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Capitulo 2 A Filosofia Existencial e a Analitica da Existéncia A opcio pela filosofia da existéncia se deve ao fato de acredi- tar que nenhuma teoria em psicologia é suficiente para abarcar a totalidade do existir. Ao contrario, a teoria, na tentativa de definir e abarcar a existéncia, acaba por deixd-la escapar, justamente, porque aprisioné-la é uma forma de ofuscamento. Na filosofia da existéncia, buscam-se as reflexes sobre o exis- tir. Em Heidegger e em Kierkegaard buscam-se os elementos constitutivos da existéncia para, assim, se poder claborar uma proposta de psicoterapia pautada, nado mais em uma teoria, e sim nas reflexes destes fildsofos. Em Heidegger, encontram-se as consideragdes sobre o méto- do fenomenologico, maneira como deve ser conduzida a quest&io do ser e pelo qual se pode tragar este caminho. E importante res- saltar que a perspectiva de Heidegger consiste em uma proposta ontolégica em pensar a questiio do sentido do ser. Este estudo tem como base esta ontologia que, acredita-se, poder ser tomada como fundamento de um pensar a psicoterapia. Das reflexdes de Kierkegaard, aproveitam-se as consideragdes que ele mesmo tece sobre a psicologia, quais sejam: os fatores constitutivos do eu, a consciéncia e a inconsciéncia de se ter um cu, o sentimento de desespero e de angtistia, as posigdes psicold- gicas da liberdade e da nao-liberdade. ANA Maria Lopez Cavo Feuoo - 53 2.1. As Contribuigdes de Soren Kierkegaard Séren Aabye Kierkegaard nasceu na Dinamarca em 1813, morrendo em 1855. Neste periodo, ocorria todo um desenrolar das filosofias sistémicas, com a légica racional. Predominava a filosofia de Hegel, na qual importava a esséncia do homem e a crenga de que toda a sua existéncia poderia ser abarcada por um sistema. Mesmo vivendo neste meio e, a principio, comungando com este pensamento, Kierkegaard rompe com estas idéias, le- vantando a tese de que a verdade humana € paradoxal, portanto, indefinida e sempre em devir. Filho de um protestante obstinado, optou pela vida religiosa, preparando-se para pastor durante alguns anos de sua vida. No entanto, rompeu com a instituigdo religiosa por acreditar, que esta niio se encontrava no estégio da fé, e sim no estético-ético. Pretendendo-se tornar um religioso, porém na fé, e ainda por manter a crenga de que sua familia estava destinada ao sofrimento, devido as blasfémias de seu pai, rompe 0 seu noivado e resolve investir no autoconhecimento que, para cle, consiste na verdadeira atitude de fé. A discussao das tematicas existenciais podem ser ilustradas com acitagao da Génesis quando se refere & criagiio de Adio e Eva: “Entio o Deus Eterno pds o homem no jardim do Eden, para cuidar dele e nele fazer plan- tagio. E o Eterno deu ao homem a seguinte ordem; vocé pode comer as frutas de qualquer jardim, menos da drvore que dé 0 conhecimento do bem e do mal...” (Génesis, 2:15-17) Kierkegaard faz referéncia 4 Génesis, justamente ao trechoem que Deus declara: “porém, os frutos da drvore do bem e do mal nao comerds”. Este escritor acredita que, a partir desta ordem, se inicia toda a angiistia do homem. A imposigio de Deus constitui- se em uma proibigao, cuja desobediéncia traré ao mundo as pos- sibilidades do bem e do mal. A proibigio provoca em Adio o 54 - A Escura & a Fata em Psicorernpia vislumbrar de dois possfveis. Desta forma, Addo descobre sua condi¢ao de liberdade. Afirma Kierkegaard que a proibicio' inquieta o homem, pois desperta-lhe aflitiva possibilidade de po- der (KIERKEGAARD, 1968). Ado poderia comer ou niio o fruto. Ea possibilidade, o “po- der”, que Ihe traz a ambigiiidade e a angtistia. Na sua natureza livre, cabe-Ihe a escotha. Poder escolher implica em tornar-se res- ponsdvel por seu destino, Nesse espago de liberdade, Addo escolhe e urrisca o novo e, portanto, € condenado a viver as conseqtiéncias de sua escolha e a construir por si mesmo seu destino, pois, uma vez que optou pela liberdade, este far-se-ia consoante seu arbitrio, julgado com © seguinte termo: “por certo morrerds”. Nao sabia do que se tratava mas, como havia seguido o caminho proibido, intufa que algo de ruim Ihe ocorreria e que morrer nao se constituiriaem um premio, € sim em um castigo. 2.1.1. 0 Desespero Humano Soren Kierkegaard, em “O desespero humano”, relaciona o oficio do médico ao do psicdlogo, afirmando a diferenga do pare- cer destes dois ao do vulgo, Este deixa se enganar pela aparéncia, enquanto os outros olham-na de outro modo. O médico trata e diagnostica a satide ea doenga, 0 psicolégo trata e diagnostica o desespero. Afirma Kierkegaard: “Assim se comporta o psicdlogo em face do desespero. Ele sabe o que 6 0 desespero, conhece-o, € portanto no se contenta com a opi- nidio de quem nfo se cré ou se cré desesperado.” (1961, p.51) Propide-se, também, a descrever o que € o homem e afirma: “o homem € espirito”. Na tentativa de responder que é espirito, diz ANA Maria Lopez CaLvo Feuoo - 55 “o espirito € o eu”. O eu, afirma ele, € uma relagio que niio se estabelece com qualquer coisa alheia a si mesmo, mas consigo proprio. Diz ainda: “mais e melhor do que na relagao propriamen- te dita consiste no orientar-se dessa relagdo para a propria interioridade”. O eu nio é relag&o em si, mas sim 0 voltar-se so- bre si proprio. Se a relagiio se conhece a si propria, esta Ultima relagio constitui-se como um terceiro termo que, ao se conhecer, estabelece uma relagao derivada, que é uma relagiio que se esten- de além de si prépria pois, por nao ser apenas consigo, passa a ser também com outrem (/d.,p.11). A existéncia humana implica na relagaio consigo mesmo e na relagfo com o mundo. Termina dizendo: “O homem é uma sintese de infinito e de finito, de tem- poral e de eterno, de possibilidade e de necessidade.” (/d., p. 33) Ao se referir 3 sintese, Kierkegaard nfo a aceita como na dialética de Hegel, na qual o terceiro termo seria a unidade nega- tiva. Acredita que a relaciio se conhece a si prépria, por isto 0 terceiro termo é positivo, resultando dai o eu. Afirma: “Na sintese enquanto relagao de 2 ter- mos —o eu nao existe — pois a relagdo com 0 3° termo, constitui-se em uma unidade negativa—e cada um daqueles termos se relacionam com a re- lagio, tendo cada um existéncia separada no seu relacionar-se com a relagdo.” Se a relagio se co- nhece a si prépria, esta tiltima