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FILIPE NERI Estas paginas colocam-nos diante de um homem de carne e osso que representou, para o seu tempo e para 0 nosso, o “sorriso de Deus” entre os homens. Nao the faltaram dificuldades, canseiras e preocu- pages, como ndo nos faltam a nds. Mas Filipe Neri soube rir-se delas, porque ndo se dava importancia € porque buscava sempre o significado divino oculto em todas as contrariedades. A alegria que britha nos labios, no rosto e nos olhos de Filipe reflete a alegria de Deus Pai ao criar 0 mundo, desse Deus que encontra as suas delicias em estar com os filhos dos homens (Prov 8, 31). E deixa transparecer 0 sorriso com que Deus Filho en- carnado redimiu os homens, um sorriso de bondade, acolhimento e perdao, mesmo no meio dos atrozes sofrimentos da C Se tivermos presente esse sorriso, aprenderemos também a rir-nos um pouco de, yds mesmos e das nossas contrariedades mais ou menos imagindrias. E owviremos 0 santo sussurrar-nos ao ouvido que, diante de tudo aquilo que nos pesa, podemos ¢ deve- ‘mos tirar a conclusao da confianga em Deus, do bom humor, da esperanca, da alegria e da paz.. FILIPE NERI sz O sorriso de Deus Guilherme Sanches Ximenes me Copyright © 1998 Quadrante Sociedade de Publicagées Culturais Capa José C, Prado Impressio Paulus Grafica Via Raposo Tavares, km 18,5 - So Paulo - SP Guitherme Sanches Ximenes nasceu em Campinas em 1971. E Bacharel e Licenciado em Fisica pela Uni- versidade Estadual de Campinas, Atualmente é tradutor revisor da Quadrante Agradecemos aos membros da Congregagaio do Oratério de Sao Filipe Neri de So Paulo pela generosa colaboragio prestada para a realizaglo desta obra. Todos os direitos reservados QUADRANTE, Sociedade de Publ Rua Iperoig, 604 - Tel.: 3873-2270 * Fax: 263-0750 CEP 05016-000 - Sao Paulo - SP INDICE PIPPO BUONO. 3 Florenga 3 San Germano a O “FRANCO-ATIRADOR” Roma... “Deixar Cristo por Cristo”. Os caminhos de Deus confessor. Tentagdes € O FUNDADOR.. Um grupinho alegre Os primeiros seguid Dificuldades e perseguigée A Chiesa Nuova..... O espirito € as Constituigécs.. Novas fundagies.. 0 SANTO... Um belo anci Um ardor juvenil Intimidade confiada “O meu segredo”. Os dculos da fe O heroismo do bom humor “Amor ¢ alegria, ou amor e humildade “ARDIA DE AMOR”... QUADRO CRONOLOGICO.. NOTAS NOTAS (1) Rita Deleroix, Filippo Neri, if santo dell‘alegria, Newton Compton Editori, Roma, 1989, pig. 15; (2) Deleroix, pig. 16; (3) Paul H. Tirks, Filippo Neri: una gioia contagiosa, Citti Nuova Editrice, Roma, 1991, pag. 85; (4) cf. Daniel-Rops, 4 Igreja da Renascenga e da Reforma, vol. 3: A Reforma catélica, Quadrante, Sio Paulo, 1998, cap. II, par. Um caddiver despedagado; G) L. Ponnelle ¢ L. Bordet, San Filippo Neri ¢ la societt romana del suo tempo (1515-1595), Florenga, 1928, pag. 82; (6) Filipe Neri, Massime e Ri- cordi (= MR), trad. de Faber, 476/29; (7) of. Tarks, pag. 37; (8) Tirks, pag. 44; (9) Ponnelle-Bordet, pag. 203; (10) MI primo processo per San Filippo Neri, Biblioteca Apostolica Vaticana, 1957, vol. 1, pag. 235; ef. Tiirks, pig. 34; (11) ef. Ludwig von Pastor, Storia dei Papi, Roma, 1914, vol. 1X, pag 20; (12) Ponnelle-Bordet, pig. 98; (13) Tiirks, pag 54; (14) Tiirks, pig. 87; (15) Tiirks, pig, 53; (16) Giuseppe de Libero, Vita di San Filippo Neri Apos- tolo di Roma, Tip. Nalo-orientale San Nilo, Grottaferrata, 1960, pag. 145; (17) P.G. Bacci, Vita di San Filippo Neri, Roma, 1622, Il, pag. 75; (18) MR, 100; (19) John H. Newnan, Sermons on various occasions, pig. 12; (20) A. Gallonio, Vita del beato Filippo Neri fiorentino, Roma, 1601, pag. 21; (21) MR, trad, de Faber, 450/6; (22) ef. Tiirks, pag. 63; (23) Tiirks, pags. 62-63; 24) Gallonio, pig. 64; (25) Ponnelle-Bordet, pig. 171; (26) MR, trad. de Faber, 471/22; (27) ef. Turks, pag. 167; (28) Ponnelle-Bordet, pag. 214; (29) ef, Tirks, pig. 94; (30) Libero, pig. 215; (31) Ponnelle-Dardet, pig. 230; G2) Libero, pig. 216; (33) ef. Daniel-Rops, 4 lgreja da Renascenca e da Reforma, vol. 2, cap. Ill, par. A era dos fanatismos; (34) Deleroix, pig. 199; ef, Tiirks, pigs. 190-191; G5) Tiirks, pags. 137-138; (36) Turks, pag. 220; cf. Cédigo de Direito Candnico, cin. 731, § 1°; (37) MR, 49; (38) Carta de 13.01.1580, em Ponnelle-Bordet, pig. 382; (39) Primo processo; ef. Tirks, pag. 185; (40) Tiirks, pig. 185; (41) Tiirks, pig, 178; (42) Libero, pag. 145; Tiirks, pag. 54; (43) Ponnelle-Bordet, pag. 136; (44) cf. Turks, pig. 164; (43) Tiirks, pig. 163; (46) Ponnelle-Rordet, pig. 117; (47) Tarks, pag. 174; (48) Ponnelle-Bordet, pig, 578; (49) Ponnelle-Bordet, pig. 98; (50) AR, trad. de Faber, 477/11; (51) MR, trad, de Faber, 