, e nao como um cao, com a lingua de fora... Ser feliz simplesmente em contemplar, com uma vontade que morreu, ...0 corpo todo frio e. reduzido a = cin~ zas... Mas isto @ 0 que a percepgao imaculada de to - das as coisas significa para mim: que eu nada desejo 0 para ficar prostrado A sua a7 delas, exceto a permis frente, como um espelho de cem olhos, E Nietzsche, indicando de sua perspectiva, as impli cagoes de tal atitude: “Mas esta serZ a vossa maldicado, vés, que sois imacula dos, vis, percebedores puros; vos nunca dareis @ luz, mesmo que estejais gordos ¢ gravidos, no horizonte."® © falar desinteressado, ¢ falar sobre, que nao sedi rige ao objeto, falar sobre o objeto, mas dirigido a outros,po de mu to bem parecer um ato de nobreza, £ necessirio nao inter ferir na vida. £ necessario que o neu falar ndo se introduza, como um invasor, no ténue fico da conversagao ‘que sustenta | 0 mundo que investigo. Nao seria necessario, entretanto, que tal. intengdo fosse submetida 4 critica? Podemos pressupor que, porque os re suitados de minha investigagao s40 articulados por meio de con ceitos, categorias e um estilo incompreensiveis Aqueles que es tudamos, - podemos pressupor que, a0 assim proceder, 0 objeto investigado permanecera virgem, intocado? . j Todo labor cientifico cria um conhecimento. Pergunta mos: para quen tal conhecinento foi criado? Posso tentar prote | ger aqueles que investigo, vestindo o meu conhecimento com pa~ 4 lavras, categorias ¢ estilo que lhes so inacessiveis. Ao as~ sim fazer, néo os violento diretamente com o meu conhecimento~ Entretanto, temos de levar em consideragao o reverso da medaq Ilha: o conhecimento assim criado foi oferecido a outros, que nao os participantes da situagao. E isto apresenta sempre o pe rigo que o conhecimente sobre eles, funcione praticamente co- mo conhecimento contra eles. Gonheeimento & poder. £ necessrio saber para quen tal poder esta sendo transferido. Que ocorre quando o conhecimento produzido pelo la bor cientifico nao se articula com a prépria linguagem do gru- po estudado? Que ccorre quaudo o cientista nao se terna om in- terlocutor dentro do ténue fio da conversagao que sustente mundo? Que ocorre quando o conhecimento cientifico @ dito de forma a nado poder ser apropriado por aqueles que se constitui- ram no objeto da investigag3o? Vejamos 0 que ocorre. un primeiro lugar, o cientista usa os homens como ma tZria prima para a sua criagdo teSrica, para o seu saber. egundo: 0 conhecinento criado assume forma objetiva como um dizer sobre o objeto, e que aparece sob a forma de unm artigo, um livro, uma tese. 0 objeto @ deixado na sua condicgao de matéria bruta. Em terceiro lugar: temos de nos perguntar: para quem @ tal conhecimento produzido? Quais sao aqueles que tém as con digdes de dele se apropriar? Obviamente @ produzido para | al— guém, mas nao para os participantes na situacgao estudada. Quem @ este alguém? As elites, que dominan os conceitos, as catego- rias e 0 estilo com os quais o objeto investigado foi tedrica~ mente construido. 0 conhecimento assin obtido, coneluimos, @ entregue nao aos homens sobre os quais ele fala, mas a outros homens. Cono se o cientista dissesse ao seu objeto: "Eu te es~ tudo. Mas o meu conhecimento a teu respeito, eu o ocultarei de ti, através do meu discurso." Quarto: se conhecimento € poder, concluimos que aque les que tn as condigces de apropriagdo passam a ter um conhe- cimento de, e portanto poder sobre os homens estudados, que eles mesmos nao tém. Pergunto-me: nestas condigdes, o conhecimento cienti fico nao pode assumir a forma de poder contra os houens estuda dos? £ necessario que o