relagao é um ter- ceiro termo positivo — ¢ temos entao o eu... Uma relagio desse modo derivada ou estabelecida 6 0 eu do homem; € uma relagio que nfo é apenas consigo proprio, mas com outrem.” (/d.,p. 34) Ha, entiio, duas formas de desespero. Haveria apenas uma se 0 eu fosse estabelecido por ele proprio —desespero pela vontade de sermos nés préprios. Porém, como ha também a relagdo estabelecida com a prépria relagio, surge 0 desespero por nao 5G - A Escura € 4 Faia em PSICOTERARIA sermos nés proprios. Af esta a dependéncia do conjunto da rela- gao — que € 0 eu pela incapacidade por si proprio se estabelecer. Na formagio e manutengio do eu, nao ha lugar para o equilibrio nem para o repouso, No desespero pela vontade de sermos nés proprios, hé cons- ci€ncia do desespero que nao se justifica como fenémeno de origem exterior. Porém ocorre também 0 desespero inconsciente de ter um eu que, segundo este pensador, consiste no verdadeiro desespero, que é o desesperado que nao reconhece a si préprio. Assim exemplifica Kierkegaard: “Uma pessoa que sofrendo de vertigem refere-se a isto com um peso sobre a cabega.” Esta pes- soa refere-se a0 desespero como sendo de origem exterior, Sobre aquele que vivencia desta forma o desespero, considera Kierkegaard: “(...) se este desesperado quer por for- ¢a, por si & 86 por si, suprimir 0 desespero, ele dird que nao o pode conseguir, e que todo o seu ilusério esforgo o conduz somente a afundar-se ainda mais”. (/d., p.35) Refere-se 4 universalidade do desespero refletindo: “Assim como talyez nao haja, dizem os médi- cos, ninguém completamente so, também se po- deria dizer, conhecendo bem o homem, que nem um s6 existe que esteja isento de desespero, que nao tenha 14 no fundo uma inquietag4o, uma per- turbag%o, uma desarmonia, um receio de no se sabe o qué de desconhecido ou que ele nem ousa conhecer, reccio de uma eventualidade exterior ou receio de si-préprio; tal como os médicos dizem de uma doenga, o homem traz em estado latente uma enfermidade, da qual, em um relaémpago, raramente um medo inexplicdvel Ihe revela a presenga interna.” (/d., p.49) ANA Maria Lopez Calvo Feuoo - 57 Mais adiante, diz ainda: fo & ser desesperado que € raro; 0 raro, o rarfssimo, é realmente nao o ser. O que a maior parte nfo vé é que, nado ser desesperado, nao ter consciéncia de o ser, € precisamente uma forma de desespero.” (/d., p. 50) 2.1.1.1. 0 desespero e a constituigaéo do eu O cu se constitui pela vivéncia do desespero mas, ao mesmo tempo em que tenta resolvé-lo, perde-se. Na tentativa de esca- par da vida, ou de viver nas certezas ou, ainda, obter resolugées através da imaginagao, se dé a perda do eu. Na descrigiio da sintese do eu, Kierkegaard distingue abstratamente as diversas personificagdes do desespero, descrevendo os fatores desta sin- tese, ao dizer que o eu se constitui na dialética de finito e infini- to, do possivel e necessario e de eterno e temporal. O existente resulta de uma légica provocada pela tens&o entre os contrarios € encontrar 0 eu consiste muito mais em aceitdé-los do que em elimind-los. O encontro com o préprio eu implica no enfrentamento do paradoxo, 0 qual se constitui em um absurdo para a razio, mas nao para a paixfo. Nesta, o que se vivencia € 0 incerto, 0 irrevogavel — o desespero. No enfrentamento destas situagdes, ocorre a superagao do desespero frente ao paradoxo. O perigo de se perder o eu de forma despercebida € grande: ocorre como se nada estivesse acontecendo. Enchendo-se de ocupagGes, olhando a multiddo & sua volta, o desesperado esquece-se de si proprio, perde-se no outro. O encontro e a perda do eu pode ser descrita através dos fato- res de sintese do desespero: finito e infinito, necessidade e possi- bilidade, eterno e temporal. "AE A FALA EM PSICOTERAFIA 2.1,1.1.1. 0 desespero visto sob a dupla categoria do finito e do infinito: “oeu como sintese de infinito que ilimita ede finito que limita torna-se um existente... Eu é sintese em evolugao a cada instante de sua exis- téncia, nfo tem existénc’ e nao 6, senfo 0 que sera. Enquanto nao consegue tornar-se ele proprio, 0 cu nao € ele préprio, mas nao ser ele proprio € o desespero.” (Id., p.35) O desespero do infinito pela caréncia de finito se caracteriza pelo eu que se perde no infinito. Aqui, a imaginagio € 0 agente da infinitizagao. E possfvel ter-se um sentimento, um conhecimento, um querer imagindrio. A imaginagiio é a reflexo que cria o infini- to. O imagindrio transporta o homem ao infinito, afasta-o de si proprio, e quanto mais de si se afasta, mais se impede de regres asi préprio. sar Uma vez no imaginario, sentimento, vontade e conhecimento se tornam imaginaciio e, assim, 0 cu evapora-se mais e mais. O sentimento torna-se insensibilidade impessoal, desumana. O conhecimento no imaginario, nfo estando par a par com a consciéncia, torna-se monstruoso. A vontade no imagindrio tor- na-se infinitizada nos seus fins e resolugdes. Continua Kierkegaard: “(...) e quando uma de suas atividades, querer, conhecer, sentir, se perdeu a: gindrio, todo 0 eu corre igualmente 0 risco de nele se perder, e, abandone-se volunta: deixe levar: nos dois casos permanece responsa- vel. Leva entio uma existéncia imagindria, infinitizando-se ou isolando-se no abstrato, sem- pre privado do seu eu, do qual consegue se afastar cada vez mais.” (/d., p.58) m no ima- amente ou se ANA Maria Lopez CaLvo Feuco\- 59 No desespero do finito pela caréncia de infinito, diz o filésofo, ° as perce s arén- homem ganha todos os bens do mundo, mas perde seu eu care! cia de infinito comprime e limita desesperadamente. E é essa es- (reiteza que constitui a perda do eu, perde-se porque se fecha a finito, Este eu perde a sua originalidade, deixa de tornar-se ele proprio, na sua originalidade. Este deseapetado, passando a sme sua vida, é bem visto em toda a parte, tem status, afirma Kierkegaard: ‘Aqui nenhuma dificuldade, aqui 0 cue a sua in! zacio deixaram de ser um. entrave; polido como um seixo, o nosso homem gira de um lado para o outro como moeda corrente. Bem ons ge de o tomarem por um desesperado, € precis mente um homem como a sociedade os quer. A contemplar as multiddes a sua volta, e enche: se com ocupagdes humanas, a tentar compreen- der os rumos do mundo, este desesperado esque- ce-se a si préprio, esquece 0 scu nome, nao ousa crer em si préprio e acha demasiado ousado sé-lo. E muito simples e seguro assemelhar-se aos ou- tros, ser uma imitagio servil, um ntimero, confun- dido no rebanho.” (/d.,p.40) 2.1.1.1.2. 