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CONTADOR DE HISTORIAS E OUTROS TEXTOS Walter Benjamin hedra O contador de histérias Consideragées sobre a obra de Nikolai Leskov Embora seu nome soe familiar, 0 60 ndo est mais presente entre nés em Ele é para nés algo jé longinquo, ¢ distante. Apresentar um Leskov" come dor de historias sua eficécia viva, contador nao si distincia que nos separa dele. Se o consideramos com tum certo distanciamento, os tragos grandes e simples que caracterizam o contador de histérias nele ganham relevo. Methor dizendo, aparecem tal como um rosto humano ou ‘um corpo de animal podem aparecer num rochedo par alguém que os examine a uma boa distancia e do ponto de vista adequado. Essa distancia e este ponto de vista sii impostos por uma experiéncia que fazemos quase di ariamente. Ela nos diz que a arte de contar historias se ‘aproxima de seu fim. Torna-se cada vez mais raro encon trarmos pessoas que ainda sabem contar alguma coisa Cada ver mais frequentemente generaliza-se 0 embarago . guém pede uma histéria. £ como ‘quando, num grupo, alguém pede um se tivéssemos sido privados de uma faculdade que nos parecia inaliendvel, e era a mais segura entre todas: a faculdade de trocar experiéncias, ‘Uma causa desse fendmeno é clara: a cotagao da expe riéncia caiu. E parece que continuaré a car infinitamente. Basta olharmos os jornais para constatarmos que ela atin giu um novo nivel, ainda mais baixo, e que no apenas a giv u imagem do mundo exterior mas também a do mundo mo- ral sofreram da noite para o dia alterages que nunca an tes nos teriam parecido possiveis. Com a Guerra Mundi mmecou a tomnar-se manifesto um processo que desde en ‘Gude num prodogto, Desde o final da guerra, nites tntativas foram cae impute slemao. Ao lado das pequensantlogis da Eatora letines em nove volumes da Editors C.H. Bec. [x de w.. tao nao encontrou repouso. Nao repal nos que, quando a guerra acabou, os soldados voltaram mudos dos campos de batalha? Nao mais ricos, mas mais pobres em experi €éncias comunicéveis. O que se difundiu dez anos depois, com a enxurrada de livros sobre a guerra, nio tinha nada a ver com uma experiéncia passada de boca em boca. E nio havia ada de estranho nisso, Pois nunca experién cias foram tao fundamentalmente desmentidas quanto a experiéncia estra gica, pela guerra de trincheira, a expe pela inflagdo, a experiéncia corporal, pela batalha com armamentos pesados e com avides, ea pelos detentores do poder. Uma geracio 4que ainda fora & escola num bonde puxado por cavalos se achava a céu aberto numa paisagem em que nada per- manecera inalterado, a nio ser as muvens, e abaixo delas, num campo de forcas cheio de tensdes e explosdes des rutivas, 0 miniscule, frigil corpo humano, u A experiéncia que se transmite oralmente éa fonte da qual beberam todos os contadores de histérias. E entre os que as escreveram, os melhores sio aqueles cujos escritos menos se afastam da fala dos muitos contadores andni- mos. Entre estes iltimos, além disso, ha dois grupos que se interpenetram de diversas maneiras. A figura do conta- dor s6 adquire sua plena corporeidade se o apresentamos sob os tragos de ambos. “Quem viaja muito, tem sempre muito 0 que contar’, diz a vor do povo, que representa historias como agi le que vem de longe. Mas também é com prazer que ouvimos os casos daquele que ficou na sua terra, ganhando honestamente sua vida, € conhece suas histérias e tradigBes. Se quisermos apre sentar esses dois grupos através de seus representantes: arcaicos, um se encarna no camponés sedentiio ¢ 0 ou tro no marinheiro mercador. De fato,essas duas formas de vida constituiram, de certo modo, sua propria linha mm de contadores de histrias. Cada uma delas manteve jgumas de suas caracteristicas durante séculos, Assim, entre os contadores alemaes modernos, Hebel e Gotthelf pertencem a primeira enquanto Sealsfield e Gersticker vém da segunda.” No entanto, tas linhagens, como foi dito, correspondem apenas a tipos fundamentais. A real extensio do reino das narrativas, em toda sua dimensio historica, nao é pensével se nio levamos em conta a in netracio desses dois tipos arcaicos. Uma tal interpenetragao foi particularmente favorecida pelas c poragdes de artesios da Idade Média. O mestre sedenté rio e o aprendiz itinerante trabalhavam juntos no mesmo atelig;e cada mestre fora aprendiz itinerante antes de se estabelecer em sua terra ou no estrangeiro. Se campone ses ¢ marinheiros foram os antigos mestres da narrativa, o artesanato foi sua melhor escola. Nele, se associava 0 saber que vem de longe, trazido para casa por aquele que a. Johann Peter Hebe (760-382) iho de camponese, tb c profesvr Pocta de expresio alent e dake, escreveu também smtos em pros, Jeremias Gotthel (797-3854, pseudinimo doe ‘igo de expresso alema Albert Bitzivs Pubo de pastor, Critr sulgo de expresso al também pastor alem de omancista.Procurou descrever o impact da moderizacio na sociedade camponesa. Charles Seals (93 fntriacs natualizado american, Friedrich Gerstacker (836-1872) ‘iajanec novelstaalemio, tomot-aeconhecido por seus livros sobre ‘continent american, [v1] iajow muito, com o saber do passado tal como é confiado, ipreferencialmente, ao sedentirio. Leskov esta em casa no longinquo, seja este espacial fu temporal, Ele pertenceu a Igreja Ortodoxa e foi um ho em de sinceros interessesreligiosos. Mas ele foi também melhore relagSes com o funcionalismo secular no era as posigdes oficiais que obteve no duraram aa produglo, o posto de agente russo de uma empresa in. lesa, ccupado por muito tempo, foi provavelmente o mais Util. Viajou pela Rissia inteira a servigo dessa empresa, e tais viagens formaram tanto sua inteligéncia do mundo {quanto seu conhecimento da situagio russa. Desse modo, teve a possibilidade de entrar em contato com as seitas implantadas no campo, que deixaram tragos em seus con: tos. Nas lendas russas, Leskov' encontrou aliados em sua luta contra a burocracia ortodoxa. Escrevew uma de contos lendarios em cujo centro se apresenta 0 just raramente um asceta, com mais frequéncia um homem simples e ativo, que torna-se um santo da maneira mais natural do mundo, A exaltagio stca nfo € assunto para nal de histrias que, de sun realidad aquele perto do qual etor gota dese refuglar no bem disse Jean Cassou, io tom do relatoe Spey Te 5, Lesko, que nto escondia sus ing Leskov. Por mais que as vezes se entregasse com pra zet a0 maravilhoso, mantinha-o, de preferéncia, mesmo fem questies de piedade, no quadro de uma sélida natu ralidade. Ele via seu modelo no homem acostumado tratar de coisas terrenas sem se prender demasiadamente ‘elas, e adotava, no dominio secular, uma atitude seme thante a essa. Combina com esse seu modo de ser 0 fato de ter comecado a escrever tarde, aos 29 anos. Isso se deu durante suas viagens comerciais. Seu primeiro trabalho publicado se inttulava: Por que em Kiev os livras so t0 taros?, uma longa série de escritos sobre a classe trab Thadora, alcoolismo, 0s médicos da policia e comerciérios desempregados precede seus contos. Ww ( interesse prtico é um traco caracteristico de muitos contadores natos. Mais duiradouro do que em Leskov, po demos reconhecé-lo por exemplo em Gotthelf, que dava conselhos de agronomia aos seus camponeses; também se tncontra em Nodier, que se preocupava com os perigos da ituminagao a gas; e Hebel, que transmitia aos seus leitores pequenas informagées de ciéncia natural na Calxinka de esouros? pertence igualmente