470/10; (52) of. Turks, pag. 32; (53) Primo processo; cf, Deleroix, pigs. 161-163; (54) cf. Deleroix, pags. 134-135; (55) MR, trad. de Faber, 456/27; (56) Deleroix, pag. 199; (57) MR, trad. de Faber, 440/15; (58) cf. Tiitks, pig. 179; (59) Filipe Neri, Ricordi, 13; (60) Alfonso Capecelatro, La vita di San Filippo Neri, 1874, pag. 314; (61) Pon- nelle-Bordet, pig. 132; (62) Turks, pag. 103; (63) ef. Turks, pig. 80; (64) MR, 14; (65) Frederick William Faber, Spirit and genius of Saint Philip Neri, $9; (66) Primo processo; cf. Titk, pig. 27; (67) cf. Deleroix, pag. 143; (68) cf. Tirks, pig. 168; (69) Goethe, Filipe Neri, el santo humorista, em Obras completas, Aguilar, Madrid, vol. 111, pags. 328-329; (70) Goethe, pig. 328; (71) MR, trad. de Faber, 452/25; (72) MR, trad, de Faber, 483/26; (73) Bacci, UL, pig. 18; (74) of. Tirks, pag. 185; (75) Tlirks, pég. 195; (76) Turks, pig. 195; (77) Tirks, pags. 200-201; (78) Ponnelle-Bordet, pag. 498. PIPPO BUONO FLORENCA A velha Florenga pensava que ja nao tinha mais nada de que se admirar. Vira Dante compendia o mun- do, do Inferno ao Céu, na Divina Comédia e Maquiavel redigir 0 seu desencantado receitudrio para viciados em politica. Fora palco da arrebatada pregagiio de Savo- narola, que da reforma espiritual da Igreja escorregara para a do governo da cidade ¢ terminara numa pira acesa em praga pliblica. Assistira ao espetaculo ofe- recido pelos Médici, ora guindados pela roda da for- tuna aos cumes do principado, ora langados no exilio. Vestira-se de esplendor com Michelangelo, da Vinci, Alberti ¢ Brunelleschi. Tivera santos, herdis e génios, € pensava conhecer tudo 0 que a arte, a sabedoria ¢ © poder tém a oferecer aos homens. Mas faltava-lhe ainda experimentar uma coisa, a unica capaz de rea- vivar os coragées envelhecidos: 0 sorriso de Deus. Era a madrugada do dia 21 de julho de 1515 — ano em que também nascia Teresa de Avila ae se ouvin o primeiro choro daquele que viria A ser cha- mado “o sorriso de Deus entre os homens”: Filipe R6- 3 milo Neri. Foi batizado j4 no dia seguinte no famoso batistério de San Giovanni e a sua infincia decorreu com toda a normalidade, Nada fazia pressentir que 0 sotridente filho de Francesco Neri e Lucrezia di Mas- ciano seria uma das grandes figuras da Reforma da Igreja e um dos santos defersonalidade mais marcante em toda a sua histéria Junto com as suas duas irmas mais velhas — Ca- terina e Elisabetta -, foi educado num ambiente fa- miliar de classe média modesta, com poucos meios, mas impregnado de sincera piedade cristi. Como acon. tece em todas as vidas, as dificuldades ¢ tristezas vie~ ram também bater a porta dos Neri. Filipe experimen- taria essa realidade ainda crianga: quando tinha apenas cinco anos, faleceram a sua mie ¢ 0 seu irmao mais novo Anténio, nascido havia uns poucos meses. Nao sabemos quase nada sobre Lucrezia, mas algo do seu amor permaneceu indelével em Filipe. “Fnsinou os seus discipulos a chamar Nossa Senhora com o nome de Mamie, que ele mesmo s6 pudera usar por breve ome € teve sempre um particular carinho & devocao pelalmaternidade, dolorosa no parto e dolorosa no amor”!. No entanto, a dor do pequeno Filipe foi suavizada por uma nova presenga no lar: Alessandra di Michele Lensi, sua madrasta, demonstrou ter uma indole muito amavel e afeigoou-se desde o principio ao menino, que Ihe correspondia com grande carinho. Alias, desde pe- queno Filipe tinha tanta facilidade para querer as pes- soas © conquistar-Ihes 0 coracio que em familia era chamado de Pippo buono. Francesco Neri, seu pai, era um homem piedoso, profundo admirador de Savonarola, Era tabeliio, oficio que na época conferia um certo status, ¢ podia até or- 4 QUADRO CRONOLOGICO 1515 Nasce Filipe Neri a 21 de jutho e € batizado no dia seguinte. 1520 Morre Luctezia di Masciano, mie de Filipe. No mesmo ano, Lutero rompe com Roma. Carlos V ordena o Saque de Roma (1527). 21532 Filipe muda-se para San Germano. a 71533 Filipe Neri muda-se para Roma. Em 1537, Santo Indcio (1491- S56) finda a Compania de Jess. Martirio de Sto Thomas More ¢ Sao John Fisher (1535). 1544 “Pentecostes” de Filipe. Inicio do Concilio de Trento (1543). 1551 Filipe ordena-se sacerdote, Cerca de 1553, inicio organizado da Visita as Sete Igrejas. 1584 Inicio das reunides do Oratério, Paulo IV, papa (1555-1559). i Teresa 1558 Filipe toma-se membro da Confraria da Caridade. Santa de Avila funda o primeiro Carmelo reformado (1562). 1563 Doenga de Filipe (chega a receber a Ungdo dos Enfermos). Con- ‘clusao do Concilio de Trent. 1564 Os oratorianos vio para San Giovanni dos florentinos. So Pio V, papa (1566-1572). Gregorio XIll, papa (1572-1585). 