0 desespero visto sob a dupla categoria da necessidade e das possibilidades Aestrutura originaria do homem esta, com efeito, sempre dis: posta como um eu que deve tornar-se ele proprio. Accitar os seus proprios limites, sem abandonar as possibilidades, eis a questio. Sobre isto, Kierkegaard diz: “(...) € certo que um eu tem sempre an- gulos, mas daf apenas se conclui que € preciso dar-Ihes resisténcia, ¢ nao limd-los; e de modo algum significa que, por receio de outrem, 0 ctl deva renunciar a ser ele préprio ou nao ousar GO -A Escuta £ A Fata Em PSICOTERAPIA sé-lo em toda a sua originalidade, na qual, somos plenamente nds por nés prdprios.” (/d., p.39) Na dialética do desespero visto sob a dupla categoria do pos- sivel e da necessidade, Surge 0 eu livre, condigao para que o eu {vel quanto 0 necessario siio impres- se transforme, Tanto 0 possf cindiveis para a transformagio do eu. Na falta do possivel ou do hecessario, o cu se desespera. A necessidade retém os possiveis da mesma forma que o possivel langa os necessdrios. Nesta dialética ocorre o movimento do eu, que nao cessa, sem se per- der nas possibilidades. Na necessidade, 0 eu € ele préprio, reco- nhece seus limites mas, nas possibilidades, realiza-se, langa-se para o poder-ser. Quando o eu realiza a nece: lade, se une ao possivel. Nas palavras de Kierkegaard (/d., p.44): “A necessi- dade parece ser apenas de consoantes, mas 0 possivel é nece rio para pronuncid-las.” O possivel e a necessidade sio igualmente essenciais para que 0 eu se transforme: tanto o eu se desespera por falta do possivel quanto por falta da necessidade. O eu é necessidade porque é ele proprio. E possivel porque deve realizar-se, tor- nar-se € partir. Tornar-se si proprio é um movimento sem deslo- ° camento. No desespero do possivel pela caréncia de necessidade, 0 cu no possivel repele a necessidade. Perdendo-se no possivel, perde qualquer vinculo com a necessidade. No possivel, 0 eu esgota-se, debatendo-se, sem contudo mudar de lugar, pois o seu lugar é a necessidade, Quando o campo do possfvel se amplia em demasia, nada se tealiza € o possfvel que tudo abarca, inclui também o eu. Aqui o eu carece de real, carece de necessidade. Nao se submetendo & necessidade, desrespeitando as fronteiras nteriores, o homem niio toma consciéncia do seu eu, perde-se. Seu eu se reflete imagina- riamente no possfvel. ANa Marta Lopez Calvo Feuoo - 64. Para ilustrar a dialética do possfvel com caréncia da necessida- de, pode-se citar Kierkegaard no seguinte trecho (Id., p.86): “O possivel lembra a crianga que recebe um convite agradavel e diz logo sim; resta saber se os pais darao licenga... ¢ os pais de- sempenham 0 papel da necessidade.” O possivel pode ocorrer na forma de desejo, de nostalgia, e também na forma de melancolia imaginativa (esperanga, receio ou angtistia). No possivel do desejo, o possivel nao se atrela 4 necessidade; buscando o desejo, como possivel, esquece de si mesmo, que € 0 necessirio. Na melancolia, sucede 0 contrario, de maneira idéntica. O homem possuido por um amor melancélico ‘ em perseguir um possivel da sua angtistia, que acaba angtistia ou nessa empenh por afasta-lo de si proprio e 0 faz morrer ne: extremidade, na qual ele tanto receava perecer. No desespero da necessidade pela caréncia de possivel, o eu com caréncia de possivel se perde no necessirio. Aqui, nao ha lugar para arriscar as possibilidades. Tem-se af o fatalista, em que tudo € o que era para ser, negando a sua liberdade. A necessidade, sem lugar para o eu livre, torna-se asfixiante. 2.1.1.2. 0 desespero na categoria da consciéncia Na forma da consciéncia, pode-se perceber o desespero in- consciente de se ter um eu, onde o desespero aparece de forma tao sutil que nem parece licito denominar de desesperada esta existéncia. Eo desespero consciente de sua existéncia. Conside- rando a grande variabilidade da consciéncia, na vida real tornam- se confusos os dois extremos do desespero: a inconscitncia total © acompleta consciéncia. Afirma Kierkegaard: “Habitualmente, o estado do desespe- rado, ainda que irisado por muitas tonalidades, esconde-se sob a sua prépria penumbra. No seu 62 - A Esouta & a Faia em P: intimo, ele bem duvida do seu estado, sente-o até, como quando se pressente a doenga latente, mas sem grande vontade de descobrir qual seja. Em Certo instante quase apercebe do seu desespero, outro dia ja seu mal - estar the parece ter outra origem, como se fosse qualquer coisa exterior, fora dele, e cuja substituigao aboliria seu deses- pero. Ou quem sabe se, por meio de distracdes, ou pelo trabalho, por ocupagdes que sirvam de Passatempo, ele nao procura manter sobre seu estado, essa penumbra, mas mesmo assim, sem querer ver nitidamente que é com tal fim que se distrai, que age assim Para nao sair dessas meias trevas.” (Id., p.56) No desespero inconsciente de ter um eu, este se torna presa da Sensualidade, vive apenas para 0 corpo, conhecendo apenas as categorias dos sentidos: prazer e desprazer. Carece de paciéncia, quer tudo no imediato. Ao cessaro encantamento das ilusdes dos sentidos, surge o desespero em forma de angustia do nada, 0 sen- timento de vazio. Se o desespero jd é uma forma de negacdo dos paradoxos, a ignorancia também o é. Ao contrario do que se imagina, é nesta situagao que se correm mais riscos. Trata-se do desespero que se , ignora, forma em que 0 desespero mais esta presente no mundo, O desespero consciente da sua existéncia se revela de duas formas: uma na qual se deseja desesperadamente ser si proprio; outra na qual nao se deseja desesperadamente ser si proprio. Ambas se implicam mutuamente. 2.1.1.2.1. 