a esse grupo. Tudo isso esclarece sobre as caracteristicas da verdadeira narrativa. Ela traz em si, abertamente ou de modo secreto, sua uti lidade. Tal utilidade pode aparecer aqui numa moral, ali ‘numa recomendacio pratica, ou ainda num provérbio ou hnuma regra de vida — em cada um desses ¢as0s, 0 cor tador de historias é um homem que sabe dar conselhos 6. Referéncla&colettnca de contos de Johann Peter Hebel (750 vist) nttladn Caisinha de tesours do arngo renano das familias (Schatchstein des Rheinischen Hausfreundes) (8-7-1 aos seus ouvintes, Mas se hoje em dia “saber aconselhar mega a soar a tiquado 20s ouvidos, iso se d progresiva da comunicablidae da experiencia, Por sso bemos mais (que et ve devearoland), Para poser abt, ¢ precio sua situagio se expresse em palavras:) Cons : ho, entre ecido na matéria da vida vivida, ésabedoria. A arte de contar se aproxima de seu fim pois z dade, a sabedoria, esta se extinguindo. Mas esse p vem de lon na i e. E nada seria mais insensa ada seria mais insensato d que con- inda menos de “decadéncia moderna”, Ao contrario, esse processo & antes um fendmeno ligado as forcas produtivas, seculares e histéricas, que expulsa aos poueos 0 conto do dominio da palavra viva, ao mesmo tempo que confere uma nova beleza ao que esta desaparecendo, sideré-lo como um “sinal de decadéncia" ¢ primeiro indicio de um processo que culmina no declinio da narrativa € 0 a ativa é 0 aparecimento do roma Inicio da época moderna, © que distingue o romance do conto (e da epopeia num sentido estrito) é sua ligagio es com o livro, A difusdo do romance s6 se tornow possivel com a invengio da imprensa. A transmissio oral patriménio da épica, é de natureza diferente daquela que taracteri2a o romance. O que distingue o romance em comparagio com todas as outras formas de prosa — con: tos de fada lendas, e mesmo novelas ~ & que nem prov dda tradigdo oral nem a ela conduz. Isso o distingue em primeiro lugar do conto. O contador de historias tira 0 {que ele conta da sua propria experiéncia ou da que Ihe foi relatada por outros. E ele, por sua vez, o transforma fem experiéncia para aqueles que escutam sua histéria. O romancista isola-se. O lugar de nascimento do romance o individuo em sua solide: aquele que nfo é capaz.de fexpor suas preocupagées mais altas de modo exemplar, & tle mesmo carente de conselhos e ndo sabe dé-los. Escre Ver um romance significa exacerbar o incomensurivel na apresentagio de uma vida humana. De dentro da plen tude da vida, e através da apresentagio de tal plenitude, 0 romance aprofunda a auséncia de conselho dos viventes. © primeiro grande livro desse género, Dom Quixote, en sina como a grandeza de alma, a coragem ea generosidade dde um dos mais nobres herdis ~ o proprio Dom Quixore ~ foram completamente abandonadas pelo bom conse tho e nao contém mais a menor centelha de sabedoria. ‘Quando ao longo dos séculos, aqui e ali, procurow-se incu fir ensinamentos no romance — ¢ talvez da maneira mais consistente n’Os Anos de peregrinagdo de Wilhelm Meis- ter —, tai tentativas sempre acabaram por transformar a propria forma do romance. Por outro lado, romance de formagao nio contraria de modo algum a estrutura fur {Na verso ances, o capitulo termina em “la moindrétncelle detagese" "a menor eentelha de sabedoria". A sequéncia final do ‘tao, que consta no orginal slemfo, fi eliminada pelo autor ter) Jamental do romance. Integrand. ance. Integrando o processo de vida da sociedade no desenvolvimento de uma pessoa, el re pessoa, ele just: realidade. Precisamente fo romance de formagio, 0 6 insuficiente torna-se evento, vw __Devernos pensar a mutagio das formas épicas em rt ‘mos comparaveis aos das transformagies que se ope a superficie terrestre ao longo de milhares de seals. Diflelimentecutras formas de comunlc terval petdeam mas en iar no dominio do arcaico; se apropriou de diversas maneiras do novo conteido, em: bora ndo fosse propriamente condicionado por ele. P bor ; lcionado por ele. Por outro ldo, reconheceros que com o apoge de burgusia dda qual a imprensa constitui um dos mais importantes instrumentos no capitalismo avangado — apareceu uma forma de comunicagio que, embora suas origens sejam muito antigas, nunca antes influenciara a forma épica Agora o faz. E torna-se visfvel que ela se apse a0 conto de modo no menos estranho, mas muito mais ameacador que o romance, além de provocar uma crise 7 1 préprio ro. mane. Essa nova forma de comuni le comunicagio é a informagio. Villemessant, o fundador do Figaro, descreveu a es- séncia da informagio com uma célebre formula: "Para os meus leitores’, dia, “o ineéndio num sétdo do Quartier in & mais importante do que uma revolugdo em Ma Essa expressio mostra de modo claro e sucinto que ‘a informagio sobre os acontecimentos proximos encon- tra hoje audigncia muito maior do que a mensagem que vvem de longe. A mensagem que vinha de pacialmente, de terras estrangeiras, seja temporalmente a tradigao — dispunha de uma autoridade que Ihe forne cia validade mesmo onde nio fora submetida ao controle Mas a informacao reclama verficagio imediata. Em pri- meiro lugar, ela precisa ser “compreensivel em sie para si", Frequentemente nio é mais exata do que relatos dos séculos anteriores. Entretanto, enquanto estes podiam langar mao do maravilhoso, a informagao deve soar plau ‘oespirito do conto, Sea arte de contar tornou-se hoje rara, a difusao da infor sivel Por isso ela ¢ irreconciliive nagao desempenhou um papel decisivo em tal situagio. ‘Cada manhi nos informa acerca das novidades do globo terrestre. E mesmo assim somos pobres em hist rias dignas de nota. A razio € que nenhum fato mais nos atinge sem estar cercado de explicagSes. Em outras pa: lavras: com isso, quase nada mais do que acontece vem a favor do conto, quase tudo se torna informagio. A me~ tade da arte de contar esti em despojar de explicagoes a historia contada. Leskov é mestre nisso (basta pensar em extos como "A fraude” ou “A dguia branca”)? Ele conta 0 cextraordinario, o maravilhoso com a maior exatidao, mas g. Ambos eencontram tradzidos para o portugus, tendo sido sitcosnacletnea inituads A Froude e ours histvas. Tradl le Dense Sales. Si Paul: Editor 4, 2%. Tambim pela Eitora 34 foram publicdos, de Nikolai Lesko o volume de contos Homens interestantseoutashistrias(raducio de Not Olvera Polcarp de Pro Bezrr, 2009) [8-1] encadeamento psicologico dos acontecimentos nio é imposto ao leitor que fica livre para interpretar a coisa omo a e ge uma tende, e com isso 0 que é contado at amplitude que a informagio nao tem, vu Leskov frequentou a escola dos antigos. O primeiro contador de historias grego foi Herédoto. No décimo quarto capitulo do terceiro livro de suas Historias, encon- tra-se um relato que muito nos ensina, £ sobre Psaménit, Quando o rei egipeio Psaménito foi vencido e aprisionado pelo rei da Pérsia Cambises, este decidiu humilhar seu prisioneiro. Ele ordenou que Psaménito fosse levado até a rua na qual passaria 0 corteo triunfal dos persas. E, assim, fez.com que o prisioneiro ainda visse sua filha, reduzida ligdo de serva, indo buscar 4gua no pogo com jarro. Enquanto todos os egipeios bradavam e se amenta- vam com esse espeticulo, s6 Psaménito ficou silencioso « imével, com os olhos baixos; e quando, logo depois, as sistiu seu filho ser conduzido em cortejo para execuglo pablica, permaneceu igualmente imével. Mas ao recomhe- cer na fila dos prisioneiros um de seus antigos servidores, uum homem velho e