1575 Tenlativa frustrada de fundar um Oratério om Mildo, Primeica pedra da Chiesa Nuova. Reconhecimento candnico da Congre- {gagio do Oratério (15 de julho), 1577 Os oratorianos passam a residir na Chiesa Nuova 1583 Filipe muda-se para a Chiesa Nuova. 1584 Primeiros oratorianos em Napoles. Sixto V, papa (1585-159). 1586 Asfixia que quase leva Filipe & morte. Depois dela, 0 seu estado de satide piora muito, 1588 Escrevem-se as Constituig6es, aprovadas por todos os membros 1590 Término da construgio da Chiesa Nuova; a decoragao se fard ao longo do século seguinte. Clemente Vill, papa (1592-1605). 1593 Tarugi € nomeado bispo de Avinhio, a 1593 Filipe deixa de ser Preposto, Baronio é eleito por unanimidade. 1595 Morre Filipe a 26 de maio, 1596 Baronio é feito cardeal. 1612 As Constituiges so aprovadas pelo Papa a 24 de fevereiro. 1622 Filipe € canonizado a 12 de marco. Sio Filipe Neri, que se celebra todos os anos no dia 26 de maio, a Igreja pede a Deus que “nos prestemos a servir sempre com Alegria a gloria do Teu nome e © bem do préximo”7 E um resumo muito simples ¢ muito denso, bem ao gosto de Filipe, do que cle tem a dizer-nos pessoalmente. Ao terminar estas paginas, bem podemos imaginar que, no meio da multidio de alguma cidade grande, um amavel ancio se aproxima de nés com toda a sim- plicidade. Nos seus olhos enxergamos um resplendot que, sem sabermos bem por qué, nos comove e nos cativa. E, abrindo um sorriso que nio admite réplica, © humilde Pippo buono pde-nos a mio sobre 0 ombro € nos convida afavelmente: “Entio, caro amigo, quan- do € que comegaremos a amar a Deus?" 76 vulhar-se de um brasao de nobreza do qual constavam. irés estrelas de ouro sobre campo azul. Tinha tudo para desenvolver uma carreira brilhante, nao fosse 0 seu se- creto amor pela alquimia, na qual investia — ¢ perdia ~ todos os seus ganhos. Morreu pobre, deixando aos filhos uma heranga misera: um relégio, alguns quadros, uma toga surrada... Um episédio ocorrido com Filipe quando tinha pou- co mais de oito anos mostra-nos bem o carater im- pulsivo que tinha desde pequeno. Chegava a cidade um camponés com um burrico carregado de frutas para vender. O garoto, vivo e impetuoso como era, pulou sobre o animal e esporeou-o com os calcanhares, mas a cavalgadura desequilibrou-se uns poucos passos adiante, e menino, burro e toda a mercadoria se pre- cipitaram para dentro de uma adega. Nao nos custa imaginar 0 quadro: frutas e verduras amontoadas ¢ es- palhadas por toda a parte, a sela de carga espatifada, ‘© jumento tentando desajeitadamente levantar-se, um tropel de parentes e vizinhos langando-se sobre 0 ca- tico amontoado do qual sé sobressaia um bracinho.. Para alivio de todos, porém, Filipe levantou-se de um salto, ileso ¢ sorridente ye Esse era © seu natural: “Vivo, arguto, tinha ja 0 imresistivel gosto pela brincadeira, que cramp quemas, os preconceitos, a seriedade circunspecta, na dimensao surreal ¢ profunda do humorismo”? Cursou 0 cquivalente ao nosso primeiro e segundo graus com os dominicanos do convento de So Marcos, e ld recebeu também a primeira formagio cristi. Além disso, tinha continuamente diante dos olhos todo um catecismo ilustrado; bastava-lhe percorrer a cidade e admirar os afescos de Giotto na igreja da Santa Croce, a catedral cuja ciipula Brunelleschi terminara havia 5 meio século, ou as pinturas de Santa Maria Novella. Encontrava ali todo um mundo Iuminoso: a Virgem- -Mie tendo no colo o seu Filho; Jesus na oficina de José, ensinando a Nova. Lei, curando toda a doenga e toda a dor, perdoando 0s pecados. E os retratos do- Jorosos da Paixdo, a agonia suprema da Crucifixio, a Ressurreigo gloriosa. E 0s Apéstolos, ¢ depois os san- tos, a levar asian a obra divina através dos séculos e das latitudes Deus comegava assim a falar-lhe na alma, a fim de prepari-lo para a missio que queria confiar-Ihe. E © menino correspondeu com essa piedade séria e sim- ples de que s6 as criangas tém 0 segredo. Em 1527, quando tinha doze anos, os exércitos do imperador Carlos V, marchando para‘o sul a caminho de Roma, aproximaram-se de Florenga. A populacio, aterrorizada, prevendo jai uma invasio seguida de ma- tangas e saques, refugiow-se nas igrejas implorando a Deus que a cidade fosse poupada. Quando se soube que 0s exércitos tinham passado ao largo, a multidio fervilhou de alegria, Baildolino, famoso pregador da época, incitoa 0 povo a expressar a sua gratidio,gri- tando: “Viva Cristo!’