0 desespero de nao querer ser si préprio: Falando do desespero do temporal ou de algo temporal, Kierkegaard afirma: ANA Maria LOPEZ CaLvo Feuoo - 63. “Encontramo-nos aqui ante o puro ime- diato, ou no imediato como uma reflexdo apenas quantitativa. - Nao se encontra consciéncia infinita do eu, ...; neste caso, desesperar, é sim- plesmente sofrer; suporta-se passivamente uma opressio que vem de fora, e de modo nenhum o desespero vem de dentro como se fosse uma agiio,” (d., p.58) Kierkegaard denomina esse homem como o homem do espon- taneo, que é simplesmente um detalhe na imensidade do tempo- al, parte integrante do mundo material. A espontaneidade por nao possuir um eu, j4 que ndo se deseja o eu que é. Neste homem, no momento do desespero, a primeira coisa a que aspira é ser um outro que nao €. Por isto, este eu é apaixonado por uma ilusiio de ser 0 que nao , acreditando em uma transformagiio. No entanto, age de forma passiva, dai o desespero-fraqueza. Vive no irrefleti- do, eu do irrefletido, até que surja algo que o faz desesperar. Com sua passividade, vé 0 desespero como externo. Vive no imediato, desconhecendo a fragilidade que o sustenta, O imediato, que facilmente se aniquila e ao qual nao se retoma, constitui-se no desespero, O cu do imediato que reflete sobre si préprio vive o desespero de forma diferente. Neste, a consciéncia do eu se da pela reflex4o: nao se v6 como algo contingente. Pelo esforgo pessoal, regressa a si mesmo e age na tentativa de escolher-se, reconhecendo-se in- dependente do exterior. A ocorréncia de qualquer eventualidade pode fazer retroceder a este lugar entre 0 eu e o imediato. Jé se apercebe da ruptura entre 0 eu e 0 imediato. Desespera, nfio quer ser si proprio, porém nao se divorcia do seu eu, visita-o de vez em quando. Preocupa-se com a morte, questionando se é a imortali- dade uma realidade, o que se justifica pelo fato de nao reconhecer © seu eu. Segundo Kierkegaard, o desespero impregnado deste tipo de reflexao é 0 mais dificil de se encontrar. G4. -A Escuta c 4 Fata em Psicoreraria 2.1,.1.2.2. 0 desespero do querer ser si préprio O desespero do eterno ocorre dialeticamente com o desespe- ro temporal. Enquanto este é o desespero-fraqueza, 0 desespero do eterno é 0 desespero de sua fraqueza. Aqui a consciéncia de- sespera de sua fraqueza, pois a reconhece, vé que sua fraqueza consiste em valorizar em excesso 0 temporal. Desespera quanto ao eterno, de si proprio e do temporal. No entanto, j4 existe a consciéncia do eu, pois desespera de si préprio, consciente do que € o desespero. O desespero nio é tomado com passividade, mas pela prépria agiio, de que o desespero vem do eu. Nao mais corte 9 esquecimento de si proprio. O eu continua a querer nao Ser si préprid consoante 0 reconhecimento de tanta fraqueza. No entanto, nao pode mais esquecer-se de si proprio. O desespero hermético, tipo de desespero mais profundo que 0 anterior, aparece com menos freqiiéncia. O eu atento a si pro- prio ainda se recusa a ser ele proprio. Oposto ao eu espontaneo, o despreza por sua pouca inteligéncia.. Vive ocupado com a relaciio do seu eu consigo mesmo, tornando-se um solitario ou um em- preendedor inquieto. O desespero no qual queremos ser nds prdprios, ou desespero desafio, ocorre quando o desesperado que nao quer ser ele pré- prio se da conta do porqué de nao querer sé-lo, Tem-se, entio, o desespero desafio, no qual o desesperado quer ser ele préprio. Abusando da eternidade inerente ao eu, conduz-se a fé, segundo Kierkegaard, que prossegue: “Nesta forma de desespero, a conscién- cia do eu aumenta progressivamente, e portanto, a par do que é 0 desespero e da natureza da deses- perada do estado em que se est; nela o desespero tem consciéncia de ser um ato e nao provém do exterior como um softimento passivo sob a pres- sfo ambiente, mas diretamente do eu.” (d.,p.77) ‘ANA Maria Lopez CaLvo Felioo - 65 Neste desespero com a consciéncia da infinitude, a forga do cu dirige-se para os seus possfveis, criar a si mesmo, escolher-se no seu eu concreto, Enquanto sua prépria concretizagdo, sabe que comporta necessidades e limites, bem como suas possibili- dades e seus recursos (/d., p.78): “(...) e recusando-se a aceitar © seu eu, a ter como seu esse eu que Ihe coube a sorte, quer, pela formula infinita, que persiste em ser, construir cle préprio o seu eu”. Se esse eu é apenas experimental, nado reconhecendo nenhum poder acima dele, este nao faz sendo contemplar-se. Também é desespero passivo, pois seu esforgo para ser ele proprio dissolve- se, deixando de ser um eu, tornando-se apenas uma hipétese. Diz Kierkegaard (/d., p.79): “O homem desesperado nao faz mais do que construir castelos no ar € bater-se sempre contra moinhos de vento.” No desespero demoniaco pela consciéncia desse eu passivo de querer ser ele prdprio, acaba nao tolerando qualquer situagio dificil. Pela paixdo no seu tormento, torna-se demonfaco: cré na sua superioridade infinita, sem querer a ajuda de ninguém. Acaba por temer o infinito, formando-se uma abstragdo infinita do eu. 2.1.2. 0 Conceito de Angistia: posigdes psicolégicas de liberdade Em “O conceito de angustia”, publicado em 1844, Kierkegaard afirma que a angtistia constitui-se em um tema de interesse da psicologia e continua: “O propésito deste trabalho é tratar psico- logicamente o conceito de angtistia” (Id., p.19). Define a angtistia como a antipatia simpatizante e simpatia antipatizante, mostrando assim o caréter da mobilizac&o deste sentimento que, ao mesmo tempo em que traz o desejo como devir, traz o temor do amanhi, justamente o imprevisfvel. 6G - A Escurs EA FaLA GM PSICOTERAPIA O homem, por sua natureza pecaminosa — ou seja, langado as possibilidades — vive na intrangqitilidade. O pecado original, que implica na liberdade de escolha, traz a consciéneia da culpabilida- de, o sofrimento ea angntistia. A angtistia, sentimento que ocorre frente A possibilidade, ca- racteriza a situaciio de liberdade. O homem é livre para o pecado. Tanto 0 pecado quanto a liberdade niio se dio a partir de nenhu- ma premissa. “A liberdade ¢ infinita e provém do nada”, A angtis- tia surge frente ao real estabelecido ¢ ao futuro, Cabe a psicologia nao o contetido do pecado, mas a sua pos- sibilidade. Diz Kierkegaard: “A psicologia tornou agora a encontrar aangtistia como objeto. Deve, porém, manter pru- déneia. A histéria da existéncia individual pro- gride em movimentos de estado a estado e cada estado € fixado por um salto...O estado que ante- cede cada salto é a maior aproximagao psicolégi- ca que pode ser atingida com respeito ao salto: esse 6 0 objeto da Psicologia. Em cada estado existe uma esfera de possibilidades e, em igual medida, a angiistia.” (/d.,p.116) 2.1.2.1. Posigées psicolégicas da liberdade diante da escolha Ao homem, em sua liberdade, cabe a escolha. Frente ao ter de escolher-se, este homem pode assumir diferentes posigdes: —A angtstia: tealizada a escolha, sem diivida, extingue-se