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COfOS Capitulo VI SONHO E REALIDADE: PRINCIPIO ISOMERFICO DE IDENTIDADE Eu, Chuang-Tse, certa vex sonhei que era uma borboleta, voando de um lado a outro com os objetivos ¢ motivagées de uma borbo- Jeta, Eu sé sabia que, como uma borboleta, seguindo os meus destinos de borboleta, nao havia consciéncia da minha natureza humana. De repente acordei, ¢ ali estava cu, cu mesmo outta vez. Agora me resta a ciivida: eu era um homem que sonhou ser uma borboleta, ou sou agora uma borboleta sonhando que é homem? Chuang-Tse Introdugao Desde a mais remota época, os sonhos tém despertado interesse e fascinio. Um antigo texto egipcio anuncia, por exem- plo, que “Deus criou os sonhos para indicar 0 caminho ao so- nhador, cujos olhos esto na escuridao”. O interesse pelo sonho veio intrigar os psicdlogos, os psi- canalistas e os psicofisidlogos. Freud (1972c), por exemplo, diz que o sonho é 0 caminho mais adequado pata se chegar ao in- consciente. Fritz Perls (1977b), criador de Gestalt-terapia, fugin- do dessa orientag’o, nos diz que o sonho representa partes da personalidade que precisam set integradas. As pesquisas na fisio- logia vieram a nos fornecer dados muito significativos: saber que todos sonham, embora nem todos possam se recordar deles; que os adultos sonham de 5 a 7 séries oniricas (a cada 90 minutos Cristina 8, ERTHAL, PsICOTERAPIA VIVENCIAL 149 um sonho); que os mais idosos sonham menos etc. Enfim, so- nhar parece ser essencial ao organismo. De acordo com pesqui- os dados indicam que aqueles que nao sao capazes de se lem- brar de seus sonhos s&o pessoas mais autocontroladas, mais ini- bidas, mais defensivas diante de situagdes interpretadas por eles como desagradaveis. O mais importante agora é verificar que o sonho pode conter uma mensagem existencial do sonhador para si mesmo, o como ele ée a sua situagdo no mundo. Adequadamente inter- pretado, pode ser de muita ajuda ao trabalho psicoterapico. Examinaremos agora como os sonhos sao definidos e trabalhados na abordagem analitica, assim como na abordagem existencial. Exemplos s4o aptesentados pata um maiot esclare- cimento. 1. O sonho na vertente freudiana Freud foi o responsavel pela iniciagio dos sonhos no campo da ciéncia. Baseado na entao idéia de que a vida psiquica do individuo nao se prende apenas ao que toca ao consciente, os sonhos vém representar as forcas inconscientes que trabalham pelo homem. O que Freud fez foi decifrar-the a linguagem. En- tretanto, o simbolo onjrico estava, pata ele, carregado de ‘sim- bologia sexual — seus elementos acabam por criar uma significa gao Unica. Psicanaliticamente, um sonho pode ser a exptessao de ne- cessidades fisicas. Neste caso, a funcao do sonho é de proteger © sono fealizando, em plano imaginatio, a necessidade premen- te. Pode ser ainda a expresso de satisfagao de desejos simples ¢ puros, o que ocorre com mais freqiténcia em criangas, onde o disfarce simbdlico ainda nao existe. O sonho de um adulto é prati- camente sem sentido e com muitas informagdes cruzadas; sen- do, por esse motivo, carregado de ansiedade. Em contraste com o sonho infantil, o do adulto é encerrado em barteiras impeditivas da expressao direta de um desejo, pois enquanto uma ctianga tem apenas estimulos externos que a obstruem, um adulto possui barrei- ras internas bem mais acentuadas. Quanto mais clara sua expres- sio, bem mais acentuadas, mais ansiedade ptovocada; daf o dis- farce do desejo em formas mais acolhedoras de vivéncia. Assim, a tendéncia inconsciente pode ser expressa sem ptovocar con- flito com a consciéncia —ao invés de acordar, a pessoa dorme. Freud (1967) nos diz que .. a atividade animica diurna tem despertado uma série de idéias que tém conservado algo de sua eficacia, escapando assim 4 ge- ral anula¢ao do interesse que traz consigo 0 repouso e consti- tuia preparacao espiritual do dormir, Esta série de idéias con- segue, durante a noite, pér-se em conexfo com um dos de- sejos inconscientes que desde a infancia do sujeito acham sempre presentes em sua vida animica, ainda que por regu- lar reprimidos e exclufdos da existéncia consciente. Por meio da energia que presta este apoio inconsciente recobram sua eficacia as idéias residuais da atividade diurna e ficam capa- citadas para surgir na consciéncia sob a forma de um sonho. Assim, de acordo com ele, as idéias sofrem um disfarce, que € a participagao-mor do inconsciente; ocupam a conscién- cia num momento em que nao pode ser acessivel; e tornam pos- sivel que algum fragmento do inconsciente emerja 4 conscién- cia, fato que setia impossivel em outras circunstancias. Sao as idéias latentes do sonho, na verdade, idéias pré- conscientes, pois j4 foram conscientes em algum momento da vida desperta. A partir da interpretacao analitica, o psicanalista torna ao reprimido consciente, chegando a fornecer os elemen- tos intermediarios do pensamento que sfo transformados