/e por fim proclamou-se uy “e- piblica” da qual somentte Cristo seria o “rei” Pouco tempo depois, numa dessas reviravoltas que constituiam 0 pio cotidiano das cidades italianas, os Médici voltaram com forcas novas, sitiaram a cidade € acabaram por retomé-lla em 1532, No melhor estilo de Maguivel = “Se for prego repr que a eres so seja ripida, intensa © texrivel"”/, puseram-se ime- diatamente a perseguir todos os seus inimigos reais ou imagindrios. Os antigos simpatizantes de Savonarola e, em geral, todos 08 arnigos das liberdades repyp canas contavam-se na c:ategoria dos “traidores”; 6 diam. - “ Nid ‘vos canseis com esses remédios. Estou morrendo”/foi o seu comentario lacénico. Com todos os oratorianos da Chiesa Nuova ajoelhados em torno do seu leito, Césare Baronio, 0 superior da casa, recitou a oracao dos moribundos e ainda teve tempo de pedir: — “Padre, 0 senhor esta indo sem nos dizey/uma pa- lavra? Dé-nos pelo menos a sua béngio”. ‘A essas palavras, Filipe abriu os olhos, olhou para © alto por um bom tempo e depois dirigiu o olhar para os seus filhos, num gesto de quem pedia a béngio de Deus para eles e para todos os que viriam no futuro. E sem outro movimento adormeceu serenamepite no Senhor. Eram as duas da manhi: sei ore”. Nesse dia, 0 cardeal Federigo Borrofieu anotou no seu dirio: “O santo ardia de amor”?*/Bela conclusio e belo resumo para uma vida eae Amanhecia o dia 12 de margo de 1622. Filipe mor- rera havia vinte e sete anos, as Constituigdes tinham sido aprovadas havia dez, 0 Oratério estava espalhado por varias cidades italianas ¢ também por outros paises. Na majestosa Basilica de Sio Pedro, em Roma, cele- brava-se uma ceriménia excepcional, de uma grandio- sidade que jamais sera esquecida pela cristandade. O papa Gregério XV elevava aos altares cinco novos san- tos. Eram eles Santo Isidro Lavrador, Santo Inacio de Loyola, Santa Tea Avila, So Francisco Xavier e Sio Filipe Neri. Cinco nomes, cinco personalidades completamente diversas, cinco exemplos diferentes de como realizar no tempo e/nas circunstancias de cada um a imitagdo de Cristo./Na oragio sobre as oferendas da missa de 15 ficou muito palido ¢ o pulso quase desapareceu. Estava como morto. Baronio administrou-Ihe a Ungao dos En- fermos e o cardeal Borromeu levou-lhe a comunhio. Mas voltou a sentir-se melhor ¢ chegou mesmo a re- tomar as confissdes. Desta vez, porém, pedia a todos 0s seus penitentes que rezassem um tergo por ele, pois “todos pensam que sarei, mas ainda estou doente”. Mais uma vez, Filipe tinha razio, Chegou o dia 25 de maio, festa de Corpus Christi.) dia correu nor- malmente, mas o santo parecia pressentir 0 que acon- teceria e desempenhou com especial amor ¢ intensidade todas as suas tarefas: a missa, as confissdes, a atengio das pessoas que o visitaram. Um detalhe curioso ¢ in- sOlito é que, em vez de apenas rezar o Gléria durant a celebracao da missa, como era seu costume, dec canté-lo, e 0 fez com grande alegria ¢ devogao. dos que se confessaram com ele nesse dia foi o cardeal Cusano, a quem Filipe acompanhou até as escadas que desciam do quarto. O santo apertou-lhe a mao e olhou-o afetuosamente, como se se despedisse para sempre do amigo. Depois disso, e mesmo depois do inh, con- tinuou a atender aqueles que o procuravam. Foi deitar-se as onze horas, “trés da noite” segundo a contagem da época. Quando o informaram da hora, disse pensativamente: “Tre e tre fanno sei, e poi an- dremo” (“Trés ¢ trés so seis, ea seguir vamos em- bora”), A uma da madrugada, comegou a andar pelo quarto; o padre Anténio Gallonio, que dormia no quar- to imediatamente inferior, ouviu os passos e foi ver © que acontecia. Filipe eyo a deitar-se e tossia levemente. Gallonio pergupfou-lhe como se sentia: — “Antdnio, estou partindo’/ foi a resposta. Todos os seus filhos espirituais foram chamados as pressas, e os médicos ainda tentaram fazer 0 que po- 74 ela pertencia também o pai de Filipe, embora a avan- cada idade ¢ a pobreza das condigdes em que vivia the garantissem certa imunidade. Foi nessa época que Filipe, junto com muitos dos seus compatriotas, deixou a cidade, cra a familia po-lo a salvo dos furores do tirano?/Ou simplesmente permiti ie fazer os seus estudos num ambiente mais sereno? Nao o sabemos; 0 que sabemos & que, por volta dos dezoito anos de idade, o rapaz se mudou para San Germano, localidade situada a meio caminho entre Roma ¢ Napoles, onde o zio Rémolo — primo do seu pai — era um abastado comerciante. SAN GERMANO Filipe passou a viver como aprendiz de vendedor com 0 tio. Nao se sabe exatamente quanto tempo durou a sua permanéncia ali, se poucos meses, se quase um ano... O certo é que esse periodo foi um dos mais de- cisivos para ele, pois marcou a descoberta da sua vo- cacao. Depois das horas de trabalho com o tio, gostava de retirar-se para algum lugar solitirio, onde passava longas horas em oragdo. Ia