uma possibilidade. A escolhacomo possibilidade fica intimamente relacio- nada com a angtistia. A escolha est4 implicada em sua conseqiién- cia, ainda que esteja alheia a liberdade. A conseqiiéncia apresenta-se como possibilidade de novo estado. E & com essa conseqiiéncia e Tespectiva responsabilidade que a angtistia vai entrar em relagiio; ‘ANA Maria Lopez CaLvo Feioo - 67 A culpa existencial: a culpa nasce da angistia e se da pela liberdade nao exercitada em sua possibilidade plena. O arrepen- dimento, que no anula a escolha, traz a lamentagao e, portanto, a tristeza. A angtistia, quando chega ao ponto maximo, torna-se remorso: “o remorso perdeu a razio e a angiistia ficou conde- nada ao remorso.” (/d.,p.119) Tanto a culpa quanto a angiistia remetem a sentimentos de ambigiiidade como de responsabili- dade; — A hermética: a negagio da liberdade se dé pela néio-comuni- cacao, nfio-revelag&o, na tentativa de esconder-se. Equivale ao mutismo, fechamento, revelando-se involuntariamente. A liber- dade 6 sempre comunicante. A nao-liberdade faz-se cada vez mais fechada. A revelag&o involuntaria pode ocorrer com diferentes express6es: nos hipocondriacos com queixas corporais, nos so- nhadores que em estado de queda permanecem no imaginario, nos grandes apaixonados quando introduzem em sua aberragao profunda, a relaciio com o outro, afastando-se de si mesmo, nao conseguem mais entender-se com a sua propria existéncia. O ser hermético, atingido pela liberdade, sente-se dominado pela an- gtistia. A linguagem, como promotora da libertagao, pode tirar 0 hermético da abstragdo vazia e, portanto do hermetismo. A reve- lagio constitui-se como sinal de libertagao; — A negagao da liberdade: ocorre quando se deixa que a vida, 0 acaso ou o tempo deixem as coisas acontecerem. A n@o-liber- dade justifica-se pelo stibito; com a negagio do continuo, des- * conhece leis, por nao decorrerem de fendmenos fisicos. E no fendmeno psiquico que se dd o repentino, em que aparece a nao-liberdade. Os modos de apresentaciio da nfio-liberdade se dao pela for- ma com que o homem se relaciona com a liberdade, na tentativa de escapar da angtistia. A relag&o desta forma estabelecida se apresenta de diferentes maneiras, segundo Kierkegaard: 68 - A Escuta ca Fata Em PSICoTERAPIA “como preguiga que deixa para amanha 0 ato de meditar, como curiosidade que fica sem- pre e sempre curiosidade, como automistificacdo desonesta, como molicie femenil que se entrega a discrigio dos outros, como trabalheira estulta.” Ud. p.140) ~— Perda somatico-psiquica da liberdade: a angiistia, frente A presenga da liberdade — porém querendo negé-la -, pode levar o Corpo.a se pronunciar. A resposta do corpo podera aparecer sob forma de angistia, através de “uma sensibilidade por demais exei- tada, uma irritabilidade muito tensa, um neryosismo i flor da pele. a histeria, -ahipocondria etc., sao outras diversas nuances do de. moniaco ou podem sé-lo.” (Zd., p.138,139). Este homem foge dos contatos, uma vez que os percebe como ameaga A sua liber- dade. Foge até do préprio acaso. Afirma Kierkegaard: “Desse modo, nada mais usual que es- cutar de um demonfaco... do horror de sua con- di ‘ao: ora, deixem-me em paz em minha mis: tia!. Ou escutar outro, fazendo referéncia a cer- ta época de seu passado: talvez, entio eu pudesse ter me salvado! — resposta de todas, a mais trdgica. Nem castigos, nem requisitérios, 0 pre- ocupam, a er, muito ao contrario, qualquer palavra que tenda a tornar a encontrar a liberda- de encerrada no fundo de sua nio-liberdade,” (Op.cit.,p.139): 7 Perda pneumitica da liberdade: aqui a perda da liberdade se Justifica pela crenga na certeza da imortalidade, em sentido sim- plesmente abstrato. Para Kierkegaard, a verdade existe quando a agio a produz, Se a verdade existe de outro modo para 0 ser, ou ainda que ela exista fora de si, tem-se a negacdo da prépria liber- dade. Nestes termos, a verdade como superstigdo ou como falta de crengas constitui-se como nio-liberdade. Ana Maria Lopez CaLvo Feuoo - 69 formas de perda da liberdade: a interioridade alegada como estando fora ou excluida de si mesmo. Diz Kierkegaard (Id., p.146): “Sempre, toda a caréncia de interioridade fica redu- vida a duas formas essenciais: ou uma ago passiva, ou uma pas- sividade ativa; e sempre esté na mediagio do eu.” Quanto mais distanciado o homem se encontra de sua consciéncia, mais se pro- nuncia o fenémeno de nao-liberdade. A consciéncia de si é 0 con- tetido mais concreto de que a consciéncia pode dispor e a cons- ciéncia do proprio individuo nao é a consciéncia de um eu puro. Nas palavras de Kierkegaard: “porém a de um eu tao concreto como jamais nenhum escritor, ainda 0 mais rico em pa- lavras, ainda o mais forte na descrig&o, conseguiu tragar, porém que todo e qualquer homem pode achar em si proprio.” (Id., p.146) Esta consciéncia do eu implicada em devir, nao consiste em um todo acabado para a contemplacgao. A consciéncia do eu apa- rece como atividade, nio como estado que, por sua vez, se mos- tra como interioridade. Quando a interioridade niio equivale & consciéncia do eu, constata-se o hermético: a caréncia da interioridade pode se expressar pela angtistia de se conquistar tal consciéncia. A auséncia de interioridade leva o eu a perder-se na finitude. A interioridade €, portanto, eternidade. Por nao se entender o eter- no, tem-se como resultado negar-se o eterno no homem, viven- do-se de momentos, que se tornam uma abstragio. O eterno de modo inteiramente abstrato aprisiona o homem ao temporal, que hao consegue ver concretamente seus limites. A eternidade dé-se no tempo, gragas 4 imaginagio. Nao experimentar a angtistia implica na perdigio do eu, uma vez que conhecé-la ou nela emergir constitui o possivel da liberdade. 