conhecinento produzido seja uma ferramenta precisa. Mas isto nio basta. Ao lado da preciséo, a ferramenta deve ser adaptada ao uso. £ indtil eriar bindculos e microscépios para cegos. Sua precisao de nada vale. Ao cons— 1 ! truir um bindculo ou um microscdpio j4 fiz uma decisdo: estas ferrsnentas sé poderay sex usadas por pessoas que podea ver;os conceitos que empreganos, as categorias e 0 estilo que usanos, de forma andloga, funcionam de forme determinista: eles sele~ cionam previamente aqueles que poderdo entendé-las e, portanto, usa-las. E, ao fazer isto, eliminan aqueles que nao poderao usa-las. Compreende-se que a obra cientifica seja escrita pa~ ra a comunidade cientifica. Isto se justifica especialmente no eireulo das cidncias da natureze: alf a linguagem nfo @ us/ins trumento de aglo direta sobre o real. Experimentos nao sao le~ vados a cabo por meio de palavras magicas. As palavras nao mo~ digicam 0 comportamento de atomos e células. Na soctedade, entretanto, as coisas sao diterbntes.a Linguagem contribui para que o mundo social seja o que ble & Como Simmel observa, “a sociedade @ ‘minha representacao' - a: 0 dependente da minha atividede consciente - num sentido aui to diferente daquele em que o mundo externo o @."°Meu pensanen to sobre a natureza nao altera a natureza, Mas o meu pensacen- to sobre a sociedade altera a sociedade. Por isto a linguagen, ela mesma, @ uma ferramenta para interferéncia direta no mundo social. Uma linguagem cientifica que nao se articula com a lin guagem falada no cotidiano, portante, corre o risco Ge ser se~ melhante a uma técnica de laboratério que nao tem meios de in- teragir com o objeto que est& sendo investigado. £ ainda Gunnar Myrdal que chama a nossa atengao para © fato de que, "em décadas recentes, a tend@ncie dos cientis~ tas sociais tem sido a de se fecharem por meio de uma termino- logia desnecessarianente elaborada ¢ estranha, frequentenente a ponto de prejudicar a sua habilidade de se entenderen ‘uns aos outros,e talvez, ccasionaluente, wesuo a habilidade de/ se entenderen a si nesmos. por que? ! Kotem: se os cientistas fizcssem 2 opgdo de escrever e falar para aqueles que eles estudam, sua linguagem teria de ser compreendida por estes, ou seja, fora dos circulos ecadé cos. Inversamente, se a conunidade cientifica @ 0 “outro signi ficativo” a quem eles se dirigem, dificilmente os homens co- muns 09 entenderdo. Mas, por que tal opgao? Ha razdes de natureza cientifica. A linguagem comun @ imprecisa, falta-Ihe vigor, faltan-lhe as categorias necessa° rias 4 conpreensao do objeto, Entretanto, Exequentenentel esta opgao se da por razoes para-cientificas, quase rituais..A ini- ciagao & gnosis cient{fica tende a ser verificada e test ada pe la capacidade de se articular o conhecimento em termos de uma linguagem esotérica, monopolizada pela comunidade cientifica. Por isto, a simplicidade passa frequentenente por simplismo, e a compreensibilidade por superficialidade. Poderiamos dizer que os ciéntistas estao falando ao Povo? Deixo a pergunta sem uma resposta. Creio que ha uma questao moral que o cientista so- cial deve responder: "Quais sao os meus interlocutores? A quem me dirijo? Para quem produzo conhecinento? Recordo as palavras de Max Weber: “Assim, se somos competentes em nossa tarefa (...) po- demos forcar o individuo, ou pelo menos podemos ajuda le a prestar contas, para si mesmo, do sentido @itino’ de_sua prépria conduta." Quando conseguimos fazer isto, estamos "a servigo.de forgas 'morais'." Cumprimos "o dever de produzir uma auto-cla~ . _ i 1 j rificagde eum senso de responsabilidade."