em petcepgGes claras. Ocenredo é0 contetido manifesto de um sonho, enquan- (o que as experiéncias em disfarce, ou seja, as deformacédes que um sonho softe pata tet a sua expressao garantida, constituem 0 contetido latente. Resulta do aftouxamento da censura prove- niente do superego, durante o sono, permitindo que o inconscien- tc se manifeste. A interpretagao é a técnica capaz de atingir esse contetido latente, o que nao quer dizer que a sua aceitagio seja obtida imediatamente. Se j4 houve resisténcia anterior, vinda do representante do poder social, nada mais natural que se proceda da mesma forma quando a interpretacao atinge o disfarce. Sen- do a totalidade do sonho censuravel, Freud teve que langat mio da associagao livre na intengao de atingir o que realmente eta la- tente. Elementos isolados nao so, por si mesmos, capazes de ofender a personalidade consciente, dai o facil acesso. A natureza dos sonhos quase sempre significa a realiza- gao de um desejo. Quando um sonho tem a refetida meta, Freud chamou essa funcao de solucionadora. Fo que dizer de sonhos que tém uma expressao desagtadavel? Como satisfazer desejos dessa forma? Freud (em: Alexander, 1976) logo teve uma tes- posta: trata-se de um sonho sem disfarce bastante. Se a pressio for excessiva, e se nao houver forga inibidora suficiente para re- sistir a tal pressao, os sonhos aparecem através de uma lingua- gem ameagadota e desagradavel. Trata-se de sonhos associados a culpa ¢ reparac’o, onde o sofrimento é uma espécie de expia- ao. Mas ainda assim existe um disfarce: a autopunic¢ao, por exem- plo, pode aparecer sob a forma de castigo disfarcado e, portan- to, mais brando. Nao nos devemos esquecer da funcao proteto- ta que o sonho tem sobre o sono. Ha casos, no entanto, em que essa distorcao nao é suficiente, e af o paciente acorda em panico. As idéias latentes do sonho nfo se diferenciam em nada dos ptodutos de nossa ordinaria atividade psfquica consciente, PstCOTERAPIA VIVENCIAL 151 Pode aplicar-se 0 nome de idéia pré-conscientes, por haver sido conscientes em um momento da vida desperta. Sio in conscientes todos e cada um dos processos que o constituem (Freud, 1967). Um sonho interpretado psicanaliticamente:' Um homem de negacios, alemio, de idade mediana, procu- rou tratamento de uma depressio severa, acompanhada de impulsos suicidas. A depressio surgiu um ano e meio depois de seu regresso ao servi¢o militar, como oficial, na Primeira Guerra Mundial, quando enfrentou a tarefa de assumir res- ponsabilidades civis. No principio do tratamento, ele narrou 0 seguinte sonho: Estou fazendo uma caminhada com um dos oficiais superio- res do exército russo e constato que ele € 0 Tzar. De stibito, surge um estranho com uma espada, e deseja matar o Tzar. Quero intervir para salva-lo, mas é demasiadamente tarde. O Tzar é assassinado. Separando o sonho em seus componentes e indagando que associacio era possivel fazer em cada parte, o paciente asso- ciou o Tzar como fato de que na Russia ele é chamado de “papai- zinho”. Ligou o oficial no sonho com uma de suas expetiéncias bélicas. Durante uma trégua nas operagées, as forgas adversarias concordaram, por certo periodo, em nao disparar nas trinchei- tas mais prdéximas entre si. Os soldados podiam ver-se mutua- mente, falar-se, e até se conheciam de vista e de nome. Certa oca- siZo, o paciente violou 0 acordo, o que lhe parecia “estranho”, porque na vida normal “niio faria mala uma mosca”’. Justificou sua crueldade pelo pensamento de que os russos estavam pre- parados para matar as mulheres e filhos de seus inimigos. 1 Exemplo titado do livro Fundamentos da psicanilise, de Franz Alexander (1976). Is ‘TeREZA Cristina S. ERTHAL (Quando lhe pedi que fizesse associag6es com a palavra tranho”, cle hesitou. Nada lhe veio a mente, e declarou, abor- recido, que nao sabia quem eta o “estranho”. Disse-lhe, entao, que provavelmente significava a parte estranha de sua petsonalida- de, que havia cometido assassinato. Assinalei-lhe que ele usaraa palavra “estranho” quando descrevera como era contratio ao seu carater bondoso disparar contra os russos. O paciente protes- tou energicamente e disse: Como poderia ser en mesmo se no sonho procure’ salvar 0 Tear? Expliquei-lhe, entio, que ele era o autor do sonho e, se o desejasse, poderia ter salvo o Tzar. Intelectualmente, a afirmagao tornou-se clara, e ele mais tarde teve recordacgdes nas quais os sentimentos hostis pata com seu pai surgiram. ‘Ttaduzindo os simbolismos, e apoiado em uma terapia ana- litica prévia, o rei 6 o simbolo comum do pai. No sonho, o dis- farce foi necessatio, jA que se tratando de uma petsonalidade bon- dosa, nao haveria lugar pata o seu oposto. Qualquer pessoa que representasse autoridade, na qual o pai éa figura-mor, parece pto- vocat um sentimento de hostilidade fortemente apreendido na infancia, A dificuldade de lidar com tal sentimento é disfargada na tentativa de salvar o personagem — exemplo da super com- pensagao do sonho (uma de suas fungdes). Tudo comegou por- que ele precisava reassumir a responsabilidade de se cuidat, ede sua familia, e ndo estava pronto para isso. Retornando ao compor- tamento dependente, reviveu fortemente sua dificuldade diante de autoridades, provavelmente transferida para a situacio teta- péutica, na figura do analista.” (tanz Alexander, 1976). 