70 - A Escura € a Fata em Psicoversria 2.1.3. Meu Ponto de Vista: ilusao e transparéncia de si mesmo Em “Mi punto de vista”, de 1846, Kierkegaard define-se como um autor religioso. Suas obras estéticas e éticas consistiram em uma estratégia para encontrar 0 outro, dirigindo-se até onde este outro esté para, entio, dali comegar. Continua dizendo que “ajudar ao outro consiste em desembaraga-lo dos lagos da pré- pria ilusao”, e assim chegar a ser 0 que é na sua interioridade. Este percurso, no entanto, se dé pela reflexao. Nesta obra, Kierkegaard tem como projeto esforgar-se no sentido de tirar o homem da ilusfo de ser aquilo que nao é. Traga, para tanto, as seguintes recomendagées: ~ A destruigao da ilusao por via indireta: para que a ilusiio seja arrancada pela raiz, deve se proceder por mei diretos pois, de forma direta, sua destruigao fica impossibilitada; ~ O permanecer na situagao, acompanhando-a e ficando pré- ximo. Ao ajudar 0 outro a sair da ilusdo, deve-se permanecer na situagao, manter-se préximo, apenas acompanhando aquele que esta na iluso. S6 desta forma haverd a possibilidade de arrancd- lo da ilusio, sabendo-se, que a tarefa é dificil de qualquer modo; ~ O niio-testemunho do auto-reconhecimento da ilusfio: ao organizar-se o método indireto, deve-se proceder dialeticamente e, em seguida, retirar-se timidamente para nao testemunhar o re- conhecimento que o homem faz de si mesmo por ter vivido uma ilusdo; ~ Ocomeear por onde aquele que precisa de ajuda esta: aquele que vive na ilus&o, na maioria das vezes, vivencia o estdgio estéti- co-ético. A estratégia consiste em comegar pelas obras estéticas; ~ A paciéncia como forma de atuar é importante. Com impa- ciéncia pode-se acabar fortalecendo a ilusaio. Paciénciae cuidado .” sdo fundamentais para dissipar a ilustio. Recomenda-se ainda o ‘ANA Maria Lopez CALVO Fevoo - 7. entendimento daquilo que quem precisa de ajuda entende: para ajudar ao outro deve-se, mais do que entender 0 outro, entender © que o outro entende. Se m nao for, a ajuda de nada Ihe valera. O processo comega quando se pode entender 0 que © ou- tro entende e a forma como entende; ~ A atitude de humildade: se, orgulhoso pelo conhecimento, aquele que ajuda, antes de estar disposto a ajudar, deseja que o admirem, nao podera levar a cabo a sua tarefa, uma vez que esta apenas se da pela atitude de humildade. Aquele que ajuda deve se colocar como desconhecendo mais do que aquele a quem ajuda; — Serum ouvinte complacente eatento; apenas com muita aten- co se chega até aquele que estd equivocado; — A responsabilidade por parte daquele que ajuda. Quem esta disposto a ajudar carrega a responsabilidade, como também deve despender de todo 0 esforgo no sentido de ajudar. Sabe, no en- tanto, que o valor do feito dependera apenas do resultado obtido; — As interpretagGes poéticas: as metaforas e as poesias aju- dam aquele que fala do seu sofrimento, de forma que ele no saiba que nao se compartilha de sua paixdo, e sim, que se quer livrd-lo dela; — A escuta sem assombro: deve-se ser um ouvinte que sentae escuta 0 que o outro encontra mais prazer em contar. Sem assom- bro, apresentar-se com 0 tipo de paixdo do outro homem, alegre para os alegres, em tom menor para os melancélicos. a O filésofo dinamarqués conclui, a partir destas idéias, que aju- dar nao significa ser soberano e, sim, criado, Ajudar nao significa ser ambicioso, ¢ sim paciente. Ajudar significa ter de resistir, no futuro, a imputacio de que se esté equivocado e, portanto, inca- paz de entender 0 que o outro entende. Apesar de tudo isto, aju- dar sem temor, embora se saiba que, na verdade, esta tarefa é impossivel de se realizar sem medo e sem temor. 72.- A Escum € A Fata em PSicoTeRarin 2.2. As Contribuigdes de Martin Heidegger Martin Heidegger (1889/1976) tinha por objetivo o estudo do ser, como Platéo e Aristételes. Diferenciou-se destes filésofos, no entanto, 4 medida em que acreditava que, para refletir acerca do ser, dever-se-ia preservar a diferenga entre ser e ente, Ele afir- mava que, de Platao e Aristételes até Hegel, a problematica do ser resultou no seu esquecimento. A tentativa de defini-lo, estes filésofos acabaram por entender o ser como permanéncia c, para tanto, se fazia necessdrio congeld-lo em sua realidade. Esquece ram-se do ser e mantiveram-se no ente. Heidegger (1989, p. 29) parte da seguinte reflexdo: “A impos- sibilidade de definir o ser nao dispensa a questiio do seu sentido, ao contrario, justamente por isso a exige”. Com isto, passa a dis- cutir a questo do ser através do seu sentido. Para tanto, enfatiza a ambigtiidade ‘ser’ e ‘ente’, acreditando que esta duplicidade deva ser pensada. Inicia por retirar 0 cardter universal do ser e, partindo para o concreto, propGe-se a iniciar seu estudo pelo ente em sua realidade determinada e concreta. Afirma (/d., p.28): “Uma compreensio do ser ja esta sempre incluida em tudo que se apreende no ente.” Acreditava que, somente pelo exame reflexivo do existente, chegaria & nogio do sentido do ser. Sua reflexiio tem inicio com aanalise do dasein (sein = presenca; da = ai), também denomi- ' nado de pre-senga*. Com esta designagao, pretende substituir a palavra sujeito, que implica em um conceito que tende para o fechamento, por um termo que caracteriza o ser em relagio, portanto, abertura. ‘Ser-ai’ significa o ser langado em um mun- do, cuja mera presenga implica na possibilidade completa e total da existéncia. Desta forma, cria a maxima do existencialismo, onde a existéncia tem prioridade sobre a esséncia. A esséncia do ? Tradugio de Carneiro Lefio em “Ser e tempo.” ‘ANA Maria Lopez Catvo Feuoo + 73. Ser reside na sua exist@ncia, logo, 0 ser néio pode jamais distin- guir-se do seu modo de ser. Suas propricdades nada mais sao do que modos possiveis do existente, Existir, enquanto dasein ou pre-senga, implica em néio ser passivel de objetivacao. Insistir em falar do sujeito ou de um “eu” fechado, para determinar o homem, faz com que se perca a compreensao de sua esséncia fundamental, pois a pre-senga constitui-se como algo que se sustenta no Ambito da abertura do mundo. Ao tentar aprisiona- la, tal esséncia permanecers oculta. 