? i Desejo coastruir um discurso sobre o Protestantisno que seja inteligfvel aos protestantes. Lsforgo-me, na medida do possivel, para iluminar o Protestantisno, por meio de cate gorias que nao lhe sao estranhas, Nao desejo criar uma lingua- gem paralela. Sigo, de certa forma, uma sugestao de Wittgens~ tein: "E errado dizer que na filosofia nos consideramos uma linguagem ideal, em oposigao 4 linguagen ordinaria. f Tal procedinento poderia dar a impressao de que persa mos ser possivel melhorar a linguagem ordinari pre que inventamos 'Linguagens ideais', nao ~ para substituir a linguagem ordinaria; mas apenas. remover alguns problemas causados, na mente de alguém, | que 4 pensa haver se apropriado do uso exato de uma palavra 12 conun. Tentei colocar-me na interioridade da linguagem pro- testante. Ela contém muitas implicacSes que sad obscurecidas e mesmo negadas pela sua articulagao consciente. Estou em busca dos “acordos silenciosos"!3 a que o mesmo Wittgenstein se refe re, acordos que se encontram na linguagem, mas que 830 por ela escondidos, km outro lugar Wittgenstein define a tarefa da filo- sofia como “uma luta contra o feitigo que formas de expressa0 exercea sobre nés."'4 4 idgia de feitico @ muito sugestiva.que @ estar enfeitigado? £ estar sob o poder de algo estranho, que nos domina sem que o saibamos, qué esta presente sem que o ve- jamos. Pensar a linguagem como uma forma de feitigo @ reconhe- cer que ela nos possui e nos domiga, o que torna = imposs}vel nos apercebermos do sentido Gltimo de nossa conduta. i Lutar contra o feitigo da linguagem? Como entendo es. te programa? ‘ Antes de mais nada, @ necess@rio arrancar, da lingua gem, suas vestimentas sagradas, suas pretengoes de verdadetin guagens sZo construgdes da reslidade. Elas nfo sdo cépias do real. As linguagens expriner nossos palpites acerca do mundo. Lutar contra o feitigo da linguagen, portanto, @ lutar contra suas pretensoes dogmaticas, que ha religiao recebem o nome de ortodoxia. A tarefa da filosofia seria caracterizada por ‘aque la "atitude de vigilancia negativa face a qualquer absolutos!> 4 que Kolakowski se refere, Entendo a tarefa da filosofia como uma luta ¢ontrae absolutos. £ este &@ um dos objetivos da minha investigagao ily minar os absolutos que se aninham no interior da tolerancia,do espirito democratico, do livre exame, que o discurso protestan te enuncia. Tal programa nado pode ser levado a cabo pela constr g30 de uma linguagem paralela a que o honem cufeitigado deve- ri se converter, Uma outra linguagem pretensamente "verdadei: ra" que fosse oferecida em substituigao & que julgamos falsa - que @ que isto significa se nao uma substituigao de Idolos,uma troca de absolutos? Além disto, uma linguagem "cientifica" pa- ralela, linguagem compreensivel apenas aos especialistas, esta ria para a linguagem ‘comum da mesma forma como o latin da li- turgia catélica esta para as representagdes da retiyin idade cotidiana do povo. 0 feiticgo nao & desfeito simplesmente pelo poder “ex opere operato" da "verdade". £ possivel criar uma terra de linguagem critica, uma ilha utépica do saber. enquan~ to esperemos que os homens para ela imigrem. Uma outra possibi lidade, entretanto, @ inserir na prépria linguagem do cotidia~ no a pergunts critica, para problematiza-la no seu prfsrio in- terior, subvertendo as suas certezas, revelando as contradi- gdes que se aninham no seu seio, minando, desta forme, os fun- damentos da sua consisténéia. : Ha, entretanto, uma pergunta que deve ser lLevantada e@ respondida: se faco a opcdo de inserir o meu falar no ténue fio da conversagao daqueles que estudo, como impedir que o meu falar nao seja assimilado e neutralizado