depauperado, entio bateu na cabeca com os punhos e deu sinais da mais profunda tristeza Essa histéria mostra como 6 o verdadeio conto. A informagio tira seu valor do instante em que é nova. Ela vive apenas desse instante, deve render-se a ele e expli- 1-se nele sem perda de tempo. O conto funciona de ou- tro modo: nio se desgasta. Ele guarda em si mesmo suas o depois ainda é capaz de se Montaigne retornou & histéria do rei cio ¢ se perguntou: “Por que ele se forcas reunidas lo desenvolver. Assin menta apenas © CONTADOR DE HISTORIAS E OUTROS TEXTOS quando vé seu servidor?” Montaigne respondeu: “Como SU cxava pet de steza, a menor sobrecargebastou Ha arebenta odes os digs as dine Montaigne Nias poderlamos também dizer “Ori nose eomove com o denno da realeta pos €o sn proprio destin”. Ou Mind" maior dr fis represaa co vem 8 tona quando shor Herddto nto expla nada Se telat ds mais seco por ise que cosa histria do antigo Elo sinda Seepertacopanto refed depots de mihares de anos love asemathaAquelssementes que, dante manos fear fechaes hermetcamente as chmaras ds pir vo. CE Michel de Montaigne, Esl, Livro, capitulo Pars Gal timard, 1962. (Col Bibliotheque de a Pie) [8-7] 1 Por wota de 1928-1929, Benjamin escrevew um texto cut it tulad "Are de contr histrias (Kt zu erzihln’,em Imagens de Pensament, Denier, 1-1 pp 436-438, que j abordavaa hist ‘ade Poaménitoe explorvaaplrivocidade de so extrema conciso Entre os manuserites do inicio dos anos rata, encontamos também, ota sobre Peaménito confendo diversas interpretagbes propostas seus amigos e conhecidos por seus amid “Interpetago de [Franz] Hessel: rei no se emociona sorte da faa real, ols éa sua propia Tnterpretao de Benjamin: 'a dor se desencadia mais facilmente sob um pretesto menos importante do que sua caus. ma grande tape sobre um pee panel Ou nto la cia ato pretext ‘ prviegn cheque ur tal choque que desencadeia as lgrimas ‘mn Prout depois da morte de sua av querda:o gesto dese abana para abotor as botinas Interpretagfo de Asa (Lacs: Muitas cosas que nos emocionam no teat nos dei indferentes na vida; esse velho € apenas um vu Nao hé nada que imprima mais duradouramente as histérias na meméria do que essa recatada concisio que as afasta da andlise psicol6gica. E quanto mais natural mente 0 contador de histérias renuncia aos detalhes psi col6gicos, mais facilmente sua histéria encontra lugar na meméria do ouvinte, mais perfeitamente ju , € assim mais prazer ele terd um dia, préximo ou longinquo, em reconté-la. Esse processo de assimilagdo, que ocorre em camadas profundas, exige um estado de distensio que se torna cada vez mais raro, Se 0 sono é 0 ponto mais alto da distensio fisica, o tédio cor- responde ao ponto mais alto da distenslo espiritual. © tédio é 0 passaro de sonho que choca o ovo da experién- cia. O menor farfalhar de folhas o afasta. Seus ninhos, as atividades intrinsecamente ligadas ao propria experiénc contram mais lugar nas cidades e estio se tomnando raras também no campo. Co ss0, perde-se o dom de escutar ce desaparece a comunidade dos que escutam. Contar his trias€ sempre a arte de conti-las novamente, arte que se perde quando as historias nfo sio mais conservadas. Ela se perde pois ninguém mais tece nem fia enquanto ouve historias. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente aquilo que escuta se imprime nele. Onde o ritmo do trabalho o toma inteiramente, ele ouve as histérias de tal maneira que o dom de conté-ls lhe vern terpretagao de Montaigne: “Ocorre que estando am disso. leno e chelodetrstena, a menor sobrecarg arebentou as barteias da paca Cbservagio de Martin-Gueillo: ‘Se Psaménitotivesse vivido em nosss dis todo of jorais nos teiam ensnado que ele pr ‘mpregado a seus filhos' (Nouvelle Revue Prana, 3938p, 667 CL (510-3 pon oer espontaneamente. Assim foi tecida a rede na qual estd contido o dom de contar. Assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida ha milhares de anos, em torno das mais antigas formas de artesanato, Pd 0 conto, tal como prosperou longo tempo na esfera do artesanato ~ artesanato camponés, maritimo e depois urbano —, é ele mesmo uma forma artesanal de comunica Numa hist6ria mali- ciosa e petulante, “A pulga de ago", a meio caminho entre a lenda e a farsa, Leskov louva, através dos ourives de Tula, artesanato de sua terra. Sua obs de ago, chega aos olhos de Pedro, o Grande, eo convence re, mas um oficio artesanal’ do a0 lo, indica esse aspecto prima, a pulga de que os russos ndo precisam se envergonhar diante dos ingleses. A imagem espiritual dessa esfera artesanal da qual provém o contador de istérias nunca foi descrta de modo ais significative do que por Paul Valéry. Ao falar de coisas perfeitas na natureza, pérolas imaculadas, vinhos aduros e profundos, de criaturas verdadeiramente com- pletas, ele reconhece nelas “a valiosa obra de uma longa cadeia de causas sucessivas e semelhantes”:” Mas a acu: mulagao de tais causas encontraria seu limite de tempo apenas na perfeigdo. "Outror: continua Paul Valéry, “0 ¥5 Cado por Erich Miller, "Nila Semjonowisch Lesskow Sein Leben und Wien’ in Nikola Lesskow, (CH. Beck, 927, p 3. (Gesammatte Werks, vx) [7] x6. Na variant da verso france: Ie 17. Paul Valéry, “Les broderies de Marie Monnier’, ides srr, sn Eres, tomo x. Eig de Jean Hye. Pris: Gallimard. yop. 1244. (Col Bibliotheque de la Pléiade)(v-1] de der Welt Manche (© CONTADOR DE HISTORIAS £ OUTROS TEXTOS hhomem imitava essa paciéncia da natureza. Iuminuras, marfins inteiramente entalhados & perfeigho, pedras du- ras perfeitamente polidas e distintamente gravadas; lacas ou pinturas obtidas através da sobreposiglo de uma série de camadas finas e transhicidas (..) — todas essas produ- bes de um esforgo tenaz e pleno de autorrentincia estio desaparecendo, ¢ passou o tempo em que o tempo nio contava. O homem de hoje nio cultiva mais o que nio pode ser abreviado".® De fato, conseguiu até abreviar © conto. Vivenciamos o surgimento da short story, que se emancipou da tradigdo oral ¢ no mais permite essa lenta sobreposigdo de camadas finas e transparentes que oferece a melhor imagem da maneira pela qual o conto perfeito vem a luz do dia a partir das camadas acumuladas por suas diferentes versbes. x Valéry conclui suas considerages com a seguinte frase: “Pode-se dizer que 0 enfraquecimento nos espiitos da ideia de eternidade coincide com a aversio crescente por tarefas demoradas”® A ideia de eternidade teve sem ssa ideia se enfraqueceu, isso significa que o rosto da morte também pre na morte sua fonte mais poderosa se modificou. Essa modificagio demonstra ser a mesma que rediziu a comunicabilidade da experiéneia na medida fem que a arte de contar chegava ao fim. 14 Idem, idem. [¥-r] +9, "Foros testemunhas do nascimento da shot stor. Ei bala 0 20. Paul Vary, “Les broderies de Mare Monier, op is 1244 ber Se seguimos o decorrer dos séculos precedentes, per cebemos a que ponto a ideia da morte perde a onipresenga a forea plistica que encontrava na consciéncia coletiva Em suas iltimas etapas, esse processo se acelerou. No decurso do século xrx, a sociedade burguesa, com suas adas, instituigdes econémicas e sociais, piblicas ou pri realizou um feito acess6rio que, inconscientemente talvez seu objetivo principal: dar as pessoas a possbil dade de se esquivar a visio dos moribundos. © ato de morrer, outrora o mais piblico e o mais exemplar da vida individual (lembremo-nos aqui das imagens da Idade Mé dia nas quais a cama do moribundo vira um trono