2. O sonho na exptessio de Jung ‘Também Jung consideta os sonhos como descrigAo au- téntica da vida psiquica. Ao invés de analisar um tinico sonho, como o fazia Freud, Jung utiliza uma série deles. O método das PsICOTERAPIA Viv 153 séties de sonhos 6, inclusive, uma das contribuigdes ao estudo de casos. Tal série é organizada pelo préprio individuo que so- nha. A leitura de seus textos elucida as passagens dificcis de cada um. O que Jung na realidade faz é utilizar 0 método da consis- téncia interna, da psicologia, para interpretar o contetido mais importante, que naturalmente é inconsciente ao individuo. O sonho se aptesenta de forma simbédlica, representan- do, espontaneamente, a situagao do inconsciente. Bouma espé- cie de formacio nativa do inconsciente, onde nao ha disfarce; 0 sonho € 0 que é, exprimindo seus personagens em uma lingua- gem simbdlica ¢ arcaica. Ao contratio de Freud, Jung nfo aceita que 0 sonho seja uma realizacio de um desejo apenas. O con- tetido do sonho se refere a'uma realidade. Os petsonagens, quan- do conhecidos, se apresentam como sao, Entretanto, se apare- cem figurantes que nao fazem parte do circulo do sonhadot, ad- quitem significagao especial: trata-se de fatores aut6nomos, prd- ptios da psique de quem sonha. Para Jung (1953), “todas as fi- guras do sonho sao aspectos petsonificados da personalidade do sonhador”. Assim, na medida em que o sonho é um indicador de fatos reais, ao mesmo tempo em que pode conter imagens que tepresentam fatores psiquicos do sonhador, na pratica exis- tem duas formas de interpretagao: objetiva e subjetiva, respecti- vamente. Seja qual for a interpretagao utilizada, um sonho tem que set examinado do ponto de vista causal € teolégico ou fina- lista. O primeiro é 0 que nos leva ao complexo inconsciente atra- vés das cadeias de associagées tomadas pelos elementos do so- nho —determinagao causal. Os complexos mais enetgizados, atuan- tes no inconsciente, sio descobertos pela segunda abordagem. Pergunta-se qual a finalidade daquele sonho. Para se tesponder atal pergunta, se precisara chegar a examinar o contetido onitico em sua forma mais ampla. Sendo a psique auto-reguladora, os sonhos funcionam, principalmente, como uma espécie de defe- Wd ‘TEREZA CRISTINA S. ERTHAL [a sua fungio compensadora, afitma-nos Jung (1953). Tal fungiio surge quando a atitude consciente torna-se por demais exacerbada—necessidades especificas negligenciadas, por ex. Dai um sonho somente poder set interpretado, conhecida a situa- ¢ao consciente. Existe ainda a funcio prospectiva ligada mais ao incons- ciente: percep¢gdes subliminates, sentimentos ou pensamentos que ainda nao foram apreendidos pelo consciente fazem parte da estrutura do sonho. Dessa forma, podemos dizer que os so- nhos sao antecipagées futuristas, Attavés dos sonhos, chega-se a centralidade da psique. Ese os sonhos sao ligacdes com acontecimentos inconscientes, é€ mais proveitoso interpreta mais de um sonho simultaneamente. Apenas um sonho pouco pode nos dizer. A série de sonhos da uma idéia mais precisa dos processos porque passa o cliente. (Para um melhor aprofundamento neste assunto veja Jung, 1953,). Exemplo de interpretagZo de sonhos na abordagem jun- guiana:? A sonhadora vai andando pela rua, tendo A direita um gato branco ea esquerda um gato preto. Dados alguns passos adiante, precisamente na porta de uma carvoaria, o gato branco trans- forma-se em linda crianga que diz A sonhadora: — Vamos 4 igrejal A sonhadora emociona-se e pensa consigo mesma: nunca me ocupei da educagio religiosa desse gato, cle nao estudou catecismo nem fez a primeira comunhio, e eis que me pede pata i 4 igreja. O gato preto nao sofre nenhuma metamorfose, mas agora a sonhadora catrega-o no braco esquerdo, envolvido numa toalha branca. Logo se acham os trés em pequena e escura capela onde nfo hé altares nem imagens. Vé-se apenas um cio que dorme estendido no solo. De stibito, a crianca transforma-se numa jovem de olhos cla- 2 Tirado do livro Jung, vida e obra, de Nise da Silveira (1975). PSICOTERAPIA VIVENCIAL 155 ros luminosos, vestida de branco. Fla se inclina para 0 cio e acaticia-o. A sonhadora passa o braco direito em torno dos ombtos da jovem com um sentimento de intensa ternura e lhe diz: — Afastemo-nos, porque se 0 gato preto acorda e vé o cho, vai assustar-se e fugit. A jovem concorda com um mo- vimento de cabega sorrindo. Neste sonho, o gato preto representa forgas instintivas obs- curas submersas no inconsciente (lado esquerdo), enquanto o gato branco, pela sua