pelo seu discurso?Tal procedimento nao me tornara prisioneiro do proprio discurso que minhas intengdes criticas? estudo, abortando, desta form: . A este respeito eu gostaria de citar A.N, Whitehead, num trecho que ilumina o que pretendo realizar. Diz ele: "Tanto na cigncia quanto em légica, voce necessita apenas desenvolver o seu argumento suficientemente, ¢ mais cedo ou mais tarde voce tera de chegar a uma con tradicao, seja internamente, dentro do argumento, se~ ja externamente, em suas referéncias aos fatos. A fi- losofia @ a critica das abstragdes que governam modos especiais de pensanento."16 A tarefa nao @ criar uma nova linguagen, mas forga~ la até as suas Gltimas consequéncias. Quando se faz isso, des~ cobre-se que ela contém sempre contradigdes. No uso ecotidiano da linguagem, entretanto, nao nos apercebemos disto. Estamos tio imersos no seu seio, tao certos da sua verdade, tao fani~ ‘ liarizados com ela, que nao dispomos da distancia critica que nos permite ver o seu carater de construgdo precaria. Como ber ger e Luckmaan observan, "a validez do meu conhecimento da vi~ I da cotidiana @ tomado como certe par mim @ por outros... até } que surge um problema que nao pode ser resolvido segundo jos seus ‘ernos. Wa medida en que nev conhecinento funciona de fox ma satisfatéria, sinto-me inclinado a suspender minhas dividas a seu respeito!?7s tarefa da filesofia @ introduzir a divide onde na somente certezas, @ mostrar a inconsisténcia onde so~ mente a consisténcia @ visivel. "0 que necessita ser feito",ob serva Hegel, "é transceder as formas tais como sdo idealmente apreséntadas e assim tornadas familiares Zs nosses mentes." "A quilo que & ‘conhecido com fanilikridade’ nao @ propriamente co phecido, pela sisples razdo de que & 'faniliar’."1® f Pela andlise do diseurso podenos colocd-lo 3 frente daqueles que estao nele submersos. Assin, eles podem yer-se no seu ato de falar. Desejo desenbaracar, do seu seio, os acox dos silenciosos e inconscientes que o discurso contém, | Desejo a x co cel levar o seu argumento até as suas conclusées. Desejo revelar a a2}2. ™ inconsisténcia que se esconde na consisténcia. 0 que & fami- liar deve se tornar estranko. "A cada forma inadequada de cons, ciencia", diz-nos Findlay ne seu estudo de Hegel, “deve-se dar corda suficiente para que ele se enforque: deve-se permitir que ela se erruine a si mesma em divida, e se desfaga em completo desespero. A sua visio do objeto, que parecia idéntica ao obje to tal como ele @ em si, deve ser mostrada como sendo nada mais que o objeto tal como ele @ para nds..:'!biga-se, de passagem, que este @ um programa que @ valido nao apenas para a conscién cia comum, como também para a consciéncia cientifica. Penso que, assim, estaremos contribuindo, dentro de limites modestos, para levar a cabo a vocagao da ciéncia, tal como Weber a ve ajudando as pessoas a prestarem contas, para si mesnas, do sen tido Gltimo de sua propria conduta. £ Légico que tal programa sé tem sentido se pressupu. i thud pat = 1 sermos que a linguagem contribui para a sustentagao do mundo humano. Se o mundo humano nao & sustentado pela linguagen, ‘se 4 @ lingsagem for compreendida como uma sizples articulagao sim- bolica das relagdes materiais da sociedade, nao existe sentido aigum en se tentar modificar a sociedade pela erftica da lin- guagem. Se a linguagem @ um efeito simbélico de ume causa mate rial, @ ldgico que nao se pode pretender alterar a causa pela modificagao do efeito. Da mesma forma cono nao se pode curar uma enfermidade se simplesmente atacarmos os seus sintomas. Lembro-me da critica que Marx dirigiu aos hegeliafos de