2.2.1. Ser e Tempo: uma analitica da existéncia A publicacio de “Ser e tempo”, de 1927, tem como proposta principal modificar a ontologia da forma como vinha sendo até entdo, pautada na raziio e no sujeito, articulando uma analitica ontoldgica da pre-senga. Assim, através do que se poderia cha- mar de uma hermenéutica do conceito de ser da filosofia, chegar- se-ia ao sentido do ser. Afirma Heidegger sobre a ontologia que esta se direciona para: “designar 0 questionamento teérico ex- plicito do sentido do ser, entiio este ser-ontolégico da pre-senga deve significar pré-ontolégico. Isso, no entanto, nao significa simplesmente sendo um ente, mas sendo no modo de compreensao do ser.” (1989, p. 38) . Para conhecer a estrutura da existéncia, Heidegger indica o caminho da cotidianidade, o que admite nao ser uma tarefa facil. Mas, partindo-se da facticidade do mundo, da vida, em tiltima andlise, e da sua historicidade é que se pode chegar ao ser. Antes, portanto, faz-se necessdrio elaborar a estrutura formal pela qual vai se proceder ao questionamento do ser. 74 - A Escura & 4 FaLa ana Peicorenaria 2.2.1.1, A estrutura formal da questao do ser Heidegger vai buscar, no questionamento, o desenvolvimento explicito do sentido do ser e nao a sua origem. Para tanto, faz-se necessario que a questio do ser transparega, daf surge o seu sen- (ido. A tentativa de desvelar o sentido do Ser sugere que se distin- gam {és momentos constitutivos essenciais: 0 questionado, o/> perguntado e o interrogado. Ao se questionar, busca-se 0 sentido. Para tanto, é preciso re- tirar daquilo que se procura sua diregao prévia. Ciente da procura do ente tal como ele 6, 0 questionado € o ser dos entes que, em si mesmo, apenas € si préprio. Ser de um ente sendo aquilo que o determina enquanto ente, no homem, refere-se a sua humanidade. A questo aqui € colocada como um modo de acesso ao ser, sem entificagio do préprio ser. Para se questionar, faz-se necesséria, portanto, a presenga do questionado e do interrogado. O interro- gado & 0 proprio ente, ou seja, a dimensio 6ntica, onde 0 ente é interrogado em seu ser. No questionado, reside o perguntado, que € 0 sentido do sero que, por fim, 60 que se intenciona e onde 0 questionado atinge sua meta (HEIDEGGER, 1989). Conclui-se que, quando se investiga, propSe-se a questo pre- viamente concebida, embora inapreensfvel e, na busca de tal apre- ensdo, vai-se — pela via da interrogagao acerca de algo — através do perguntado. Questiona-se 0 ser, interrogando o ente em seu ser, perguntando-se sobre o sentido do ser em seu ente. Nesta discussio, Heidegger conclui que: “A procura ciente pode transformar-se em ‘investigagio’ se o que se questiona for deter- minado de maneira libertadora.” (Zd., p. 30) 2.2.1.2. 0 primado ontolégico e éntico da questao do ser A filosofia de Heidegger pretende abarcar o ser em uma pers- pectiva ontolégica, Acredita que o pensar sobre a questio do ser ANA Maria Lopez CALVo Feuoo - 75 se relorne ao éntico, embora partindo deste, em sua cotidianidade j A existéncia & 0 ser do ente do homem: dasein, Em outras mediana, palayras, 0 dasein ou Pre-senga € 0 ente cuja esséncia é 0 existir. Ao refletir acerca do ser e do ente, diz Heidegger (Zd., p. 35): Eo ente que, sendo, se tesponsabiliza e assume seu proprio ser. | deve se darem uma dimensio ontolégica, cuidando para que nao | 2.2.1.3. Dasein ou Pre-senca | “O ser & sempre o ser de um ente”. O ente diz respeito a expre: sido do ser em todas as suas modalidades. O ser esté no que é no seu modo de ser. Diz ainda (Id, p.32), que “o ser esta naquilo que | €e como &, no ser simplesmente dado (vorhandenheit), no teor e recurso, no valor e validade, na pre-senga, no ‘ha’,” Com relacao ao primado 6ntico da questio do ser, a pre-senga, sabe-se que se trata de um Ente, porém um ente — que comparado || com os outros entes — ocupa uma posigao privilegiada. A pre- \ seng¢a sendo pée em jogo o seu proprio ser, estabelecendo uma relagdo consigo mesma. Para este ente, seu ser se manifesta e se compreende, O Ontico, neste caso, é também ontoldgico. A com- preensao da pre-senga por si mesma se dé a partir da sua propria existéncia, ao que se denomina compreensao existencidria. Diz I Heidegger: “A pre-senga 6 um ente que, na compreensio de seu i ser, com ele se relaciona e comporta” (Zd., p. 90). O temaa ser abarcado por Heidegger é 0 ser, porém € 0 ente que vai dar acesso previamente A tematizacio do ser. A abertura © explicitagio da tematica do ser inicia-se no ente. Pelo ente, interessa alcangar a determinagao da estrutura do seu Ser, que nao deve ser confundida com as propriedades entitativas dos entes, Ao conjunto de estruturas ontoldgicas da existéncia denomi- na-se existencialidade. A andlise da existencialidade ocorre pela “~ compreensdo existencial. A analitica existencial da pre-senca se da pela possibilidade e pela necessidade da sua Constituigao 6ntica, Afirma Heidegger: j Com relaciio ao primado ontolégico da questao do ser, afirma Heidegger: “O questionamento, porém —2 ontologia no sentido mais amplo, independente de correntes € tendéncias ontoldgicas -, necessita de um fio con- dutor. Sem diivida, 0 questionamento ontolégico € mais origindrio do que as pesquisas Gnticas das ciéncias positivas. No entanto, permanecera ingénuo © opaco se as suas investi gagbes sobreo | / ay senga. O privilégio dntico que distingue a pre. ser dos entes deixarem sem discussio © sentido senga estd em ser ela ontoldgica.” Ud., p. 38) | do ser em geral.” (/d., p. 37) : fi “(...) apre-senga se compreende em seu | ser, isto €, sendo, B proprio deste ente que seu ser j se Ihe abra e manifeste, com e por meio de seu [ Proprio ser, isto & sendo. A compreensao do ser éem si mesma uma determinagao do ser da pre~ wm A relac&o do ser com o ente ha pre-senga constitui-se na sua iy possibilidade mais propria. Outra possibilidade da pre-senga que | se funda no fato de ser determinada por si propria éa improprie- | dade. A propriedade e a impropriedade sio caracteristicas A utilidade de se levantar a questao do ser esta em partir das possibilidades da ontologia que antecedem e fundamentam as ciéncias dnticas. Assim, a investigacao dos diferentes modos pos- siveis do ser no se daria Por um processo dedutivo, mas por uma constitutivas do ente, cujo ser est4em jogo. A pre-senga existe de compreensdo prévia do ser, modo préprio e impréprio, mesmo que disto nao se dé conta, 76 - A Escur € A Fata em Psicorenavin ANA Mania Lopez CaLvo Feuoo - 77 No modo préprio de existir, 0 ser se relaciona com o ente de forma fluida, No modo impréprio, esta relagao se dé pelas con- vengées do prazer, do interesse, da profiss4o. A analise deste ente se dé em uma regiao fenomenal que lhe é propria. Estende-se do ente para o ser, na sua coisalidade e reali- dade. Portanto, é anterior a qualquer “logia”: psicologia, socio- logia ou outras. A andlise da unidade estrutural ontolégica da pre-senca se di nos seguintes momentos constitutivos: mundanidade do mundo, ser-com € ser-préprio e 0 ser-em. 2.2.1.4. A mundanidade do mundo A mundanidade do mundo constitui-se como sentido ontolégico e existencial “do mundo”. A