cor ¢ por sua subseqiiente metamor- fose, representa forcas instintivas que tendem a aproximar- se da consciéncia (lado direito), trazendo-lhe sua significa- Ao simbélica. O processo prossegue com a transformagao do gato branco em crianga, simbolo que exprime as potencia- lidades de desenvolvimento do Self e que se afirma clara- mente por suas exigéncias religiosas (- Vamos 4 igreja!). O fato do simbolo do Self assumir forma humana significa, segundo Jung, que pelo menos parcialmente o centro ordena- dor da vida psiquica esta se aproximando da consciéncia e, ainda mais, dando a sonhadora a ordem de conduzi-lo 4 igre- ja, toma papel diretor, deixando ao ego o papel executor. Convém notar que a transformagio do animal em crianca ocorre na porta de uma carvoaria, local usado como deps- sito do produto da queima da madeira, que outra coisa néo ésenao carbono quase puro, O carvao tem, portanto, estreita conexAo quimica com o diamante, é um dos mais universais simbolos do Self. A sonhadora, isto é, a personalidade consciente, surpreen- de-se que, ‘sem ter estudado catecismo’ , 0 gato, agora crianga, deseja ir 4 igreja, ou seja, que aspiragées religiosas manifes- tem-se com oimpulso espontineo. Chegamos a capela, a crianga metamorfoseia-se numa jovem. Isso indica que o processo psicolégico esta desenvolvendo-se aceleradamente: 0 gato branco transformou-se em crianga, e logo as possibilidades nela encerradas desabotoaram na imagem da jovem desco- nhecida. Originando-se de metamorfoses sucessivas, a jovem apresenta-se como um ser mitico, ¢ suas caracteristicas a aptoximam da jovem divina, da Koré mitolégica, apta repre- 156 Tereza Cristina S. ERTHAL sentag&o da personalidade superior, do Self, quando se trata da mulher (seu equivalente no homem é figurado pelo ve- lho sabio). A experiéncia analitica demonstra que a imagem da jovem divina surge freqiiente ao lado da figura da mie divina, esta Ultima quase sempre sob seu aspecto tenebroso. Neste so- nho, a origem da jovem divina que encarna o aspecto lumi- noso do Self é, muito coerentemente, o gato branco. A con- traparte escura, porém, nao se apresenta sob forma huma- na. Acha-se ainda amalgamada na base instintiva, apresen- tando-se sob a imagem do gato preto que nao sofre nenhu- ma metamorfose. Actesce que 0 gato preto dorme nos bra- cos da sonhadora. Também dorme 0 cio, animal de Hécate, deusa-mfe no seu aspecto noturno e sinistro. Isto parece sig- nificat que forcas instintivas opostas do mundo feminino subterraneo ainda nao atingiram condigées de se defronta- rem. Vendo 0 cio, 0 gato preto poderd mesmo assustar-se € fugir, isto é, escapar aut6nomo ao controle da personalida- de consciente. A jovem divina, embora tenha acaticiado o c&o, contacto que poderia ter despertado, aceita que se afas- tem, pois nao chegou ainda o momento do encontro de opostos extremos, proprio das etapas anteriores do proces- so de individuacio. Este processo parece estat desdobran- do, na sonhadora, uns niveis bastante desiguais: terno en- contro com a jovem divina de uma parte, e, de outta, ani- mais et6nicos que dormem profundamente. A tltima cena, passando-se numa capela, sublinha o carter religioso dos fendémenos em cutso. Enttetanto, a capela, embora cristi, aparece sem os seus altares e suas imagens. O lugar é cris- tao, mas a divindade presente veste a forma paga da Koré.” (Nise da Silveira, 1975) Quando uma pessoa se torna o ser deprimido e tnico que é de fato, atinge a individuagio, segundo Jung, Para isso 0 individuo precisa se livrar das camadas da persona (papéis so- ciais que desempenha) ¢ ptecisa se harmonizat com as imagens PsIcoTERAPIA VIVI do inconsciente coletivo (arquétipos). Os sonhos podem de- monstrar esse ptocesso de individuagao. Jung ressalta que inicial- mente tais sonhos indicam simbolos semelhantes 4 transforma- cao psiquica —inundagio, vendaval etc. Depois indicam algo so- bre a sombra (lado escuro da personalidade). ‘Trata-se de carac- teristicas rejeitadas que sio projetadas em figuras (homem ne- gro, gato preto etc.). Os opostos dos sonhos podem significar a sombta. Assim, o sonho demonstra, segundo a intetpretago jun- guiana, que o inconsciente tenta restaurar valores afastados pelo cliente. Como esse esforgo instintivo nao constitui o objetivo pri- mario do mesmo, pode-se dizer que nao hé integtacfo de sua personalidade. 