diante do qual se aglomera o povo que entra pelas portas aber- tas de sua casa), subtraiu-se aos poucos da atengao dos Vivos no decorrer da época moderna, Outrora nao havia casa, por vezes nem mesmo quarto, onde ninguém tivesse morrido. (A Idade Média tinha também a intuigdo e cial do sentimento temporal evocado por aquela inscriglo o solar de Ibiza s vivem em espacos depurados de q um rel6g Ttima multis) Hoje em dia os burgues c, rimeiros moradores da eternidade, e, quando che perto do fim, so depositados por seus herdeiros em sanatérios e hospitals. Ora, nfo apenas o conhecimento e fa sabedoria de um ser humano, mas sobretudo sua vida vivida ~ ¢ essa é a matéria da qual as historias sdo feitas assumem uma primeira forma transmissivel no lito do nando. Assim como no interior da pessoa, no mo: mento final de sua vida, uma sequéncia de imagens se s das visdes de si, sob as pie em movimento — const conta, encontrou-se e também se revela de repente, em seus gestos e olhares, 0 inesquecivel que atribui a tudo o que Ihe diz respeito essa autoridade que mesmo o mais miserivel dos moribundos Auais, sem se da nnsigo mesma possui aos olhos dos vivos & sua volta. essa autoridade que esté na origem do que foi contado, xi A morte & a sangio de tudo o que o contador de hist ias pode contar, £ a morte que lhe confere sua autoridade, Em outras palavras: suas hist6rias remetem & historia na sural, Isso se exprime de forma exemplar numa das mais belas passagens do incomparivel Johann Peter Hebel, que se encontra em “Reencontro inesperado”,* conto incluido nA calxa de tesouros do amigo renano das familias. Este relato comeca com o noivado de um jovem operdrio que trabalha nas minas de Falun.” Na véspera do casamento, no fundo de sua galeria subterrnea, a morte dos minei- ros o surpreendeu. Sua noiva permanece fiel depois de sua morte e vive ainda um longo tempo. Um dia, quando ja é uma velhinha de idade avangada, um cadaver 6 tra- ido a luz do fundo da galeria abandonada. Impregnado de vitriolo de ferro, escapou da decomposigio e ela pode reconhecer o seu noivo. Depois desse reencontro, tam bém ela foi chamada pela morte. Quando Hebel, no curso de seu conto, sentiu a necessidade de tornar palpivel a longa série de anos que separa 0 comeco do fim, ele o fez com as seguintes frases: “Entrementes a cidade de Lis boa foi destruida por um terremoto, ¢ a guerra dos sete anos passou, e 0 Imperador Francisco 1 morreu, ea ordem dos jesuitas foi dissolvida, e a Polénia foi repartida, e a Imperatriz Maria Teresa morreu, ¢ Struensee foi execu 22. "(.) nas minas de Palun na Su pontual da verso francesa (2) ado, a América tornou-se livre ¢ as forcas reunidas da Franca e da Espanha no puderam conquistar Gibraltar. Os turcos aprisionaram o General Stein na gruta dos ve- teranos, na Hungria, eo Imperador José morreu também. O rei Gustavo da Suécia conquistou a Finléndia russa, e Revolugdo Francesa a longa guerra comecaram, € 0 Imperador Leopoldo 11 também foi para a cova, Napo- leao conquistou a Prissia, e os ingleses bombardearam Copenhague, e os camponeses semearam e ceifaram. moleiro moeu, eos ferreiros forjaram, e os mineiros cava rama terra em busca de fldes metilicos em seu canteiro subterraneo. Ora, quando os mineiros de Falun, no ano de 1809..”° Nunca um contador introduzira seu relato na histéria natural de forma mais profunda do que Hebel nessa cronologia. Leia-se atentamente: a morte nela rea parece de modo tio regular quanto o homem com a foice nos cortejos das procissdes que desfilam ao meio-dia em torno do relégio da catedral. xr Cada estudo de uma certa forma épica deve levar em consideragio a relagio dessa forma com a historiografia Mais ainda, podemos até nos perguntar sea historiografia no apresenta o ponto de indiferenca criadora entre to- das as formas épicas. Nesse caso, a historia escritaestaria para as formas épicas assim como a luz branca para as fodas as formas épicas nio ha nenhuma que tenha sido tdo indiscutivel- mente incorporada a luz pura e incolor da historia quanto ‘a crénica, E na larga gama colorida da erénica, as dife cores do espectro. Seja como for, entr 23 Johan Peter Hebel, Smtiche Werke vn. Karlsruhe: Mller, M834 pa. rentes maneiras de contar se escalonam como as nuances dde uma e mesma cor. O cronista é 0 contador da historia. Lembremo-nos ainda da passagem de Hebel, que tem 0 tom da crénica, e notaremos sem dificuldade a diferena entre aquele que escreve a historia, historiador, e aque que a conta, o cronista, O historiador deve de uma ma: neira ou de outra explicar os fatos que 0 ocupam:; ele nio poderia de modo algum se contentar em expd-los como amostras do curso do mundo. E justamente o que faz o cronista, ¢ especialmente os seus representantes clis- sicos, 0s cronistas medievais, que foram os precursores dos historiégrafos modernos. Na base de sua narrativa da histéria encontra-se o plano divino da salvacao, que é insondavel, e com isso se desembaracaram de antemio do énus de uma explicagdo demonstrivel. Esta cede lugar A interpretacio, a qual nao se preocupa de modo algum em encadear com precisio fatos determinados, mas limita sua tarefa a deserever como eles se inserem na trama in- sondavel do curso do mundo. Se o curso do mundo é condicionado por uma hist6 ria sagrada ou por uma hist6ria natural ndo faz nenhuma diferenga. No contador de histérias, a figura do cronista conservou-se transformada e, por assim dizer, seculari- zada. Leskov est entre aqueles cuja obra da testemunho de modo particularmente claro desse estado de coisas. O cronista, com sua orientagao para a historia sagrada, ‘© contador, com sua orientaglo para a hist6ria profana fundam-se ambos em sua obra, de tal modo que em mui- tos contos é dificil decidir seo fundo sobre o qual eles se destacam é a rama dourada de uma concepcao religiosa ou a trama colorida de uma visto secularizada do curso das coisas. Pensemos no conto “A Alexandrita’, que leva 0s leitores a “priscas eras, quando tanto as pedras nas en: tranhas da terra quanto os planetas nas alturas celestes, todos eles se preocupavam com o destino do homem, e nnio atualmente, quando até nos céus hd desgosto e sob a te a fria pelo destino dos filhos dos hhomens ¢ de lé nio chegam vozes nem obedisneia, Todos a restou a indifere 6s planetas, de novo descobertos, jé no recebiam mais nenhuma atribuigdo nos hor6scopos; hé também muitas pedras novas,e todas sio medidas, pesadas, comparadas em termos de peso especifico e densidade, mas depois nada profetizam, nio sio tteis em nada. O seu tempo de falar ao homem j virou passado"** ‘Como se vé, nio é possivel caracterizar o curso do mundo de modo univoco, tal como o ilustra essa historia de Leskov. £ ele determinado pela historia sagrada ou pela historia natural? E certo apenas que, enquanto tal, 0 ‘curso do mundo é estranho a toda categoria propriamente histérica. Foi-se a época, diz Leskov, em que o homem podia acreditarviver em unissono com natureza, Schiller ‘chamou essa era de tempo da poesia ingénua. O contador de historias permanece fel a ela e seu olhar néo se desvia do rel6gio diante do qual avanca a procissio das eriaturas, ‘onde a morte tem seu lugar como lider ou como a iltima ce miseravel retardataia, xu Raramente nos damos conta de que a relagio in do ouvinte com o contador & determinada pelo intere ‘em guardar 0 que foi contado* © que importa ao ouvinte 24 Nikolal Lesh, “Alexandrian A Froude e ours bistros, itp. 160, 25, Neste capitelo, Benjamin