com freqiiéncia 4 abadia de Montecassino, situada a poucos quilémetros; mas gostava sobretudo de uma minuscula capela solitaria, dedicada a Cristo crucificado ¢ construida sobre um enorme bloco de rocha incrustado numa fenda dos altos rochedos de Gaeta. Dali podia contemplar toda a imen- siddo do mar de um lado, e, do outro, as planicies férteis da Italia meridional, com os Abruzzi ao fundo. Nao cra um simples amor roméntico pela natureza © que o impelia. Pelo contrario, sentia necessidade de 7 estar sO para ler e meditar sobre o rumo a imprimir a sua vida, O que Deus esperava dele? Estava nessas encruzilhadas da vida em que é preciso decidir. Um episédio acontecido muitos anos mais tarde pode dar- -nos uma idgia dos caminhos que os seus pensamentos percorriam. Certa vez, um rapaz veio procurd-lo para conversar. Contou-lhe que estava estudando e pretendia concluir 08 estudos 0 mais ripido possivel. — “E depois?”, per- guntou-lhe Filipe. — “Depois, certamente me tornarei um advogado”, —“E depois?” —“Depois, ganharei muito dinheiro e farei o meu nome”. ~ “E depois?” — “Depois, casar-me-ei ¢ terei uma familia”. —“E depois?” — “Bem, depois...” As respostas saiam cada vez mais lentamente e de maneira mais dificil, porque “depois”... se chega ao fim. Filipe ento abragou-o fortemente e pergun- tou-lhe de modo quase inaudivel: — “E depois?”? Isso mesmo deveria passar pela sua propria cabeca nesses momentos: £ poi? Do alto da Cruz, 0 Cruci- ficado parccia atrai-lo com toda a forga, ao mesmo tempo que fazia parecer tempo perdido todos aqueles anos em que nao o seguira com total disponibilidade. “Convertido a Deus, chorava muito os meus pecados”, diria anos mais tarde. Meditava longamente 0 Evan- gelho e alguns livros de espiritualidade, como as Lau- das, de Jacopone da Todi, ¢ a biografia do beato Co- lombini, fundador dos jesuatos. E ali, na Vida do beato Colombini, encontrou trés conselhos que lhe terdio parecido a resposta clara as suas dividas: “Em primeiro lugar, falar continuamente de Jesus Cristo, do seu amor e dos grandes bens da alma — quanto mais deles se fala em voz alta, tanto mais aumenta o fervor. Em segundo lugar, dar mostras de bondade e amor a todas as criaturas, levar-Ihes ale- & cdo de fazer cotidianamente, mas santo nunca quis deixa-la. Quando o seu estado de saiide piorou ainda mais e os médicos reforgaram a proibigao, queixou-se ¢ fazia com que algum dos seus oratorianos 0 lesse em voz alta para poder acompanhi-lo. Foi nessa época, em 1590, que chegou a0 Oratério Pietro Consolini, que 0 acompanharia a partir de entfio nas suas ultimas ca- minhadas por Roma, amparando-o pelo brago ¢ ouvin- do-lhe o relato das suas confidéncias mais intimas. Em 1594, a febre e a tosse aumentaram, ¢ Filipe teve que permanecer acamado por longo tempo. O papa mantinha-se permanentemente informado, cardeais, bispos ¢ outras personalidades nao cessavam de ir e vir 4 Chiesa Nuova para visita-lo. No meio de todo © softimento causado pela dognga, santo gritava as vezes: “Quem deseja qualque coisa diferente de Deus esté em erro. Quem ama a}o que no seja Deus, co- mete um erro terrivel!”7% Os que 0 acompanhavam puderam presenciar, certo dia, a seguinte cena: deitado no leito, 0 santo, admi- rado, soltou uma exclamagiio: “Senhora, minha Mae Santissima! Senhora, minha Mae bendita!” Depois, cn- tre lagrimas, iniciou um delicado gléquio com a Mie de Deus: “Nao, nio sou digno...’/Esquecera-se de que nio estava sozinho, soerguera-se na cama abrira os bragos como se quisesse abracar alguém.fornou a si quando os médicos Ihe dirigiram a palavra, e imedia- tamente perguntou-lhes se nao tinham visto a Madon- na. A seguir, disse-lhes, totalmente convencido: “Nao necessito mais de vés. A Senhora veio € curou-me” Com efeito, pargceu restabelecer-se por completo mais uma vez”, Mas os meses foram passando e a febre voltou. No dia 12 de maio de 1595, teve uma forte hemorragia, 3 “ARDIA DE AMOR”... Talvez imaginemos que Filipe gozasse de uma sati- de de ferro para suportar tanta azifama ~ confissdes, reunides do Oratério, construgao da Chiesa Nuova, no- vas fundagées, encargos pontificios ~, mas a realidade nao era bem essa. J4 aos sessenta anos parecia um an- cio, tio desgastada cstava a sua constituigdo fisica. ‘Numa manhi de 1586, foi encontrado inconsciente no quarto e os médicos tiveram que fazer enormes es- forcos para reanimé-lo, Recebeu a Ungao dos Enfer- mos e temia-se ja o pior. No entanto, no dia seguinte estava completamente restabelecido. Essa asfixia pas- sageira, porém, e a doenga que teve no ano seguinte contribuiram para envelhecé-lo ainda mais; as vezes, ndo podia participar das