3. O sonho na orientagdo existencial Como ja foi visto no capitulo anterior, para a psicandlise oconceito de inconsciente acaba por nos remeter a um lugar teal depositatio de coisas que nao podem ser acessiveis. O simbolis- mo onjtico nos conduz a uma espécie de “sabio” que existe den- tro do existente. Este homuanculo é visto como sabio porque pos- sui poderes maiores que os do proprio individuo que 0 “guar- da’: ao mesmo tempo em que reproduz em imaginacio a reali- zacao de um desejo infantil, precisa manter fora do alcance de quem sonha o conhecimento de tal desejo, daf 0 disfarce. Para eles existe um desejo ligado a uma representagiio endopsiquica de algum objeto externo, dentro do individuo, apesar dele. Que recipiente € este? Possuimos entes dentro de nds em algum lu- gar vazio que nos determina? Freud inventou tal “sdbio” e de- pois atribuiu a ele o papel de ocultador! Ele nao é somente o cul- pado de falsear os fenémenos, mas também precisa pré-julgar a natureza basica de tais fendmenos. E como se a imagem onirica 15th tivesse uma espécie de consciéncia inconsciente pré-existente ao proprio fendmeno, capaz de atribuir-lhe uma compreensao mental. A decisao do disfarce parte do inconsciente do ego e do superego. Nao é 0 individuo quem decide nada!!! Como ja foi analisado no Capitulo sobre inconsciente, se o sonho éa expressao de um desejo disfargado, como se pode desejar sem ao menos ter consciéncia do que se deseja? > O sonho é uma reconstrugao magica da realidade. No sonho, o indicador ctia uma tealidade prépria que é andloga ao seu estar-no-mundo préprio enquanto desperto. FE evidente que seas fung6es vitais continuam existindo, a producio nfo cessae 0 sonho é uma espécie de prolongamento dessa vida desperta em um outto mundo, o mundo imageante.” O estat-no-mundo 8 Cabe aqui uma explicaciio do que vem a ser a imaginagio. A imaginagio é uma das maneiras possiveis da consciéncia visar um objeto. Tanto a percep- Gio quanto a imaginagio silo modos diferentes de consciéncia, Uma imagem niio pode ser uma coisa sno uma relagio estabelecida com 0 objeto. O que existe € uma consciéncia imageante que determina a apreensio de conheci- mentos ou relagdes emocionais sobre o objeto que provocam contetido men- tal. A imagem 6 uma espécie de fantasia, pois nada fornece aos seus senti- dos; esse fantasma é gerado pela analogia. Assim, no ato de imaginar, o que criamos € epifendmeno. A imagem se desintegra no nada. A consciéncia da imagem representa uma forma mental, Dessa mancita, a imaginagio é uma apteensfio do nada, 0 que confirma o poder de modificagio da consciéncia. Enquanto na percepgio a liberdade de consciéncia é invadida por um objeto material, na imaginagao ela permaneceu livre totalmente, puro nada. A dis- tingaio entre ambas no pode se fazer como era habito na psicologia clissica, em cima da presenga ou auséncia fisica de um objeto, jé que isso é uma per- manente incognita. A diferenca entre eles somente pode ser sentida nos atos intencionais que, respectivamente, as constituem. Enquanto 0 ato petceptivo petite ao sujeito a aquisicio de novos conhecimentos (0 verso de um cubo pode ser surpreendentemente plano, o que faria dele, na verdade, uma pira- mide), 0 ato intencional imageante nunca reserva surpresas ou novos conhe- cimentos, uma vez que tudo que constituiré a imagem j4 setia de conheci- mento do sujcito. Através do imaginatio, criamos 0 que queremos, pois nele 4 liberdade é absoluta. PSICOTERAPIA VIVENCIAL 159 catacteriza a relagao da consciéncia que sonha, pois se trata de um mundo imagindrio no qual a consciéncia néo pode perceber; nao se sai da atitude imageante enquanto se sonha. Todo sonho éimagem, é um produto da consciéncia. Para Sartre (1940), “O mundo do sonho nfo se explica (enquanto se sonha), salvo se se admite 4 consciéncia que sonha como privada por esséncia da faculdade de perceber. Nao percebe, nem trata de perceber, nem pode conceber sequer o que é uma percepgio...” Dai a idéia de um agente inconsciente que condensa ou desloca contetidos la- tentes, agindo enquanto o individuo, que o pertence, sonha, fica sem sentido ou contraditéria. Existe na imaginagio da existén- cia sonhadota como uma espécie de deménio capaz de simboli- zat e ptojetar aquilo que seleciona. Com que prova podemos con- cordar com tal abstracio? E 0 que € 0 sonho pata o existencialista? Ao invés de set o caminho para o inconsciente, é 0 caminho para uma in- tegtaciio, partindo do principio de que ele contém partes de nos- sa personalidade. Se considerarmos que existe um paralelismo, um principio isomérfico de identidade (conceito extraido da matemiatica), entre os tragos existenciais expressos pelas presen- cas sensoriais do sonhar e as significacdes percebidas dos entes sonhados pelo individuo que sonha, uma compreensfo feno- menoldgica de tais clementos oniticos em toda a sua ampla sig- nificagéo nos fornecera o modo particular (imageante) de ser- no-mundo que ocorre durante o sono, que, através da cons- ciéncia reflexiva, nos fornece um cabedal de explicagdes ao que ocorte agora no seu teal estat-no-mundo, Ao invés de interpre- tar para o cliente tais significados, consetvamos 0 sonho exata- mente como aparece ao sonhador, permitindo a ele petceber o scu prdprio significado. Se as situagdes do sonho significam as possibilidades existenciais do individuo, cabe ao tetapeuta en- cotajar o cliente a pensat numa telacao entte o sonhador ea vida loo INAS. ERTHAL desperta. Uma interpretagio nao pode set uma verdade