utilis termes semintco da memeria (Ernnerun, Ged Je cobrem 0 campo (© CONTADOR DE HISTORIAS £ OUTROS TEXTOS isento ¢ assegurar-se da possbilidade da repetigio. A me rméria éa faculdade épica por exceléncia. Somente gracas ‘a uma meméria abrangente, a épica pode apropriar-se do ‘curso das coisas, por um lado, e por outro resignar-se com sua perda irrepardvel, com o poder da morte, Nao é de se espantar que para um homem simples do povo, tal como! Leskov o imaginou um dia, o tsar, enquanto soberano do’ cosmos no qual suas histrias acontecem, possui a mem6= ria mais vasta, “Nosso imperador e toda a sua familia’, diz ele, “tem efetivamente uma meméria prodigiosa Mnemésine, aquela que recorda, era entre os gregos a ‘musa do género épico. Esse nome nos reconduz a uma bi farcagdo na hist6ria do mundo. Com efeito, se aquilo que 6 registrado pela recordagdo — a historiografia — expe a indistingio eriadora entre os diversos generos épicos (assim como a grande prosa expée a auséncia de diferen- ciagao criadora entre as diversas métricas poéticas), sua forma mais antiga, a epopeia propriamente dita, contém, por forca de um tipo de indistingao, o conto e o romance. Quando, no decorrer dos séculos, o romance comegou a surgir no seio da epopeia, viu-se claramente que o ele mento inspirador da poesia épica, a recordacao, nele apa recia de um modo diferente daquele do conto. ‘A recordagao* estabelece a cadeia da tradiglo que transmite os acontecimentos de geragio em geragao. Ela fields cm anol paso anc peer tran tanto ter] fer] Deno aparece no orginal lem. ‘© CONTADOR DE HISTORIAS a musa da épica em geral e preside todas as variedades do género épico, Entre estas, encontramos em primeiro lugar aquela encarnada pelo contador de historias. Ela tece a rede formada por todas as historias. Uma est li- a, como mostraram todos os grandes conta: ‘ipalmente os orientais. Em cada um deles vive uma Sherazade, que em cada passagem de sua hist ria lembra-se de outra. Essa é uma meméria” épica e a dores,e pri musa inspiradora do conto. £ preciso opor a ela um outro prinefpio inspirador, o do romance, o qual, ainda indife- renciado daquele que ¢ pr6prio ao conto, também habita 0 género épico em sentido estrito.™ As vezes,jé podemos pressenti-lo nas epopeias. E isso ocorre antes de tudo nas invocagées solenes das musas que abrem os poemas ho- méricos. O que se anuncia em tais pass perpetuadora” do romancista em oposigdo & meméria di- » do contador. A primeira diz respeito a um heréi, odisseia ou a uma guerra; a segunda concerne a tmiltplosfatos dispersos, Em outras palavras: a rememo- (Gedachnis, no original alemio; mémoire, na versio Francesa i 28. Na varante da vers fa anilogo, mas inrnsccamente diferente, na base do romance. E como que diz respeto ao conto podemos avenger par o romance. qe, Primitivamente, sto & na epopeia formava apenas um germe na > epic! [er] 0 orginal alec; suvenance der ssa: "“Encontra-se um elemento tnidadeindvin do gn 2. Verewende Geach 3. Kurzweilge Gedichinis, no_ original alemio; souvenir passe temps versto francesa. [8.7] (© CONTADOR DE HISTORIAS & OUTROS TEXTOS ragao® musa do romance, surge a0 lado da meméria,* musa do conto, depois que a unidade de sua origem na recordagio™ se rompeu com o declinio da epopeia xiv ‘Ninguém’, disse Pascal, “morre tio pobre que no deixe alguma coi dagoes ~ s6 que estas nem sempre encontram herdeiros. (© romancista recolhe esse legado, e raramente sem uma profunda melancolia. Pois com a soma por ele recebida, ‘corre o mesmo que se pode dizer de uma morta num romance de Amold Bennett: “ela nio tinha efetivamente vivido", Devers o esclarecimento mais importante sobre Com certeza, deixa ao menos recor~ esse aspecto das coisas a Georg Lukécs, que viu no ro- ‘mance “a forma do desenraizamento transcendental’. Do mesmo modo, de acordo com Lukas, o romance éa tinica forma de arte que inclui o tempo entre seus principios constitutivos. “O tempo”, diz ele na Teoria do Romance, s6 pode tornar-se constitutive quando o homem deixou de estar ligado a uma patria transcendental (.,). No r0- mance, separam-se sentido e vida, e com isso também 0 cessencial e o temporal; pode-se quase dizer que toda a ‘ago interna do romance néo é nada mais do que uma luta 5% Eingedenken, no original alemo;souvenance, na versio fra ss. Tanto o termoalemio quanto o francés conotam odesenroar| do process em oposigio os seus efeitos pontusis, conotago que provuramos preservar oa radost, [8-7] s2. Gedchinis no orginal alm souvenir, na vers ances, ber) 53. Erinnerang, no original alemio; mémoire na versio frances ber] (© CONTADOR DE HISTORIAS © poder do tempo (..).E desse (..) emerg vivencias temporais autenticamente épicas (..): & esp ranga e a recordagio. (.) Apenas no romance (.) aparece uma recordagio criadora que atinge o fundamento do seu ‘objeto eo transforma (..). A dualidade da interioridade do mundo exterior” 6 "pode ser superada pelo sujeito quando esse percebe a unidade (..) de toda a sua vida (..) resumida na recordagio da corrente vital do passado (..) A percepcao que apreende essa unidade (..) torna-se com: preensio divinatoriamente intuitiva do sentido da vida {natingido e, portanto, inexprimivel” ‘0 sentido da vida” é de fato 0 eixo em torno do qual gira o romance. O questionamento desse sentido niio é, entretanto, nada mais do que a expressio simples do de saconselhamento do leitor quando este se oda vida escrita. De um lado, “o sentido da vida”; de ‘outro, “a moral da histéria’: com essas férmulas, romance ‘conto se confrontam; elas permitem distinguir comple: tamente o indice histérico do estatuto das duas formas artisticas. Se o primeiro modelo perfeito de romance & 0 Dom Quixote, Educasdo Sentimental pode ser considerado ‘como o iltimo. Nas pal {que coneluem esse romance, 34. A passagem suprimidanesse pont da citagio, fia por Rena min, da obra referda de Laces, «sem a qual ainicigibilidade fica prlalmentecomprometida,e sentmento mado eresignado” (7 Sigiert-mannbaren Gefah). CE. Grorg Liki, Die Theorie des Romans. Ein gachistsphiosophischer Vrach uber de Formen der ron Ep. 9 ed. Darmstadt; Newwied: Lachterhand, 1984, p10 (1 ed, Ber lm aga0} também Georg Lake, A teoria do romance. Um ensaio trio lin sobre a formas da grande sic. Tradugio de Jo Marcos Mariani de Macedo. Sao Paulo: Eaitora 34: Duss Cidades, 2009.p.130 [8-£] 35, Cl Georg Lakes, ie Theorie det Romans ed cit, pp 107-15; Georg Lakscs, A teri do romance ect pp. 128-396 [8.2] © CONTADOR DE HISTORIAS E OUTROS TEXTOS 0 sentido, que caracterizava o inicio da declinio da époed bburguesa em seu modo de agir e omitir, se deposita coma 0 residuo® no fando do copo da vida. Amigos de juvens tude, Frédéric e Deslauriers rememoram sua amizade de juventude. Uma pequena histéria thes vem a cabega, cles se lembram do dia em que, cheios de constrangimento @ clandestinamente, estiveram na casa de tolerdncia de sua} cidade natal apenas para oferecer & patroa um buqué de flores colhidas no jardim. “Isso deu numa histéria que trés anos depois ainda nio tinha sido esquecida, Eles a conta ram a si mesmos prolixamente, cada um completando as) recordagdes do outro, e quando finalmente acabaram: ‘© que tivemos de melhor!’ disse Frédéric. — ‘Sim, talven seja mesmo! Isso ai é o que tivemos de melhor!’ disse Deslauriers’. Com tal reconhecimento, o romance chega’ ao seu fim; fim que Ihe é préprio no sentido mais estrito do que a qualquer conto. Nio hi, de fato, nenhum conto em que a questio “o que aconteceu depois?" perca seus direitos. O romance, ao contrério, nto pode esperar dar 0 ‘menor passo além daquela fronteira onde, ao escrever a palavra “fim” na parte inferior da pagina, convida o leitor ‘ter em mente, por pressentimento, o sentido da vida ‘Quem ouve uma hist6ria se encontra na companhia do contador; mesmo quem a Ié participa dessa companhia, Por outro lado, mais do que qualquer outro, o leitor de um romance é solitirio. (Pois até mesmo aquele que Ié um poema tende a emprestar sua vor as palavras, visando ouvintes possiveis.) E nessa solidao que lhe é prépria, 0 leitor do romance se apodera da matéria lida de modo mais 6.) esd do vino", na variante da verso frances, [7 © CONTADOR DE HISTORIAS Ppossessivo do que todos os demais. Ele esté disposto a se Aapropriar dela inteiramente e, de certo modo, devoré-la Bim, ele a destr6i, consumindo-a como faz 0 fogo coma Jenha na lareira. A tensio que atravessa o romance se fssemelha muito a corrente de ar que alimenta a chama e eanima o seu jogo. E um material seco que alimenta o interesse ardente do leitor. ~ 0 que isto significa? “Um homem que morre fos trinta e cinco anos é", como disse uma vez Moritz Heimann, “a cada instante de sua vida, um homem que morre aos trintae cinco anos”, Nada ¢ mais duvidoso do ‘que essa sentenga, Mas somente porque o autor se engana {quanto ao tempo verbal. A verdade é que um homem que morreu aos trinta e cinco anos aparecerd na rememoragao, fem cada instante de sua vida, como um homem que morre fos trinta e cinco anos. Em outras palavras: a senten¢a, ue nio tem sentido para a vida real, torna-se irrefutivel para a vida recordada. Nada apresenta melhor a esséncia do personagem de romance. © “sentido” de sua vida — 6 o que a frase nos diz — s6 se mostra a partir de sua ‘morte, Ora, 0 leitor de romances procura efetivamente seres humanos nos quais pode ler o “sentido da vida’ Ele precisa de antemdo ter certeza de que poderi, de um jeito ou de outro, assstir & morte deles. Se necessitio, ‘a morte no sentido figurado: o fim do romance. Ainda melhor quando isso ocorze no sentido préprio. Como 0 protagonista indica que a morte jé 0 espera, isto é, uma morte bem determinada, em um ponto bem determinado? Eis a questdo que alimenta o interesse devorador do let por aquilo que ocorre no romance. 0 romance, portanto, nlo é significative gragas a um ensinamento qualquer que um destino alheio nos apre- sentaria, mas porque, através da chama que o devora, esse destino alheio nos transmite um calor que nio podema tirar da nossa prépria vida. O que prende o leitor a0 r03 mance 6 a esperanga de aquecer sua vida gelada em umal morte sobre a qual ele le “Leskov’, esereve Gorki, “é escritor mais profundas mente (.) enraizado no povo e o mals isento de toda in fluéncia estrangeira’. O grande contador de histérias teré sempre suas razes no povo, ¢ em primeiro lug das artesanais. E ‘nos miltiplos estgios de seu desenvolvime € técnico, os elementos camponés, maritimo e urbano, também os conceitos nos quais a soma de suas exper cias se cristaliza para nés possuem miiltiplas gradagbes. (Gem falar na considerével contribuigdo dos mercadores para a arte de contar; eles nio precisaram tanto aumen- tar o contetdo instrutivo dos contos,” quanto refinar as estratégias destinadas a captar a atengio dos ouvintes® Deixaram marcas profundas no ciclo de histdrias das Mile ‘uma noites) Em suma, sem desconsiderar o papel elemen: far que a narrativa desempenha na economia doméstica da humanidade, os conceitos através dos quais podemos colher os seus frutos sio de uma grande diversidade. O que, em Leskov, deve ser compreendido de modo mais tangivel em um sentido rel rece se ajustar por si ‘mesmo, em Hebel, as perspectivas pedagégicas do Tumi: retanto, assim como estas englobam, 37-"(.) através de seus relatos de terras longinguas’ conforme scrlscimo eetuado por Benjamin na verso francesa. ¥.] of De fat, nto veros entre os contistas drabes 0 ouvinte to Hlsmo, surge em Poe como tradigio hermética e encontra [im Gltimo asilo em Kipling, no campo de aco de mari- heiros e soldados coloniais britinicas. Por outro lado, Todos os grandes contadores de historias tém em comum Wfacilidade com a qual descem e sobem os degraus de sua fexperiéncia, como numa escada. Uma escada cuja base Hlesce até as profundezas da fpuvens é a imagem de uma experiéncia coletiva para a ual o mais profundo choque de cada experiéncia indi Vidual, a morte, néo representa nem um escandalo nem Juma barreira, «© cujo topo se perde nas “E se no morreram, vivem até hoje”, diz o conto de fidas. O conto de fadas, que ainda hoje é 0 primeiro con- felheiro das criancas, pois foi outrora o primeiro da hu- anidade, sobrevive secretamente no conto. © primeiro {ontador verdadeiro ée continua sendo 0 dos contos de das. Esse conto sabia trazer um bom conselho, onde nada fra mais dificil de se encontrar, e onde a necessidade era a mais urgente, a sua ajuda era a que estava mais proxima, Essa necessidade era a do mito, O conto de fadas nos i: forma sobre as primeiras tentativas da humanidade em sacudir para fora o pesadelo que o mito depositou em sew peito. A figura do bobo nos mostra como a humanidade *faz-se de boba” contra o mito; a do irmao cagula nos mos- tra como suas chances aumentam com o distanciamento fem relagao a época mitica primeva; a figura daquele que sai de casa para aprender 0 medo nos mostra que podemos tornar transparentes as coisas que tememos; a figura do fesperto nos mostra que as questdes do mito sio tho sim- ples quanto as da esfinge: as figuras dos bichos que vém fjudar a erianea do conto nos mostram que a natureza pprefere muito mais associar-se ao homem do que compro- Imeter-se com o mito. O conto de fadas ensinou ha muito (© CONTADOR DE HISTORIAS E OUTROS TEXTOS tempo & humanidade e ainda hoje ensina is criancas que ‘© mais aconselhavel ¢ enfrentar o mundo do mito com asticia € ousadia, (Desse modo, o conto de fadas polariza ‘a coragem, a saber, daleticamente, em asticiae em ousa~ dia.) A magia liberadora do conto de fadas nio coloca ‘em cena a natureza de um modo mitico, mas indica a sua ‘cumplicidade com o ser humano liberado. O homer ma- duro concebe essa cumplicidade apenas ocasionalmente, isto é, quando esté feliz; para a crianga, ela aparece pela primeira vez nos contos de fadas e provoca sua felicidade. xvit Poucos contadores tiveram uma afinidade tio pro- funda com 0 espirito dos contos de fadas quanto Leskov. ‘Trata-se de uma tendéncia reforcada pelos dogmas da Igreja Ortodoxa grega. Nessa dogmatica, a especulacao de Origenes sobre a apocatistase — a admissio de todas as almas no paraiso —, que foi descartada pelo catolicismo romano, desempenha tum papel significativo. Leskov foi muito influenciado por Origenes. Planejou traduzir sua ‘obra Sobre as Principios:® De acordo com as crencas po- pulares russas, interpretou a ressurreigio menos como uma transfiguragdo do que como um desencantamento (num sentido parecido com o dos contos de fadas). Essa interpretagéo de Origenes constitui a base do conto "O 49, Benjamin fz, nesta passagem, um jogo de palavras com Mut coragen), Obert, que que ier ‘algria exuberant, animario txcessiva qu chega ris da isolénia ou da ousadia’ eum termo inelt, term qe aparece aqui como equivalents Lis asic 40. Hi edigho brasileira. CF, Origenes. Tratado sobre os Prncpios. Traugo de Joo Eduardo Pinto Bast Lup. Sto Paul: Paulus, 201 (Colegio Pts, ¥90) [2 © CONTADOR DE HISTORIAS peregrino encantado”. Aqui, como em muitas outras his: tras de Leskov, trata-se de um misto de conto de fadas ¢ lenda, nio muito diferente do misto de conto de fadas ¢ saga de que fala Ernst Bloch numa passagem em que retoma a seu modo a nossa distinglo entre mito e conto de fadas. Segundo Bloch, um "misto de conto de fadas e saga inclui, de modo figurado, um elemento mitico que atua de modo estitico ¢ encantatério, embora nao fora do ser humano. Assim, na saga, personagens de tipo ta: oista sto ‘miticos’, em particular os muito antigos, como © casal Filemon e Baucis: redimidos, como nos contos de fadas, apesar de repousarem como natureza. E certa- mente esse tipo de relacio existe também no Tao menos acentuado de Gotthelf: is vezes, ele priva a saga do local encantado, salva a luz da vida, a Iuz propriamente hu- mana da vida que arde tranquilamente, por dentro e por fora’.