reunides da comunidade, ¢ até tomar uma refeig&o custava-lhe muito. Mesmo assim, continuava a ouvir confissées ¢ a atender todos os que recorriam a ele em busca de consolo ou de ajuda. Lé-se numa carta da época que “no que diz respeito ao des- canso das tarefas fisicas ¢ da alma, parece-me ips sivel que ele pare enquanto puder respirar”” Clemente VIII tomou a iniciativa de dispensa-lo da leitura do brevidrio, que todos os sacerdotes tém obri- nR gria e alimentar por clas um amor ilimitado. Em ter- ceiro lugar, submeter-se a grandes mortificagdes que, libertando-nos de nés mesmos, nos tornem livres”. Eram, resumidas numa casca de noz, como dizem os americanos, as grandes linhas do programa que Filipe poria em pritica ao longo de toda a sua vida. Certo dia, na solidao da capela de Gaeta, cristali- zou-se nele, com transparente nitidez, a decisdo de, permanecendo leigo, seguir Cristo e entregar-lhe toda a vida. Era uma entrega que nada tinha de tedrico, pois se 0 jovem nao possuia um centavo a que pudesse cha- mar seu, estava destinado a herdar todos os negécios do tio. Num ato simbélico, duro mas expressivo, ra gou a arvore genealégica que o pai lhe tinha presen- teado: nao queria que nenhum amor diferente do amor a Cristo o atasse. Ele, que sempre se mostrara obe- dientissimo, nao prestou a menor atengao aos insisten- tes rogos dos tios para adiar ¢ reconsiderar “essa sua atitude precipitada”, c partiu resoluto, pyga nunca mais voltar, em diregao 4 Cidade Eterna. Ue O “FRANCO-ATIRADOR” ROMA Como estava a capital italiana quando ld chegou 0 jovem florentino? Apenas seis anos antes, em 1527, 08 exércitos de Carlos V, vindos da Alemanha, tinham devastado a cidade dos Papas. Durante sete dias, as- sistiu-se a uma das paginas mais tristes da sua historia: igrejas e conventos profanados, doentes atirados pelas janelas dos hospitais, prelados ¢ bispos vendidos como escravos, 0 papa Clemente VII refugiado e praticamen- te feito prisioneiro no Castelo de Sant’ Angelo‘... O sal- do final dessa calamidade, acrescida ainda da peste que se espalhou pela cidade no verdo seguinte, foi de apro- ximadamente vinte mil mortos, ou seja, quase a metade da populagao. Uma época de tais dificuldades propicia natural- mente a degradagio fisica e moral do povo. Os hos- pitais estavam abarrotados, abundavam os érfios e criangas de rua, e ainda cingiienta anos mais tarde, quando se instalar num dos bairros periféricos, Sao José de Calasanz ficaré chocado gom a falta de escolas € a ignorancia do povo. Mas esses tempos de desgraca 10 Dizia alguém que “brincar & que & 0 verdadeiro fim da existéncia humana. A terra é uma escolinha infantil, com tarefas que é preciso realizar. O céu é um play- ground”. Ao contrario do que poderiamos ser tentados @ pensar, sio os homens graves ¢ sérios, empenhados em “questdes importantissimas”, os mais ocos € su- perficiais. Em contrapartida, 0 bom humor, a_alegria 0 otimismo de Filipe Neri refletem a atitude interior de alguém que, sem deixar de realizar todas as tarefas concretas que tinha entre as mios, soube de certa forma “antecipar 0 céu”. oe ‘Na sua infincia reconquistada 4 forga de humildade, Filipe fez-sc transparente para Deus e para os homens. No seu ardente amor ao Espirito Santo, aprendeu a di cernir na danga dos acontecimentos — cotidianos ou histéricos, mimisculos ou transcendentes, “maus” ou “pons” —'a melodia eterna do Amor, sempre tisonho e criador. E na sua intima unio com Cristo, péde en- carnar para os seus contempordneos ¢ para todos os homens 0 rosto do Senhor, que, através do véu de | grimas e de sangue da Paixfo, nos contempla com in- finita compreensio, misericérdia ¢ paciéncia ~ com um sorriso de acolhimento e de perdao. De Santa Teresa se diz que “a liigua castelhana Ihe sorria pelas covinhas do rosto”/Todos os santos, de uma forma ou de outra, experimentaram essa alegria transbordante que nasce somente de Deus Criador e Redentor, ¢ somente nEle pode ser encontradaAtravés dos labios, do rosto ¢ dos olhos brilhantes fie Filipe Neri, era Deus quem sorria aos homens. a ao amor de Deus. A Pietro Consolini sugeriu este lema: “Caridade, Humildade, Amor, humildade”. Nas Mas- sime, escreveu: “Amor e¢ alegria, ou Amor ¢ humildade, este deveria ser 0 nosso lema”™, Mesmo quando as piadas ¢ as trogas de Filipe ti- nham por objeto outras pessoas, visavam sempre fo- mentar nelas a humildade para abrir caminho ao amor de Deus. Assim, quando 0 solene Gallonio teve de pre- gar um retiro no aristocratico convento de Tor de Spec- chi, foi instruido expressamente pelo santo a abrir a batina e mostrar como estava remendada a camisa que usava por baixo. E um dos