abso- luta; niio existem verdades absolutas e, portanto, varias inter- pretagdes s&o possiveis para um mesmo acontecimento. Para a psicanalise a linguagem do sonho é analisada somente na sua fungao semantica: andlise da estrutura morfolégica e sintatica. Vecha-se, assim, a distancia entre significado e imagem, e a di- mensao que a imaginacdo adquite individualmente é despreza- da ou omitida. A imagem possui seu préprio poder dinamico: a interpretacdo ja esta contida na imagem. O fiacasso da psica- nalise, no que toca aos sonhos, reside af: ver a sua realidade como linguagem. Nao é certo, ainda que possivel, j4 que a psi- canalise o faz, mantet uma identidade imediata entre imagem e significado apenas unida pela nogio de simbolo. O ato de sig- nificagao transcende a expressao verbal ou estrutura de imagem a ser significada. Dessa forma, uma interpretacio baseada no centro de referéncia do terapeuta, ou em um marco referencial tedrico universal, falseia scus resultados. Um terapeuta, ao usar ainterpretagdo racional para os mecanismos de defesa que o in- dividuo “inconscientemente” utiliza, esta reforgando a intelec- tualizagdo através do uso de idéias como substitutos das expe- tiéncias ou vivéncias reais. A intelectualizagio pode set uma de- fesa que o individuo langa mao pata se proteger do significado do sonho. . De acordo com a teoria analitica, quando o psicanalista aproxima-se da verdade existe o que se denomina tesisténcia (aquilo que se contrapSe ao processo do tratamento psicanaliti- co). Que resisténcias sfio essas? A psicandlise fala de resisténcias do ego e do superego. As do ego sio: resistencia do recalque — mecanismos de defesa surgem para evitar o softimento causado pelo possivel ingresso de material recalcado ao nivel da conscién- cia; resisténcia transferencial — concretizagao de episédios pas- sados recalcados, usando como cenario a sesso terapéutica; e PSICOTERAPIA VIVENCIAL 161 resisténcia do lucro secundatio — 0 individuo obtém satisfagao com a sua doenga. A ptoveniente do superego esta ligada 4 culpa e 4 puni- cao. O apelo ao moral paralisa o processo terapéutico. Seja qual for a resisténcia existente, eles acreditam ser esse mecanismo in- consciente ao individuo. Mas dentro dessa estrutura repartida de mente, qual realmente é parte responsavel por esse mecanis- mo? Eo censor que sozinho compreende as questées € as repri- me. Enttetanto, se o censor deve escolher, deve estar conscien- te, em algum grau, daquilo que quer esconder. De acordo com Sartre (1943): ‘Todo conhecimento é consciéncia do conhecido. Assim,a resis- téncia do paciente no nivel do censor, uma consciéncia da coisa reprimida tal como uma compreensio do fim em dire- ao ao qual as questdes do psicanalista so conduzidas, éum ato de conexio sintética pelo qual compata a verdade do com- plexo reprimido com a hipétese psicanalitica que 0 objetiva. O censor é consciente de si. Mas que tipo de autoconsciéncia pode o censor ter? Deve estar consciente de ser consciente do drive a ser reprimido, mais precisamente a fim de nao ser consciente dele. O que significa isso senaio 0 censor estat de ma-fé? Na verdade, acredito, existem dois tipos de resisténcias: aquelas dirigidas aos contetidos inaceitaveis e as ditigidas 4 mu- danga. Com o objetivo de nao aumentar a resisténcia na primei- ta, a psicandlise trabalha a servigo da segunda. Embotra a pro- posta tedrica seja um trabalho contta as resisténcias para que o inconsciente se torne mais acessivel, na pratica acaba por favo- recer as barreiras contra a mudanga, isto é, a propria atitude te- tapéutica com seus dogmas tedricos, e sua patticipacao “neutra” reforga a forga que se ope 4 mudanca. Baseio-me no conceito da reactancia para fundamentar essa tese. De acordo com Brehm (1966), toda a vez em que um individuo sente sua liberdade de escolha ameagada, dentro dos limites dos varios comportamentos que compdem seu repertd- rio, experimenta um desejo de recuperar a liberdade ameacada ou perdida. A essa tendéncia de recuperar a liberdade deu o nome de reactancia psicolégica. Afirmag6es muito categéricas explicitadas pelo terapeu- ta, assim como intervengdes que impliquem em superioridade ou imposigo de autoridade para prescrigdes de comportamen- to, so um meio comumm de propiciar a restti¢do do cliente para atuar segundo sua propria escolha. Por exemplo, ao interpretar o matetial que o cliente expe, com base numa teoria, como faz 0 psicanalista, 0 cliente pode “resistit” a tal fala justamente por se sentir impedido de escolher sua propria interpretacio. Sera melhor afirmar que a resisténcia se deva 4 ameaga da interpreta- Ao ao que éinconsciente, ou que a resistencia se deva ao terapeuta que se torna uma ameaga 4 liberdade do individuo? Segundo nossa opiniao, uma interpretagfio provoca a reatancia e diminui a possibilidade de mudanga. Quando a vet- dade surge espontaneamente, nao existe defesa. Qualquer sonho — complexo ou