esquerda. ; “Era uma vez um sujeito valoroso que teve a idéia fae que os homens se afogavam na agua somente porque éles eram possuidos pela idéia da gravidade. Se eles pudes sen expulsar esta nogdo de suas cabeces, seja ‘pela 13, afirmagao de ser ela uma superstigao, um conceito re~ ligioso, eles seriam imunes de maneira sublime contra qualquer perigo da Zgua. Durante toda a sua vida ele lutou contra a ilusao da gravidade, de cujos efeitos maléficos todas as estatisticas lhe traziam novas evi d@ncias, Este honesto individuo era o tipo dos novos filSsofos revoluciona’rios na Alemanha." E, numa passagem que foi riscada do manuscrito, se en contra a explicagao: "De acordo com o sistema Hegeliano, id@ias, pensamen- tos e conceitos produziram, determinaran a vida real dos homens, o seu mundo material, suas relagoes re~ ais."?9 : Aqui estava a ilusao dos hegelianos de esquerda: pen sar que o mundo @ sustentado pela consciéncia. Se assim fosse, bastaria mudar a consciancia, através da linguagem, para que o mundo fosse transfornaio, Se o problema @ colocado sob esta forma, @ dificil nao concordar com Marx. O problema, entretanto, @ se as leis da sociedade sao id@nticas 4s leis. da natureza - neste caso es pecifico, a lei da gravidade. & evidente que a intengao de Marx @ pol@mica e caricaturesca. Na verdade, @ 9 proprio Marx que reconhece que a teoria & capaz de se apossar dos homens, uma vez que ela de- 2a monstre a sua verdade em relagao a eles."°" Quando isto aconte ce, a Filosofia se transforma em uma"arma espiritual."?? A linguagem ngo pode ser pensada como simples efeito de uma causa, como articulagao simbélica de relagdes materiais. "A linguagem", diz-nos Ricoeur, tanto infra~e-trutura quan- do superestrutura. & preciso renunciar aqui dei_beradamente ao 1d, esqueua da infra e da superestrutura e afrontar um fendmeno ri gorosamente circular, onde os dois termos alternativamente se 23 incluem e se ultrapassan. Nao @ possivel compreender a linguagem como ~ aquilo que sustenta o mundo. Entretante, nao podemos compreender a sua fungdo se ignorarmos que ela contribui para que o mundo se sustente. "A velha sociedade", segundo Alvin Gouldner, "nao @ sustentada mexamente pela forga e violéncia, ou expedientes ¢ prud@ncia. A velha sociedade mantém~se a si mesma através de teorias e ideologias que estabelecem a sua hegemonia sobre as mentes dos homens, os quais... nao as professam falsamente e 24 contra a vontade, was a elas se submetem voluntariamente. Todos os argumentos contrarios, parece-me, caem pelo simples fato de serem argumentos: articulagdes de linguagem. A Gnica posigao intelectualmente consistente com uma recusa de se aceitar que o mundo @ também sustentado pela linguagem, @ 0 siléncio. Todos os que ensinam e escrevem, o fazem sobre ° acordo silencioso de que, av se trabaihar ao nivel da lingua~ gem, esta se contribuindo para a transformagdo do mundo. Criti cando o Systéne de la Nature, de Holbach, Frederico, o Grande, escreveu: “Depois que o autor esgotou todas as evidéncias para mostrar que os homens sao guiados por uma necessida~ de fatalista em todas as suas acoes, ele tinha de chegar 3 conclusdo de que somos uma cepSeie de miqui na, apenas marionetes movidas pela mao de um poder cego. E, nao obstante, ele se entrega a uma paixao contra os sacerdotes, governos e contra todo o siste ma educacional; ele eré, na verdade, que og homens que exercem tais fungdes sao livres, no mesmo momen~ to em que prova que sao escravos. Que i..otice e es- 15. 5 tupidez! Se todas as coisas se movessem por meio de causas necessarias, entao todo o conselho, toda a ins trugao, todas as recompensas e castigos seriam supér— flues e inexplicaveis. Pois seria o mesmo que pregar a um carvalho para persuadi-lo a se transformar numa laranjeira."