determinacao existencial da pre-senca se dé como estrutura de um momento constitutivo do ser-no- mundo. Mundo, portanto, é um cardter da propria pre-senga. A nivel pré-ontolégico existencidrio, considerando 0 contexto da pre-senga, tem-se: — mundo ptiblico do nés: modo da cotidianidade mediana da pre-senga que no se sabe de quem se trata. Tem-se aqui a medianidade como indiferenga cotidiana da pre-senga. O munda- no € o intramundano, onde respectivamente se dio 0 modo de ser da pre-senga € 0 ente simplesmente dado no mundo. —circumundanidade, que consiste no mundo circundante mais préximo, apontando para um espacialidade, e que vem ao encon- tro do homem. “Mundo”, como mundanidade, modifica-se e trans- forma-se de acordo com os mundos de cada um; — mundo pr6prio: consiste na interpretago do mundo que a propria pessoa é. Nao se trata de um ato intelectual, e sim de um ato existencial, um modo de ser. Trata-se de um sentido de mun- do, de uma direc&o, modo de estar no mundo, o em si mesmo. 78 - A Escume a Fata eM Psicorerarin 2.2.1.5. O ser-no-mundo: ser-com e ser-proprio A pre-senga com seu modo de ser é no mundo com o seu ser com suas estruturas ontolégicas, dentre elas a de se constituir como um existencial. O “eu” nao se dé sem mundo, sem 0 outro, nem sem sua estrutura de ser, Nesta relagdo, ocorre que a pre- senga acaba sendo levada pelo mundo, pois nele se constitui. Logo, “o ser-em é ser-com os outros.” Continua Heidegger (/d., p.170): “Na base desse ser-no-mundo deteriminado pelo com, o mundo é sempre o mundo compartilhado com os outros. O mundo da pre- senga é mundo compartilhado.” O ser-com, como ser-no-mundo, se funda no fendémeno do cuidado: ocupagio e preocupagio. Na preocupagiio, podem-se destacar diferentes possibilidades: —Preocupagio substitutiva ou substituig&ao dominadora: a pre- senga substitui o cuidado com o outro e ocupa-se desse outro. Mesmo sem se dar conta, este outro pode acabar por ser manipu- lado, dominado e dependente; ~— Preocupagiio de anteposigio ou anteposigao libertadora: a pre-senga, enquanto cuidado, mantém-se na cura. Volta-se para a existéncia do outro e nao dela se ocupa, portanto, cuida. Segun- do Heidegger (/d., p.174): “ajuda o outro a tornar-se, em sua cura, transparente a si mesmo e livre para ela.” A convivéncia recfproca como ocupagdo comum pode se dar na forma de desconfianga, deficiéncia, indiferenga e de ligagio propria. Nos trés primeiros, o ser-com no se sente tocado um pelo outro. No tiltimo, o ser-com libera 0 outro em sua liberdade para si mesmo. E da constituigao do ser da pre-senga 0 ser-si-préprio e 0 ser do impessoal. O impessoal deriva do modo de ser-com e da co-pre- sen¢a no cotidiano. No modo cotidiano do ser, 0 nao-eu, enquanto perda do eu, constitui-se em um modo do ser do préprio eu. ANa Maria Lopez CaLvo Feuoo - 79 curece 0 ser da pre-senga, mostrando-se como espacamento, | A public-idade, como modo de ser do impessoal, encobre e obs- } medianidade, nivelamento: | ~ Espagamento: 0 ser-com como espagamento mostra-se como impessoal, que na convivéncia cotidiana permanece sob a tutela dos outros, os quais lhe constituem o ser, sem que ao menos este se dé conta. ~ Medianidade: 0 ser-com constitui-se como todos no mundo, desconhece-se a si proprio, € aquilo que todos sao, — Nivelamento: 0 nivelamento das possibilidades do ser como tend€ncia da medianidade se dé no ser-com. Na perspectiva de uma investigagdo da estrutura ontolégica da pre-senga na cotidianidade, através do método fenomenolégi- co, buscar-se-4 0 modo-de-ser da Co-pre-senga que, na sua inconstancia, mostra-se ao mesmo tempo em que se esconde. 2.2.1.6. Estrutura ontolégica de manifestagao da pre-senga: o ser-em Heidegger, na tentativa de descrever a estrutura da pre-senga, afirma que este se manifesta sob trés formas ontoldégicas. A pri- meira, que € considerada a situagado origindria, consiste na abertu- ra do ser para o mundo. A pre-senga como disposic&o é denomi- nada cotidianamente como humor, O estado de humor na disposi- * ¢4o constitui-se, portanto, na abertura mundana da pre-senga. E oO estado afetivo que varia Incessantemente, segundo as vicissitu- des da cotidianidade. Nesta forma ontoldgica, o sentimento, que reside na origem de todas as outr: tuagdes, nos revela a situa- ¢4o fundamental. Para se chegar a situagao origindria, tem-se que partir de dois sentimentos que daf derivam: angtistia e o temor. Afirma este filésofo que através de trés perguntas poder-se-A chegar a estrutura do sentimento da situagao de abertura para o BO -A Escurme 4 Fata em Psicoreraria A segunda forma ontoldgica consiste no fato de dar signifi- cados ao mundo. Tem-se aqui a interpretaciio ou compreensibi- lidade, que pretende situar 0 objeto de forma a apreender-lhe 0 sentido. O objeto reduz-se ao seu sentido. Toda e qualquer dis- posig&o possui a sua compreensibilidade. A compreensibilida- de, por sua vez, vem sintonizada com o humor. A compreensio subsiste no poder ser da presenga. A compreensio em todas as dimenses essenciais conduz as possibilidades, possuindo a es- trutura existencial do projeto, A compreensao projeta o presenga para sua destinagao. Na compreensao, a presenga pro- jeta seu ser para as possibilidades. A interpretaciio se funda em uma visdo prévia, segundo uma possibilidade de interpretaciio, logo nao isenta de pressuposto. O sentido, que consiste na sus- tentagdo da compreensibilidade, articula-se na abertura da com- preens&o com sua caracteristica basica de interpretagio. Diz Heidegger: “Sentido é a perspectiva em fungio da qual se estrutura © projeto pela posigao prévia, visio prévia e concepeao prévia. B a partir dela que algo se Lorna compreensfvel como algo”, (/d., p. 208) Conseqiientemente, a terceira constituigio existencial da pre- senga é a discursividade. Heidegger (1989) afirma que o funda- mento ontolégico-existencial da linguagem € 0 discurso, onde se articula a compreensibilidade, no qual se encontra inserida a dis- posigdo do ser-no-mundo. ‘Ana Maria Lopez Catvo Feuoo - 84. mundo, Sao elas: “De que temos medo?”, “O que é ter medo?” e “Pelo que temos medo?”, Em “Ser e tempo”, Heidegger afirma (id., p. 197): “Todas as modificagdes do temor, enquanto possibi- lidades de disposigdo, apontam para o fato de que a pre-senga, como ser-no-mundo € ‘temerosa’”.

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