* Redimidas, “como nos contos de fadas",sio aque- las criaturas que abrem 0 cortejo da criagio de Leskov: os justos. Pavlin, Figura, o artista cabeleireiro, o domador de ursos, a sentinela prestativa — todos aqueles que per- a consolacéo do mundo amontoam-se em torno do contador de histérias. Esto todos incontestavelmente impregnados da imago de sua mile, De acordo com a descrigio de Leskov, “ela tinha a alma tio boa que era incapaz de fazer mal a qualquer ser humano, ou mesmo aos animais. Nao comia carne nem peixe tal sua compaixio por todas as criaturas vivas. Meu pai tinha o costume de reprovar-Ihe, de vex em quando, tal atitude. Mas ela respondia: ‘Eu me: chinhos, s20 como meus filhos. Nao posso comer meus sonificam a sabedoria, a bondade na eriei esses bi 41. Citasto de Ernst Bloch, Eruchaf dieser Zeit, Prankfurt am Subrkamp, 162, (Gesammtausgabe v4) [7] préprios filhos!” Mesmo na casa dos vizinhos no comia came. Eu 0s vi vivos, dizi, ‘so meus conhecidos. Naa) pposso comer meus conhecidos’” ( justo € ao mesmo tempo o porta-vor da criatura @ sua mais alta personificagdo, Em Leskov, ele possui um) traco maternal que se eleva as vezes até 0 mitico (colo- cando assim, & verdade, em risco a pureza do conto de fadas). Exemplar nesse sentido ¢ o personagem principal de seu conto “Kétin, 0 provedor, ¢ Platonida’, Esse pers sonagem, o camponés Pizénski, é bissexuado, Durante doze anos, foi criado pela mae como menina. Seu lado feminino amadureceu ao mesmo tempo que sua masculi- nidade, e sua dupla sexualidade tornou-se um simbolo do Homem-Deus* Nesse simbolo, Leskov acredita poder atingiro apogeu da criatura e, ao mesmo tempo, estabelecer uma ponte entre os mundos terrestre e supraterrestre. Pois esses homens cuja poténcia vem da terra, essas figuras mas~ culinas maternais, que reiteradamente tomam posse da arte fabuladora de Leskov, foram subtraidas a escravidio das pulsdes sexuais no pleno florescimento de suas forcas. Mas nem por isso personificam um ideal propriamente aseético; ao contrério, a temperanca desses justos tem uum cariter tio pouco privado que torna-se, na ordem das paixdes, 0 polo oposto ao do furor sexual que 0 conta- dor pintou em Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk® Se a envergadura entre Pavlin e essa esposa de negociante permite medir a extensio do mundo das eriaturas, entio {2.Cf Nikolai Leskoy, "tin, o prover ¢Platnid’, in A Fraude coutras historias, pp 30-18. [7] 43, CE Nikolai Lesko, Lady Macbeth do Disrito de Mtanak; ect ber] © CONTADOR DE HISTORIAS Leskov também sondou, na hierarquia de suas criaturas, {sua profundeza xviir A hierarquia do mundo das eriaturas, que atinge com {0 justo o seu ponto mais alto, desce em miiltiplos graus fté as profundezas do inanimado. A propésito disso, uma fircunstancia particular deve ser levada em conta: essa fotalidade do mundo das criaturas nao se expressa tanto hia Vor humana quanto naquela que pode ser nomeada de ficordo como titulo de um de seus contos mais significat- Esse conto é sobre o pequeno funcionario Flip Filipovitch que se esforca po ‘eios para hospedar em sua casa um marechal de campo de passagem em sua cidadezinha. Ele consegue o que queria. © héspede, que se espantara a principio com o fonvite insistente do funcionario, com o tempo pensa re fonhecer nele alguém que ja havia encontrado antes. Mas quem? Nao consegue lembrar-se. Eo estranho é que 0 dono da casa recusa-se a facilitar o reconhecimento, Em ver disso, consola a alta personalidade um dia depois do outro, dizendo que ‘a vor da natureza” acabaré por Ihe falar claramente, Isso dura até que um dia, pouco antes de prosseguir sua viagem, quando, atendendo ao pedido piiblico do anfitrido durante um jantar, o héspede deve ddar sua permissio para que cle possa fazer soar “a voz da natureza”, Entao a dona da casa se afasta. Ela “voltou com uma grande trompa de cobre,reluzentemente polida, ¢ entregou-a 20 marido, Ele pegou a trompa, encostou 0 bocal aos labios e transformou-se inteiro num minuto, os: “A vor da natureza todos os Foi s6 ele inflar as bochechas e sair um ribombo vibrante para o marechal de campo gritar: — Estou reconhecendo, irmio, agora estou reconhecendo, voc’ ¢ aquele miisieg do regimento de cacadores, que, por sua honestidade, eng viei para vigiar um intendente trapaceiro. ~ Exatamentay meu principe — respondeu o anfitrilo. — Nao queria eu lembrar-Ihe disso, entio a propria natureza o fez" A maneira pela qual o sentido profundo dessa histéria se esconde atras de sua aparente tolice nos d uma ideia do humor magnifico de Leskov. Esse humor confirma-se na mesma histéria de um modo ainda mais discreto. Ouvimos que o pequeno furs cionirio foi enviado “por sua honestidade” para “vigiar um intendente trapaceito" Isso ¢ dito no final, na cena da) reconhecimento. Logo no inicio da hist6ria, porém, ouvis ‘mos o Seguinte sobre o anfitrido: “Os moradores locais, todos eles, conheciam esse homem e sabiam que o seu titulo nao era alto, ja que nao era funcionéio civil nem anlar, mas s6 encarregado do pequeno depésito local da intendéncia ou do comissariado e, junto com as ratazanas, rola torradas do erario e lambia botas, tendo conseguido, com a roedeira e a lambigio, uma casa bonitinha, de ma deira(.)"* Como se vé, essa histdria mostra a tradicional simpatia do contador pelos trapaceiros e malandros. Toda literatura burlesea é testemunha dessa simpatia que no se desmente nem na mais ata arte: Hebel € acompanhado do modo mais fiel, entre todas as suas personagens, por Zundelfrieden, Zundelheiner e 0 ruivo Dieter E, claro também para Hebel o justo desempenha o papel principal 4, Nikolai Leakv, Avot da nares’ in A Frnde «oxtrash ase cit 300. [x7] 145 dem, idem, p90. [7 {6 Altos uma série de contos de Hebel nos quais os dois mos Zande ~ Priedn ¢ Heiner ~ se assoeiam a uivo Dicer, seu antigo smarada de escola, para cometerem diversos ips de furtos, mala © CONTADOR DE ISTORIAS jo theatrum mundi, Mas como ninguém esta propria mente & altura desse papel, ele passa de um para outro. Ora é 0 vagabundo, ora o judeu avarento, ora ¢ o imbecil que surge para desempenh e apenas dde um estigio provisério, que varia de um caso a outro, luma improvisagio moral. Hebel é um casuista. Nao se solidariza de nenhuma maneira com algum prinefpio, mas lambém nio recusa nenhum deles, pois todos podem um dia servir de instrumento ao justo. Podemos comparar essa atitude com a de Leskov. "Reconhego”, diz ele em *A propésito de A Sonata a Kreutzer”, “que, nas minhas feflexées, entra muito mais senso pratico do que filosofia Jo, Trata-se sempr abstrata e moral elevada; contudo sou inclinado a pensar ‘como penso”® £ verdade, por outro lado, que as grandes catistrofes morais que ocorrem em seu mundo estio para (6s incidentes morais de Hebel como o grande curso silen ios0 do rio Volga para a tagarelice de um pequeno riacho ue faz girar a roda do moinho, Entre 0s contos histéricos de Leskoy, ha virios em que as paixdes agem de modo tio avassalador quanto a célera de Aquiles ou 0 édio de Hagen.