?> Rejeito, portanto, que nao imperte o que um ou mesmo todos os homens pensan. E que, ao contrario, o que importa é 0 que 2 e o que os homens serao forcados a fazer, por esta reali dade. Escrevo porque creio, # despeito de quaisquer argumentos em contrario, que a linguagem e o pensamento também sustentam o mundo, e que, portanto, pela transformagdo da linguagem e do pensamento algo esta sendo feito para que o mundo se transfor- me, Se assim nao cresse, deixaria de ensinar ¢ de escrever., INTRODUGAO 0 PROTESTANTISMO DA RETA DOUTRINA: UM TIPO IDEAL “yma sociedade nao $ constituida mera~ mente pela massa de individuos que a compée, 0 territério que ocupam, as coisas que usam e os movimentos | que executam, mas acima de tudo esta a id@ia que ela forma de si mesma." Durkheim JB dissemos que o nosso proposito @ levar a cabo uma andlise do Protestantismo, Com isto indicamos uma direcao mas nao definimos um objeto. E isto porque este termo, geral e abrangente, nao se refere a algo claramente delimitado. A his— cBria coloca 3 nossa frente uma pluralidade de Protestantismos E nio vejo uma forma de reduzi-los a um denominador comum, Te~ mos de nos lembrar que este termo se cristalizou na interiori- dade de um discurso polémico. A Igreja Catdlica se valu dele para se referir a todos os movimentos que dela se separaram a partir do século XVI, com 0 propdsito de, com um sé golpe, de~ finf=les como novimentes heréticos. Estes, por sua vez, usavan o mesmo termo num discurso igualmente polémico, a fim de afir- mar a existéncia de uma unidade entre eles,unidade esta,entre~ tanto,que sé se manifestava na situagao de confrontagdo com um inimigo comum,a Igreja Catélica.Retirado do seu uso polémico,e# unidade que o termo Protestantismo sugere se dissolve numa mul tiplicidade de oposigées. AZ estGo as denominagdes protestan — tess As oposigdes entre elas ndo sdo superficiais. Por isto, parece-me que o termo Protestantismo nao pode ser usado como um conceito cientifico, por ndo se referir de forma univoca a oe um objeto determinado que exibe constantes de couportamento. Nao posso, portanto, falar sobre o Protestantismo em geral. E necessario, a fim de se atingir a precisao desejada, elaborar uma classificagao do mesmo em termos de tipos. E aqui parece que a historia vem nos ajudar. Ela ja nos oferece uma tipologia pronta, cristalizada em organizagoes institucionais: as denominagdes. A adocdo de uma tipologia histSrica em muito simplificaria o nosso trabalho. Ela nos permitiria apontar pa~ ra unidades sociais especificas, claramente delimitadas no tem Po, no espago e, Frequentemente, em termos de classes sociais. N3o nos caberia construir os tipos, mas simplesmente recolher e empregar aqueles que a propria histéria colocou & nossa fren te, Tomariamos entao as denominagdes, objetos distintos e defi nidos, como ponto de partida para o nosso trabalho de analise’ e explicagao. Teriamos entao o Luteranismo, o Calvinismo ou Presbiterianismo, o Anglicanismo, o Metodismo, as Igrejas Ba- tistas, o Pentecostalismo, o Congregacionalismo, e assim por diante. Entretanto, quando submetemos a tipologia que a his= tOria eristalizou a uma an@lise socicldgica, cla se revela ina dequada. E isto porque as denominagées que a histdria separou ai an@lise socioldgica reagrupa segundo certos padrées organiza cionsis e burocraticos semelhantes, que sao comuns a varias de las. Foi isto, por exemplo, o que Ernst Troeltsch fez, ao redu zir a multiplicidade de denominagdes a dois tipos