simples — pode revelar o modo existencial de expressio de uma pessoa. Os fendmenos a que 0 sonhador esta exposto, assim como as respostas que 0 mesmo emite Aquilo que se lhe revela, sio mostras bastante con- fidveis dessa telagao. Se no sonho aparecem fragmentes da pet- sonalidade do individuo, tentamos juntar tais pedacos ¢ extrait a mensagem que o individuo tem dai. Se os interpretamos nds mesmos, evidentemente contaminamos os contetdos com nos- sas expectativas tedticas. Podemos reparat que a propria lingua- gem do cliente analisado esté contaminada de atos falhos, por enredos oniticos, por expressdes proprias que o analista reforga na sua propria expressio. Da mesma forma ocorre com os clien- PSICOTERAPIA VIVENCIAL 163 tes provenientes de uma psicoterapia de base existencial, j4 que sfio encorajados em termos tipicamente existenciais. 1¢, portan- to, o teferencial terapéutico que determina a associagao livre que o cliente fara, sendo por isso muito petigosa uma interpretagio por parte do técnico. Quando é dada ao cliente a tarefa de relatar seu sonho ¢ a ele se deter em toda sua significacfo, pode ser possivel com- por seu quadro—enquanto desperto —daquilo que foi vivenciado ao sonhar. Logo, a meta é esclatecet o teal ser-no-mundo do so- nhador que nao existe enquanto no sonho. Primeiramente ele descreve que tipo de coisas sonha pata depois descrever a rea- g4o diante dessas coisas, sempre nos detendo naquilo que foi obsetvado pelo sonhador. Qual o sentimento presente? Qual a mensagem existencial que parte desse estado animico? O estar desperto e o sonhart sao modos particulates de existit do mesmo individuo. O sonho e o despertar sSo diferen- tes, embora pertencentes ao mesmo Dasein. O estar despetto e o sonhat, que nado passam de dois modos diferentes de conduzir 4 realizagio da mesma existéncia hu- mana historica, pertencem juntos a essa mesma existéncia. Isso explica porque a continuidade em histdria nfo é interrom- pida nem mesmo nos sonhos. Enquanto sonhamos, a nossa continuidade histérica é preservada na medida em que pelo menos reconhecemos a nds mesmos como a mesma pessoa que fomos quando estivamos despertos. Ambos os estados compartilham as mesmas caracterfsticas: especialidade, tem- poralidade, afirmagio ou disposicao, historicidade, mortali- dade e corporeidade (Boss, 1979). Essa € a explicagdo do sonho ou imagem como tepre- sentante do real, sem, no entanto, sera tealidade. Fritz Perls (1977b), criador da Gestalt-terapia, um tipo de tratamento bastante existencial em sua aplicagio, da uma én lod ‘TEREZA CRIsTINA S, ERTHAL. s¢ maior aos sonhos. Baseado no postulado do Zen, de que 0 inclividuo precisa se identificar com uma coisa dada para podet xtrait-lhe o significado, acredita que somente se 0 individuo se metamorfoseia nesse algo que nao é 0 proprio individuo, é que © cle aprende verdadeiramente 0 que significa, ou seja, a pessoa de a se identificar com algo que niio é. Nao se trata de divi- dit os sonhos em partes e encontrar significados baseados em interptetagGes ou associagées livres (ou serao dissociagdes?). Perls (1977b) declata que, ap’ em vez de analisar e contar o sonho, nds queremos trazé-lo de volta 4 vida. E. 0 jeito de trazé-lo é reviver o sonho como se ele estivesse ocorrendo agora. Em vez de contar o sonho como uma estéria do passado, encene-o no presente, de modo que ele se torne vocé, de modo que vocé realmente se enyolva, O cliente precisa detalhat o sonho pata que 0 possa revi- ver intensamente sem a ajuda do terapeuta. Identificando-se com cada parte do sonho, pode chegar a integtar suas partes como se faz num quebra-cabega. Entdo, primeiramente 0 individuo rela- ta o sonho, depois revive, no presente, cada parte, e s6 ent&o faz com que cada parte se encontre entre si. E mais ou menos o que ocorre num enredo teatral; um desempenho de papéis. IEXEMPLO DO TRABALHO DE SONHOS NA TERAPIA EXISTENCIAL Antes de aptesentarmos um sonho analisado existen- cialmente, gostariamos de tentar analisar os sonhos apresenta- dos antetiormente, tomando o trabalho existencial como base. [evident que se o sonhador nao esta presente, o resultado nao podera estar completo. Mas 0 que se pretende é apenas demons- PSICOTERAPIA VIVENCIAL, 165 trar que o significado esta expresso na propria vivéncia do cli- ente e nfo num suporte tedrico que lhe é anterior. a) ANALISE EXISTENCIAL DO PRIMEIRO SONHO APRESENTADO A depressao associada ao ingresso ao servigo militar pa- rece indicar o forte medo que o cliente possuia de assumir gtan- des responsabilidades. A imagem que parecia ter de si mesmo era de uma pessoa incapaz de fazer mal a qualquer um — incoe- rente com a fungao que lhe foi atribuida. Um conflito parece ter sido instautado. O cliente relembra acontecimentos em que agiu em contraste com tal imagem, o que lhe fez muito mal, embora usasse de toda racionalizagio possivel para justificar sua atitude. Evidentemente tais defesas eram