seus filhos prediletos, Pietro Consolini, que estava encarregado de pregar um ser- mao durante o camaval, foi dispensado dessa tarefa por Filipe ¢ incumbido de preparar um “lundrio” es- Pitituoso, um livreto sobre as fases da lua com pre- visdes absurdas e comentarios jocosos. O encartegado de organizar os serm@es, pe. Manni, furioso e agitado, foi correndo falar com Filipe que, em tom muito grave, Ihe respondeu que Consolini estava realizando uma ta- refa importantissima ¢ nao deveria ser perturbado de forma alguma. Percebendo a piada e a intenc&o do san- to, Manni comegou a rir e¢ nio se preocupou mais, Como se pode imaginar, no aconteceu nenhuma “ca- tastrofe”, e diz-se que o tal “lundrio” chegou até aos aposentos do Papa, que se divertiu muito ao Ié-lo. “O santo Espiriéo de Deus sé mora nos corages puros e simples”’?, escreveu o santo. E foi por querer educar os seus oratorianos nesse espirito de pureza e simplicidade alegre que inculcou neles o desprendi- mento de si. Se se fosse Aontar todas as idéias “com que Filipe levava os outybs a rirem de si mesmos, nado se terminaria nunca”, “escreve Bacci, 70 e de moralidade em queda livre atraem também aqueles que Ihes trazem remédio.. No momento em que Filipe chegava a Roma, 0 franciscano Mateus de Bascio empreendia a reforma da sua Ordem vivendo em extrema pobreza junto com dois ou trés seguidores; era o nicleo dos futuros ca- puchinhos. O santo franciscano Félix de Cantalice, um lavrador analfabeto que viria a ser um dos grandes ami- gos de Filipe, safa a pedir esmolas para o seu convento rodeado de criancas, a quem dava aulas de catecismo e distribuia doces. E pelas ruas da Urbe pululavam inti- meros outros pregadores da caridade e da reforma dos costumes, as vezes de colorido um tanto apocaliptico, como Franz Titelmans, um flamengo que, tendo aban- donado as catedras universitarias de Anvers e Lovaina, se dirigira a Roma para gritar & populago: “Ao inferno os pecadores! Ao inferno os adulteros!”, mas que era de uma caridade extrema para com os incurdveis que apodreciam nos hospitais. Chegando a Roma, Filipe foi morar na casa de um conterrineo seu, chamado Galeotto del Caccia, Como meio de sustento ¢ sobrevivéncia, assumiu a tarefa de preceptor dos dois filhos pequenos do seu hospedciro. Podia assim usufruir de um modesto quarto ¢ recebia uma certa porgao de trigo, que levava ao padeiro para que o moesse e transformasse em pio. Durante muito tempo, a sua alimentagao cotidiana nao passaria desse pedago de pio ¢ de algumas azeitonas. Nesses anos, dividiu 0 seu tempo entre o estudo, a oragio e as obras de caridade. Freqiientou aulas de filosofia na universidade La Sapienza e de teologia na de Santo Agostinho, por aproximadamente um ano; mas depois acabou por vender todos os seus livros ¢ interrompeu os estudos. Nao sabemos exatamente por 1 que 0 fez, uma vez que nfo Ihe faltavam inteligéncia e capacidade de compreensao; tanto assim que conti- nuaria até o fim da vida a ler assiduamente as obras de Sio Tomas de Aquino, acabando por adquirir um saber equivalente ao dos maiores tedlogos do seu tem- po. Mais tarde, viria a fazer um comentario esclare- cedor sobre esse assunto: “Estudei pouco e nao pude aprender mais, porque era ab: opvido pela oracio e por outros exercicios espirituais”$/Com efeito, quando es- tudava na biblioteca dos agostinianos, Filipe deixava com muita freqiiéncia que o olhar se desviasse dos li- vros para pousar sobre um grande crucifix que pendia da parede; e bastava isso para que se comovesse che- gasse as ligrimas, sem conseguir manter a atengdo con- centrada na leitura. Durante mais de dez anos, dedicou a maior parte do seu tempo a oragdo, a Ieitura do Evangelho ¢ das Escrituras, ao seu Jacopone e ao seu Colombini, & me- ditago da Paixdo de Cristo, quer em alguma das ini- meras igrejas romanas, quer sobretudo num lugar que Ihe agradava especialmente: as catacumbas wit Se- bastidio, onde chegava a passar noites inteiraé. “Nada ajuda mais 0 homem do que a oracdo”*,/escreveria mais tarde, e foi nesses anos que esta conviegzio ama- dureceu nele. Também estabeleceu para/si o costume de visitar as chamadas “Sete Teen's s grandes basilicas da cristandade: Sao Pedro, Sio Paulo Extramuros, Sao Se- bastidio, Sao Joao de Latrao, a igreja da Santa Cruz de Jerusalém, Séo Lourengo ¢ Santa Maria ‘Maior. Nao se tratava propriamente de uma peregrinagao; de acor- do com o carter espontaneo e cdlido de Filipe, era antes uma visita a uma pessoa querida: Cristo no sa- crario dessas igrejas. 