basicos:igre jas e seitas,! Devemos exigir de um tipo o mesmo que se exige de ‘uma teo.ia das ciéncias nater, s+ os fendmenos que sao por ele cobertos devem exibir uma unidade de comportamento. Se isco +18. nado ocorre, isto 8, se organizacdes que se afirma pertencer a um mesmo tipo, nao se comportam de forma semelhante, somos le~ vados a concluir que o tipo nao & adequado. Vou dar um exeuplo concreto. A tipologia de Troeltsch pressupde que forma de or, ganizagdo politica e burocratica @ fator determinante no com— portamento do tipo, Igrejas exibem uniformidades comportamen— tais especificas, distintas das uniformidades comportamentais das seitas. Hi, entretanto, certas peculiaridades comportamenz tais que nado podem ser explicadas adequadamente pelo tipo de organizagao do grupo. Veja-se o seguinte exemplo. Durante os Gitimos vinte anos de nossa historia, as varias igrejas,no Bra sil, viram romper-se as suas respectivas unidades ideolégico- teoldgicas, Surgiram, no seu seio, formas novas, distintas e divergentes de se articular a £€: novas teologias, novas manei ras de compreender o mundo, novos‘tipos de auto compreensag.Co mo reagiram as varias igrejas frente a este fendmeno — comum? Unif srmemente? De modo algum. Em algvucs delas o novo espirito nao produziu crises apreciaveis. Nao sentiram que uma nova ar- ticulagio da fé se constituisse num perigo para a identidade da comunidade. As tens¢es nao chegaram a provocar nem o apare- cimento de uma nova inquisicggo e nem o aparecimento de cismas. Manifestaram uma elasticidade apreciavel para manter, dentro de si, posigdes intelectuais divergentes, Em outras igrejas,entre tanto, o aparecimento de uma novia articulagao da f@ teve resul tados catastréficos. Produziu panico. Sentiram-se profundamen~ te ameagadas e agiram de forma vigorosa para restabelecer o do minio do discurso ideolégico-teoldgico tradicional, o que ime plicou na‘instauragao de praticas inquisitoriais, cuja fungao foi a de climinar os discursos divergentes, classificados como +196 heréticos. No primeiro cago, a auto-compreensao das igrejas nio via a uniformidade doutrinal como essencial 3 unidade =e identidade da comunidade. No segundo caso, a unidade intelec~ tual se constitui na marca fundamental da unidade e da identi- dade. Parece-me, portanto, que ao lado de uma tipologia basea~ da em critérios de organizagao, @ necessario pensar uma outra que leve em conta as especificidades de auto-compreensao que encoatramos nas igrejas, Em outras palavras: creio que temos de elucidar o espirito do grupo social em questdo, a sua cons~ ciéncia coletiva. Nao julgo que a conscigncia coletiva possa ser desprezada como fator explicativo, em beneffcio de outros fatores de natureza puramente material. Concordo com Durkheim "yma sociedade nao @ constituida meramente pela massa de indi viduos que 2 compdem, o territério que ecupam, as coisas que usam e of movimentos que executam, mas acima de tudo esta a Zia que ela forma de si mesma."?Mantenho que a idéia que 0 grupo faz de si mesmo @ um dos conceitos fundamentais a serem levados em consideragdo na explicagao do seu comportsuento-Ain da mais, penso que nao pode ela ser reduzida a um mero reflexo (direto ou invertido) de relagdes materiais, que seriam as Gni_ as verdadeiramente determinantes, "A consciéncia coletiva" diz Durkheim, "@ algo mais que um mero epifendmeno de sua base mor foldgica, da mesma forma como a consciéncia individual = algo mais que uma simples floragio do sistema nervoso." A consci@n~ cia religiosa, ele continua, "nao se limita a traduzir numa ou tra linguagem as formas materiais da sociedade e as suas neces