conscientes ao cliente — com- portamento de ma-fé — impedindo, assim, de atingir tal objeti- vo. Culpar outros pelas irresponsabilidades é sempre mais facil, mas sera que é convincente? O sonho retrata um conflito: pro- cura set herdi, embora fracasse em sua tentativa. Provavelmente se fosse dado ao cliente o direito de in- terpretar seu sonho, de vivencia-lo em suas partes, ele pudesse alcancar a mensagem existencial que o sonho continha: o medo de ter que assumir grandes responsabilidades, j4 que ele nao se vé capaz para isso. A dificuldade de aceitar suas limitagdes como fazendo parte de si mesmo, assim como a sua necessidade de manter uma boa imagem social, 0 fez usar a ma-fé. Conscientizar- se de tais dados promoveria um maior ctescimento decorrente da maiot aceitag4o. Nada do que foi dito é inconsciente ao cliente, no senti- do freudiano. Quando muito, podemos dizer que nao esta cons- cientizado (refletido sobre o fato), mas é consciente (conscién- cia de 1° grau). Na medida em que o cliente se responsabiliza por seus medos, haa reflexfo e diminuicio da m4-fé! lot ‘Tereza Cristina S, BRTHAL h) ANALISE EXIST NCIAL DO SEGUNDO SONHO Numa linguagem cortada e metaférica, o sonho dessa clicnte parece expressat um conflito quanto ao tema religiosida- de, qual nao parece conviver de forma integradora. Aceitar ou nao a religido como fazendo parte da vida, é uma escolha do in- dividuo. Entretanto, as exigéncias sociais sio, por vezes, fortes forgas influenciadoras de conflito, caso o individuo tenha uma imagem fragil de si e necessite, com isso, de aprovacio. Partindo do principio de que a cliente deveria viver cada personagem — gato branco, gato preto, crianca transformada, cri- anga encarnada na visio de deusa, capela, cachorro e ela como espectadora—o que apenas podemos dizer é que talvez exista de um lado uma exigéncia que a cliente faz a si mesma de seguir uma rcligiao ou ter principios religiosos, e de outro 0 de nio fazer parte de sua existéncia até o presente momento. Opostos sao aptesen- tados (gato branco x gato preto; gato x cachorro; 0 puro x 0 sujo) como uma tentativa de superacao talvez: 0 que era gato se trans- forma em pessoa que se telaciona com o cao; 0 gato preto, que poderia significar na linguagem lendatia algo que assusta pela conotagao de mé-sorte etc., é apagado pela sonhadora. Entretanto, cabe notar, um lado ctesce, se apresenta puro c irreal, enquanto que o outro se mantém inalterado. Como hi-* potese pode-se examinar que é como se a pessoa temesse dat crescimento a ambos os aspectos, ressaltando um em dettimen- to do outro. O conflito aparentemente desaparece. A anilise junguiana, que se apdia na existéncia factual de arquétipos endopsiquicos que pertencem ao inconsciente cole- tivo, é uma conclusao légico-abstrata que naio pode garantir uma correspondéncia com a realidade, Enxergar os componentes do sonho como simbolos que contém mensagens atcaicas parece afastar a possibilidade de uma possivel compreensao do ser-do- PSICOTERAPIA VIVENCTAL 167 mundo do cliente. E. um reducionismo subjetivo sedutor, porém irreal. Os personagens tém uma existéncia em si, ea analogia com a vida desperta precisa set vivenciada pelo cliente. Portanto, o modelo é dele! Assim, apenas a sonhadora poderia se dar conta realmen- te do que esse sonho significa. Ao interpretarmos o sonho para a pessoa que realizou a experiéncia, caimos num ridiculo jogo intelectual que pode ser deveras interessante, mas que nao levaa nada; a no ser a prdpria fuga da responsabilidade. A interpretagZo junguiana nos reporta a um refetencial tedrico ausente do “contexto” do sonho em si, procurando trans- format os entes naquilo que eles “realmente significa’. Basean- do-se na idéia de que os fendmenos oniticos so elaboragdes de forgas atquetipicas provenientes de um inconsciente coletivo, se mantém ausente do experienciar do cliente, permanecendo no mitolégico como imposi¢ao de uma verdade. Do que foi exposto percebe-se que a tese das “psicologias profundas” é que o sonho nao é 0 que aparenta set: existe um in- consciente que tapeia o sonhador. As intervengées freudianas- junguianas nao parecem interpretar, de forma inteligivel, o sonhar. Seu objetivo é reinterpretat os dados, com apoio de um referen- cial tedrico, afastando-se, por isso mesmo, dos fatos observaveis. A significagao do sonho é dada pelo analista. Ao contrario, na terapia vivencial o terapeuta coloca toda a énfase no centro de re- fer€ncia do cliente; este é quem dé a sua significagao aos dados. Além do mais, tudo 0 que existe no sonho possui um carter especifi- co de realidade. Nao sio apenas os petsonagens € 0 cenario que s4o comuns ao estado desperto e do sonhar; as formas de atuar da pessoa também o sao. De acordo com Boss (1979), 0 analista precisa encorajar repctidamente o sonhador des perto a visualizar os entes que aparecem A luz da sua exis

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