** £ surpreendente como, nesse autor, o mundo as vezes pode tomar-se sombrio e com qual majestade o mal 6 capaz de empunhar seu cetro. Leskov claramente conhe- cet estados de espirito préximos de uma ética antinomista esse deve ser um de seus poucos pontos de contato ‘com Dostoigvski, As naturezas elementares de seus Con: drogen farts. Embora nko pastem de pequenos bandos, os tés comparsa so apesentados com simpatia pelo autor [x.7] {47 Nikolai Leskov, “A propésito de A Sonata a Kreutzer, in A Frade outras bistros, pp. 76-17. f. ‘h Personagem da mitologiaercandinava , depois, da mitlogia ermine, responsive pelo asassinato do herb Siege. (x. © CONTADOR DE HISTORIAS E OUTROS TEXTOS tos dos velhos tempos® vao até o fim em sua paixio semi escripulos. E esse fim era justamente 0 ponto no qual para os misticos a perversio consumada transforma-se bruscamente em seu contririo, tomando-se santidade, xix ‘Quanto mais baixo Leskov desce na escala das crate ras, mais abertamente sua concepco de mundo se aprog xima da mistica. Aliés, como mostraremos, hi boas razBes para se dizer que tal caracteristica pertence & propria naa tureza do contador de histérias. Certamente, sio raros of aque se aventuraram nas profundezas da natureza inani= ‘mada e, na literatura narrativa moderna, nao ha muitos casos em que a vor do contador andnimo, anterior a toda eserita, ressoe to claramente como na histria de Leskov) “A Alexandria’, Trata-se de uma peda, opiropo. A pedral corresponde & camada mais baixa da criagio, Mas para 0 contador de historias, ela se liga diretamente & mais alta Ele tem o dom de vishumbrar, nessa pedra semipreciosa, 0 piropo, uma profecia da natureza petrficada, inanimada, sobre o mundo histérico, no qual ele mesmo vive. Esse mundo é 0 de Alexandre 1 0 contador — ou melhor, 0 hhomem a quem ele atribui seu pr6prio saber — é um lapi- dador, de nome Wenzel, que atingiu em seu oficio a mais alta perfeigio imaginavel. Podemos comparivlo aos ouri- ves de Tula e dizer, de acordo com Leskov, que o artesio perfeito tem acesso as cimaras mais internas do reino das 4."Ereahngen aus der alten Zeit’, conforme o orginal alm [Na edo em nove volumes das Gesammelte Werke (Obras Reunids) de Nikolai Leskov, que a eiitora C. H. Bec fez publica etre 1934 1927, utlizada por Benjamin e por ele referda em nota inicial a0 presente ensai,o titulo carespondente ¢ o do quarto volume, Geschichten au aller Zeit (tras dos velos tempos). (.] Griaturas. £ uma encamagio do homem piedoso. Veja os o que é dito sobre ele: “de repente, agarrou-me pelo pel com a alexandrita, que agora, sob a luz, estava ver fnetha.® e pos-sea grtar: ~ (..) Vejam s6, eis aqui aquela petra russa profética (.)! Siberiana astuta! O tempo todo fstava verde como a esperanga, mas agora, com a aprox fnacio do anoitecer, banhou-se de sangue. Desde priscas fras cla € assim, mas escondeu-se 0 tempo todo, no seio ila terra, e permitiu que a encontrassem apenas no dia da Miaioridade do tsar Aleksandr, quando um grande feit feiro, mago, bruxo, foi a Sibéria procurar por ela. — O fenhor esta falando asneiras — interrompi. — Essa pedra jnlo foi encontrada por um feiticeiro, foi por um cientista Nordenskiola! — Feiticeiro! Estou dizendo: feiticeiro! — [pbs-se a gritar Wenzel bem alto. — Veja s6 que pedra! NNela a manba ¢ verde e a noite, sangrenta...£ 0 destino, 0 destino do nobre tsar Aleksandr! — E 0 velho Wen- el voltou-se para a parede, apoiou a cabeca no brago e, pos-se a chorar"™ Nao podemos apreender mais diretamente o sentido dlesse importante conto do que com o auxilio de algumas plavras escritas por Paul Valéry sobre outro assunto, bem diferente, “A observacio do artista”, disse ele em suas conside rages sobre um artista, “pode atingir uma profundidade 50. Na tradugto do rus para oalemdo de que fer uso Benjamin, Duma variagho relativamente&taducio do asso par 0 portgus gui adotada, que importa destacar De modo que onde nesta (0) alexandrt, que agor, sb a i, estavavermelha’,nagela sé (alexandria, que, como se sabe, com hmsinngto ate radia um biho vermel™ [x2] 'tNikola Lesko, “Alexandria in A Frade eoutras hist. sit pp. 164-265 (0.7] {quase mistica. Os objetos luminados por ela perdem seus somes: sombras e claridades formam sistemas e proble= ‘mas bem particulares, que nio dizem respeito a nenhuma cigneia, que néo se relacionam com nenhuma pratica, mas que recebem toda sua existénciae seu valor de certos acors dos singulares entre a alma, o olho e a mio de alg nascido para, dentro de si, apre Tais palavras estabelecem uma estreita rel alma, olho e mio.® Interagindo, determinam uma prtica com a qual ndo estamos mais acostumados. O papel da mio na produgio tornou-se mais restrto e o lugar que! cla ocupava no contar historias foi deixado de lado. (Pois contar histérias no é de modo algum, do ponto de vista sensivel, apenas um trabalho da voz. No auténtico contar 1 mio atua decisivamente, apoiando o que é dito de diver- s08 modos, com seus gestos aprendidos por experiéncia’ no trabalho.) A antiga coordenagio de alma, olho e mio, que aparece nas palavras de Valéry, & artesanal, e é ela que encontramos onde quer que a arte de contar esteja em seu dominio, Sim, podemos ir além e nos perguntar se a relagio do contador de historias com sua matria, a vida humana, ndo seria cla propria uma relagdo artesanal? Se sua tarefa nio consiste em elaborar, de um modo sélido, Util e nico, a matéria crua da experiéncia, seja da sua prépria ou da alheia? Trata-se aqui de uma reelaboracio dda qual o provérbio nos dé talvez mais facilmente uma s2.PaulValéy,“Autour de Cort’, Pe sur 'ar in Ewes tmo igh de Jan Hytier Pais: Galizmard, 960.38. (Col. Biblioth ue de la Plead) [7] 53 Relago de coaboragio que determin todo trabalho artesuna’ conforme acéscimo efetuado na versio frances. [8.7] 4") @expriéncia humana”, regundo variagio da vers ean sa. fr) © CONTADOR DE ISTORIAS dela, se o concebemos como o ideograma de uma narra- gio. Provézbios sio, por assim dizer, ruinas que ocupam 0 lugar de antigas histérias nas quais uma moral cresce rno de um gesto, como a hera numa muralha contador de histérias pode assim ser considerado como um mestre ou como um sibio, Ele sabe aconselhar nio em alguns casos, como o provérbio, mas em mui- tos, como o sibio. Pois lhe é dado recorrer a toda uma Vida. (Uma vida que nao inclui apenas sua propria expe- Hiéncia, mas também uma boa parte da experiéncia alheia, ( contador de historias assimila ao que tem de mais inti mamente seu aquilo que aprendeu por ouvir dizer) Seu talento é poder contar sua vida; sua dignidade é poder conté-la por inteir, © contador é 0 homem que poderia deixar a mecha de sua vida consumir-se completamente na doce chama de sua narragio. Dai vem essa atmosfera* incomparavel que, em Leskov como em Hauff, em Poe ‘como em Stevenson, cerca o contador. © contador de historias ¢ a figura na qual o justo se encontra consigo "(ete ala variant da vero ances. [1] ero frances". em todos os cas” [x

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