sidades, vitais."36 a esta idSia que um grupo forma de si mesmo, a’sua conseiéncia coletiva, que me refiro de forma abreviada pelo uso do conceito espirito. © conceito de gsptrito, entretanto, € mais amplo que 20. a soma dos conteudos da consciencia coletiva, se dermos a esta o sentido preciso de consciéncia. Aquilo de que temos conscién cia @ apenas um resultado parcial de uma atividade estruturan~ te inconsciente, A consciancia coletiva, que pode ser descrita por wétodos de investigagao empirica, somente contém os obje~ tos' de conhecimento reais para o grupo em questao, mas nada sa be dos objetos de conhecimento possiveis. Assim, para se conhe cer o espirito de um grupo, nZo basta fazer um inventario dos conteddos de sua consciéncia num momento dado, mas @ necessa- rio elucidar os princ{pios inconscientes coletivos segundo os quais este grupo constrof a sua realidade. Se, segundo.as su~ gestées da sociologia do conhecimento, a realidade @ sempre construida socialmente,4o meu propésito @ elucidar os princi- pios segundo os quais um certo espfrito protestante constroi a sua realidade. Como prozeder na elucidagaéo do espirito de um grupo? Aceito uma sugestao de Karl Mannheim: ff... a natureza do desejo predominante que determina a sequéncia, ordem e valorizagio das experiancias iso ladas. Esse desejo @ o principio organizador que mol- da até a maneira pela qual experimentamos o tempo. ) A estrutura intima da mentalidade de um = grupo nunca pode ser melhor compreendida do que quando pro~ euramos entender suas concepgoes de tempo 4 luz de de suas esperancas, aspiragoes e propositos. Com base nesses ‘propésitos e esperangas, uma determinada menta lidade nao 86 ordena os acontecimentos vindouros, mas também o passado." > Notem que Mannheim entende a mentalidade de um grupo #21. por um lado, como uma atividade estruturante que constroi: a Tealidade e, por outro, como um desejo que se constitui no fun damento da atividade estruturante. Se desejamos entender o es~ pirito de um grupo, portanto, temos de partir de suas emogoes fundadoras. Estas emogdes sao a matriz emocional a partir da qual o grupo organiza o seu tempo. No texto citado, Mannheimse refere apenas ao fator tempo, Mas a’ realidade que o grupo cons troi sociaimente nao se esgota no tempo. 0 desejo constroi tam bém uma geografia, Ele constitui nao apenas reldgios e calenda rios, mas também mapas e caminhos. E necessario que tanto 0 tempo quanto o espago se tornem significativos. Espace ‘e tempo nao podem ser separados. A realidade @ sempre constituida como uma sintese espacio-temporal. Espago sem tempo colocaria 4 nos sa frente uma realidade congelada e imdvel. Tempo sem espago colocaria 2 nossa frente am movimento vazio, Somente na articu lagao do espaco e v3 tempo @ que o mundo vem a ser constituido, A nossa investigagao, portarto, tratara de descrever o espiri- to do Protestantismo em questo elucidando, por um lado, as suas emogdes fundadoras e, por outro, a estruturacao de mundo que se constroi sobre estas emogdes. De que materiais irei langar mao nesta tarefa? Vou me valer da linguagem, A conscigneia social s& existe pela lin guagem, Emogdes e visdes de mundo que nado podem ser ditas sao emogoes ¢ visdes de ttundo que ainda nao dispdem de condigdes de possibilidade sociais de expressao. Aquilo que nZo @ ou nao pode ser dito pode ser uma realidade individual mas, seguranen te, nao pode ser uma realidade social. E como o que nos inte - ressa @ o espirito de um grupo, ou seja, uma realidade social, valemo-nos da linguagem deste grupo como inst@ncia reveladora do seu espirito.

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