12 riguar 0 que havia de verdadeiro naquele caso, que jé adquirira certa notoriedade. Filipe montou imediata- mente na sua mula, pronto para cumprir a tarefa, ¢ ja estava de volta muito antes do que o Papa imaginara, Percebendo um gesto de estranheza no seu senhor es- piritual, Filipe esclareceu-o com estas palavras: “aSantissimo Padre, essa mulher no faz os tais milagres, pois falta-the a primeira das virtudes cristis: a humildade. Cheguei ao convento bastante desfeito pelo caminho e pelo mau tempo. Em vosso nome, mandei chamé-la e, quando chegou, a guisa de sau- dagdo, estendi-lhe as botas, pedindo-Ihe que me des- calgasse. Ela recuou asqueada e, feita uma fuiria, per- guntou-me por quem a tomava, que ela era serva do Senhor, mas no do primeiro que 1a chegasse com a intengdo de fazé-la de escrava... Quanto a mim, le- vantei-me com toda a paz, montei na minha mulinha e aqui me tendes, convencido/le que nao ¢ preciso submeté-la a mais provas». 7 “Rindo, o Pontifice assentiu as suas palavras” Comentava ainda 0 poeta alemo que “semelhante conduta, viva e curiosa, nio podia deixar de chocar as pessoas e, em sara ocasides, de ser-lhes incd- moda e antipatica” No entanto, acrescenta, “facilmente compteenderemos como semelhante modo de proceder tinha que mostrar-se eficaz ¢ poderoso, uma vez que assim se impunham — mediante 0 amor ~ a_humildade e a obediéncia, que conferem ao intimo querer do ho- mem a enorme forga necessdria para manter-se integro em quaisquer circunsténcias exe, para suportar qualquer tipo de acontecimento””. © que escapou aos olhos de Goethe era que Filipe queria essa humildade da vontade no por almejar uma espécie de invulnerabilidade interior, mas para torné-la desprendida de si e, por isso, capaz de corresponder 69 fiz nada de ye, nada, mas nada mesmo. Nun¢a, nunca fui digno/ B a alguém que viera visitéflo, disse: “Quando estiver curado, mudarei de vida"**/Como im- pressiona essa ingenuidade infantil, essa_simplicidade humilde, quando o santo contava tantos anos de servigo a Deus e eram tio palpaveis as provas da sua santidade! Tinha verdadeiramente reconquistado a infancia, con- digo necessétia, segundo 0 proprio Senor, para en- wrar no reino dos céus (cf. Mt 18, 3) “AMOR E ALEGRIA, OU AMOR E HUMILDADE” Numa época como a Renascenga, em que o orgulho mais arrogante se pusera de moda, com a exaltagZo tedrica do homem no centro do Universo por parte de alguns pensadores, mas sobretudo pelo comportamento desaforado dos principes e dos nobres, pela ostentagio dos ricos e a vaidade das mulheres, a humildade de Filipe punha 0 dedo na chaga e representava neces- sariamente uma espécie de uppercut no queixo da opi- nido publica. O luterano Goethe, 0 autor do Fausto, embora nao chegasse a ser pessoalmente um modelo de humildade, sentiu-se to atraido por essa caracte- risiica de Filipe que Ihe chamava o “meu santo”, chegou a escrever um relato sobre ele, que intitulou O santo humorista. Nessa crdnica, conta-nos com ad- miragiio um epis6dio divertido ¢ significativo, que ou- viu dos oratorianos na Itdlia: “Comunicaram ao Santo Padre que havia num certo convento da campagna romana uma fieira que fazia milagres. O Pontifice incumbiu 0 nosso santo de ave- 68 Iniciou sozinho essa pratica de devogio, mas com © correr dos anos o niimero de participantes foi cres- cendo até tornar-se, por volta de 1555, um fenémeno multitudindrio. No seu auge, o “clima” dessas cami- nhadas pela Cidade Eterna cra qualquer coisa de for- midavel: as pessoas rezavam, cantavam, paravam para comer, descansar e ouvir alguma homilia breve, e a seguir retomavam a marcha. O percurso total exigia cerca de oito horas, o que conferia a essa pratica um espirito de peniténcia nada desprezivel. Muitas conver- sdes e desejos de melhora de vida originaram-se desse costume, que perdura até os dias de hoje. “DEIXAR CRISTO POR CRISTO” Filipe sentia, porém, a necessidade de exteriorizar a sua vida interior em obras: conforme a frase que ele mesmo cunfou, era preciso “deixar Cristo por vontade de Cristo”/para “ir em busca do irmio, figura de Cris- to”?, Relacionando-se com toda a gente, acabou por en- trar em contacto com a Companhia do Divino Amor, uma confraria fundada em Génova por Ettore Vernac- cia em fins do século XV, que se transferira para Roma em 1515. O seu objetivo era atender espiritual ¢ ma- terialmente os pobres, os doentes, os drfios ¢ os en- carcerados. Filipe passou, pois, a dedicar-se junto com os con- frades de Vernaccia e muitos outros voluntarios aos doentes mais miscraveis, abandonados até mesmo pelas proprias familias, no famoso hospital de San Giacomo. Lavavam os doentes, limpavam os corredores, davam de comer aos mais incapacitados, ¢ estavam a dispo- 13

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